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Luís Santiago Baptista dafne editora opúsculo 24 —   Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura —  zaha hadid na máquina do espaço tempo

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Luís Santiago Baptista

dafne editora

opúsculo 24 —  Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura  — 

zaha hadid na máquina do espaço tempo

opúsculo 24   *  dafne editora,   Por to, Julho 2010  *   i s sn 1646–52 53d.l.  246357/06  *  edição André Tavares  *  design M Granja  *  www.dafne.com.pt

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zaha hadid na máquina do espaço tempo

Zaha Hadid é uma grande cineasta. Vê como uma câmara. Percebe a cidade em slow motion,

em pans, swoops e close-ups, em jump-cuts e narrative rhythms. E desenha o mundo à sua volta

extraindo os seus espaços inconscientes. Encontra o que está latente nas construções do nosso

mundo moderno e projecta-o em utopias. Audaciosamente explora, abranda e acelera os ritmos

do quotidiano e submete o meio ambiente à exposição cirúrgica da arquitectura como forma de

representação. Constrói a explosão do décimo de segundo.1

Em 1941, Sigfried Giedion publicava Space Time and Architecture, uma compilação  das  suas  palestras  Charles  Eliot  Norton  realizadas  na Universidade de Harvard entre 1938 e 1939, avançando com uma tese fundamental  sobre a emergência e desenvolvimento da arquitectura moderna.  Giedion  não  era  uma  personagem  qualquer,  era  um  his-toriador peculiar que não só analisava fenómenos muito recentes da modernidade arquitectónica, suprimindo a distância temporal da ava-liação  histórica,  como  igualmente  desempenhava  uma  função  inter-ventiva nessa mesma história, renunciando à neutralidade subjectiva do  juízo  histórico.  Analisando  o  tempo  presente  e  assumindo  um papel activo nos factos, Giedion apresentava a tese do «crescimento de uma nova tradição» de raiz moderna. 

Tenho tentado estabelecer, tanto por argumentação como por evidência objectiva, que apesar da aparente confusão existe efectivamente uma unidade verdadeira, mesmo que oculta, uma síntese secreta na nossa civilização actual. Perceber porque é que esta síntese não se tornou uma realidade consciente e activa tem sido um dos meus principais objectivos.2 

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Para  Giedion,  o  projecto  arquitectónico  moderno  apresentava  um novo  programa  estético  que,  unindo  «métodos  de  pensar»  e  «méto-dos de sentir», «ciência» e «arte», respondia afirmativamente às altera-ções perceptivas e existenciais emergentes com a modernidade.3 Para definir  essa  nova  concepção  moderna,  convocou  explicitamente  as pesquisas das vanguardas históricas, propondo uma  síntese dos pro-gramas cubista e futurista que introduziam uma nova unidade espacio-temporal na linguagem da arte.4 Por um lado, a «investigação do espaço» do cubismo rompia com a «perspectiva renascentista», através de uma composição fragmentária dos «pontos de vista» sobre o objecto. Por outro lado, a «investigação do movimento» do futurismo contrariava a concepção «estática» da percepção da realidade, através da composição sequencial dinâmica do objecto. Se, na primeira situação, temos uma fragmentação do objecto como realidade material, na segunda temos uma deformação do objecto como experiência dinâmica. Em ambas as tendências, a investigação da percepção humana realizava-se através da compreensão do mundo como fenómeno espacio-temporal, obser-vável respectivamente na sobreposição dos pontos de vista num novo complexo espacial temporalizado e na materialização do movimento numa  nova  realidade  temporal  espacializada.  Em  suma,  Giedion entrevia um novo paradigma estético na confluência da espacialidade multi-perspéctica  cubista  com  a  temporalidade  dinâmica  futurista, encontrando, no campo da arquitectura, as suas primeiras manifesta-ções  convincentes  nas  obras  de  Walter  Gropius,  Le  Corbusier,  Mies van der Rohe e Alvar Aalto.

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Uma «Nova Modernidade» de derivação suprematista

Zaha  Hadid  é  uma  arquitecta  confiante  nas  esperanças  abertas  pela modernidade arquitectónica. O seu fascínio pelo período heróico da arquitectura moderna centra-se, acima de tudo, na vastidão dos objec-tivos e vontades presentes nessas pesquisas artísticas e arquitectónicas. É, na verdade, o entusiasmo na capacidade transformadora que funda-menta o interesse de Hadid pelas vanguardas históricas:

…só existe uma via e essa está em seguir o caminho aberto pela experi-mentação dos primeiros Modernistas. Os seus esforços foram abortados e os seus projectos não foram testados. A nossa tarefa não é recuperá-los mas desenvolvê-los ainda mais. Esta tarefa de realização do verdadeiro papel da arquitectura, não apenas esteticamente mas programatica-mente, desvendará novos territórios.5

Mas Hadid não recupera  indiscriminadamente esse  legado moderno. Pelo contrário, tenta perceber criticamente não só as suas falhas estra-tégicas mas, principalmente, as suas potencialidades inexploradas. De facto,  Hadid  entende  a  modernidade  arquitectónica  como  um  fenó-meno multifacetado, transcendendo a unificação institucionalizada pela Bauhaus e pelos CIAM. As suas investigações sobre as vanguardas histó-ricas permitem-lhe compreender as tensões internas e a pluralidade de posições que estão na base da emergência e desenvolvimento do movi-mento moderno, para lá da pretendida unidade de pontos de vista e gene-ralização de metodologias operativas. Se a arquitectura moderna tinha caminhado no sentido da investigação de processos de racionalização, tipificação e na ideia da reprodutibilidade dos modelos, então terá sido esse o erro inerente ao seu fracasso prematuro. O que Hadid procura é um vínculo diferenciado daquele que se encontra no desenvolvimento da arquitectura moderna, retornando ao ponto de partida para cons-tituir uma perspectiva alternativa, mais livre e aberta, purgada da sua ingenuidade programática e unilateralidade estratégica. Neste sentido, não  se  trata  de  uma  recuperação  nostálgica  de  um  projecto  falhado mas da reactivação entusiasta de um programa incumprido.

No  âmbito  do  projecto  arquitectónico  moderno,  Zaha  Hadid investiga especificamente as vanguardas russas.6 A eleição dos movi-mentos artísticos e arquitectónicos russos do período revolucionário 

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fundamenta  essa  vontade  de  reanimação  desse  magnetismo  profé-tico  da  modernidade  arquitectónica,  potenciado  pela  síntese  entre  a necessidade ética de constituição de uma nova sociedade e a exigên-cia estética de construção de um novo meio arquitectónico. Torna-se significativo, neste contexto, o interesse de Hadid pelas investigações plásticas do suprematismo de Kasimir Malevich, que se diferenciam das dominantes abordagens conceptuais da abstracção europeia. Embora os  movimentos  abstractos  europeus  tenham  vivido  na  generalidade dentro do mesmo âmbito programático, a realização sintética de uma nova realidade plástica, o suprematismo orientava-se para uma relação mediadora mais intuitiva entre sujeito e objecto, entre criador e obra.7 Distanciando-se  da  instrumentalidade  da  razão  moderna,  o  artista russo explorava o que denominava, na definição  inaugural do  supre-matismo, de  «razão  intuitiva», procurando  realizar uma síntese entre racionalidade e sensibilidade. De certo modo, a universalidade da arte suprematista encontra-se mais nas faculdades intuitivas do sujeito do que nos processos de racionalização teórica sobre o objecto. Para Male-vich, a razão como faculdade só o é em exercício, ou seja, é através da experiência que a racionalidade se determina e o mundo se configura.

O programa estético delineado por Malevich parece assim encaixar perfeitamente  nas  preocupações  de  Zaha  Hadid  na  procura  de  uma modernidade alternativa que, recusando o espartilho criativo da lógica racionalizadora  moderna,  liberte  o  potencial  criativo  da  subjectivi-dade. O que Hadid encontra no suprematismo é a não neutralização do papel da subjectividade na actividade criativa, ou seja, a possibilidade de exploração de uma racionalidade atravessada pela intuição:

Creio que pertenço a uma tradição distinta, mais emocional, mais intuitiva. E, por intuitiva não quero dizer instintiva. A intuição é um somatório de racionalismo e experiência. Devemos ser capazes de operar conjuntamente com a lógica e a intuição, simultaneamente.8

No limite, a arquitecta iraquiana habita esse espaço que medeia razão e intuição, procurando evitar cair tanto num racionalismo instrumen-tal  como  perder-se  num  empirismo  subjectivizante.  É,  por  isso,  no equilíbrio precário e instável entre racionalidade e sensibilidade, entre vontade consciente e abertura ao  inconsciente, entre a  intersubjecti-vidade desejada e a subjectividade irredutível, que Hadid se posiciona disciplinarmente.

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O processo projectual como síntese dinâmica do espaço e do tempo

O trabalho da subjectividade na arquitectura de Zaha Hadid afirma-se como uma intensificação da prática projectual, que se desenvolve atra-vés do investimento criativo na actividade corporal, gerando uma nova relação com o horizonte da temporalidade. A experimentação de Hadid explora um processo intuitivo de pensamento que conjuga a acção cor-poral e o labor manual com a temporalidade de aproximação progres-siva ao projecto arquitectónico. O processo projectual não é puramente conceptual  mas  fenomenologicamente  perceptual.  É  neste  sentido que os seus projectos não procuram representar um objecto fechado e finalizado, mas explorar um processo de investigação e emergência. Torna-se determinante o facto de Hadid ter desenvolvido instrumentos próprios de investigação projectual. As suas propostas exigiram meios e técnicas personalizadas, visto que os instrumentos disciplinares tradi-cionais não conseguiam captar as suas intenções projectuais: 

Desde o início que pensei a arquitectura de forma diferente. Sabia o que queria fazer e o que tinha de desenhar, mas não podia fazê-lo de forma convencional, porque com os métodos tradicionais não conseguia repre-sentá-lo. Os instrumentos tradicionais de representação da arquitectura não me eram úteis. E foi assim que comecei a investigar e a procurar uma nova forma de projectar, para tentar ver as coisas de um outro ponto de vista.9 

Toda a singularidade e complexidade da obra inicial da arquitecta tem de  ser  procurada  nesse  espaço  intersticial  que  liga  um  processo  de investigação  projectual  original  a  uma  desafiante  realidade  espacial construída.

As principais interpretações críticas da arquitectura de Zaha Hadid têm investigado a relação entre os processos criativos e a obra constru-ída. A ideia fundamental que ressalta dessas análises é o questionamento da  concepção  convencional  do  projecto  como  mera  representação entre projecto e obra, através da assumpção do papel da experimen-tação das práticas projectuais:  José Luis González Cobelo refere que as representações da arquitecta não são uma mera mediação que trans-lada a ideia para a construção mas um domínio de realidade próprio, uma vez que a forma arquitectónica é inseparável da sua representação;10 Luis 

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Rojo de Castro  salienta  a  temporalidade e  reversibilidade entre pro-jecto e obra através da convocação da experiência do tempo real que, não podendo ser apreendida previamente, se afasta de um conhecimento sinté-tico dos objectos;11 e Walter Nägeli realça a crítica das formas abstractas e convencionais de representação clássica, das projecções ortogonais à perspectiva, evidenciada na procura da arquitecta em incluir no pro-cesso projectual os processos de percepção, a sensação real, os pontos focais do espaço ou o fluxo do tempo, tornando o espaço não homogéneo e distor-cido.12 Em todas estas  leituras existe uma consciência clara de que o seu processo projectual não se dirige meramente a uma representação prévia e abstracta de algo exterior, a obra construída, considera-se que é, em si mesmo, uma forma de investigação que não reproduz de um modo transparente uma potencial realidade material.13 Assim, o pro-jecto pode configurar-se nesse espaço de confluência entre a percepção de uma nova realidade e a própria experiência perceptiva. Mais do que meios de representação, os seus elementos de projecto são verdadeiros campos de experimentação.

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Pintura de implantação. © Zaha Hadid Architects—

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Das  práticas  bidimensionais  do  desenho  caligráfico  e  da  pintura cenográfica  às  práticas  tridimensionais  do  baixo-relevo  expressivo  e da  maqueta  conceptual,  os  instrumentos  projectuais  de  Zaha  Hadid potenciam a contextualização radical do projecto num lugar específico e expõem a qualidade espacial da experiência da obra futura. Por um lado, as práticas projectuais de Hadid detêm funções abrangentes na contextualização da intervenção arquitectónica, tanto realizando uma leitura subjectiva do lugar como participando na configuração singu-lar da nova proposta.14 Não se trata de uma exploração formalista do objecto  como  entidade  autónoma,  mas  do  estabelecimento  de  uma indissociabilidade entre o objecto emergente e a realidade existente. Em algumas pinturas e maquetas da arquitecta pode captar-se esse estudo paciente e minucioso das características morfológicas e topológicas do local de intervenção, realizado através de um processo transformador em  que  projecto  e  lugar  se  contaminam  e  hibridizam  mutuamente. Por  outro  lado,  os  seus  processos  criativos  procuram  capturar  sen-sorialmente  a  atmosfera  do  projecto,  numa  aproximação  sensível  ao espaço arquitectónico. Renunciando deliberadamente a uma concep-ção  imitativa e  ilustrativa do projecto, algumas pinturas, maquetas e 

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Pintura da fachada principal. © Zaha Hadid Architects—

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baixos-relevos  revelam  uma  forma  intuitiva  de  exploração  das  carac-terísticas  experienciais  do  objecto  arquitectónico,  compreendendo a  investigação  expressiva  da  luz,  da  forma,  do  material  e  da  textura. Neste sentido, os seus elementos de projecto investigam as qualidades do espaço arquitectónico que só posteriormente se constituirá em obra arquitectónica  concreta,  com  estruturas  corpóreas  e  materiais  tangí-veis.15 Hadid liberta o projecto arquitectónico das convencionais restri-ções realistas, assumindo a abertura da actividade criativa que se realiza através de um  teste  constante de possibilidades, que determina uma aproximação mais livre e progressiva à materialidade da arquitectura.

Para conseguir realizar no projecto quer essa interpenetração entre projecto  e  contexto,  quer  essa  aproximação  às  qualidades  sensoriais do espaço arquitectónico, Zaha Hadid recorre significativamente aos instrumentos metodológicos das vanguardas históricas, revitalizando as pesquisas modernas sobre os mecanismos da percepção e as estra-tégias  de  temporalização  do  objecto.  Observando  essencialmente  a sua prática de pintura, pode-se vislumbrar essa vontade de exploração simultânea dos referenciais do espaço e do tempo, patentes nas refe-ridas pesquisas cubistas e futuristas. Por um lado, a influência cubista pode ser encontrada no questionamento da visão monocular, através da inclusão num mesmo painel de uma série de diferentes perspectivas, muitas vezes sobrepostas, de um mesmo objecto com múltiplos refe-renciais geométricos. Neste caso, o desenvolvimento do processo cria-tivo concretiza-se num plano de projecção de múltiplos pontos de vista que constituem diferencialmente a unidade do projecto, apresentando uma reconstituição fragmentária do objecto arquitectónico. Por outro lado, a influência futurista está patente na tentativa de compreender o objecto arquitectónico segundo uma perspectiva de continuidade dinâ-mica, marcada por uma sequência linear de pontos de vista sobre um mesmo objecto. Nesta situação, a actividade projectual desenvolve-se através  da  investigação  do  movimento  como  experiência  contínua, materializando  uma  reconstituição  serial  do  objecto  arquitectónico. No limite, a arquitecta iraquiana materializa uma nova condição tem-poralizada do espaço arquitectónico, experimentando as estratégias de dinamização da forma arquitectónica, que desestabilizam perceptiva-mente a sua tradicional autonomia, estabilidade e solidez.

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Pintura da vista aérea. © Zaha Hadid Architects—

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Detalhe da pintura da vista principal. © Zaha Hadid Architects—

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A Estação de Bombeiros Vitra em Weil am Rhein (1991–93)

A obra inicial de Zaha Hadid explora intensamente o objecto arquitec-tónico, através da procura de uma síntese projectual dos horizontes da espacialidade e temporalidade, reinterpretando as pesquisas espa-cio-temporais das vanguardas históricas. Foi na Estação de Bombeiros Vitra  que a  arquitecta demonstrou, pela primeira vez,  as  potenciali-dades  das  suas  investigações  de  dinamização  contextual  do  objecto arquitectónico,  resultantes  dos  seus  singulares  métodos  de  projecto. A grande liberdade dada pelo cliente, a abertura do programa funcio-nal e o carácter de manifesto do edifício permitiram-lhe realizar uma obra fundamental no panorama arquitectónico contemporâneo. Nesta obra, Hadid associa de forma consistente as suas preocupações de acti-vação contextual com as intenções de dinamização objectual, ou seja, cria um conjunto estruturado de relações programáticas e contextuais e de intenções estéticas e formais.

Desde  logo, Zaha Hadid explora  com  intencionalidade a  conexão programática. O projecto responde à iminência da catástrofe inerente a um quartel de bombeiros, materializando o dinamismo da expectativa em forma arquitectónica, ou seja, todo o edifício é movimento congelado, suspendendo a tensão do alerta, pronto a explodir em actividade a qualquer momento.16 Neste âmbito, torna-se revelador que a arquitecta trabalhe no edifício para  a Vitra  a  conjugação das  ideias  interrelacionadas  de «projecção» e de «instante congelado». Em primeiro lugar desenvolve a ideia de «projecção» que determina contextualmente a materializa-ção de uma «paisagem artificial» dinamizada:  existia a ideia de projec-ção. A projecção no desenho tornou-se muito importante, tornou-se a base de todo o projecto. O projecto tornou-se espaço projectado.17 Em segundo lugar, materializa formalmente a ideia estruturante de «projecção» através do conceito objectual de «instante congelado»: estávamos atraídos pela ideia de um espaço que fosse gerado através de projecções… O que é que se sente num espaço em que parece que o movimento se congelou? Um espaço aparente-mente dinâmico, concebido como uma projecção: um instante congelado.18 Por um lado, os planos e volumes que compõem o edifício apresentam-se como movimento contextual, através da captação objectual dos movi-mentos de «projecção» engendrados no local. Neste sentido, a estrutura compositiva torna-se vectorial, resultado de um movimento fluído que 

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atravessa o lugar de intervenção. Por outro lado, o movimento direc-cional da «projecção» concretiza-se formalmente através da impressão momentânea do movimento no objecto arquitectónico. Esse «instante congelado» não é mais do que a procura de captação do movimento na forma arquitectónica através da ligeira deformação dos seus elementos constituintes a partir da direccionalidade da «projecção» contextual.

Resumindo,  se  o  edifício  emerge  da  interpretação  das  tensões  do lugar, materializando a fluidez dos movimentos potenciais do território envolvente, a  sua  formalização  interioriza o movimento, expandindo e contraindo o espaço, através da distorção do objecto e consequente acentuação das propriedades dinâmicas da forma arquitectónica. Não só as suas linhas compositivas atravessam o lugar, conectando o edifício com a envolvente, também os seus planos e volumes se deformam dina-micamente, desestabilizando a imobilidade natural da arquitectura. Esta distorção ténue da pureza cartesiana acentua perceptualmente a pers-pectiva, conferindo uma dinâmica aos volumes projectados através do brusco congelamento do seu movimento. Longe de uma composição baseada na arbitrariedade formal ou confusão perspéctica, o projecto da Estação de Bombeiros é distintamente perceptível e legível, uma vez 

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que os processos de distorção dos elementos arquitectónicos não des-troem ou inviabilizam a sua consistência estrutural. Por isso, os corpos arquitectónicos podem expressar materialmente a sua condição contex-tualmente  fundada e dinamicamente constituída. Hadid propõe uma experiência da obra arquitectónica para além das orientações abstractas da horizontalidade e verticalidade, conquistando, através da deforma-ção perspéctica do objecto, uma dinâmica  formal absolutamente sin-gular. O que Hadid pretende não é a renúncia ao espaço perspéctico ou aos modos de representação referenciais na apreensão do objecto, mas a sua acentuação subtil que, distorcendo a visão monocular, revele uma momentânea  instabilidade  formal, normalmente ocultada pelos modos perceptivos tradicionais.19 Neste sentido, o trabalho formal da arquitecta torna-se verdadeiramente fenomenológico, porque procura desconstruir o  funcionamento habitual dos nossos  instrumentos per-ceptivos no próprio acto de percepção, ou seja, pretende captar a dinâ-mica  formal  que  se  manifesta  através  da  desestabilização  dos  nossos referenciais  perceptivos  habituais.  É  neste  sentido  que  os  poderosos efeitos perceptivos destas estratégias projectuais se apresentam radical-mente como formas de temporalização do objecto arquitectónico.

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Baixo-relevo da vista posterior. © Zaha Hadid Architects—

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Baixo-relevo da vista posterior. © Zaha Hadid Architects—

—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:Baixo-relevo da vista posterior. © Zaha Hadid Architects—

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zaha hadid na máquina do espaço tempo

«Espaço, Tempo e Arquitectura»

É  fundamental  compreender  que  esta  temporalização  do  objecto  ar-quitectónico  que  Zaha  Hadid  procura,  historicamente  proposta  pelos cubistas e futuristas, revela essencialmente uma proximidade às bases fun-dadoras do programa estético suprematista de Malevich. Se a síntese do espaço e do tempo exploradas pelos programas cubista e futurista são im-portantes para a investigação projectual da arquitecta, são as premissas do projecto suprematista que mais se tornam determinantes para resolver a especificidade do problema arquitectónico. Na verdade, o paradoxo da es-tabilização do movimento na forma arquitectónica, que a arquitecta pre-tende, já se apresentava como ideia central do suprematismo na tentativa de síntese temporal entre dinamismo potencial e equilíbrio espacial. Por isso, mais que a fragmentação do ponto de vista cubista e a configuração da continuidade futurista, é a exploração intuitiva das potencialidades abs-tractamente dinâmicas da composição suprematista que interessa a Hadid na sua formalização do evento arquitectónico. Tal como Fontana-Giusti defende, na abordagem suprematista a forma e a formalização tornam-se cen-trais.20 E isto é algo que se revela com grande clareza na prática projectual dos baixos-relevos. É nesse meio intersticial entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade que acontece a emergência do objecto, no preci-so momento em que as formas adquirem novas propriedades dinâmicas. Esse momento é o ponto de charneira onde a fragmentação espacial e sequencialidade temporal experimentadas no projecto convergem, trans-mutando-se na formalização unitária do objecto arquitectónico.

A abordagem de Hadid ao projecto arquitectónico é fundamental-mente de sensibilidade suprematista, procurando concretizar a mani-festação contextual e formal do equilíbrio dinâmico entre os estáticos elementos  arquitectónicos.  Se  a  forma  arquitectónica  permanece naturalmente imóvel, o efeito perceptual na experiência é de um dina-mismo impressionante, como se o contexto fosse uma realidade dinâ-mica, o objecto interiorizasse o movimento e o espaço se apresentasse num suspenso equilíbrio momentâneo.

Assim se compreende que a arquitectura inicial de Zaha Hadid, com o seu singular processo criativo, se pode apresentar na contemporanei-dade como a mais surpreendente actualização do programa arquitec-tónico proposto por Sigfried Giedion.

notas

Aaron betsky, «Beyond 89 Degrees» in Zaha Hadid – The Complete Buildings and Projects, London, Thames & Hudson, 1998, p. 13.Sigfried giedion, «Foreword to the First Edition» in Space, Time and Architecture – The Growth of a New Tradition, Cambridge-Massachusetts, Harvard University Press, 1997, p. VI. [1.ª ed. 1940]Giedion referiu, no prefácio à 4.ª edição de Space, Time and Architecture, a sua intenção de unir «pensar» e «sentir», «ciência» e «arte»: Space, Time and Architecture estava preocu-pado com a separação humana contemporânea entre pensar e sentir—com a sua personalidade dividida—e com o paralelismo inconsciente dos métodos utilizados na arte e na ciência. Si-gfried giedion, «Foreword to the Thirteenth Printing (Fourth Edition)» in Space, Time and Architecture..., op.cit., p. X. [1.ª ed. 1961]Sigfried giedion, Space, Time and ..., op.cit., pp. 443–444.Zaha hadid, «The Eighty-Nine Degrees» in Planetary Architecture Two, London, Archi-tectural Association, 1983, s.p. Hadid afirmou a abertura do programa das vanguardas russas: O mais apaixonante em relação às vanguardas russas não está nos seus grafismos serem interessantes. Está no facto de que as suas experiências nunca foram terminadas. Não houve conclusão. Foram na sua época os mais aventureiros não apenas como pintores mas também como arquitectos. Nunca deixaram de tentar ampliar os limites. Foram, na verdade, o meu ponto de partida. Cf. Zaha hadid, «Alvin Boyarsky Interviews Zaha Hadid» in Planetary Architecture Two…op.cit., s.p.As próprias palavras de Malevich em 1916 parecem fundamentar a possibilidade desse outro projecto moderno: a arte não deve caminhar para a redução ou simplificação, mas para a complexidade. Kasimir malevich, «From Cubism and Futurism to Suprematism», citado  in  Mark  Rosenthal,  Abstraction in the Twentieth Century – Total Risk, Freedom, Discipline, New York, Guggenheim Museum, 1996, p. 34.Zaha hadid, «Entrevista con Zaha Hadid» in El Croquis – Zaha Hadid, 1983/1991, n.º 52, Madrid, 1992, p. 14. Idem, p. 10.Cf. Jose Luis gonzález cobelo, «El Angel en el Laberinto» in El Croquis – Zaha Hadid, op.cit., p. 36. Cf. Rojo Luis rojo de castro, «Formas de Indeterminación» in El Croquis – Zaha Hadid, 1992/1995, n.º 73, Madrid, 1995, p. 25.Cf. Walter nägeli, «En Tiempos de Hastio – Observaciones sobre la Arquitectura de Zaha Hadid» in El Croquis – Zaha Hadid, 1996/2001, nº 103, Madrid, 2001, p. 240. Hadid afasta-se da concepção mimética dos elementos de desenvolvimento projectual: Penso que num conjunto de desenhos podemos descobrir uma série de coisas que sem eles não seria possível. Olhamos para o projecto de tantas formas diferentes que nos começa a revelar outros aspectos. O desenho não trata simplesmente do produto final (…) Não se trata simples-mente de acabar com uma bela imagem, mas sobretudo através dessa actividade descobrirmos como as coisas podem ser modificadas ou desenvolvidas. Cf. Hadid, «Alvin Boyarsky Inter-views…», op.cit., s.p., tradução livre.

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Este ensaio deriva das investigações no âmbito do meu doutoramento sobre descons-trução arquitectónica, tendo sido inicialmente pensado para uma conferência entre-tanto não realizada. Integra uma série informal de pequenos ensaios que tenho publi-cado em diversos âmbitos e suportes sobre arquitectos contemporâneos relacionados com o tema (Rem Koolhaas, Peter Eisenman, Frank Gehry, Daniel Libeskind e agora Zaha Hadid)

Luís Santiago Baptista (Lisboa, 1970), é arquitecto e crítico de arquitectura. Douto-rando em História da Arte Contemporânea (fcsh-unl) e Mestre em Cultura Arqui-tectónica Contemporânea (fa-utl). Director da revista de arquitectura e arte arq/a. Os seus  interesses de  investigação  integram os campos do urbanismo, arquitectura, design  e  arte,  com  especial  incidência  nas  conexões  entre  a  actividade  criativa  e  as condições culturais, intelectuais e produtivas contemporâneas.

Schumacher defendeu que a «radical inovação» de Hadid se sustenta na autonomia da exploração bi-dimensional do desenho e da pintura. Cf. Patrik schumacher, «Mecha-nisms of  Radical Innovation» in Zaha Hadid – Architecture, Wien, MAK / Hatje Kantz Verlag, 2003, p. 22.Como Hadid refere em relação às práticas bidimensionais: Os meus desenhos não são o edifício. São desenhos acerca do edifício. Não são ilustrações do produto final. Têm de ser enten-didos como um texto. (…) o desenho é uma ferramenta para explorar ideias, não simplesmente uma forma de ilustração. Zaha hadid, «Zaha M. Hadid» in Global Architecture – Zaha M. Hadid, Document Extra, n.º 3, Tokyo, 1995, p. 17. Zaha hadid, «Vitra Fire Station», in Zaha Hadid – The Complete..., op.cit., p. 64. Hadid, «Zaha M. Hadid...», op.cit., p. 18. Zaha hadid, «Conversación con Zaha Hadid» in El Croquis – Zaha Hadid, 1992/1995, nº 73, Madrid, 1995, pp. 8–9. Hadid referiu explicitamente a base fenomenológica do seu trabalho: Mas para mim trata-se do tipo de espaço que procuramos atingir através destas operações. Como nos posi-cionamos no espaço, como o percebemos e como nos influencia quando o percorremos ou como te impulsiona através dele. A questão da leveza e do movimento acontecem simultaneamente, conferindo uma energia particular ao edifício. Cf. Hadid, «Conversación...», op.cit., p. 8.Fontana-Giusti referiu a centralidade da abordagem suprematista na obra de Hadid. Cf. Gordana fontana-giusti, «A Forming Element» in Zaha Hadid: The Complete Works, Volume Essays and References, London, Thames & Hudson, 2004, p. 29.

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José Capela

Pedro Gadanho

Godofredo Pereira

André Tavares

Rui Ramos

Luis Urbano

Inês Moreira

Susana Ventura

Guilherme Wisnik

Miguel Figueira

Pedro Fiori Arantes

João Soares

Nuno Abrantes

Gonçalo M Tavares

Ana Vaz Milheiro

Bernardo Rodrigues

Miguel Marcelino

António Baptista Coelho

Pedro Bismarck

Susana Lourenço Marques

Paulo Moreira

José Rosmaninho D S

Diogo Seixas Lopes

Luís Santiago Baptista

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utilidade da arquitectura: 0+6 possibilidades

para que serve a arquitectura?

delírios de poder

as pernas não servem só para andar

elenco para uma arquitectura doméstica

dupli—cidade e a flânerie contemporânea

petit cabanon

o ovo e a galinha

niemeyer: leveza não tectónica

a minha casa em montemor

o lugar da arquitectura num «planeta de favelas»

o suporte da moral difusa

739h/m2

arquitectura, natureza e amor

as coisas não são o que parecem que são

architecture or suicide

a beleza invisível das coisas

entre casa e cidade, a humanização do habitar

le décollage du zyx24

falso acaso e possível coincidência

regresso ao passado

até ao último quarto

tendenza, o som da confusão

zaha hadid na máquina do espaço tempo

opúsculos —  Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura  —