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UNICAMP Universidade Estadual de Campinas Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade semanal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Fax (019) 3521-5133. Site http://www.unicamp.br/ju. E-mail [email protected]. Coordenador de imprensa Eustáquio Gomes. Assessor Chefe Clayton Levy. Edito- res Álvaro Kassab e Luiz Sugimoto. Redatores Carmo Gallo Netto, Hélio Costa Júnior, Isabel Gardenal, Jeverson Barbieri, Manuel Alves Filho, Maria Alice da Cruz, Nadir Peinado, Raquel do Carmo Santos, Roberto Costa e Ronei Thezolin. Fotografia Antoninho Perri e Antônio Scarpinetti. Edição de Arte Oséas de Magalhães. Serviços Técnicos Dulcinéa Bordignon. Impressão SRG Gráfica e Editora: (011) 4223-5911. Publicidade JCPR Publicidade e Propaganda: (019) 3232-2210. Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral Fernando Ferreira Costa Pró-reitor de Desenvolvimento Universitário Paulo Eduardo Moreira Rodrigues da Silva Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Mohamed Ezz El Din Mostafa Habib Pró-reitor de Pesquisa Daniel Pereira Pró-reitor de Pós-Graduação Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Graduação Edgar Salvadori de Decca Chefe de Gabinete José Ranali 2 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 8 a 14 de setembro de 2008 Mailde J. Trípoli “Há pessoas que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o que há dentro”. Machado de Assis achado de Assis é incontestavelmen- te um dos maiores escritores da lite- ratura brasileira. Está citado no li- vro Gênio, de Harold Bloom, reno- mado crítico da atualidade, entre os cem maiores escritores mundiais. Se- gundo Bloom, “Machado reúne os pré- requisitos da genialidade. Possui exuberância, concisão e uma visão irô- nica ímpar do mundo”. Apesar de todo reconhecimento e homenagens, cem anos depois de sua morte, há ainda quem insista em repe- tir a leviana afirmativa de Hemérito dos Santos, de que o escritor não se envol- veu na causa abolicionista e negou sua origem. Com o propósito de oferecer uma contribuição, ainda que pequena, no estudo da personagem negra, seu múl- tiplo processo de construção, sócio-his- tórico-literário, e nele começar a des- velar a face da personagem negra na obra de Machado de Assis, desenvol- vemos uma pesquisa, concluída em 1997, que resultou no livro Imagens, Máscaras e Mitos; o negro na obra de Machado de Assis. 1 “A ficção é imitação [...] da ação, isto é, disto que já conhecemos como ação e interação no envolvimento físico e soci- al”, 2 afirma Paul Ricoeur. Ao buscarmos a personagem negra na literatura, estamos também buscando a represen- tação desta “ação e interação” do elemen- to negro na sociedade do seu tempo. No tempo de Machado, as teorias raciais e crenças etnocêntricas ainda apregoavam uma hierarquia etnográ- fica na qual o negro ocupava o último grau da escala social. Assim, embora elemento integrante (juntamente com o branco e o índio) da civilização bra- sileira, era marginalizado. A literatura não o omitiu, mas sua voz e ação, mui- tas vezes, quando não apagadas, foram tolhidas, distorcidas, ou mascaradas. Sua presença, em geral, se dá por tipos. O indivíduo representa o coletivo. O discurso a seu respeito variava conforme o posicionamento de quem escrevia: estereotipada, a imagem do negro, passa de dócil, infantil, fiel, subjugada a violenta, feroz, vingativa, em razão dos interesses do momento e con- texto em que é inserido o estereótipo. Nos discursos, porém, a classifica- ção não é estanque. Textos qualifica- dos em uma das duas categorias, às vezes, trazem em seu interior peque- nos deslizes do autor, que denunciam um posicionamento diferente do anun- ciado ou proposto. As Vítimas Algozes, de Joaquim Manoel de Macedo, publi- cado em 1869, é um bom exemplo dis- to; embora se apresente como um libe- lo contra a escravidão, seu discurso é, ao mesmo tempo, antinegro. Para de- monstrar quão danosa é a instituição da escravidão e a necessidade de abo- li-la, o autor anuncia que contará estó- rias verdadeiras e mostrará “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os fe- rozes instintos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu senhor” 3 MACEDO. Joaquim Manoel de. - As Vítimas Algozes: quadros da escravidão. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. 2a. ed., p. XIV.. As Vítimas Algozes são o que po- demos chamar de romance de tese, conforme Silviano Santiago: “no ro- mance de tese, a verdade se insinua por detrás de cada palavra, de cada gesto, cada cena, induzindo o leitor a pensar ser ela a única a apreender corretamen- te o significado das cenas ou do drama apresentado pelo texto” 4 . Nesse senti- do, Macedo não está sozinho. O contraponto é que, ao criar uma imagem do negro escravizado, basean- do-se na concepção ideológica senho- rial, o autor do discurso, de certa for- ma constrói, também, a sua própria imagem. Em oposição à selvageria, à indolência, à submissão, à promiscui- dade, ele é a civilidade, a moral, o do- mínio, a posse, a superioridade. Ele é o que o outro não é. Sem se dar conta, talvez, de que nesta construção, ausen- tando-se o outro, a sua tão bem construída imagem deixa de existir. É o que se pode ver, bem elabora- do, no conto O Espelho 5 : esboço de uma teoria da alma humana, de Ma- chado de Assis, publicado em Papéis Avulsos, em 1882. Nele, Jacobino, um jovem pobre, é promovido a alferes da Guarda Nacio- nal. Tal fato é festejado e motivo de orgulho para toda a família. Na fazen- da de sua tia, uma fazendeira escra- vista, não é mais chamado pelo nome, só pelo título. Todos os escravos estão obrigados a tratá-lo de “senhor alferes”. Um dia, estando a tia ausente da fa- zenda, os escravos fogem, abandonan- do o alferes, privando-o da admiração a que estavam obrigados. “Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes (...) Nenhum fô- lego humano.(...) ninguém, um mole- quinho que fosse. Gatos e galinhas tão- somente, um par de mulas, que filoso- favam a vida, sacudindo as moscas, e três bois... nenhum ente humano. Pa- receu-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior”. 6 Jacobino, sem os sustentadores de sua “identidade”, percebe-se sem ima- gem no espelho, único espaço onde, ainda, podia se refletir. O que restou na fazenda foram apenas os animais, instrumentos de produção; bens semo- ventes, categoria em que os escravos eram incluídos. A questão é que os ani- mais não representam a alteridade, no sentido de refletir a identidade do ou- tro. Na ausência do escravo, cai por terra a ordem escravocrata e com isso o autoconceito de superioridade apre- goado pela ideologia vigente em rela- ção aos senhores. Há nesse conto um absoluto silên- cio a respeito tanto da escravidão quan- to aos possíveis acontecimentos rela- cionados aos escravos fugidos. Entre- tanto, como reflete Eni Orlandi,”O si- lêncio é. Ele significa.” 7 Ao calar-se, Machado abre espaço para uma signi- ficação outra, que a óbvia. Uma forma sutil, para gerar idéias. Mas, se no conjunto da obra do au- tor estão incorporados elementos his- tóricos e sociais a serem lidos nas en- trelinhas, há também momentos em que sua colocação é explícita. Isto ocor- re, sobretudo, nas crônicas e na críti- ca. Vejamos, por exemplo, o trecho de uma carta endereçada a José de Alen- car, datada de fevereiro de 1868, na qual Machado tece elogios a Castro Alves 8 . Esta carta era, de fato, a crítica do escritor, sobre o drama Gonzaga, escrito pelo poeta, portanto, destinada a ser lida pelo público. Eu não podia, por exemplo, dei- xar de mencionar aqui a figura do pre- to Luiz. Em uma conspiração para a gem, instituída para amenizar as rela- ções entre senhor e escravo, aumentar a produção, garantir fidelidade e diminuir as fugas e as revoltas, bem como as des- pesas com segurança ostensiva. No conto, como em outras obras, não há floreios nem uso de meias pa- lavras. Machado não transforma o ne- gro em herói ou ser extraordinário, nem o pinta com as cores miseráveis da ideologia dominadora. Ele o apresenta como ser humano que é, sujeito em sua condição de oprimido. Sem fazer apo- logia, mas de forma sutil, o autor, a seu modo, desnuda a realidade senhorial e revela uma sociedade em que a condi- ção econômica define o indivíduo, de- termina sua exclusão ou aceitação. Uma sociedade que, sob uma fachada moderna e liberal, oculta as bases do sistema colonial, o escravismo e o clientelismo, como bem explicita Roberto Schwarz em Ao Vencedor as Batatas. 11 A crônica foi outro gênero de pro- dução escrita que Machado de Assis exerceu com a habilidade criativa e crítica que lhe era peculiar. Nelas, en- contramos um Machado de Assis irô- nico e sarcástico, que enfoca diversos estágios do período abolicionista, as manipulações dos senhores, a violên- cia inerente ao sistema de dominação. Faz isso, ora de forma direta, ora dis- simulada, mas preservando um distan- ciamento crítico e lançando mão dos recursos de estilo que lhe eram comuns. Muitos seriam os exemplos a serem aqui elencados, mas por que não dei- xar para o leitor o prazer deste desve- lar? Uma leitura mais atenta de algu- mas das obras e se pode perceber de que lado o escritor está. Para isso, se necessário, não faltam bons guias: Roberto Schwarz, John Gledson, Sid- ney Chalhoub e outros. Podemos adi- antar que a preocupação de Machado de Assis era com o homem, o ser huma- no e sua interioridade psicológica e moral. O escravo, antes de sua condi- ção servil, era um ser humano; e assim Machado o via e o retratava em sua obra. Experimente ler, reler! Permita-se um passeio pelo universo cifrado das obras machadianas. Por prazer, deleite-se! Mailde J. Trípoli é autora do livro Imagens, Máscaras e Mitos; o negro na obra de Machado de Assis (Editora da Unicamp) Machado de Assis e a escravidão liberdade, era justo aventar a idéia da abolição. Luiz representa ao elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não deu exclusivamente a paixão da liberdade[...]. Luiz espera da revolu- ção, antes da liberdade, a restituição da filha; é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso, quando no terceiro ato Luiz encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memó- ria, se a memória pode dominar a tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos bra- ços Cordélia morta. Quem os compa- ra não vê nem o rei nem o escravo; vê o homem”. Serão essas palavras de um omis- so, dissimulado para não transparecer sua condição racial? Bastante explícitos também são algumas poesias e contos, vale notar, escritos antes da abolição. O poema Sabina, publicado em 1875, por exem- plo. Embora incluído no livro Ameri- canas, foge à temática indígena, suge- rida inclusive pelo título da obra. Sabi- na é um longo poema que relata a se- dução de uma jovem mucama, não embranquecida, mas tratada de forma paternalista. Jovem, virgem de tez morena, cabelos cor da noite escura, busto moldado em modelo clássico e olhos brandos cor de jabuticabas. A conquista de Sabina não passa pela violência física, prática comum na “ideologia falocrática” 9 Sant’Ana, Af- fonso Romano de. - “O Canibalismo Erótico na Sociedade Escravocrata.”In. Revista do Brasil. Rio de Janeiro: FUNARJ, 1984. N. 1/84. p. 14., des- crita de forma magistral por Castro Alves, em “A Cachoeira de Paulo Afonso”. A abordagem é romântica. O narrador, indiferente como o rio, “ao mal ou bem que lhe povoa a margem” desnuda a alma de ambos. O jovem conquistador, Otávio, vol- ta para a corte. “Com ela a alma não fica. De seu jovem senhor.” Não fica a alma, mas fica-lhe um filho no ventre. A reação dos companheiros de desven- tura é de total falta de solidariedade, impera a inveja, o ciúme, a maledicên- cia e a superstição. “Após os dias da saudade, os dias da esperança”, e a decepção. Otávio volta casado. Em desespero, Sabina pensa em se matar, mas no último momento desiste. O poema, embora aparente descre- ver a aceitação do cativeiro, denuncia a trágica ironia do paternalismo e as suas conseqüências. Uma faceta da es- cravidão, muito conveniente aos se- nhores e, em parte, responsável pela crença de que, no Brasil, a vida dos es- cravos era amena. A crença na igualdade, pelo trata- mento privilegiado, impede de ver: “o fundo abismo tenebroso e largo que separa” 10 senhores e escravos. A deli- cadeza não garante o afeto, nem evita o abandono da escrava, mas facilita a “caçada” do sinhozinho. Além disso, provoca sentimentos desagregadores dentro do meio escravo, afastando a solidariedade e a confiança. Preserva a imagem ideológica, segundo a qual escravo é gente dotada de maus senti- mentos, quando não de apatia, servi- lismo e resignação. Enquanto Castro Alves denuncia a violência explícita a que os escravos e, principalmente as mulheres, negra e mulata, estavam expostos, Machado revela outras formas de violência, nem sempre tão explícitas, mas igualmente cruéis e doloridas. A violência, que pas- sa pela dissimulação e falsa camarada- M 1 TRÍPOLI, Mailde Jerônimo. Imagens, Máscaras e Mitos: o negro na obra de Machado de Assis. Campinas/SP, Editora UNICAMP, 2006 2 RICOEUR, Paul. “L’Identité Narrative.” In. Revue des Sciences Humaines. No 221 4 SANTIAGO. Silviano. Desvios da Ficção. In PATROCÍ NIO, José do. - Mota Coqueiro. .P. 13. 5 ASSIS, Machado de. “O Espelho“. In. Papeis Avulsos. Rio de Janeiro: Garnier, s/d. p. 221-235 6 ASSIS. Machado de. - “O Espelho”. In O Conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p.142. 7 PUCCENELLI. Eni Orlandi. - As Formas do Silêncio: No Movimento dos Sentidos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 2a. ed. 8 Assis, Machado. Crítica. (Coleção feita por Mario de Alencar). Rio de Janeiro, Livraria Garnier, Sd. p.54 e55. (grafia atualizada). 10 ASSIS, Machado de. “Sabina”. Op. Cit., p.423 11 Schwarz, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1981. p. 20. Machado de Assis: abordagens explícitas e nas entrelinhas NOTAS: NOTAS: Foto: Academia Brasileira de Letras

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UNICAMP – Universidade Estadual de CampinasElaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade semanal. Correspondência e sugestõesCidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Fax (019) 3521-5133. Sitehttp://www.unicamp.br/ju. E-mail [email protected]. Coordenador de imprensa Eustáquio Gomes. Assessor Chefe Clayton Levy. Edito-res Álvaro Kassab e Luiz Sugimoto. Redatores Carmo Gallo Netto, Hélio Costa Júnior, Isabel Gardenal, Jeverson Barbieri, Manuel Alves Filho, MariaAlice da Cruz, Nadir Peinado, Raquel do Carmo Santos, Roberto Costa e Ronei Thezolin. Fotografia Antoninho Perri e Antônio Scarpinetti. Edição deArte Oséas de Magalhães. Serviços Técnicos Dulcinéa Bordignon. Impressão SRG Gráfica e Editora: (011) 4223-5911. Publicidade JCPRPublicidade e Propaganda: (019) 3232-2210. Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju

Reitor José Tadeu JorgeCoordenador Geral Fernando Ferreira CostaPró-reitor de Desenvolvimento Universitário Paulo Eduardo Moreira Rodrigues da SilvaPró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Mohamed Ezz El Din Mostafa HabibPró-reitor de Pesquisa Daniel PereiraPró-reitor de Pós-Graduação Teresa Dib Zambon AtvarsPró-reitor de Graduação Edgar Salvadori de DeccaChefe de Gabinete José Ranali

2 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 8 a 14 de setembro de 2008

Mailde J. Trípoli

“Há pessoas que nãosabem, ou não se lembramde raspar a casca do risopara ver o que há dentro”.

Machado de Assis

achado de Assis éincontestavelmen-te um dos maioresescritores da lite-ratura brasileira.Está citado no li-

vro Gênio, de Harold Bloom, reno-mado crítico da atualidade, entre oscem maiores escritores mundiais. Se-gundo Bloom, “Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possuiexuberância, concisão e uma visão irô-nica ímpar do mundo”.

Apesar de todo reconhecimento ehomenagens, cem anos depois de suamorte, há ainda quem insista em repe-tir a leviana afirmativa de Hemérito dosSantos, de que o escritor não se envol-veu na causa abolicionista e negou suaorigem.

Com o propósito de oferecer umacontribuição, ainda que pequena, noestudo da personagem negra, seu múl-tiplo processo de construção, sócio-his-tórico-literário, e nele começar a des-velar a face da personagem negra naobra de Machado de Assis, desenvol-vemos uma pesquisa, concluída em1997, que resultou no livro Imagens,Máscaras e Mitos; o negro na obra deMachado de Assis.1

“A ficção é imitação [...] da ação, istoé, disto que já conhecemos como ação einteração no envolvimento físico e soci-al”,2 afirma Paul Ricoeur. Ao buscarmosa personagem negra na literatura,estamos também buscando a represen-tação desta “ação e interação” do elemen-to negro na sociedade do seu tempo.

No tempo de Machado, as teoriasraciais e crenças etnocêntricas aindaapregoavam uma hierarquia etnográ-fica na qual o negro ocupava o últimograu da escala social. Assim, emboraelemento integrante (juntamente como branco e o índio) da civilização bra-sileira, era marginalizado. A literaturanão o omitiu, mas sua voz e ação, mui-tas vezes, quando não apagadas, foramtolhidas, distorcidas, ou mascaradas.Sua presença, em geral, se dá por tipos.O indivíduo representa o coletivo.

O discurso a seu respeito variavaconforme o posicionamento de quemescrevia: estereotipada, a imagem donegro, passa de dócil, infantil, fiel,subjugada a violenta, feroz, vingativa, emrazão dos interesses do momento e con-texto em que é inserido o estereótipo.

Nos discursos, porém, a classifica-ção não é estanque. Textos qualifica-dos em uma das duas categorias, àsvezes, trazem em seu interior peque-nos deslizes do autor, que denunciamum posicionamento diferente do anun-ciado ou proposto. As Vítimas Algozes,de Joaquim Manoel de Macedo, publi-cado em 1869, é um bom exemplo dis-to; embora se apresente como um libe-lo contra a escravidão, seu discurso é,ao mesmo tempo, antinegro. Para de-monstrar quão danosa é a instituiçãoda escravidão e a necessidade de abo-li-la, o autor anuncia que contará estó-rias verdadeiras e mostrará “os víciosignóbeis, a perversão, os ódios, os fe-rozes instintos do escravo, inimigonatural e rancoroso do seu senhor”3

MACEDO.Joaquim Manoel de. - As Vítimas

Algozes: quadros da escravidão. Rio deJaneiro: Garnier, 1871. 2a. ed., p. XIV..

As Vítimas Algozes são o que po-demos chamar de romance de tese,conforme Silviano Santiago: “no ro-mance de tese, a verdade se insinua pordetrás de cada palavra, de cada gesto,cada cena, induzindo o leitor a pensarser ela a única a apreender corretamen-te o significado das cenas ou do dramaapresentado pelo texto”4. Nesse senti-do, Macedo não está sozinho.

O contraponto é que, ao criar umaimagem do negro escravizado, basean-do-se na concepção ideológica senho-rial, o autor do discurso, de certa for-ma constrói, também, a sua própriaimagem. Em oposição à selvageria, àindolência, à submissão, à promiscui-dade, ele é a civilidade, a moral, o do-mínio, a posse, a superioridade. Ele éo que o outro não é. Sem se dar conta,talvez, de que nesta construção, ausen-tando-se o outro, a sua tão bemconstruída imagem deixa de existir.

É o que se pode ver, bem elabora-do, no conto O Espelho5: esboço deuma teoria da alma humana, de Ma-chado de Assis, publicado em PapéisAvulsos, em 1882.

Nele, Jacobino, um jovem pobre, épromovido a alferes da Guarda Nacio-nal. Tal fato é festejado e motivo deorgulho para toda a família. Na fazen-da de sua tia, uma fazendeira escra-vista, não é mais chamado pelo nome,só pelo título. Todos os escravos estãoobrigados a tratá-lo de “senhor alferes”.Um dia, estando a tia ausente da fa-zenda, os escravos fogem, abandonan-do o alferes, privando-o da admiraçãoa que estavam obrigados.

“Achei-me só, sem mais ninguém,entre quatro paredes (...) Nenhum fô-lego humano.(...) ninguém, um mole-quinho que fosse. Gatos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filoso-

favam a vida, sacudindo as moscas, etrês bois... nenhum ente humano. Pa-receu-lhes que isto era melhor do queter morrido? Era pior”.6

Jacobino, sem os sustentadores desua “identidade”, percebe-se sem ima-gem no espelho, único espaço onde,ainda, podia se refletir. O que restouna fazenda foram apenas os animais,instrumentos de produção; bens semo-ventes, categoria em que os escravoseram incluídos. A questão é que os ani-mais não representam a alteridade, nosentido de refletir a identidade do ou-tro. Na ausência do escravo, cai porterra a ordem escravocrata e com issoo autoconceito de superioridade apre-goado pela ideologia vigente em rela-ção aos senhores.

Há nesse conto um absoluto silên-cio a respeito tanto da escravidão quan-to aos possíveis acontecimentos rela-cionados aos escravos fugidos. Entre-tanto, como reflete Eni Orlandi,”O si-lêncio é. Ele significa.”7 Ao calar-se,Machado abre espaço para uma signi-ficação outra, que a óbvia. Uma formasutil, para gerar idéias.

Mas, se no conjunto da obra do au-tor estão incorporados elementos his-tóricos e sociais a serem lidos nas en-trelinhas, há também momentos emque sua colocação é explícita. Isto ocor-re, sobretudo, nas crônicas e na críti-ca. Vejamos, por exemplo, o trecho deuma carta endereçada a José de Alen-car, datada de fevereiro de 1868, naqual Machado tece elogios a CastroAlves8. Esta carta era, de fato, a críticado escritor, sobre o drama Gonzaga,escrito pelo poeta, portanto, destinadaa ser lida pelo público.

“Eu não podia, por exemplo, dei-xar de mencionar aqui a figura do pre-to Luiz. Em uma conspiração para a

gem, instituída para amenizar as rela-ções entre senhor e escravo, aumentar aprodução, garantir fidelidade e diminuiras fugas e as revoltas, bem como as des-pesas com segurança ostensiva.

No conto, como em outras obras,não há floreios nem uso de meias pa-lavras. Machado não transforma o ne-gro em herói ou ser extraordinário, nemo pinta com as cores miseráveis daideologia dominadora. Ele o apresentacomo ser humano que é, sujeito em suacondição de oprimido. Sem fazer apo-logia, mas de forma sutil, o autor, a seumodo, desnuda a realidade senhorial erevela uma sociedade em que a condi-ção econômica define o indivíduo, de-termina sua exclusão ou aceitação.Uma sociedade que, sob uma fachadamoderna e liberal, oculta as bases dosistema colonial, o escravismo e oclientelismo, como bem explicitaRoberto Schwarz em Ao Vencedor asBatatas.11

A crônica foi outro gênero de pro-dução escrita que Machado de Assisexerceu com a habilidade criativa ecrítica que lhe era peculiar. Nelas, en-contramos um Machado de Assis irô-nico e sarcástico, que enfoca diversosestágios do período abolicionista, asmanipulações dos senhores, a violên-cia inerente ao sistema de dominação.Faz isso, ora de forma direta, ora dis-simulada, mas preservando um distan-ciamento crítico e lançando mão dosrecursos de estilo que lhe eram comuns.

Muitos seriam os exemplos a seremaqui elencados, mas por que não dei-xar para o leitor o prazer deste desve-lar? Uma leitura mais atenta de algu-mas das obras e se pode perceber deque lado o escritor está. Para isso, senecessário, não faltam bons guias:Roberto Schwarz, John Gledson, Sid-ney Chalhoub e outros. Podemos adi-antar que a preocupação de Machadode Assis era com o homem, o ser huma-no e sua interioridade psicológica emoral. O escravo, antes de sua condi-ção servil, era um ser humano; e assimMachado o via e o retratava em sua obra.

Experimente ler, reler! Permita-se umpasseio pelo universo cifrado das obrasmachadianas. Por prazer, deleite-se!

Mailde J. Trípoli é autora do livroImagens, Máscaras e Mitos; o negro naobra de Machado de Assis (Editora daUnicamp)

Machado de Assis e a escravidãoliberdade, era justo aventar a idéia daabolição. Luiz representa ao elementoescravo. Contudo o Sr. Castro Alvesnão deu exclusivamente a paixão daliberdade[...]. Luiz espera da revolu-ção, antes da liberdade, a restituiçãoda filha; é a primeira afirmação dapersonalidade humana; o cidadão virádepois. Por isso, quando no terceiroato Luiz encontra a filha já cadáver, eprorrompe em exclamações e soluços,o coração chora com ele, e a memó-ria, se a memória pode dominar a taiscomoções, nos traz aos olhos a belacena do rei Lear, carregando nos bra-ços Cordélia morta. Quem os compa-ra não vê nem o rei nem o escravo; vêo homem”.

Serão essas palavras de um omis-so, dissimulado para não transparecersua condição racial?

Bastante explícitos também sãoalgumas poesias e contos, vale notar,escritos antes da abolição. O poemaSabina, publicado em 1875, por exem-plo. Embora incluído no livro Ameri-canas, foge à temática indígena, suge-rida inclusive pelo título da obra. Sabi-na é um longo poema que relata a se-dução de uma jovem mucama, nãoembranquecida, mas tratada de formapaternalista. Jovem, virgem de tezmorena, cabelos cor da noite escura,busto moldado em modelo clássico eolhos brandos cor de jabuticabas.

A conquista de Sabina não passapela violência física, prática comum na“ideologia falocrática”9 Sant’Ana, Af-fonso Romano de. - “O CanibalismoErótico na Sociedade Escravocrata.”In.Revista do Brasil. Rio de Janeiro:FUNARJ, 1984. N. 1/84. p. 14., des-crita de forma magistral por CastroAlves, em “A Cachoeira de PauloAfonso”. A abordagem é romântica. Onarrador, indiferente como o rio, “aomal ou bem que lhe povoa a margem”desnuda a alma de ambos.

O jovem conquistador, Otávio, vol-ta para a corte. “Com ela a alma nãofica. De seu jovem senhor.” Não fica aalma, mas fica-lhe um filho no ventre.A reação dos companheiros de desven-tura é de total falta de solidariedade,impera a inveja, o ciúme, a maledicên-cia e a superstição. “Após os dias dasaudade, os dias da esperança”, e adecepção. Otávio volta casado. Emdesespero, Sabina pensa em se matar,mas no último momento desiste.

O poema, embora aparente descre-ver a aceitação do cativeiro, denunciaa trágica ironia do paternalismo e assuas conseqüências. Uma faceta da es-cravidão, muito conveniente aos se-nhores e, em parte, responsável pelacrença de que, no Brasil, a vida dos es-cravos era amena.

A crença na igualdade, pelo trata-mento privilegiado, impede de ver: “ofundo abismo tenebroso e largo quesepara”10 senhores e escravos. A deli-cadeza não garante o afeto, nem evitao abandono da escrava, mas facilita a“caçada” do sinhozinho. Além disso,provoca sentimentos desagregadoresdentro do meio escravo, afastando asolidariedade e a confiança. Preservaa imagem ideológica, segundo a qualescravo é gente dotada de maus senti-mentos, quando não de apatia, servi-lismo e resignação.

Enquanto Castro Alves denuncia aviolência explícita a que os escravose, principalmente as mulheres, negra emulata, estavam expostos, Machadorevela outras formas de violência, nemsempre tão explícitas, mas igualmentecruéis e doloridas. A violência, que pas-sa pela dissimulação e falsa camarada-

M

1 TRÍPOLI, Mailde Jerônimo. Imagens,Máscaras e Mitos: o negro na obra deMachado de Assis. Campinas/SP, EditoraUNICAMP, 2006

2 RICOEUR, Paul. “L’Identité Narrative.” In.Revue des Sciences Humaines. No 221

4 SANTIAGO. Silviano. Desvios da Ficção. InPATROCÍNIO, José do. - Mota Coqueiro. .P. 13.

5 ASSIS, Machado de. “O Espelho“. In. PapeisAvulsos.Rio de Janeiro: Garnier, s/d. p. 221-235

6 ASSIS. Machado de. - “O Espelho”. In OConto de Machado de Assis. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1980. p.142.

7 PUCCENELLI. Eni Orlandi. - As Formas doSilêncio: No Movimento dos Sentidos.Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 2a. ed.

8 Assis, Machado. Crítica. (Coleção feita porMario de Alencar). Rio de Janeiro, LivrariaGarnier, Sd. p.54 e55. (grafia atualizada).

10 ASSIS, Machado de. “Sabina”. Op. Cit., p.423

11Schwarz, Roberto. Ao Vencedor as Batatas.São Paulo, Duas Cidades, 1981. p. 20.

Machado de Assis: abordagens explícitas e nas entrelinhas

NOTAS:NOTAS:

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