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2021 MANUAL DE PROCESSO CIVIL Jaylton Lopes Jr.

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2021

MANUAL DE

PROCESSO CIVIL

Jaylton Lopes Jr.

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CAPÍTULO IIIJURISDIÇÃO

1. INTRODUÇÃO

Nas sociedades mais remotas, a resolução dos conflitos ocorria pelo uso da força. Não é pre-ciso muito esforço para concluir que, em regra, a pretensão do mais forte acabava predominando sobre a do mais fraco. Chegou um momento, porém, em que o Estado percebeu a necessidade de avocar para si esse poder de resolver os conflitos sociais, a fim de garantir maior estabilidade às relações sociais e previsibilidade às consequências jurídicas dos comportamentos humanos. Nesse momento, nasce a jurisdição.

2. CONCEITO

Talvez a forma mais remota de solução de conflitos seja a autotutela, por meio da qual, mediante o uso de violência, se impõe a prevalência de um interesse em detrimento do sacrifício do interesse de outrem. Contudo, tendo em vista que a solução do conflito por violência põe em risco a própria manutenção da sociedade – a qual necessita do convívio, de certo modo, harmonioso entre os seus membros para se desenvolver e para que as pessoas, de uma forma geral, satisfaçam os seus interesses pessoais e coletivos –, percebeu-se que era necessário encon-trar um meio capaz de eliminar a solução violenta para os conflitos1 e manter a sociedade viva.

É nesse contexto que se identifica o surgimento da figura do Estado, como estrutura de poder concentrada nas mãos de um único homem ou de uma assembleia de homens, capaz de defender a todos de agressões externas e manter o convívio pacífico entre todos, pois, em última análise, o próprio homem estaria outorgando o seu poder de autogovernar-se para o Estado, o qual receberia a legitimidade para agir na salvaguarda do bem comum2.

Para que o Estado, uma vez instituído, pudesse manter não somente a sua existência como estrutura de poder, mas também a prometida pacificação social, foi instituída a Lei, a qual, se-gundo Jean-Jacques Rousseau, é a “condição da associação civil”3. Com isso, o Estado passou

1. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. 1ª edição. São Paulo: Classic Book, 2000, v. I, p. 62-63.

2. HOBBES, Thomas. Leviatã. 4ª edição. [sl]. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, p. 143-148.3. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 48.

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não apenas a regular o convívio social, como também a resolver os seus respectivos conflitos, através de uma função pública, conferida a certas pessoas4, de dizer o direito a um caso concreto.

A monopolização da atividade jurisdicional pelo Estado se intensificou a partir do renasci-mento e se consolidou, em definitivo, com o advento do iluminismo5. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ao dispor, em seu art. 3º, que “o princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autori-dade que dela não emane expressamente”6, serviu como fundamento para o fortalecimento da jurisdição como função eminentemente pública7.

Dentro dessa perspectiva, a jurisdição pode ser compreendida como o poder-dever de dizer e realizar o direito no caso concreto, mediante decisão justa, efetiva e tempestiva. O resultado do exercício desse poder-dever será a norma jurídica individualizada construída para o caso.

A jurisdição, como poder, representa uma das manifestações da soberania estatal. O estado resolve os conflitos mediante decisão imperativa com eficácia em todo o território nacional (princípio da aderência ao território). Ao avocar para si o poder de dizer e realizar o direito no caso concreto, esse mesmo poder acaba por traduzir-se em um dever, na medida em que a todos são assegurados o acesso à justiça e a obtenção de uma tutela jurídica justa, efetiva e tempestiva. A jurisdição, como dever, decorre do direito fundamental de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF).

A jurisdição como poder exclusivo do Estado é uma ideia ultrapassada. Isso porque, atual-mente, a arbitragem também é compreendida como uma das formas de exercício de uma função jurisdicional, porém uma jurisdição não estatal. O tema será oportunamente abordado.

3. OBJETIVOS DA JURISDIÇÃO

De uma forma geral, é possível visualizar três grandes objetivos da jurisdição, os quais se aproximam dos escopos do processo. Vejamos: Pacificação social: como meio de solução de conflitos que é, a jurisdição substitui a

vontade dos litigantes para dizer, no caso concreto, quem tem direito. Isso permite uma maior estabilidade nas relações sociais. Aproxima-se do escopo social do processo.

Afirmar o poder: a jurisdição é manifestação de poder. Tal poder pode decorrer da própria soberania do Estado (jurisdição como função típica do Poder Judiciário) ou

4. O exercício da função jurisdicional, conforme o período da história e do respectivo espaço geográfico, foi de-sempenhado por pessoas diversas e conforme a sua relação com a estrutura de poder dominante. No direito romano, o juiz exercia a jurisdictio, função pública de dizer o direito. Com a invasão dos bárbaros, houve forte influência do processo germânico (período romano-barbárico). Nesse período, em um primeiro momento, a função jurisdicional foi exercida pelo duque (fase longobarda, 568 a 774); em um segundo momento, a auto-ridade judiciária foi o conde (fase franca, 744 a 900). A partir do ano 900 (fase feudal), houve um aumento da jurisdição eclesiástica (MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. 1ª edição atualizada. Campinas: Millennium Editora, 2000, v. I, p.95-108; ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: teoria geral do processo, processo de conhecimento, recursos, precedentes. 18ª edição. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, p. 53-97).

5. CAMPOS, Diogo Leite de. A arbitragem voluntária nas relações tributárias. O modelo Português. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: Revista dos Tribunais. Vol. 50. Ano 13 (jul-set. 2016), p. 467-473.

6. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 [Consult. 20 ago. 2019]. Disponível em https://br.ambafrance.org/A-Declaracao-dos-Direitos-do-Homem-e-do-Cidadao.

7. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2ª edição. Campinas: Bookseller, 2000, v. II, p. 9-10.

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mesmo da outorga conferida pelos particulares a um árbitro (jurisdição não estatal). Aproxima-se do escopo político do processo.

Dizer e realizar o Direito: para que a jurisdição se realize plenamente, é preciso que o seu escopo vá além da construção de uma norma jurídica individualizada (dizer o direito); é preciso que haja concretização da norma no mundo empírico (realização do direito). Aproxima-se do escopo jurídico do processo.

4. CARACTERÍSTICAS DA JURISDIÇÃO

A jurisdição possui uma série de características que a distingue das demais funções do Esta-do. Tais características, contudo, devem ser compreendidas em conjunto, pois, individualmente, são insuficientes para identificar determinada atividade como jurisdicional. É importante desta-car ainda que não se pode confundir características da jurisdição com princípios da jurisdição. Na presente obra, opta-se por distingui-las.

São características da jurisdição:

4.1. Substitutividade

No momento em que o Estado avocou para si o poder de solucionar os conflitos, uma pri-meira característica da jurisdição se revelou: a substitutividade. O Estado, por meio da jurisdição, substitui a vontade das partes no tocante à resolução do litígio. Lembra Giuseppe Chiovenda que “na sentença, o juiz substitui para sempre a todos no afirmar existente uma obrigação de pagar, de dar, de fazer ou não fazer; no afirmar existente o direito à separação pessoal ou à resolução dum contrato, ou que a lei quer uma punição”.8

A ideia de substitutividade defendida por Chiovenda não se sustenta mais. Não é a vontade do Estado ou do juiz que substitui a vontade das partes, mas a norma jurídica individualizada produzida no processo. É a norma jurídica solucionadora do conflito que substitui uma possível resolução forçada por qualquer das partes. A autotutela dá lugar à jurisdição.

Essa substitutividade, contudo, sofre uma importante mitigação nas chamadas ações cons-titutivas necessárias, que são aquelas em que somente por meio da jurisdição estatal é possível constituir, modificar ou extinguir uma situação ou relação jurídica. Em outras palavras, nas ações constitutivas necessárias, os efeitos almejados pelas partes/interessados somente podem ser alcançados por meio de processo judicial. Logo, não há, verdadeiramente, substitutividade.

Imagine, inicialmente, um contrato de compra e venda celebrado entre dois particulares. A resolução desse negócio jurídico depende, necessariamente, da atividade jurisdicional do estado? É evidente que não, pois se não houver qualquer controvérsia, as próprias partes podem entabular um distrato, cujos efeitos serão idênticos aos produzidos em eventual processo judicial. Imagine, agora, a dissolução de casamento pelo casal que possui filho incapaz. A dissolução pretendida depende, necessariamente, da atividade jurisdicional do estado? Nesse caso, sim. Apenas por meio da ação de divórcio (ainda que consensual) será possível a dissolução da sociedade conjugal. Trata-se, portanto, de uma ação constitutiva necessária. É o que também ocorre, por exemplo, na interdição.

8. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v. II, Op. cit., p.17.

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Vê-se, assim, que somente é possível falar em substitutividade quando a vontade que se está substituindo pode, também, concretizar-se, bem ou mal, sem a atividade estatal.

4.2. Inércia

À luz do princípio dispositivo, consagrado no art. 2º do CPC, “o processo começa por inicia-tiva da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei”. Isso significa que o exercício da função jurisdicional do Estado depende de provocação do interessado, não podendo o processo iniciar-se, ex officio, pelo órgão jurisdicional (ne procedat iudex ex officio).

A característica da inércia se manifesta não apenas por meio do princípio dispositivo (art. 2º do CPC), mas também através de dois outros importantes princípios: princípio da demanda (art. 141 do CPC) e princípio da congruência (art. 492 do CPC). Em regra, a atuação do juiz deve se adstringir aos limites dos pedidos formulados pelas partes. Decidir sobre o que não foi pedido é o mesmo que decidir de ofício.

Nos termos do art. 141 do CPC, “o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte” (princípio da demanda). Por sua vez, o art. 492 do CPC dispõe que “é vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado” (princípio da congruência).

Há, contudo, mitigações ao princípio da inércia. Podem ser citados os seguintes exemplos: a) possibilidade de o juiz agir de ofício no campo probatório (art. 370 do CPC); b) arrecadação dos bens no caso de herança jacente (arts. 738 e seguintes do CPC); c) restauração de autos (arts. 712 e seguintes do CPC).

4.3. Lide

A jurisdição, em regra, pressupõe a existência de uma lide, de um litígio. É preciso, portanto, que a pretensão que tenha sido levada ao conhecimento do Poder Judiciário tenha sido resistida ou, ao menos, insatisfeita por alguém.

Para Francesco Carnelutti, “o litígio está presente no processo, como a enfermidade o está na cura”9. A lide, nesse sentido, é pressuposto necessário para a atividade jurisdicional, ou seja, elemento que sempre deve estar presente para se apontar determinada atividade es-tatal como sendo jurisdicional. Atualmente, há de se reconhecer a possibilidade de exercício de atividade jurisdicional sem que haja necessariamente um litígio em sentido estrito. É o que ocorre, por exemplo, nas ações constitutivas necessárias e nas ações de controle concentrado de constitucionalidade.

4.4. Manifestação de poder

Por meio da função jurisdicional, o Estado manifesta o seu poder de compor os conflitos. E como manifestação de poder, ela é imperativa e inevitável.

Imperativa porque impõe ao jurisdicionado a vontade do direito. A jurisdição diz e realiza o direito ainda que contra a vontade da parte. Inevitável porque às pessoas não é dada a escolha de se submeter ou não à jurisdição. Uma vez proposta a ação, o réu não pode simplesmente dizer

9. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil: composição do processo, v. II, Op. cit., p. 25.

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CAPÍTULO III • JURISDIÇÃO 99

que não aceita se submeter à atividade jurisdicional. Ao final do processo, sendo ou não favorável a decisão judicial, a parte se submeterá aos seus efeitos. Trata-se de uma situação de sujeição.

4.5. Atividade criativa

Um dos grandes desafios do processo civil é a busca por maior unidade do Direito e se-gurança jurídica. Isso porque toda proposição normativa (texto de lei) comporta mais de uma interpretação. É possível ainda que uma determinada proposição normativa, interpretada de forma literal, seja injusta em um dado caso concreto.

No exercício da função jurisdicional, cabe ao juiz atribuir sentido aos preceitos normati-vos, tendo, evidentemente, a Constituição como paradigma interpretativo. Nessa perspectiva, ao atribuir sentido aos enunciados normativos, o juiz desenvolve uma verdadeira atividade criativa, reveladora, portanto, da norma jurídica. Há, portanto, uma acentuada distinção entre enunciado (ou preceito) normativo e norma jurídica. Aquele (o enunciado) nada mais é do que o imperativo abstrato previsto em um documento. Esta (a norma) é o sentido do preceito, o comando normativo revelado pelo texto.

Não é nova a ideia de que texto de lei não se confunde com norma jurídica. Para Kelsen, a proposição jurídica é um enunciado formulado pela ciência do Direito, visando à descrição do seu objeto, ou seja, um juízo hipotético da ciência jurídica, portanto, predominantemente descritivo. Já a norma jurídica é um comando de produção do Direito, que pode ser emanado do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do próprio Poder Judiciário10.

Com efeito, é a partir da interpretação que o juiz manifesta a atividade criativa da jurisdição, ou seja, de revelação da norma jurídica a partir de enunciados legislativos.

Vejamos um exemplo emblemático.O art. 1.723 do CC reconhece, de forma expressa, a união estável constituída entre homem

e mulher. Aplicando-se literalmente este dispositivo, não seria possível, em tese, o reconheci-mento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 4277-DF, interpretando o art. 1.723 do CC à luz do texto constitucional, firmou entendimento no sentido de que qualquer interpretação dada ao aludido dispositivo que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo mostra-se inconstitucional. A partir de uma interpretação conforme a Constituição, o Supremo Tribunal Federal extraiu do texto do art. 1.723 do CC a norma jurídica mais consentânea com a Constituição, qual seja, o reconhecimento, como entidade familiar, de pessoas do mesmo sexo.

4.6. Definitividade

A jurisdição é a única forma de solução de conflitos capaz de tornar imutável e indiscutível a decisão de mérito. A essa estabilidade conferida a algumas decisões judiciais dá-se o nome de coisa julgada. O tema será estudado em capítulo próprio.

4.7. Decisão proferida por terceiro imparcial

A decisão que resolve o conflito e revela o exercício da jurisdição deve se dar por um ter-ceiro imparcial. Foi dito no capítulo anterior que o princípio do juízo natural, além de conferir

10. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: M. Fontes, 1999.

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maior previsibilidade ao direito, garante a aplicação do princípio da imparcialidade do juiz. Tal característica significa que a atividade jurisdicional deve ser exercida por pessoa estranha ao conflito; imparcial; e cuja competência foi previamente prevista pelas normas de regência. Fala-se, assim, em heterocomposição.

Contudo, é importante registrar que essa característica não é exclusiva da jurisdição. Cite-se, como exemplo, as decisões proferidas por terceiros imparciais em processos administrativos no âmbito dos poderes executivo e legislativo (função atípica desses poderes).

5. PRINCÍPIOS DA JURISDIÇÃO

5.1. Princípio da investidura

O exercício da atividade jurisdicional pressupõe prévia investidura do julgador nesta função. Regra geral, a investidura decorre de aprovação em concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em Direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação (art. 93, I, da CF). Contudo, a própria Constituição Federal estabelece outras formas de investidura, como a decorrente do chamado quinto constitucional para os Tribunais Regionais Federais, Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (art. 94 da CF), bem como de livre nomeação do Presidente da República para tribunais superiores (arts. 101, parágrafo único, 104, parágrafo único, 111-A, 119 e 123 da CF).

A investidura, além de princípio da jurisdição, é um dos pressupostos de existência do pro-cesso (órgão investido de jurisdição). Isso significa que a sua violação gera um vício de existência do processo. Em outras palavras, decisão proferida por um não-juiz é uma não-decisão judicial.

5.2. Princípio da territorialidade (ou aderência ao território)

A jurisdição é una e, portanto, exercida em todo o território nacional. No entanto, por uma questão de funcionalidade do sistema, a Constituição e as leis limitam espacialmente o seu exercício, o que se dá por meio de regras de competência. Tal limitação, porém, refere-se ao exercício da função jurisdicional, e não à produção dos efeitos da decisão. Assim é que uma de-cisão proferida em Natal/RN, por exemplo, projeta os seus efeitos para todo o território nacional.

À luz do princípio da territorialidade, a jurisdição será exercida por cada juiz nos limites do estado ou da região ao qual está vinculado. Todavia, é possível que a lei preveja a prática de atos fora dos limites territoriais do juízo, como é o caso, por exemplo, da previsão contida no art. 255 do CPC (“Nas comarcas contíguas de fácil comunicação e nas que se situem na mesma região metropolitana, o oficial de justiça poderá efetuar, em qualquer delas, citações, intimações, notificações, penhoras e quaisquer outros atos executivos”).

5.3. Princípio da indelegabilidade

A atividade jurisdicional não pode ser delegada, ainda que o delegatário também tenha sido investido nesta função. Caso fosse possível a delegação, um juiz que não tivesse muita afinidade com a matéria discutida no processo poderia simplesmente delegar sua função a outro juiz, em evidente violação ao princípio do juízo natural. Há, porém, algumas mitigações a esse princípio, ou seja, hipóteses em que a própria Constituição ou a lei permite a delegação. São elas:

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CAPÍTULO IVCOMPETÊNCIA

1. CONCEITO DE COMPETÊNCIA E ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO

Conforme já estudado, a jurisdição é una e exercida em todo o território nacional. Contu-do, por uma questão de funcionalidade do sistema, a Constituição e as leis limitam, no âmbito interno, o seu exercício, o que se dá por meio de regras de competência. Nesse sentido, a com-petência pode ser conceituada como o limite, estabelecido pela Constituição ou pela lei, para o exercício da jurisdição. Tal limite pode decorrer de critérios diversos, os quais serão estudados neste capítulo.

A compreensão das regras de competência pressupõe o conhecimento da própria estrutura do Poder Judiciário. À luz do quanto estabelecido no Capítulo IV do Título III da Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário pode ser estruturado da seguinte forma:

Nos termos do art. 44 do CPC, “obedecidos os limites estabelecidos pela Constituição Fede-ral, a competência é determinada pelas normas previstas neste Código ou em legislação especial, pelas normas de organização judiciária e, ainda, no que couber, pelas constituições dos Estados”. Nesse cenário, a própria Constituição tratou de distinguir a chamada justiça especial da deno-minada justiça comum. A justiça especial é formada pela Justiça do Trabalho, Justiça Militar e Justiça Eleitoral. Por sua vez, a justiça comum é formada pela Justiça Federal e Justiça Estadual.

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2. PRINCÍPIO DA KOMPETENZ-KOMPETENZ (COMPETÊNCIA DA COMPETÊNCIA)

Segundo o princípio da kompetenz-kompetenz (competência da competência), todo juízo possui um núcleo mínimo de competência. Isso significa dizer que ao reconhecer, por exemplo, a sua incompetência absoluta, o juízo, neste ato, exerce uma parcela mínima de competência que lhe é atribuída pelo sistema, qual seja, a de examinar a sua própria competência.

Questão interessante é saber se o princípio da kompetenz-kompetenz se aplica à arbitragem. E a resposta depende da natureza jurídica atribuída a esse meio adequado de solução de con-flitos. Conforme estudado no capítulo referente à jurisdição, o entendimento que prevalece na atualidade é o de que a arbitragem tem natureza jurisdicional. Por conseguinte, há de ser reco-nhecida a parcela mínima de competência do árbitro para examinar a sua própria competência.

O princípio da kompetenz-kompetenz pode ser extraído do parágrafo único do art. 8º, pa-rágrafo único, da Lei nº 9.307/1996, segundo o qual “caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”. Nesse sentido, decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça que “a controvérsia acerca da existência, validade e eficácia da cláusula compromissória deve ser resolvida, com primazia, pelo juízo arbitral, não sendo possível antecipar essa discussão perante a jurisdição estatal”1.

3. PERPETUAÇÃO DA JURISDIÇÃO (PERPETUATIO JURISDICTIONIS)

3.1. Introdução

Uma vez proposta a ação perante o juízo competente, surge o fenômeno da perpetuação da jurisdição (perpetuatio jurisdictionis), que impede que modificações supervenientes no estado de fato ou de direito afastem a competência do juízo. Isso significa dizer que as regras de com-petência devem ser aferidas no exato momento em que se propõe a ação, ou seja, no momento do registro ou da distribuição da petição inicial. Proposta a ação, perpetua-se a competência, ainda que posteriormente sobrevenha alguma modificação no estado de fato ou de direito.

Contudo, não haverá perpetuação da jurisdição em duas hipóteses: a) quando a mudança superveniente implicar supressão do órgão judiciário; e b) quando a mudança superveniente alterar a competência absoluta. É o que dispõe o art. 43 do CPC (“Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modifica-ções do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta”).

Fala-se em registro da petição inicial quando no foro houver um único juízo (ex.: comarca com uma única vara cível) e em distribuição quando no foro houver mais de um juízo (ex.: foro com três varas cíveis, podendo a ação ser distribuída a qualquer um deles).

O fenômeno da perpetuação da jurisdição, como se vê, apresenta-se como importante mecanismo de promoção do postulado da segurança jurídica e do princípio do juízo natural, evitando-se que a competência do juízo fique à mercê de circunstâncias fáticas ou jurídicas supervenientes.

1. STJ, REsp 1598220/RN, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 01/07/2019.

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CAPÍTULO IV • COMPETÊNCIA 123

A título de exemplo, imagine que determinada ação fundada em direito pessoal tenha sido proposta no foro de Foz do Iguaçu/PR (domicílio do réu) e distribuída ao juízo da 2ª vara cível daquela comarca. Três meses após a distribuição da petição inicial, o réu se muda para a cidade (e comarca) de Cascavel/PR. Nesse caso, não há falar em remessa dos autos à comarca (foro) de Cascavel/PR, justamente em razão da perpetuação da jurisdição. Isso porque, quando a ação foi proposta, o réu tinha domicílio em Foz do Iguaçu/PR, sendo a mudança de domicílio uma mera alteração superveniente no estado de fato, insuscetível, portanto, de gerar alteração da competência.

Contudo, é preciso ficar atento às exceções do art. 43 do CPC. São elas: Supressão do órgão judiciário: se após a propositura da ação o próprio órgão judici-

ário for suprimido, haverá modificação da competência e, consequente, remessa dos autos ao juízo competente. A título de exemplo, imagine que o Tribunal de Justiça de determinado estado extinga a comarca X, tendo em vista a baixa movimentação de processos, deliberando que a área abrangida pela comarca X será abarcada pela comarca Y (comarca vizinha com grande movimentação de processos). Note que ao ser extinta a comarca X, os juízos daquela comarca (órgãos judiciários), por via consequencial, também foram extintos. Nesse caso, houve uma modificação no estado de direito que acarretou supressão de órgãos judiciários, razão pela qual as ações que tramitavam nos juízos (varas) daquela comarca deverão ser remetidas e distribuídas a um dos juízos da comarca Y (novo foro competente);

Alteração da competência absoluta: é possível que após a propositura da ação haja modificação da própria competência absoluta. Por conseguinte, tendo em vista a in-derrogabilidade da competência absoluta, as ações já distribuídas devem ser remetidas ao novo juízo competente. A título de exemplo, imagine que em determinada comarca (foro) haja uma única vara (juízo) com competência geral. O Tribunal de Justiça, em razão de previsão na Lei de Organização Judiciária, resolve instalar naquela comarca a vara de sucessões. A competência desse novo juízo é absoluta, já que se trata de com-petência em razão da matéria. Logo, as ações de inventário e partilha já distribuídas à vara única devem ser remetidas à nova vara, em razão da alteração superveniente da competência absoluta.

3.2. Perpetuação da jurisdição e desmembramento de comarca

O desmembramento de comarca não é causa, por si só, de modificação da competência em relação às ações já propostas na comarca originária. A título de exemplo, se no curso do processo houver o desmembramento da comarca, em razão da criação de uma nova comarca em cidade vizinha, as ações pessoais ajuizadas contra réus domiciliados na cidade que agora virou comarca não serão remetidas a ela. Trata-se de modificação no estado de direito que se sujeita à regra da perpetuatio jurisdictionis (art. 43 do CPC). Essa é a regra.

Contudo, se o desmembramento da comarca gerar a modificação da competência absoluta, nesse caso, os processos que tramitam na comarca originária deverão ser remetidos à nova comarca. É o que ocorre, por exemplo, nas ações reais imobiliárias quando o imóvel litigioso estiver situado na cidade que, após a propositura da ação, se tornou comarca.

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Nos termos do art. 47 do CPC, “para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da coisa”. Trata-se de regra de competência absoluta. Logo, os processos dessa natureza, que até então tramitavam na comarca originária, deverão ser remetidos à nova comarca (foro de situação da coisa).

Em síntese, o desmembramento de comarca somente implicará remessa dos autos à nova comarca se, com o desmembramento, for alterada a competência absoluta.

3.3. Perpetuação da jurisdição e alteração da competência após a sentença

Se o processo já foi sentenciado, qualquer modificação no estado de fato ou de direito, ainda que haja alteração da competência absoluta, não afastará a perpetuação da jurisdição, conforme entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça2 (ex.: após a prolação da sentença pelo juízo da vara cível, é instalada a vara de família na comarca).

3.4. Perpetuação da jurisdição e princípio do juízo imediato

Imagine uma ação de destituição do poder familiar proposta perante a vara de família do foro do guardião da criança. No curso do processo, o guardião da criança muda-se com esta para outro estado da federação. Neste caso, considera-se perpetuada a jurisdição do foro onde a ação foi proposta ou os autos deverão ser remetidos ao foro do novo domicílio da criança?

Segundo o Superior Tribunal de Justiça, aplica-se na hipótese o princípio do juízo imedia-to, devendo os autos ser remetidos ao foro do novo domicílio da criança, pois é o local onde o infante passou a exercer, com regularidade, o seu direito à convivência familiar e comunitária, à luz do art. 147 do ECA3. Com esse entendimento, conclui-se que a competência pelo foro do local onde a criança ou o adolescente se encontre tem natureza absoluta, revelando-se como verdadeira mitigação à regra da perpetuatio jurisdictionis4.

4. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E COMPETÊNCIA RELATIVA

Ao estabelecer os critérios de distribuição da competência, o legislador entendeu por bem, em alguns casos, primar pelo interesse público, preservando não apenas a funcionalidade do Poder Judiciário como também a segurança jurídica. Nessas hipóteses, a competência é inder-rogável pela vontade das partes, assumindo, portanto, o status de competência absoluta. Em outros casos, privilegiou-se a autonomia da vontade (interesse privado), permitindo-se, assim, quer seja pela lei, quer seja pela vontade das partes, a modificação da competência. Fala-se, aqui, em competência relativa.

A identificação de uma regra de competência como absoluta ou relativa é muito importante para o desenvolvimento do processo, sobretudo por se tratar a competência de pressuposto processual de validade.

2. Nesse sentido: REsp 1209886/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 17/10/2016.

3. Art. 147. A competência será determinada: I - pelo domicílio dos pais ou responsável; II - pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável.

4. REsp 1404036/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2017, DJe 24/02/2017.

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CAPÍTULO IV • COMPETÊNCIA 125

Vejamos abaixo as principais diferenças entre elas: Interesse protegido: a competência absoluta visa atender a um interesse público; a

competência relativa visa atender a um interesse privado;

Conhecimento de ofício: a incompetência absoluta pode ser conhecida de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição; a incompetência relativa não pode ser conhecida de ofício (súmula 33 do STJ), devendo ser alegada em preliminar de contestação, sob pena de preclusão e prorrogação da competência (arts. 65 e 337, II, ambos do CPC). Mas é preciso ter cuidado, pois há uma hipótese excepcionalíssima na qual o juiz acaba conhecendo, em tese, a incompetência relativa de ofício. Trata-se da possibilidade de reconhecer, de ofício, a abusividade de uma cláusula de eleição de foro, nos termos do art. 63, § 3º, do CPC. O tema será melhor estudado mais adiante;

Derrogabilidade: a competência absoluta não pode ser alterada pela vontade das partes, ela é inderrogável. A competência relativa, por sua vez, pode ser alterada pela vontade das partes (ex.: cláusula de eleição de foro);

Modificação por conexão ou continência: a competência absoluta não pode ser alterada por conexão ou continência; já a competência relativa pode ser alterada por conexão ou continência;

Mudança superveniente da regra de competência: a mudança superveniente de uma regra de competência absoluta acarreta o deslocamento da competência e, consequen-temente, a remessa dos autos em tramitação ao novo juízo (ex.: instalação de uma vara de família em comarca onde, até então, havia uma única vara cível com competência geral. Nesse caso, os processos de família em trâmite serão remetidos ao novo juízo, haja vista a sua competência absoluta em razão da matéria); a mudança superveniente de uma regra de competência relativa não acarreta o deslocamento da competência. Aplica-se, nesse caso, a regra da perpetuatio jurisdictionis;

Consequência do reconhecimento da incompetência: o reconhecimento da incom-petência, absoluta ou relativa, acarreta a remessa dos autos ao juízo competente (art. 64, § 3º, do CPC). Contudo, no âmbito dos juizados especiais, o reconhecimento da incompetência territorial, absoluta ou relativa, acarreta a extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 51, III, da Lei nº 9.099/1995;

Atos praticados perante juízo incompetente: ainda que reconhecida a incompetência, absoluta ou relativa, tanto os atos não decisórios quanto os decisórios deverão ter seus efeitos conservados, pelo menos até que outra decisão seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente (art. 64, § 4º, do CPC). A título de exemplo, imagine que em um de-terminado processo, o juiz defira uma tutela provisória em favor do autor e determine a citação do réu, e que este (réu) apresente contestação, alegando, preliminarmente, a incompetência absoluta do juízo. Suponhamos que o juiz acolha a preliminar e determine a remessa dos autos ao juízo competente. Nesse caso, a decisão que concedeu a tutela provisória, proferida pelo juízo absolutamente incompetente, continuará a surtir os seus efeitos enquanto não for revogada pelo juízo competente, ao qual o processo foi remetido.

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126 MANUAL DE PROCESSO CIVIL • Jaylton Lopes Jr.

4.1. Tabela para fixação do conteúdo

(in)competência absoluta (in)competência relativa

Interesse protegido Público Privado

Conhecimento de ofício Pode ser conhecida de ofício Não pode ser conhecida de ofí-cio (súmula 33 do STJ)

Modificação pela vontade das partes Não é possível É possível

Modificação por conexão ou continência Não é possível É possível

Modificação superveniente de uma regra de competência

Gera deslocamento da compe-tência e remessa dos autos ao novo juízo competente

Não gera deslocamento de com-petência. Aplica-se a regra da perpetuatio jurisdictionis

Consequência do reconheci-mento da incompetência

Remessa dos autos ao juízo competente

Remessa dos autos ao juízo competente

Atos praticados pelo juízo incompetente

Serão mantidos, em regra, os atos não decisórios e os atos decisórios, até que o juízo com-petente os modifique

Serão mantidos, em regra, os atos não decisórios e os atos decisórios, até que o juízo com-petente os modifique

5. COMPETÊNCIA DE FORO E COMPETÊNCIA DE JUÍZO

Foro se refere ao espaço territorial onde o juiz exerce jurisdição. Comumente pode ser compreendido como comarca, subseção judiciária ou seção judiciária. Juízo, por sua vez, é a unidade judiciária dentro do foro. A título de exemplo, se em determinada comarca há dez varas cíveis, a comarca representa o foro; as varas cíveis, os respectivos juízos.

No momento da propositura da ação, a parte autora deve verificar não apenas o foro com-petente, mas também o juízo. Explico. Mustafá pretende ajuizar ação de divórcio litigioso em desfavor de Billa, a qual reside com o filho incapaz do casal na comarca X, onde há três varas cíveis e uma vara de família. Nesse caso, a ação deverá ser proposta no foro X (art. 53, I, “a”, do CPC) e endereçada ao juízo da vara de família, diante da sua competência absoluta em razão da matéria.

A partir do exemplo acima citado, verifica-se que as regras de competência de foro en-contram-se previstas na Constituição e nas leis em geral (CPC, ECA, CDC etc.) e as regras de competência do juízo encontram-se disciplinadas nas Leis de Organização Judiciária.

6. COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA

O registro e a distribuição da ação têm o condão, como visto, de gerar a perpetuação da jurisdição (art. 43 do CPC). Além disso, ambos se apresentam como mecanismos para assegurar a observância do postulado da segurança jurídica e do princípio do juízo natural. Nos termos do art. 284 do CPC, “todos os processos estão sujeitos a registro, devendo ser distribuídos onde houver mais de um juiz”. A distribuição, que poderá ser eletrônica, deverá ser alternada e aleatória, obedecendo-se rigorosa igualdade. Além disso, a lista de distribuição deverá ser publicada no Diário de Justiça.

Observada a competência de foro, é possível que o juízo para o qual a ação foi distribuída se torne competente para outras ações futuras que, de alguma forma, tenham ligação com a

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CAPÍTULO XXXIXAÇÕES DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

DE TRIBUNAL

1. HOMOLOGAÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA E CONCESSÃO DO EXEQUATUR À CARTA ROGATÓRIA

1.1 Introdução

A jurisdição é una e exercida em todo o território nacional. Constitui, ainda, um dos traços marcantes da soberania nacional. Nesse sentido, em regra, somente as decisões judiciais emana-das da justiça brasileira surtem efeitos imediatos e cogentes no território nacional. Tratando-se de decisão judicial estrangeira, sua eficácia no Brasil dependerá da observância de certos re-quisitos impostos pela lei brasileira e de prévia homologação pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nos termos do art. 960 do CPC, “a homologação de decisão estrangeira será requerida por ação de homologação de decisão estrangeira, salvo disposição especial em sentido con-trário prevista em tratado”. A ação de homologação de sentença estrangeira é de competência originária do Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, “i”, da CF, observando-se o procedimento previsto no CPC, no regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e em tratado em vigor no Brasil (art. 960, § 2º, CPC).

A decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação de sentença estrangeira ou a concessão do exequatur às cartas rogatórias, salvo disposição em sentido con-trário de lei ou tratado (art. 961 do CPC). Não cabe ao Superior Tribunal de Justiça a análise do mérito da decisão estrangeira. Não interessa se a decisão, sob a ótica da justiça brasileira, é justa ou injusta. Interessa saber, tão somente, se a decisão estrangeira cumpre os requisitos impostos pela lei brasileira para que possa ter eficácia no Brasil.

1.2. Objeto da homologação

A homologação não se restringe às sentenças estrangeiras. Qualquer que seja a natureza do pronunciamento judicial estrangeiro (despacho, decisão, sentença ou acórdão), será possível a sua homologação pelo Superior Tribunal de Justiça. É passível de homologação a decisão judicial definitiva, bem como a decisão não judicial que, pela lei brasileira, teria natureza ju-risdicional (art. 961, § 1º, do CPC). A título de exemplo, basta imaginar uma decisão proferida por tribunal administrativo estrangeiro, proveniente de país que adota o sistema do contencioso

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1048 MANUAL DE PROCESSO CIVIL • Jaylton Lopes Jr.

administrativo1. Embora proferida por órgão não pertencente ao Poder Judiciário, aquela decisão, no Brasil, seria judicial, pois o Brasil adota o sistema judiciário (sistema inglês). Assim, no exem-plo citado, a decisão do tribunal administrativo estrangeiro poderá ser homologada no Brasil.

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a possibilidade de homologação de sentença eclesiástica de anulação de matrimônio, confirmada pelo órgão de controle superior da Santa Sé2. Tal possibilidade decorre do § 1º do art. 12 do Decreto federal n. 7.107/2010 (que homolo-gou o acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 698/2009), que determina que a “homologa-ção das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras” (art. 12, § 1º). 

Registre-se, ademais, que o CPC não exige que a homologação seja integral. É plenamente possível a homologação parcial da decisão estrangeira (art. 961, § 2º, do CPC). É possível, ainda, homologação de decisão estrangeira para fins de execução fiscal, desde que prevista em tratado ou em promessa de reciprocidade apresentada à autoridade brasileira (art. 961, § 4º, do CPC).

Tratando-se de sentença estrangeira de divórcio consensual, sua eficácia no Brasil não está condicionada à prévia homologação. Nos termos do § 5º do art. 961 do CPC, “a sentença es-trangeira de divórcio consensual produz efeitos no Brasil, independentemente de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça”. Nesse caso, competirá a qualquer juiz examinar a validade da decisão, em caráter principal ou incidental, quando essa questão for suscitada em processo de sua competência (art. 961, § 6º, do CPC).

Por fim, tratando-se de sentença arbitral estrangeira, sua homologação obedecerá ao disposto em tratado e em lei, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do CPC sobre homologação de decisão estrangeira (art. 960, § 3º, do CPC).

1.3. Execução de decisão estrangeira concessiva de medida de urgência

Nos termos do art. 962, caput, do CPC, “é passível de execução a decisão estrangeira con-cessiva de medida de urgência”. A execução no Brasil de decisão interlocutória estrangeira concessiva de medida de urgência dar-se-á por carta rogatória (art. 962, § 1º, do CPC). A decisão estrangeira concessiva de medida de urgência pode ser executada no Brasil, ainda que tenha sido proferida sem audiência do réu, desde que garantido o contraditório em momento posterior (art. 962, § 2º, do CPC).

Questão interessante diz respeito à competência para análise da situação de urgência. O juiz brasileiro, ao receber a carta rogatória, pode deixar de cumpri-la por entender que não está presente a situação de urgência? A resposta é não. O CPC é expresso em prever que o juízo sobre a urgência da medida compete exclusivamente à autoridade jurisdicional prolatora da decisão estrangeira (art. 962, § 3º, do CPC).

1. Estuda-se, no Direito Administrativo, os sistemas administrativos. A doutrina, em geral, elenca dois grandes sistemas: o primeiro, denominado sistema inglês (ou judiciário), é aquele no qual todos os litígios, sejam de caráter administrativo ou privado, se submetem à apreciação do Poder Judiciário, a quem compete proferir decisões definitivas. O segundo, denominado sistema francês (ou contencioso administrativo), estrutura-se em uma dualidade de jurisdição, convivendo, no mesmo sistema, a jurisdição administrativa, formada por tribunais administrativos, e a jurisdição comum, formada pelos órgãos do Poder Judiciário, que julgarão os demais litígios (não administrativos).

2. SEC 11.962-EX, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 4/11/2015, DJe 25/11/2015.

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CAPÍTULO XXXIX • AÇÕES DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DE TRIBUNAL 1049

Quando dispensada a homologação para que a sentença estrangeira produza efeitos no Brasil, a decisão concessiva de medida de urgência dependerá, para produzir efeitos, de ter sua validade expressamente reconhecida pelo juiz competente para dar-lhe cumprimento, dispensada a homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 962, § 4º, do CPC).

1.4. Requisitos

Para que a decisão estrangeira possa ser homologada, o art. 963 do CPC exige o preenchi-mento dos requisitos elencados a seguir:

1.4.1. A decisão deve ter sido proferida por autoridade competente

Para que a decisão estrangeira seja homologada no Brasil, é preciso que a autoridade pro-latora da decisão tenha competência para tanto. Não será homologada a decisão estrangeira quando, a despeito da competência da autoridade estrangeira no país de origem, a decisão recair sobre causa de competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira, nos termos do art. 23 do CPC. Nesse sentido, dispõe o art. 964, caput, do CPC, que “não será homologada a decisão estrangeira na hipótese de competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira”. Esse dispositivo também se aplica à concessão do exequatur à carta rogatória (art. 964, parágrafo único, do CPC).

1.4.2. A decisão deve ter sido precedida de citação regular, ainda que verificada a revelia

Conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “não pode ser homologada senten-ça estrangeira que decrete divórcio de brasileira que, apesar de residir no Brasil em local conhecido, tenha sido citada na ação que tramitou no exterior apenas mediante publicação de edital em jornal estrangeiro, sem que tenha havido a expedição de carta rogatória para chamá-la a integrar o processo”3.

1.4.3. A decisão deve ser eficaz no país em que foi proferida

A decisão somente pode ter eficácia no Brasil se tiver eficácia no país de origem. Isso porque, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “o procedimento homologatório não acres-centa eficácia à sentença estrangeira, mas somente libera a eficácia nela contida, internalizando seus efeitos em nosso País, não servindo, pois, a homologação de sentença para retirar vícios ou dar interpretação diversa à decisão de Estado estrangeiro”4. Considera-se eficaz a decisão que possa ser executada no país de origem, ainda que provisoriamente, de modo que haven-do pronunciamento judicial suspendendo a produção de efeitos da sentença que se pretende homologar no Brasil, mesmo que em caráter liminar, a homologação não pode ser realizada5.

1.4.4. A decisão não pode ofender a coisa julgada brasileira

O respeito à coisa julgada é um direito fundamental (art. 5º, XXXVI, da CF). Se a demanda decidida no estrangeiro já foi julgada anteriormente no Brasil com decisão transitada em julgado,

3. SEC 10.154-EX, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 1º/7/2014.4. SEC 5.782/EX (Rel. Ministro Jorge Mussi, Corte Especial, DJe 16.12.2015.5. Cf. SEC 14.812/EX, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/05/2018, DJe 23/05/2018.

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1050 MANUAL DE PROCESSO CIVIL • Jaylton Lopes Jr.

a decisão estrangeira não será homologada. Incumbe ao réu provar eventual coisa julgada bra-sileira que seja ofendida pela sentença estrangeira homologanda, nos termos do inciso II do art. 373 do CPC/15, pois se trata de fato impeditivo do direito do autor à homologação pelo Superior Tribunal de Justiça da sentença estrangeira6.

Não obstante, há certas relações jurídicas que, mesmo após o trânsito em julgado da de-cisão, podem ser modificadas, como é o caso, por exemplo, da guarda e alimentos no direito das famílias. Conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “a existência de decisão no Judiciário brasileiro acerca de guarda e alimentos, ainda que após o trânsito em julgado da sen-tença estrangeira, impede a sua homologação na parte em que versa sobre os mesmos temas, sob pena de ofensa aos princípios da ordem pública e soberania nacional”7.

1.4.5. A decisão deve estar acompanhada de tradução oficial, salvo disposição que a dis-pense prevista em tratado

No Brasil, é obrigatório, para os atos e termos do processo, o uso da língua portuguesa (art. 192, caput, do CPC). O documento redigido em língua estrangeira somente poderá ser juntado aos autos quando acompanhado de versão para a língua portuguesa tramitada por via diplomá-tica ou pela autoridade central, ou firmada por tradutor juramentado (art. 192, parágrafo único, do CPC). A tradução oficial da decisão é, portanto, requisito formal obrigatório, e somente será dispensada quando houver previsão nesse sentido em tratado e, evidentemente, quando a decisão estrangeira foi redigida em língua portuguesa (ex.: decisão proveniente de Portugal8).

Importante registrar, ainda, que, para o Superior Tribunal de Justiça, a exigência da tradução da sentença estrangeira por meio de tradutor oficial ou juramentado no Brasil deve ser mitigada quando o pedido de homologação tiver sido encaminhado pela via diplomática9.

1.4.6. A decisão não pode conter manifesta ofensa à ordem pública

Nos termos do art. 216-F do regimento interno do Superior Tribunal de Justiça, não será homologada a decisão estrangeira que ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública. A decisão estrangeira não será homologada quando ofender os valores, princípios, regras e demais diretrizes constitucionais que revelam a forma de ser do Estado brasileiro. A título de exemplo, não será homologada decisão estrangeria que tenha por objeto prisão civil de depositário infiel, pois o Estado brasileiro, à luz do Pacto de São José da Costa Rica, não a admite.

Para o Superior Tribunal de Justiça, “a prerrogativa da imparcialidade do julgador é uma das garantias que resultam do postulado do devido processo legal, matéria que não preclui e é aplicável à arbitragem, mercê de sua natureza jurisdicional. A inobservância dessa prerrogativa ofende, diretamente, a ordem pública nacional, razão pela qual a decisão proferida pela Justiça alienígena, à luz de sua própria legislação, não obsta o exame da matéria pelo STJ”10.

6. Cf. HDE 818/EX, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/09/2019, DJe 10/09/2019.7. SEC 6.485/EX, Rel. Ministro GILSON DIPP, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/09/2014, DJe 23/09/2014.8. Cf. HDE 465/EX, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/12/2018, DJe 12/12/2018.9. Cf. SEC 13.818/EX, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/12/2015, DJe

18/12/2015.10. SEC 9.412/EX, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ES-

PECIAL, julgado em 19/04/2017, DJe 30/05/2017.

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CAPÍTULO XXXIX • AÇÕES DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DE TRIBUNAL 1051

1.5. Procedimento

1.5.1. Homologação de decisão estrangeira

A homologação da decisão estrangeira será proposta pela parte requerente, devendo a petição inicial: a) conter os requisitos indicados na lei processual, bem como os previstos na lei e no art. 216-D do RISTJ; b) ser instruída com o original ou cópia autenticada da decisão homologanda e de outros documentos indispensáveis, devidamente traduzidos por tradutor oficial ou juramentado no Brasil e chancelados pela autoridade consular brasileira competente, quando for o caso (art. 216-C do RISTJ).

Se a petição inicial não preencher os requisitos exigidos pela lei e pelo regimento interno, ou apresentar defeitos ou irregularidades que dificultem o julgamento do mérito, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça assinará prazo razoável para que o requerente a emende ou com-plete (art. 216-E, caput, do RISTJ). Após a intimação, se o requerente ou o seu procurador não promover, no prazo assinalado, ato ou diligência que lhe for determinada no curso do processo, será este arquivado pelo Presidente (art. 216-E, parágrafo único, do RISTJ).

Admitida a ação, a parte interessada será citada para, no prazo de quinze dias, contestar o pedido (art. 216-H do RISTJ). A defesa somente poderá versar sobre a inteligência da decisão alienígena e a observância dos requisitos legais. Logo, não é possível discutir o mérito da decisão. Se o requerido for revel ou incapaz, ser-lhe-á nomeado curador especial, que será pessoalmente notificado (art. 216-I do RISTJ). Apresentada contestação, serão admitidas réplica e tréplica em cinco dias (art. 216-J do RISTJ). Contestado o pedido, o processo será distribuído para julgamento pela Corte Especial, cabendo ao relator os demais atos relativos ao andamento e à instrução do processo (art. 216-K, caput, do RISTJ).

Havendo jurisprudência consolidada da Corte Especial a respeito do tema, o relator poderá decidir monocraticamente (art. 216-K, parágrafo único, do RISTJ).

O Ministério Público terá vista dos autos pelo prazo de quinze dias, podendo impugnar o pedido (art. 216-L, do RISTJ).

Julgado procedente o pedido, a decisão estrangeira será homologada e executada por carta de sentença no Juízo Federal competente, conforme as normas estabelecidas para o cumprimento de decisão nacional (art. 216-N do RISTJ e art. 965, caput, do CPC).

O pedido de execução deverá ser instruído com cópia autenticada da decisão homologa-tória ou do exequatur, conforme o caso (art. 960, parágrafo único, do CPC). Contra decisões proferidas pelo Presidente ou relator cabe agravo interno para a Corte Especial (art. 216-M do RISTJ). Contra o acórdão que homologa a decisão estrangeira caberá recurso extraordinário, caso haja violação à Constituição Federal.

1.5.2. Concessão de exequatur a cartas rogatórias

A carta rogatória é o instrumento por meio do qual um órgão jurisdicional solicita a um órgão jurisdicional estrangeiro um ato de cooperação jurídica internacional, relativo a processo. É o que ocorre, por exemplo, com as decisões interlocutórias estrangeiras concessivas de tutela provisória de urgência. A execução dessas decisões dar-se-á por carta rogatória (art. 962, § 1º, do CPC), não cabendo à autoridade judiciária brasileira a análise quanto à urgência ou não da medida (art. 962, § 3º, do CPC).

Será concedido exequatur à carta rogatória que tiver por objeto atos decisórios ou não deci-sórios (art. 216-O, § 1º, do RISTJ). Os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem

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1052 MANUAL DE PROCESSO CIVIL • Jaylton Lopes Jr.

por objeto atos que não ensejem juízo deliberatório do Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados de carta rogatória, serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências necessárias ao cumprimento por auxílio direto (art. 216-O, § 2º, do RISTJ). O cumprimento da carta rogatória estrangeira, pela autoridade judiciária brasileira (Justiça Federal) está condicionada à prévia concessão de exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça.

É atribuição do Presidente do Superior Tribunal de Justiça conceder exequatur a cartas rogatórias (art. 216-O do RISTJ), salvo quando houver impugnação ao pedido de concessão de exequatur à carta rogatória de ato decisório, hipótese em que o Presidente poderá determinar a distribuição dos autos do processo para julgamento pela Corte Especial (art. 216-T do RISTJ).

Assim como ocorre na homologação de decisão estrangeira, não será concedido exequatur à carta rogatória que ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública (art. 216-P do RISTJ).

Recebida a carta rogatória, a parte requerida será intimada para, no prazo de quinze dias, impugnar o pedido de concessão do exequatur (art. 216-Q, caput, do RISTJ). No processo de concessão do exequatur, a defesa somente poderá versar sobre a autenticidade dos documentos, a inteligência da decisão e a observância dos requisitos previstos neste Regimento (art. 216-Q, § 2º, do RISTJ).

A medida solicitada por carta rogatória poderá ser realizada sem ouvir a parte requerida, quando sua intimação prévia puder resultar na ineficiência da cooperação internacional (art. 216-Q, § 1º, do RISTJ). Se o requerido for revel ou incapaz, ser-lhe-á nomeado curador especial (art. 216-R do RISTJ). O Ministério Público terá vista dos autos nas cartas rogatórias pelo prazo de quinze dias, podendo impugnar o pedido de concessão do exequatur (art. 216-S do RISTJ).

Das decisões do Presidente ou do relator na concessão de exequatur a carta rogatória caberá agravo (art. 216-U do RISTJ).

Após a concessão do exequatur, a carta rogatória será remetida ao juízo federal competente para cumprimento (art. 216-V, caput, do RISTJ). Das decisões proferidas pelo juízo federal competente no cumprimento da carta rogatória caberão embargos, que poderão ser opostos pela parte interessada ou pelo Ministério Público Federal no prazo de dez dias, julgando-os o Presidente deste Tribunal (art. 216-V, § 1º, do RISTJ). Os embargos poderão versar sobre qualquer ato referente ao cumprimento da carta rogatória, exceto sobre a própria concessão da medida ou o seu mérito (art. 216-V, § 1º, do RISTJ). Da decisão que julgar os embargos cabe agravo (art. 216-W, caput, do RISTJ).

Cumprida a carta rogatória ou verificada a impossibilidade de seu cumprimento, será de-volvida ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça no prazo de dez dias, e ele a remeterá, em igual prazo, por meio do Ministério da Justiça ou do Ministério das Relações Exteriores, à autoridade estrangeira de origem (art. 216-X do RISTJ).

2. AÇÃO RESCISÓRIA

2.1. Conceito

Toda decisão judicial deve pressupor um processo justo e democrático, cujo resultado é a criação de uma norma jurídica individualizada. Para corrigir eventuais desacertos no proce-dimento (error in procedendo) e desacertos no conteúdo das decisões (error in judicando), o ordenamento jurídico prevê instrumentos de impugnação de decisões (recursos), a fim de que a decisão possa ser reanalisada por um órgão jurisdicional diverso daquele prolator da decisão.

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CAPÍTULO XXXIX • AÇÕES DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DE TRIBUNAL 1053

Esgotadas as vias recursais, a decisão se torna indiscutível e imutável. A coisa julgada material – autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso – representa um importante fator de segurança jurídica e estabilidade aos jurisdicionados.

Ainda que o processo contenha algum vício que somente foi observado após o trânsito em julgado, a coisa julgada deve prevalecer, sob pena de se admitir discussões ad aeternum, o que não faz bem para um sistema processual que prima por segurança jurídica. Há casos, porém, em que a decisão que transitou em julgado ofende tão fortemente as estruturas do processo democrático, que o ordenamento jurídico permite a sua rediscussão por meio de uma ação impugnativa autônoma, denominada ação rescisória.

A ação rescisória, nessa perspectiva, é a ação autônoma de impugnação de decisão judicial transitada em julgado, por meio da qual a parte busca a desconstituição da coisa julgada (iudicium rescidens) e, em determinados casos, o rejulgamento da causa (iudicium rescissorium). Não se trata de recurso. Aliás, conforme prevê o art. 969 do CPC, “a propositura da ação rescisória não impede o cumprimento da decisão rescindenda, ressalvada a concessão de tutela provisória”.

2.2. Objeto da ação rescisória: decisão rescindível

2.2.1. Decisão de mérito

Em regra, a ação rescisória é cabível contra decisão de mérito transitada em julgado. Por decisão de mérito devemos compreender a decisão que acolhe ou rejeita o pedido do autor (art. 487, I, do CPC) e a decisão que pronuncia a prescrição ou decadência (art. 487, II, do CPC). A decisão homologatória de reconhecimento da procedência do pedido formulado na ação ou na reconvenção, de transação ou de renúncia à pretensão formulada na ação ou na reconvenção (art. 487, III, do CPC) não se sujeita à ação rescisória, mas sim à ação anulatória, conforme será visto mais adiante.

A ação rescisória pressupõe uma decisão transitada em julgado (art. 966 do CPC). O art. 966 do CPC não utilizou a palavra sentença justamente porque, como se sabe, é possível que uma decisão interlocutória resolva parte do mérito (ex.: art. 356 do CPC), e, por conseguinte, fique acobertada pelo manto da coisa julgada.

Algumas decisões de mérito, por expressa disposição legal, não podem ser desconstituídas por meio da ação rescisória. A título de exemplo, podem ser citados: a) acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade (art. 26 da Lei nº 9.868/1999 e art. 12 da Lei nº 9.882/1999); b) sentença/acórdão proferido nos juizados especiais cíveis (art. 59 da Lei nº 9.099/1995). Embora não haja dispositivo expresso na Lei nº 10.259/2001, entende-se que no âmbito dos juizados especiais federais também não é possível a propositura de ação rescisória.

A ação rescisória pode ter por objeto apenas um ou todos os capítulos da decisão rescin-denda, conforme prevê o § 3º do art. 966 do CPC (“A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um) capítulo da decisão”). Aliás, para o Superior Tribunal de Justiça, é cabível o ajuizamento de ação rescisória para discutir exclusivamente honorários advocatícios, independentemente de a decisão ter enfrentado o mérito da ação11.

11. Cf. REsp 1.217.321-SC, Rel. originário Min. Herman Benjamin, Rel. para acórdão Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 18/10/2012.

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CAPÍTULO XLPROCESSO ESTRUTURAL

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, houve um crescimento significativo do estudo do processo civil à luz dos denominados litígios estruturais (ou litígios estruturantes). O Poder Judiciário vem enfrentando desafios cada vez maiores, que transcendem o mero reconhecimento e efetivação de direitos individuais ou metaindividuais clássicos. Há determinadas pretensões que buscam romper estruturas fáticas, jurídicas, políticas ou institucionais já consolidadas.

A necessidade de ruptura de estruturas consolidadas pode decorrer de diversos fatores, sendo que nem sempre estarão relacionados à existência de atos ilícitos. Basta imaginar, por exemplo, a necessidade de reforma estrutural em países confessionais, para permitir o ensino e propagação de outras religiões; ou ainda uma demanda judicial objetivando implementar uma nova política pública de prevenção de surtos, pandemias e epidemias. O campo dos litígios estruturais é imenso (ex.: saúde, educação, meio ambiente, sistema penitenciário etc.).

A complexidade dos litígios estruturais – especialmente por envolver compreensões que não se restringem unicamente ao direito positivo e por envolver interesses multipolares e multifa-cetados – exige um processo judicial adequado não apenas para o reconhecimento dos direitos suscitados, mas, especialmente, para a efetiva transformação estrutural, o que demanda tempo, múltiplos esforços, políticas públicas e, quase sempre, recursos públicos.

O presente capítulo não tem a pretensão de aprofundar o estudo dos processos estruturais, mas apenas traçar algumas linhas de compreensão desse instigante tema que tem ganhado cada vez mais espaço nos debates jurídicos.

2. ANTECEDENTE HISTÓRICO: BROWN V. BOARD OF EDUCATION

No final do século XIX, uma lei do Estado de Louisiana (EUA), conhecida como “lei dos vagões separados” (separate car act) determinava que as companhias ferroviárias separassem as pessoas por vagões conforme a cor da pele (vagões para negros e vagões para brancos), porém as acomodações deveriam ser as mesmas. Homer Plessy, passageiro de uma companhia ferro-viária, após ser preso e condenado a pagar uma multa pelo magistrado John Howard Ferguson, questionou nos tribunais a constitucionalidade da lei1, até o caso chegar à Suprema Corte nor-te-americana (caso Plessy v. Ferguson).

1. A tese dos advogados de Plessy era a de que a lei de Louisiana era inconstitucional, pois violava a Décima Ter-ceira Emenda (fim da escravidão e da servidão involuntária) e a Décima Quarta Emenda (garante a igualdade perante a lei) à Constituição.

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Ao julgar o caso, em 1896, os Justices da Suprema Corte norte-americana rejeitaram o pedido de Plessey para, lamentavelmente, considerar a lei de Louisiana constitucional, sob o fundamento de que a separação de vagões entre brancos e negros não seria inconstitucional, já que as acomodações eram as mesmas. Ratifica-se, àquela altura, a doutrina do “separado, mas igual” (separate but equal). Como não poderia ser diferente, diante da força dos precedentes nos EUA, a referida decisão da Suprema Corte passou a ser aplicada a outras áreas da sociedade, tais como sistema de ensino, sistema de saúde e sistema prisional, legitimando, ainda mais, a segregação racial e durando aproximadamente cinquenta e oito anos.

Já na década de 1950, Linda Brown, uma criança negra, percorria um longo caminho de casa à sua escola, na cidade de Topeka, Estado de Kansas, embora houvesse outras escolas públicas próximas à sua residência. Esse longo caminho percorrido devia-se ao fato de as escolas mais próximas à sua residência não aceitarem crianças negras. Linda Brown, então, demandou contra o Conselho de Educação estadual exigindo sua matrícula em escolas próximas à sua residência.

A questão chegou à Suprema Corte norte-americana (caso Brown v. Board of Education). A sociedade não tolerava mais a segregação racial. Os Justices perceberam que eventual decisão no sentido da não-segregação geraria um enorme impacto na sociedade e nas instituições públicas, pois a decisão transcenderia, evidentemente, a temática da segregação no ensino, projetando-se para todos os segmentos da sociedade. Em decisão unânime, os Justices da Suprema Corte, à luz da Décima Quarta Emenda2, reconheceram a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas, porém não estabeleceram a forma de implementação desse novo modelo educacional de não-segregação racial. Tal tarefa coube às instâncias inferiores da justiça.

O caso Brown v. Board of Education demonstra bem o drama do chamado litígio estrutu-rante (structural litigation), o qual é timbrado pela necessidade de modificação de uma estrutura institucional consolidada, a exigir do Poder Judiciário a adoção de um procedimento adequado para a solução desse tipo de litígio e, sobretudo, medidas de ingerência vocacionadas à modi-ficação da estrutura institucional.

3. CONCEITO DE LITÍGIO ESTRUTURAL (STRUCTURAL LITIGATION)

Não há na doutrina um conceito fechado de litígio estrutural. Há, contudo, determinadas características que, uma vez reunidas, revelam a natureza estrutural do litígio. Nesse sentido, o litígio estrutural tem como principais características:Relevância do tema: o litígio transcende o caso concreto, de modo a atingir a sociedade

de forma total ou parcial. Em regra, envolve a necessidade de promoção de direitos fundamentais;

Complexidade da causa: a solução do litígio exige uma acentuada atividade cognitiva e interpretativa, pois os efeitos do litígio atingem pessoas, grupos de pessoas ou seg-mentos da sociedade de forma diferente;

2. Dispõe a Décima Quarta Emenda que “todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do estado onde residem. Nenhum Estado poderá aprovar ou fazer executar leis restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal, nem negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igualdade de proteção perante a lei”.

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Necessidade de políticas públicas para a implementação da solução dada ao litígio: o litígio estrutural tem como ponto central a necessidade de uma reforma estrutural em sistemas (ou modelos) institucionais, o que demanda adoção de políticas públicas;

Existência de múltiplos interesses: o litígio reflete na sociedade de forma difusa. Atinge parcelas da sociedade de forma diferente, gerando, assim, interesses variados;

Necessidade de ruptura com um sistema ou estrutura institucional consolidada: o litígio estrutural decorre da desconformidade do estado atual de coisas com a realidade social, a exigir uma verdadeira reforma institucional.

Segundo Edilson Vitorelli, nos litígios estruturais, “a lesão afeta, de modo desigual e variável, tanto em intensidade, quanto em natureza, uma sociedade que se subdivide em vários grupos. Essas pessoas não têm laços de identidade entre si, não compartilham dos mesmos interesses e, por isso, compõem uma sociedade que é a decorrência da superposição de interesses apenas parcialmente coincidentes e, em alguns casos, antagônicos”3.

4. PROCESSO ESTRUTURAL

4.1. Processo estrutural e a necessidade de um procedimento adequado

Os litígios estruturais estão intimamente ligados a ações ou omissões advindas do poder público, notadamente dos poderes legislativo e executivo. Quando o Poder Judiciário é instado a resolver litígios estruturais, é porque os demais poderes não cumpriram o seu papel consti-tucional. Portanto, o Poder Judiciário é provocado para intervir no campo político. Nada há de inconstitucional na atuação do Poder Judiciário em litígios estruturais envolvendo políticas públi-cas. O caso Brown v. Board of Education ilustra bem essa constatação. Litígios estruturais exigem processos estruturalmente adequados para o reconhecimento e implementação dos direitos.

Os litígios estruturais são incompatíveis com um sistema procedimental fechado. O sistema processual pensado e desenvolvido para solucionar litígios bipolares clássicos (autor v. réu) é insuficiente para resolver litígios estruturais. A necessidade de se romper com os arquétipos procedimentais legais não torna o processo menos democrático, mas, ao revés, permite que o processo alcance os seus escopos. Amarrar o juiz e todos os envolvidos nos litígios estruturais a um rito legal predefinido põe em xeque a legitimidade do processo, da decisão final e das consequentes medidas de implementação. Dizendo por outras palavras, a construção de um processo estrutural demanda a desconstrução dos modelos processuais formais abstratos.

Nessa perspectiva, podem ser identificadas, dentre outras, as seguintes características de um processo estrutural: a) fortalecimento do poder-dever de gestão do processo do juiz; b) flexibilização dos princípios da demanda e da congruência; c) necessidade de participação adequada no processo estrutural; d) saneamento comparticipativo; e) construção adequada da decisão estrutural; f) decisão de mérito como decisão com múltiplo conteúdo.

As linhas seguintes serão dedicadas à análise sucinta de cada uma dessas características.

3. VITORELLI, Edilson. Litígios estruturais: decisão e implementação de mudanças socialmente relevantes pela via processual. Processos Estruturais. 2ª edição, rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 272.

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4.2. Fortalecimento do poder-dever de gestão do processo do juiz

O desenvolvimento de um processo estrutural exige maior autonomia do juiz na gestão do processo. Ao magistrado incumbe adotar a forma mais adequada para os atos processuais prati-cados. O modelo cooperativo de processo adotado pelo CPC/15 é compatível com tal exigência. O princípio da adaptabilidade (ou flexibilização) do procedimento pode ser extraído da norma constante no inciso VI do art. 139 do CPC, que permite ao juiz “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito”.

A maior autonomia do juiz na gestão do processo, porém, não confere a ele um poder dis-cricionário. A gestão processual é um poder-dever. Nas palavras de Paulo Ramos de Faria, “a atividade desenvolvida pelo juiz com significado externo constitui sempre uma manifestação de poder – do poder judicial. Todavia, em momento algum este exercício do poder está na disponibilidade do seu titular, para o exercer de acordo com a sua livre vontade. Todo poder exercido pelo juiz – quer surja no âmbito de uma atividade apelidada de jurisdicional, quer seja de mero expediente; quer seja tido por discricionário, quer seja marcadamente vinculado – é um poder funcional”, apenas sendo legítimo o seu exercício quando orientado para servir os fins que justificaram a sua outorga”4.

O poder-dever de gestão do processo permite ao juiz combinar procedimentos e institu-tos processuais. O processo estrutural, assim como ocorre nos processos coletivos em geral, demanda um maior intercâmbio entre diplomas normativos processuais (ex.: aplicação, no mesmo processo, de regras previstas na lei da ação civil pública, lei da ação popular, código de defesa do consumidor etc.).

4.3. Flexibilização dos princípios da demanda e da congruência

Uma das características da jurisdição é a inércia. Isso significa que a função jurisdicional depende de provocação (ne procedat iudex ex officio). Nos termos do art. 2º do CPC, “o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei” (princípio dispositivo). O princípio dispositivo se relaciona intimamente com dois outros princípios: princípio da demanda (art. 141 do CPC) e princípio da congruência (art. 492 do CPC) Nos termos do art. 141 do CPC, “o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte”. Por sua vez, o art. 490 do CPC dispõe que “o juiz resolverá o mérito acolhendo ou rejei-tando, no todo ou em parte, os pedidos formulados pelas partes”.

A hipercomplexidade de um litígio estrutural gera enormes dificuldades para a correta identificação dos pedidos e delimitação da controvérsia. Embora haja uma certa certeza quanto à reforma que se pretende implementar em uma determinada estrutura social ou institucional, dificilmente será possível determinar, de antemão, as consequências do ato ou do fato ensejador do litígio estrutural, exigindo-se, por conseguinte, a formulação de um pedido genérico (art. 324, § 1º, II, do CPC).

A resolução de um litígio estrutural, por romper estruturas preestabelecidas e afetar uma parcela da sociedade, deve ocorrer de forma dialógica, mediante atuação comparticipativa,

4. FARIA, Paulo Ramos. Regime processual civil experimental comentado. Coimbra: Almedina. 2010, p. 38.

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razão pela qual a delimitação do objeto não pode se concentrar nas mãos do postulante. Por conseguinte, o juiz não estará vinculado aos limites do pedido inicial.

A despeito da necessária flexibilização dos princípios da demanda e da congruência, a de-cisão judicial final, por outro lado, não pode representar inovação, sob pena de ofensa ao art. 10 do CPC. Em outras palavras, embora a decisão final não esteja adstrita aos limites objetivos do pedido inicial, não pode ultrapassar os limites da controvérsia estabelecida no curso do processo.

Não apenas em relação aos pedidos, mas também à própria causa de pedir. Circunstâncias fáticas não apresentadas pelo postulante, mas relevantes para a compreensão do litígio devem ser consideradas nos debates e nas futuras decisões. Isso decorre do fato de que o processo estru-tural não se volta ao restabelecimento do status quo, mas sim à construção de um novo modelo institucional. É possível que fatos pretéritos não mencionados pelo autor sejam relevantes para a compreensão do litígio e projeção das reformas necessárias.

4.4. Necessidade de participação adequada no processo estrutural

Os litígios estruturais são predominantemente coletivos e multipolarizados. Essa multipo-larização reflete diretamente no campo da legitimidade para agir e na representatividade dos atores processuais. A representatividade adequada (adequacy of representation) do postulante é um critério proveniente das class actions norte-americana. Por meio desse critério, o autor da ação coletiva deve demonstrar, de antemão, reunir as condições necessárias para postular em nome do grupo. O postulante há de ser um efetivo “porta-voz” do grupo (ou parte do grupo) detentor da pretensão; deve ter autoridade suficiente para falar em nome do grupo. Trata-se de um requisito de admissibilidade da ação coletiva.

A jurisprudência norte-americana tem estabelecido alguns filtros para a aferição da repre-sentatividade adequada. São eles: a) o autor deve demonstrar o interesse e a habilidade para representar a classe de forma mais completa possível (vigorous prosecution test); b) o autor deve demonstrar a inexistência de conflito de interesse entre ele e os membros grupo; c) o autor deve demonstrar a existência de motivação adequada para demandar em nome do grupo (motives of representative)5.

No campo do processo coletivo, o sistema jurídico brasileiro adota um modelo que con-fere a certos entes a legitimidade para, em nome próprio, defender interesses metaindividuais independentemente de demonstração da efetiva representatividade adequada. É o que ocorre, por exemplo, com o Ministério Público, tendo em vista o seu perfil constitucional de defensor da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (arts. 127, caput, e 129, III, da CF).

Para alguns outros legitimados, o controle da representatividade adequada decorre de requi-sitos previamente definidos na lei. É o que ocorre, por exemplo, com as associações (arts. 5º, V, da Lei nº 7.347/1985 e 82, IV, da Lei nº 8.078/1990), as quais devem preencher, como regra, os seguintes requisitos: a) constituição há pelo menos um ano; b) tenham como fim institucional a defesa dos interesses e direitos que constituam o objeto da demanda.

Para o Superior Tribunal de Justiça, “a qualidade moral e técnica necessária para a configura-ção da pertinência temática e da representatividade adequada tem íntima relação com o respeito

5. Cf. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 11ª edição, revista, ampliada e atualizada. Salvador: Juspodivm. 2017, v. 4, p.205-206.

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das garantias processuais das pessoas substituídas, a legitimidade do provimento jurisdicional com eficácia ampla e a própria instrumentalização da demanda coletiva, evitando o ajuizamento de ações temerárias, sem fundamento razoável, ou propostas por motivos simplesmente políticos ou emulatórios. Em relação ao Ministério Público e aos entes políticos, que tem como finalidades institucionais a proteção de valores fundamentais, como a defesa coletiva dos consumidores, não se exige pertinência temática e representatividade adequada”6.

Nos processos coletivos, os postulantes são, quase sempre, legitimados extraordinários. Atuam em nome próprio na defesa de interesses alheios (grupo). O grande problema é que, não raras vezes, os interesses defendidos pelo legitimado em juízo não são os reais interesses da coletividade. Nos processos estruturais, tendo em vista o maior impacto que há na tessitu-ra social, os problemas da representatividade adequada são ainda mais dramáticos. Segundo Sérgio Cruz Arenhart, “o que se observa nos processos coletivos é que a ‘representação’ – pelo legitimado coletivo – dos interesses metaindividuais e individuais de massa postos em discussão é (ou pode ser), em grande medida, fictícia. Prevalece, em suma, a vontade do autor coletivo, tanto na determinação da lide, como na condução do processo. E essa vontade, obviamente, pode ser bastante diversa daquela que de fato é manifestada pela sociedade ou pelo grupo em favor de quem se atua”7.

Com efeito, ainda que o legislador tenha optado por conferir, de forma prévia e abstrata, legitimidade a um grupo restrito de sujeitos ou entes (arts. 1º da Lei nº 4.717/1965, 5º da Lei nº 7.347/1985 e 82 da Lei nº 8.078/1990), o processo estrutural não pode se desenvolver única e exclusivamente a partir dos pedidos formulados pelo postulante, pois nem sempre eles corres-ponderão aos reais anseios da coletividade. A ilegitimidade democrática do postulante contribui para uma ilegitimidade democrática da decisão. Nesse sentido, a participação de amicus curiae e a realização de audiências públicas para oitiva de pessoas, instituições, grupos e segmentos da sociedade, especialmente representativos de todos os grupos afetados, são mecanismos efi-cientes para a correta delimitação do litígio estrutural e construção de uma decisão mais justa e democrática8.

O problema não é só a falta de filtro para a aferição da representatividade adequada. É possível que a ausência de representatividade adequada só seja percebida no curso do processo, ou, ainda, que o legitimado ativo perca sua representatividade no curso do processo. Ora, nos litígios estruturais, conforme já mencionado, sequer é possível, muitas vezes, identificar todos os seus contornos no momento da postulação em juízo.

Nesse sentido, uma possível solução para o problema da representatividade adequada do legitimado ativo deve ser construída a partir dos seguintes fatores: a) considerar o rol dos legitimados extraordinários para as ações coletivas (arts. 5º da Lei nº 7.347/1985 e 82 da Lei nº 8.078/1990) como meramente exemplificativo; b) permitir que o juiz examine e contro-le, casuisticamente, a representatividade adequada do autor da ação, mesmos nos casos de

6. REsp 1509586/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 18/05/2018.7. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo multipolar, participação e representação de interesses concorrentes. Processos

Estruturais. 2ª edição, rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 803.8. Sérgio Cruz Arenhart, indo além, defende que a regra prevista no art. 138 do CPC, que exige do amicus curiae

representatividade adequada, demonstra a abertura do sistema processual brasileiro para a exigência de representatividade adequada também nos processos estruturais, como um filtro para a aferição da legitimi-dade. Nas palavras de Arenhart, “deixar de atentar para a necessidade de um controle de representatividade adequada implica autorizar a representação inadequada dos interesses...”. (ARENHART, Sérgio Cruz. Processo multipolar, participação e representação de interesses concorrentes. Processos Estruturais, Op. cit., p. 814).

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representatividade presumida (ex.: Ministério Público); c) permitir que o controle da represen-tatividade adequada se realize durante todo o processo; d) flexibilizar a estabilização subjetiva da demanda, permitindo a migração dos atores processuais de um polo para o outro conforme as zonas de interesses no processo (despolarização do processo)9.

Ademais, vale lembrar que, nos termos do art. 8º do CPC, “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.

4.5. Saneamento comparticipativo do processo estrutural

Tendo em vista a plasticidade do processo estrutural e a flexibilização de institutos pro-cessuais típicos dos processos individuais (legitimidade, interesse, pedido, causa de pedir, congruência etc.), a decisão de saneamento e organização do processo ganha especial impor-tância para a delimitação da controvérsia e do alcance da decisão final. O viés dialógico do processo estrutural impõe um saneamento comparticipativo. O CPC/15 permite a realização do saneamento do processo de forma cooperativa. Nos termos do § 3º do art. 357 do CPC, “se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações”.

Caberá ao juiz decidir todas as questões processuais pendentes e, juntamente com os de-mais atores processuais, definir, dentre outras questões, a) os limites objetivos da demanda; b) as circunstâncias fáticas e jurídicas que deverão ser levadas em consideração no momento da decisão; c) os possíveis efeitos, favoráveis e contrários, que poderão advir da decisão judicial; e) as provas e demais elementos de informações necessários para a resolução do litígio.

4.6. A construção adequada da decisão estrutural

O processo intelectivo de construção da decisão que resolve um litígio estrutural se dis-tancia, em muito, do modelo jurisdicional clássico, no qual o juiz (terceiro imparcial) se volta para o passado para identificar a conduta violadora do direito e, consequentemente, buscar restabelecer o status quo.

O processo estrutural não tem a pretensão de reconstruir fatos passados, mas sim de de-terminar os rumos futuros, diante de uma situação fática-institucional que se encontra em desconformidade com a realidade social. Segundo Edilson Vitorelli, o juiz, ao proferir sua de-cisão em um processo estrutural, “projeta para o futuro sua própria visão de como a instituição destinatária da ordem deve se organizar e se comportar. Em outras palavras, a atividade do juiz se torna mais parecida com a do legislador, que analisa o passado para moldar o futuro, não com o perfil clássico da jurisdição, que analisa o passado para remediá-lo”10.

A partir da análise de determinadas dificuldades inerentes à tomada de decisão (heurísticas e vieses cognitivos), amparado em estudos da psicologia cognitiva, o prestigiado autor propõe

9. Sobre o tema: CABRAL, Antonio do passo. Despolarização do processo e zonas de interesse: sobre a migração entre polos da demanda. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 404, ano 105, julho-agosto de 2009.

10. VITORELLI, Edilson. Litígios estruturais: decisão e implementação de mudanças socialmente relevantes pela via processual. Processos Estruturais. Op. cit., p. 285.

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os seguintes critérios para a construção da decisão estrutural: a) consciência do juiz quanto aos problemas heurísticos (consciência quanto à existência de vieses cognitivos que influenciam negativamente na tomada de decisão); b) percepção dos limites das reformas passíveis de im-plementação (representação realista, pelo juiz, da dificuldade da questão litigiosa e do quanto é possível avançar a curto, médio e longo prazo); c) expectativas temporais realistas (o tempo da reforma estrutural não corresponde ao tempo do processo. As reformas somente se tornarão visíveis com o tempo); d) utilização do método dialógico de construção da decisão (processo como town meeting, com amplo diálogo entre os atores processuais, realização de audiências públicas, participação de amicus curiae, admissibilidade de intervenções atípicas de terceiros); e) conhecimento do objeto da reforma (o juiz precisa conhecer profundamente aquilo que se pretende reformar); f) necessidade de fazer reforma estrutural, não pontual (o processo estru-tural deve ser utilizado como instrumento para a realização efetiva de uma reforma estrutural institucional. Reformas pontuais dificilmente resolverá os problemas da coletividade)11.

4.7. Decisão estrutural (decisão com múltiplo conteúdo)

A decisão estrutural (structural injunction) representa o ponto de partida para a efetiva realização da reforma estrutural (structural reform). Ela, a um só tempo, reconhece a desconfor-midade do atual cenário fático-institucional com a realidade (conteúdo declaratório da decisão), estabelece um objetivo a ser alcançado (tipo de reforma pretendida) e os mecanismos (gerais e/ou específicos) de implementação da reforma, impondo, conforme o caso, as providências que devem ser adotadas (conteúdo condenatório da decisão). A decisão estrutural é, nessa linha intelectiva, uma “decisão de conteúdo complexo”12.

Interessante notar que a decisão estrutural ostenta, imediatamente, conteúdo declaratório e condenatório, e, progressivamente, conteúdo constitutivo, ou seja, de modificação do estado de coisas. Tem natureza de sentença de mérito (art. 487, I, do CPC) pois julga o litígio, embora não seja, por si só, capaz de promover a reforma. A partir da decisão estrutural, o juiz passa a intervir profundamente na estrutura do ente, órgão ou instituição objeto da reforma, por meio de decisões estruturantes. Essas sucessivas decisões – “provimentos em cascata”13 – têm por objetivo resolver problemas pontuais no processo de implementação da reforma.

Voltando ao caso Brown v. Board of Education, após a decisão da Suprema Corte norte-a-mericana, no ano seguinte, diversas escolas demonstraram dificuldades na implantação do novo modelo institucional de não segregação racial definido na decisão, levando a Suprema Corte reexaminar tais questões. O reexame dessas questões relacionadas à implementação fática da decisão ficou conhecido como Brown v. Board of Education II. Na decisão, determinou-se a adoção, de forma progressiva, de medidas de eliminação da segregação racial nas escolas, cuja fiscalização seria realizada pelos órgãos judiciários locais.

Percebe-se, assim, que os processos estruturais rompem com a estrutura clássica do proce-dimento (fase de conhecimento e fase de cumprimento de sentença). Na fase de implementação da reforma, há enorme carga cognitiva na atividade jurisdicional, de tal modo que não é possível concebê-la como uma fase de cumprimento de sentença propriamente dita.

11. Ibid, p. 290-301.12. Cf. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Notas sobre as decisões estruturantes. Processos Estruturais. Op.

cit., p. 342.13. ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo. São

Paulo: RT, 2013, ano 38, v. 225, p. 400.

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Entendo, ao menos aprioristicamente, que o processo estrutural deve se desenvolver em duas grandes fases de conhecimento. Na primeira fase, o processo se desenvolve para o jul-gamento, por sentença de mérito, do litígio estrutural (reconhecimento ou não do estado de desconformidade e, em caso positivo, estabelecimento do objetivo a ser alcançado e imposição das providências inicias que devem ser adotadas). Na segunda fase (fase de implementação), o Poder Judiciário acompanhará o processo de reforma, podendo, para tanto, proferir quantas decisões forem necessárias (decisões interlocutórias de ingerência ou implementação) para a efetivação da reforma.

As sucessivas decisões interlocutórias de ingerência proferidas na fase de implementação é que ficarão sujeitas, conforme o caso e de forma excepcional, a eventual fase de cumprimento (ex.: obrigação de fazer, remoção de pessoas ou coisa, bloqueio de valores etc.). Contudo, assim como ocorre na primeira fase do processo estrutural, as decisões de implementação da reforma devem seguir o mesmo viés dialógico.

5. CONCLUSÃO

O presente capítulo buscou apresentar as linhas gerais do processo estrutural, tema que vem ganhando cada vez mais espaço não apenas no âmbito acadêmico, como também no campo prático.

O processo estrutural reafirma o novo perfil do Poder Judiciário na promoção e efetiva implementação dos direitos fundamentais nas mais variadas áreas da sociedade. Além disso, reforça a ideia de que o princípio da separação dos poderes não é inflexível, pois, ao fim e ao cabo, todas as funções do Estado (executiva, legislativa e jurisdicional) exercem um papel político no sistema de freios e contrapesos.