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MANUAL DE TÉCNICA PSICANALÍTICA

Manual de tecnica psicanalitica david e. zimerman livro

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  1. 1. MANUALDE TCNICA PSICANALTICA
  2. 2. Z71m Zimerman, David E. Manual de tcnica psicanaltica [recurso eletrnico] : uma re-viso / David E. Zimerman. Dados eletrnicos. Porto Alegre : Artmed, 2008. Editado tambm como livro impresso em 2004. ISBN 978-85-363-1531-7 1. Psicanlise Tcnica Manual . I. Ttulo. CDU 159.964.2(035) Catalogao na publicao: Mnica Ballejo Canto CRB 10/1023
  3. 3. 2008 David E. Zimerman Mdico psiquiatra. Membro efetivo e psicanalista didata da Sociedade Psicanaltica de Porto Alegre (SPPA). Psicoterapeuta de grupo. Ex-presidente da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. MANUALDE TCNICA PSICANALTICA uma re-viso Verso impressa desta obra: 2004
  4. 4. Artmed Editora S.A., 2004 Design de capa Flvio Wild Assistente de design Gustavo Demarchi Preparao do original Maria Rita Quintella Leitura final Daniela de Freitas Ledur Superviso editorial Cludia Bittencourt Projeto e editorao Armazm Digital Editorao Eletrnica Roberto Vieira Reservados todos os direitos de publicao, em lngua portuguesa, ARTMED EDITORA S.A. Av. Jernimo de Ornelas, 670 - Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone (51) 3027-7000 Fax (51) 3027-7070 proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrnico, mecnico, gravao, fotocpia, distribuio na Web e outros), sem permisso expressa da Editora. SO PAULO Av. Anglica, 1091 - Higienpolis 01227-100 So Paulo SP Fone (11) 3665-1100 Fax (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL
  5. 5. Sumrio Uma conversa inicial com os leitores ........................................................................................................ 7 PARTE I A evoluo da tcnica analtica 1. As transformaes no perfil do paciente, do analista e do processo analtico. Para onde vai a psicanlise? ............................................................... 17 2. Os principais autores das sete escolas de psicanlise e sua contribuio tcnica. Mritos e crticas ........................................................................................................................... 31 3. Como agem as terapias analticas? ............................................................................................. 43 PARTE II Os fenmenos no campo do vnculo analtico 4. O primeiro contato. A entrevista inicial. Os critrios de analisabilidade. O contrato ..................................................................................................................................... 57 5. O setting: a criao de um novo espao ..................................................................................... 67 6. Uma re-viso das regras tcnicas recomendadas por Freud................................................... 73 7. A pessoa real do analista no processo psicanaltico ................................................................... 85 8. Resistncias. A reao teraputica negativa ............................................................................... 95 9. Contra-resistncia. Os conluios inconscientes .......................................................................... 105 10. O contra-ego: uma estrutura resistencial patolgica ................................................................. 113 11. Transferncias. Transferncia de impasse. Psicose de transferncia ..................................... 127 12. Contratransferncia .................................................................................................................... 141 13. A comunicao verbal e a no-verbal na situao analtica ..................................................... 155 14. As atuaes (actings) ................................................................................................................. 169 15. A atividade interpretativa ............................................................................................................ 177 16. Normalidade e patogenia dos estilos de interpretar. O uso de metforas................................ 195 17. Anlise do consciente. A funo do pensar ............................................................................... 203 18. Insight elaborao crescimento mental ............................................................................... 211 19. O trmino de um tratamento analtico........................................................................................ 223 20. Condies necessrias para um analista .................................................................................. 231
  6. 6. PARTE III Caractersticas clnicas e manejo tcnico das diferentes psicopatologias 21. Psicoses. Pacientes borderline. A parte psictica da personalidade........................................ 243 22. Transtornos narcisistas............................................................................................................... 253 23. Perverses .................................................................................................................................. 267 24. Homossexualidades ................................................................................................................... 275 25. A clnica do vazio ........................................................................................................................ 289 26. Transtornos ansiosos ................................................................................................................. 295 27. Estados depressivos .................................................................................................................. 299 28. Fobias .................................................................................................................................... 305 29. Transtornos obsessivo-compulsivos (TOC) ............................................................................... 311 30. Histerias .................................................................................................................................... 315 31. Pacientes somatizadores ........................................................................................................... 323 32. Uma forma patolgica de amar: o vnculo tantalizante ............................................................. 333 PARTE IV Terapias analticas especiais 33. Psicanlise com crianas ........................................................................................................... 347 34. Terapia psicanaltica com pberes e adolescentes ................................................................... 357 35. Terapia com casais e famlias .................................................................................................... 367 36. Terapia com a famlia ................................................................................................................. 375 37. Grupoterapia psicanaltica.......................................................................................................... 383 PARTE V Situaes especficas 38. Vnculos e configuraes vinculares .......................................................................................... 397 39. Reflexes sobre a superviso psicanaltica............................................................................... 407 40. Sonhos: manejo tcnico ............................................................................................................. 421 41. Glossrio de conceitos e termos propostos pelo autor ............................................................. 433 Palavras finais ........................................................................................................................................ 453 Referncias bibliogrficas ...................................................................................................................... 461 ndice remissivo .................................................................................................................................... 467 6 SUMRIO
  7. 7. Uma Conversa Inicial com os Leitores est por demais extenso, ou curto, ou com- plexo, enquanto em outros, tambm sobre tc- nica, esto faltando vinhetas clnicas que es- claream melhor os conceitos emitidos, assim como sugerem a incluso de alguns temas tc- nicos relevantes que no constam no aludido volume. Essas crticas e sugestes encontram ple- no eco em mim, de maneira que imaginei a possibilidade de elaborar um manual de cu- nho integrativo, estabelecendo uma conexo evolutiva dos princpios tcnicos da prtica psicanaltica, desde a poca pioneira da psi- canlise, passando por sucessivas transforma- es, at as mais recentes posies tcnicas contemporneas. Munido de uma sensao ntima de que estou preparado para tal faa- nha, apresentei o projeto aos meus editores, que manifestaram ter havido uma coincidn- cia com as aspiraes que tambm tinham a esse respeito, de forma que me incentivaram e apoiaram. Existem diferenas considerveis na apli- cao da tcnica analtica, tanto as que decor- rem dos distintos referenciais terico-tcnicos de uma determinada escola do pensamento psi- canaltico, que embasa a formao do analis- ta, quanto tambm aquelas que advm das ca- ractersticas singulares e pessoais de cada terapeuta. Ademais, muito difcil avaliar a qualidade, assim como quantificar as verdadei- ras mudanas analticas que, em uma mesma escola ou em escolas diferentes, uma determi- nada tcnica atingiu, sendo tambm difcil esta- belecer de forma convicta uma comparao de resultados que credencie de maneira laudat- ria ou desqualificatria tal ou qual escola, at porque so mltiplos e complexos os fatores intervenientes no processo analtico. Por essas razes, entendi que o presente manual de tcnica no deve privilegiar, de for- Como fao habitualmente quando publi- co um livro, gosto de ter uma conversa intro- dutria com os meus leitores para mantermos uma unidade de comunicao no que se refere aos objetivos principais que justifiquem a ela- borao de mais uma obra. No presente caso, conforme expresso no ttulo, trata-se mais propriamente de um ma- nual (ou compndio), ou seja, conforme os dicionrios, consiste de um pequeno livro, que pode ser manuseado com facilidade, contendo noes essenciais acerca de uma cincia, de uma tcnica, etc., de sorte que pode funcionar com o objetivo primordial de servir como refe- rncia de um livro-texto didtico. Quero, desde j, justificar por que acres- centei no final do ttulo que escolhi para o li- vro Uma Re-Viso: pode parecer um excesso de presuno de minha parte, no entanto, acre- dito que, alm de objetivar a fazer uma revi- so, no sentido de atualizao, tambm pre- tendo propor que muitos aspectos essenciais da tcnica psicanaltica merecem uma nova (re) viso, ou seja, uma forma algo diferente de como classicamente o ato analtico costu- ma ser encarado e, logo, praticado. A motivao para produzir este compn- dio de tcnica psicanaltica nasceu da reper- cusso de um livro anterior meu, Fundamen- tos psicanalticos. Teoria, tcnica e clnica, pu- blicado em 1999, o qual, para minha imensa satisfao, tem tido vrias reedies e sido ado- tado em vrias e distintas instituies de ensi- no, como, por exemplo, um expressivo nme- ro de faculdades de psicologia e de institutos psicanalticos no pas. O estimulante retorno que tenho recebi- do, parece-me, est mais concentrado na par- te correspondente tcnica, e, seguidamen- te, junto com apreciaes laudatrias, recebo sugestes de que um determinado captulo
  8. 8. 8 DAVIDE.ZIMERMAN ma dogmtica, essa ou aquela escola, mas, an- tes, traar uma viso mais global, de sorte a privilegiar um con-texto dos distintos textos, enfocando a multiplicidade dos fatores interve- nientes, dentre os quais, conforme acredito, a figura da pessoa do analista, no s a trans- ferencial, mas, tambm, a real, ocupando um lugar de primeira grandeza, motivo pelo qual sempre receber uma ateno especial no pre- sente livro. Assim, adoto neste livro a mesma posi- o que assumo como psicanalista: sou ecltico, porm fao questo de ressalvar que no cabe confundir, como muitos fazem, ecletismo com ecleticismo. O primeiro alude ao fato de o ana- lista ter uma formao pluralista, com base em distintas vertentes tericas e tcnicas, sem obe- decer cegamente a qualquer uma delas, por mais consagrado que seja o nome do autor, e, tampouco, sem rechaar imediatamente, an- tes de fazer uma reflexo crtica, de forma a poder selecionar e adotar aquilo que, afetiva- mente, fecha com o seu jeito autntico de ser e com a sua experincia clnica pessoal. Ao mesmo tempo, d-se o direito de dispensar lei- turas que no lhe tocam, de modo que, gradati- vamente, vai criando o seu autntico sentimen- to de identidade de terapeuta psicanaltico, com uma liberdade de assumir o seu estilo pes- soal de trabalhar. Por sua vez, o termo ecleticismo alude a uma significao na qual se procura achar uma igualdade em tudo, com reducionismos e integraes artificiais, ignorando o fato de que, s vezes, existem profundas diferenas entre diferentes autores e sistemas terico-tcnicos, no obstante, tambm, seja verdade que bas- tante freqente que determinados autores em- preguem uma tautologia, palavra que desig- na o fato de que se diga a mesma coisa que j foi dito, apenas com outras palavras. Tenho praticado e cruzado com as mais diferentes formas de atendimento psico- lgico. No obstante reconhea que cada situ- ao em particular requer alguma modalidade mais especfica de tratamento, estou conven- cido de que, pelo menos para mim, o mtodo de fundamentao psicanaltica o mais com- pleto e efetivo. No entanto, concordo com Bion quando ele diz que um analista deve ficar in- satisfeito com a prpria psicanlise, para que ele possa ampliar os seus conhecimentos e as suas capacidades de compreender e se vincu- lar com o paciente. Cabe construir uma metfora da evolu- o da psicanlise, com a imagem de uma r- vore frondosa, com fortes razes (representan- do Freud), caule, ramos, folhas, flores e fru- tos. As sementes de Freud continuam germi- nando de forma bastante frtil, porm, espe- cialmente no que tange tcnica psicanaltica, no se trata de voltar de modo sistemtico a ele, mas, sim, de partir de certas postulaes dele, at mesmo porque na poca em que ele viveu, a cincia, a ideologia, os valores cultu- rais, a forma de pensar e de enfrentar proble- mas de toda ordem eram substancialmente di- ferentes dos atuais. Assim, no mais cabe uma total idolatria e cega fidelidade a Freud; outra coisa aproveitar toda a essncia do que ele nos legou, desde que conservemos o direito de poder contestar e inovar, sem cair no extremo de rotular suas concepes originais como coi- sa j passada. Na verdade, a psicanlise consiste em uma rede de teorias, algumas vezes coerentes e com- plementares, outras rivais, entremeadas de que- relas narcisistas de poder e prestgio, no tanto no campo epistemolgico, mas, sim, como uma rivalidade passional, adquirindo uma dimenso de fanatismo. O que importa que tudo o que sabemos de psicanlise teoria ou tcnica vem da clnica e tudo o que ainda devemos apren- der e transformar necessariamente vir da pr- tica clnica. As teorias precisam ser confirma- das, ou infirmadas, na experincia clnica coti- diana e no em infindveis acadmicas discus- ses epistemolgicas. Existem hoje, com a ininterrupta evolu- o da cincia da psicanlise, diferenas con- siderveis na aplicao da tcnica psicanalti- ca, com mudanas radicais nos sucessivos paradigmas completamente vlidos para uma determinada poca. Vamos a um nico exem- plo referente tcnica, entre tantos outros que poderiam ser mencionados: no passado, a efi- ccia de um analista era medida a partir do critrio da quantidade de silncio que ele man- tinha durante as sesses, sistema muito di- vulgado por T. Reik, que alegava ser essa ati- tude tcnica imprescindvel para a anlise por duas razes principais. A primeira que o si- lncio aumentaria a angstia necessria para o paciente produzir mais material; a segun-
  9. 9. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 9 da que o silncio representaria uma privao de gratificao ao paciente, assim fazendo jus s regras da abstinncia e da neutralidade, formuladas por Freud. Na atualidade, ningum duvida de que se trata de um mtodo anacr- nico, com o rano de uma artificialidade e uma certa fobia de aproximao afetiva. Embora este livro seja dedicado quase que exclusivamente aos aspectos da tcnica, todos estamos de acordo em reconhecer que qual- quer acrscimo nossa compreenso, manejo e eficincia clnicas necessariamente deve le- var em conta a importante diferena entre fa- lar sobre psicanlise e falar a partir de uma experincia psicanaltica prpria, ou seja, importante diferenciar entre algum ter um mero acmulo de conhecimentos psicanalti- cos e, de fato, ser um psicanalista. bastante freqente a opinio de que os psicanalistas complicam a empatia da psican- lise com o pblico, tornando-a hermtica, as- sim enfeiando a beleza dos processos psicana- lticos e afugentando as pessoas por falta de esclarecimentos mais simples para outros re- cursos alternativos, de preferncia aqueles que acenam com curas mgicas. Igualmente, du- rante muito tempo, a psicanlise encastelou- se na sua torre de marfim, mantendo distncia das demais cincias, inclusive da sua parente prxima, a psiquiatria, assim atraindo um re- vide, alm de um certo desprezo, por parte de profissionais de outras reas humansticas. Levando em conta todos os aspectos que foram mencionados, entendi que a configura- o que melhor se adaptaria ao objetivo did- tico deste manual seria de dividi-lo em cinco partes. Assim, na Parte I so abordados os As- pectos Gerais, com trs captulos: O Captulo 1 trata das Transformaes no Perfil do Paciente, do Analista e do Proces- so Analtico. Para Onde Vai a Psicanlise? Aqui importante que o leitor situe as mudan- as que ocorrem na terapia psicanaltica, tan- to na pessoa do paciente quanto na do psica- nalista como no prprio processo analtico, medida que o prprio mundo vem sofrendo profundas transformaes em todas as reas da existncia humana. O Captulo 2, intitulado Os Principais Autores das Sete Escolas de Psicanlise e sua Contribuio Tcnica. Mritos e Crticas, enfoca mais particularmente as sucessivas mo- dificaes de compreenso e de manejo tc- nico, desde a poca pioneira de Freud e se- guidores imediatos, passando pelos principais autores representantes das principais sete escolas de psicanlise, at chegar, generica- mente, aos paradigmas tcnicos da psicanli- se contempornea. A sntese de cada autor descrita separadamente, sob a forma de um apanhado dos reconhecidos mritos e das inevitveis crticas. O Captulo 3 Como Agem as Terapias Analticas? est includo na parte conside- rada geral e titulada de forma interrogativa com o propsito de introduzir o leitor no esp- rito eminentemente tcnico deste livro, alm de, j de sada, instig-lo a fazer reflexes, com possveis concordncias, discordncias e con- testaes. Neste captulo so abordados alguns fatores teraputicos que no se restringem uni- camente s clssicas interpretaes que con- duzem aos necessrios insights. o caso, por exemplo, da pessoa real do analista, como um importante e novo modelo de identifica- o para o paciente. Na Parte II, cujo ttulo Os Fenmenos no Campo do Vnculo Analtico, so estuda- dos separadamente, em um enfoque de tcni- ca e prtica, os mais variados e complexos fe- nmenos psquicos que se passam no campo analtico, sempre levando em conta os perma- nentes vnculos e configuraes vinculares que mutuamente se estabelecem entre paciente e analista. Assim, o Captulo 4 aborda os problemas que esto embutidos no ttulo O Primeiro Con- tato. A Entrevista Inicial. Os critrios de Anali- sabilidade. O Contrato, representando uma significativa importncia no futuro desenvol- vimento da anlise. Em seguida, o Captulo 5, sob o ttulo de O Setting: A Criao de um Novo Espao, d a entender, por si s, que a importncia atual do enquadre analtico vai muito alm das ne- cessrias combinaes pragmticas para um adequado funcionamento da anlise. Uma Re-viso das Regras Tcnicas Re- comendadas por Freud, ttulo do Captulo 6, dedica-se exclusivamente s importantes mu- danas que a tcnica analtica vem sofrendo sucessivamente, desde que seus princpios bsi-
  10. 10. 10 DAVIDE.ZIMERMAN cos foram formulados por Freud sob a forma de recomendaes aos mdicos que exercem a psicanlise, textos esses que, no seu origi- nal, so de leitura obrigatria. O Captulo 7 A Pessoa Real do Analista no Processo Psicanaltico associa-se com os Ca- ptulo 5 e 6, pois incluo-me entre os que en- tendem que impossvel dissociar esse trip. No entanto, muitos outros autores, com uma coerente argumentao, no atribuem pes- soa real do analista uma importncia maior na evoluo da anlise, que no aquela que ele repete padres transferenciais inconscientes. O leitor est convidado a participar do debate. Resistncias. A Reao Teraputica Ne- gativa o ttulo do Captulo 8. A palavra re- sistncia est no plural porquanto so inme- ras as modalidades resistenciais, dentre as quais julguei oportuno dar um destaque Re- ao Teraputica Negativa. Essa ltima abor- da uma das formas de resistncia mais obstru- tiva e nem sempre com evidncias manifestas, que se insurge contra a possibilidade de um verdadeiro crescimento mental de determina- dos pacientes. O Captulo 9 Contra-Resistncia. Os Conluios Inconscientes indissocivel do an- terior. No obstante isso, por razes didticas, ele segue em separado, porm conserva a es- sncia da ntima relao resistncia do pa- ciente-contra-resistncia do terapeuta, nota- damente no que diz respeito contrao, en- tre ambos, de inmeras formas de conluios in- conscientes. O Contra-Ego: Uma Estrutura Resisten- cial Patolgica que constitui o Captulo 10 visa a destacar um conjunto de organizaes patolgicas que atuam a partir do interior do prprio ego, contra ele, fato que representa ser de uma extraordinria importncia na prtica clnica diria de todo analista. J o Captulo 11 trata do tema conside- rado fundamental na psicanlise: Transfern- cias. Transferncia de Impasse. Psicose de Transferncia, igualmente pluralizada. En- tendi ser necessrio dedicar uma nfase es- pecial no que se refere ao manejo tcnico de duas modalidades transferenciais que nem sempre tm recebido importncia, visto que, se bem-observadas pelo analista, ele vai per- ceber que elas so bastante freqentes na pr- tica clnica, s vezes de forma ruidosa, outras vezes de modo muito sutil: refiro-me Trans- ferncia de Impasse e, mais particularmen- te, quela que conhecida por Psicose de Transferncia. No Captulo 12 abordado o importan- tssimo problema da Contratransferncia, com os respectivos efeitos contratransfe- renciais na mente do analista, podendo, as- sim, constituir-se tanto em uma modalidade de contratransferncia patolgica quanto poder ficar a servio da indispensvel empatia do analista. O Captulo 13, cujo ttulo : A Comuni- cao Verbal e a No-Verbal na Situao Anal- tica, nas suas modalidades proteiformes, re- presenta ser sobremaneira importante na psi- canlise contempornea, especialmente se le- var em conta a afirmativa de que o maior mal da humanidade o problema do mal-entendi- do da comunicao. O Captulo 14, com o ttulo de As Atua- es (Actings), objetiva dar um merecido des- taque a essa corriqueira forma de uma primiti- va e importantssima maneira de comuni- cao no-verbal que comumente, de alguma forma, aparece ao longo do processo analtico. A Atividade Interpretativa, ttulo do Ca- ptulo 15, adquire uma relevncia muito espe- cial, levando em conta que o ato de interpre- tar os dinamismos inconscientes do paciente continua sendo um dos pilares fundamentais do mtodo psicanaltico, alm do fato de que talvez seja o aspecto do campo analtico que mais sofreu mudanas significativas na clnica psicanaltica. A incluso de Normalidade e Patogenia dos Estilos de Interpretar. O Uso de Metfo- ras Captulo 16 justifica-se por julgar que o estilo pessoal de cada analista, alm de re- presentar uma significativa importncia para o andamento da anlise, tambm reflete, em grande parte, a sua pessoa real. Entendi que cabe dar um destaque eventual utilizao de metforas como fazendo parte de um esti- lo de atividade interpretativa pelo fato de, em determinadas situaes, elas se mostrarem significativamente muito teis. O ttulo do Captulo 17 Anlise do Cons- ciente. A Funo do Pensar talvez cause es- tranheza no leitor, visto que a literatura psi-
  11. 11. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 11 canaltica no concede maior espao para a anlise dos aspectos conscientes do paciente, porm, fiz questo de ser coerente com aquilo que penso e pratico, de modo que, dentre as funes conscientes do ego, concedida uma importncia especial ao aspecto fundamental da funo de se saber pensar as experincias emocionais. Insight Elaborao Crescimento Men- tal, que d ttulo ao Captulo 18, objetiva des- tacar o quanto esses aspectos constituem a fi- nalidade maior de qualquer anlise, com a par- ticularidade de que substitu o habitual termo cura por crescimento mental, uma vez que o segundo est mais de acordo com a ideolo- gia psicanaltica predominante neste manual. O Captulo 19 O Trmino de um Trata- mento Analtico enfoca uma questo que tem caractersticas prprias em cada anlise, mas que conserva certa uniformidade em todas as anlises que esto se aproximando do seu tr- mino (no empreguei o costumeiro termo alta do paciente, de acordo com o que ser expli- citado no captulo em questo). O ttulo do Captulo 20 : Condies Ne- cessrias para um Analista, no qual, separada- mente (embora tudo funcione de forma con- junta e concomitante), discriminada uma s- rie de atributos indispensveis para que o terapeuta estabelea empaticamente uma liga- o profunda com o seu paciente, para no cor- rer o risco de que a atividade analtica no seja mais do que uma tarefa mecnica, robotizada, logo, fria e tediosa para ambos do par analtico. A Parte III Caractersticas Clnicas e Manejo Tcnico das Diferentes Psicopatolo- gias contm 12 captulos cujo objetivo enfatizar as principais caractersticas clnicas e os respectivos manejos tcnicos de distintas estruturas caracterolgicas e quadros clnicos que surgem com muita freqncia na psica- nlise atual. Assim, o Captulo 21 trata de Psicoses. Pacientes Borderline. A Parte Psictica da Per- sonalidade. O Captulo 22 Transtornos Narcisistas conforme diz o nome, aborda as personalida- des com caractersticas predominantemente narcisistas, cada vez mais freqentes em nos- sos consultrios. O Captulo 23 trata do tema, que serve de ttulo, Perverses. Homossexualidades o ttulo do Cap- tulo 24. O Captulo 25 trata de A Clnica do Vazio. No Captulo 26, o tema Transtornos Ansiosos. O Captulo 27 tem por ttulo Estados Depressivos, que, fora de qualquer dvida, re- presentam uma crescente demanda nos con- sultrios de psiquiatras e psicanalistas. Fobias intitula o Captulo 28. O Captulo 29 recebe o nome de Trans- tornos Obsessivo-compulsivos (TOC). O Captulo 30 tem o ttulo de Histerias. Os Pacientes Somatizadores constituem o tema e o ttulo do Captulo 31. O Captulo 32, Uma Forma Patolgica de Amar: O Vnculo Tantalizante, talvez esteja algo deslocado nesta parte do livro destinada s formas clssicas de psicopatologia. No en- tanto, to freqente e to especfica essa for- ma patolgica de amar que me permiti usar uma licena. A Parte IV Terapias Analticas Espe- ciais composta por mais cinco captulos. O Captulo 33 Psicanlise com Crian- as procede a uma reviso histrica, deten- do-se nas tcnicas mais contemporneas. Terapia Psicanaltica com Pberes e Ado- lescentes, ttulo do Captulo 34, enfoca o tra- tamento analtico com pacientes dessa fase da existncia. O Captulo 35 Terapia com Casais e Famlias no poderia faltar neste livro, ten- do em vista a incrvel difuso desse recurso teraputico, praticado no s por terapeutas sistmicos, mas tambm por terapeutas psi- canalticos. Terapia com a Famlia, ttulo do Captu- lo 36, igualmente est encontrando um grande desenvolvimento em nosso meio, razo pela qual mereceu um captulo especfico, no qual predo- mina uma abordagem de natureza analtica. O Captulo 37, intitulado Grupoterapia Psicanaltica, igualmente no poderia ficar au- sente, pois representa um acessvel recurso teraputico, com comprovados resultados psi-
  12. 12. 12 DAVIDE.ZIMERMAN canalticos. Alm disso, o tema vem ganhando crescente relevncia, e seu conhecimento in- dispensvel para todo terapeuta que quer en- riquecer o entendimento do psiquismo dos in- divduos. A Parte V Situaes Especficas cons- tituda de poucos captulos, mas o suficiente para realar a importncia da superviso e fazer al- gumas reflexes acerca do processo analtico, particularmente aquelas que se originaram den- tro de mim, em uma amlgama de prvios co- nhecimentos j sedimentados, uma continuada leitura de textos atuais e, especialmente, daqui- lo que acontece na minha prtica clnica e de superviso, a qual tento sintetizar no ltimo captulo deste livro. Assim, esta parte final con- ta com os captulos que seguem. O Captulo 38 tem como ttulo: Vnculos e Configuraes Vinculares. Na psicanlise contempornea, imprescindvel que conste um captulo que enfoque especificamente a im- portncia relevante dos vnculos e de como eles se organizam, sob as mais distintas formas. O Captulo 39 Reflexes Sobre a Su- perviso Psicanaltica tem o objetivo de, a partir da incluso de um captulo como este, priorizar o trabalho de superviso, baseado no fato de que, cada vez mais, essa atividade est sendo reconhecida como de inestimvel impor- tncia na formao de candidatos a terapeutas analticos, a ponto de muitos reconhecidos autores nivelarem a importncia da supervi- so com a da anlise individual. O Captulo 40 tem por ttulo Sonhos: Manejo Tcnico. Ningum discorda de que esse aspecto, desde o pioneirismo de Freud at nossos dias, tem sofrido sensveis transforma- es no exerccio da prtica clnica. O Captulo 41 apresenta um Glossrio de Conceitos e Termos Propostos pelo Autor, ten- do seu respaldo na necessidade que senti de fa- cilitar a leitura e o entendimento do leitor para uma terminologia e um enfoque conceitual com os quais, muito provavelmente, ele no esteja familiarizado, visto que ousei publicar neste manual contribuies pessoais, pelas quais as- sumo inteira responsabilidade. Desculpo-me, desde j, caso tenha cometido inadequaes. Por fim, moda de um Eplogo, encerro este manual com Palavras Finais. Carta ntima para os Leitores que Esto se Iniciando como Terapeutas Psicanalticos, a qual tem um sig- nificado especialssimo para mim, no por al- guma razo objetiva, mas, sim, porque senti ter-me envolvido afetivamente de uma forma intensa, a ponto de me parecer que, de fato, estava escrevendo uma carta direta a algum amigo ou falando ao vivo com a bela juventu- de que quem mais me prestigia, de inmeras formas, e que, sem dvida, constitui o meu p- blico predileto. Por isso, preferi no retoc-la na reviso final, para manter (pelo menos para mim) a sua autenticidade original, no impulso de partilhar as minhas reflexes com os cole- gas que esto iniciando na cincia e na arte da terapia psicanaltica. Antes de concluir essa conversa inicial com os leitores, til esclarecer alguns aspec- tos da composio deste volume, para facilitar a sua leitura e manejo. A primeira observao que o presente livro no se limita a uma simples reviso dos conceitos clssicos, nem dos avanos contem- porneos referentes tcnica analtica, divul- gados por eminentes autores, de todas as par- tes do mundo, por meio de artigos e livros, os quais todos reconhecemos como de extrema utilidade. Particularmente, estudo a maioria desses textos, o mais prximo possvel exaus- to, levo-os permanentemente em conta e apli- co suas contribuies na prtica cotidiana; no obstante, nesta altura da minha vida psicana- ltica, sempre privilegio as minhas prprias experincias e vivncias emocionais e tcnicas, forjadas ao longo de mais de quatro dcadas de trabalho ininterrupto, comigo mesmo e com outros. No obstante o respeito e a gratido que devo aos inmeros autores que leio, restrinjo ao mximo as citaes quando os respectivos conceitos j sejam por demais conhecidos, en- quanto enfatizo alguma referncia bibliogrfi- ca que, na atualidade, represente uma inova- dora fonte de reflexo e conhecimento de tc- nica psicanaltica. Igualmente, evito fazer ci- taes com digresses que possam ser enfado- nhas e inteis ao leitor e que, muitas vezes, possam estar a servio de uma erudio exibi- cionista, ou como escravido a um superego por demais rgido, ou, pior ainda, como um manto protetor no qual o autor, com receio de
  13. 13. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 13 se expor, possa se escudar no prestgio de al- gum j consagrado. Destarte, muito do que digo neste livro uma evoluo de minhas transformaes pes- soais, como psicanalista e como pessoa, de sorte que seja provvel que determinadas colocaes, conceituaes e posies que eventualmente assumo possam causar alguma estranheza. Acredito que o entendimento final no deva ser o do autor, mas, sim, de cada leitor, que far cotejos daquilo que estuda, com outras lei- turas, seminrios, supervises, anlise pessoal e, sobretudo, com as experincias de sua pr- tica clnica, ideologia e estilo pessoal. Assim, peo que o leitor releve e que no considere que o autor quer impor alguma no- vidade ou algo semelhado, muito menos des- qualificar os paradigmas que correntemente praticamos. Bem antes disso, o propsito maior ser leal comigo prprio e, se possvel, insti- gar o leitor a fazer reflexes, trocar idias com outros colegas e tomar as suas prprias atitu- des e posies tcnicas. verdade que no abro mo de tentar sair de esquemas pr-mol- dados, como, por exemplo, entre tantos ou- tros mitos de tcnica analtica, o rano, ainda muito vigente, de que uma verdadeira an- lise seja unicamente aquela na qual o analis- ta trabalhe com uma sistemtica interpreta- o no aqui-agora-comigo da transferncia; caso contrrio... Uma segunda observao consiste no fato de que os captulos no tm o objetivo de es- gotar totalmente os assuntos enfocados, mas, sim, pretendem transmitir uma atmosfera ge- ral do campo afetivo e cognitivo que transcor- re ao longo de qualquer anlise, do ponto de vista da tcnica e prtica. Assim, tanto quanto possvel, os textos sero acompanhados por vinhetas clnicas, algumas frases, metforas, chistes, etc. O terceiro aspecto diz respeito ao fato de que um mesmo conceito pode aparecer repe- titivamente, em diversos captulos. Embora o surgimento dessa repetio surja em contex- tos distintos, possvel que possa entediar o leitor pelo que peo desculpas , porm hou- ve uma certa intencionalidade de minha par- te, baseado na idia de que uma repetio em contextos variados pode auxiliar a reflexo e a memorizao. A quarta observao a consignar o fato de que para manter o esprito didtico deste manual, com possveis leituras para seminrios coletivos por parte dos caros leitores, entendi ser til usar e abusar do recurso de enumerar os aspectos que, em meu entender, sejam os mais significativos para reflexes e debates.
  14. 14. PARTE I A Evoluo da Tcnica Analtica
  15. 15. 1 As Transformaes no Perfil do Paciente, do Analista e do Processo Analtico. Para Onde Vai a Psicanlise? Quando eu estava tentando elaborar a mecnica quntica, a experincia deu-me a oportunidade de aprender um fato notvel: que uma nova realidade cientfica no triunfa por convencer seus opositores, fazendo-os ver a luz, seno que, muito antes, porque eventualmente seus opositores morrem e surge uma outra gerao que se acha familiarizada com aquela. Max Plank, in Bion, em Seminrios clnicos. Em relao s constantes declaraes de que a psicanlise est morta, eu poderia seguir o exemplo de Mark Twain, que, tendo lido num jornal o anncio de sua morte, dirigiu ao diretor do mesmo um telegrama comunicando-lhe: A notcia de minha morte est muito exagerada. S. Freud, in Alain de Mijolla. trias, as quais, por sua vez, alteram as cultu- ras e arrastam as pessoas para novas mudan- as, em uma espiral sem fim. Portanto, partindo de uma viso indivi- dualista do indivduo, passa-se a uma viso holstica (do grego hollos, que significa totali- dade), de sorte que o beb no a mesma pes- soa quando fica uma criana maior, ou adoles- cente, ou adulto, e o adulto de hoje no mais a mesma pessoa que era antes e, tampouco, a que vai ser mais adiante na vida. Em resumo, todos ns e o mundo que nos cerca estamos, sempre, nos transformando. Destarte, como uma introduo ao presen- te captulo, cabe apresentar brevemente uma vinheta de minha experincia clnica com gru- poterapia analtica, que pratico h aproxima- damente 40 anos. Assim, no incio da dcada de 60, uma jovem estudante de medicina, de 21 anos, integrante de um grupo analtico, le- vou aproximadamente um ano e meio para, cheia de culpas e temores de ser julgada, con- fessar aos demais participantes que manti- nha relaes sexuais com o seu namorado (no obstante se tratasse de um namoro firme, com mais de trs anos de durao). De forma an- loga, em um outro grupo, em meados da dca- da de 80, uma outra, da mesma idade que a O mundo vem sofrendo sucessivas, ace- leradas, vertiginosas e profundas transforma- es em todas as reas e dimenses, como o so as sociais, as econmicas, as culturais, as ticas, as espirituais, as psicolgicas, alm das cientficas, entre outras, e, naturalmente, no rastro de todas essas, tambm a psicanlise vem sofrendo uma continuidade de crises e mudan- as em sua trajetria de pouco mais de um s- culo de existncia. O processo de transformaes inerente condio da humanidade, tal como, parece- me, est bem expresso na antiga crena budis- ta que v a existncia humana como uma srie ininterrupta de transformaes mentais e fsi- cas. como as imagens de um filme: uma soma de imagens individuais, retratando uma srie de momentos diferentes, as quais movem-se muito rapidamente que no se consegue per- ceber que o filme um somatrio de instantes e partes distintas, constituindo uma unidade singular. Da mesma forma, no possvel al- gum (salvo crianas bem pequenas e psic- ticos) dizer, de forma absoluta: Isto meu ou Isto sou eu, porquanto no existe o ser absoluto, o todo constitudo por fatores exis- tenciais, predominantemente impessoais, que formam combinaes e transformaes transi-
  16. 16. 18 DAVID E. ZIMERMAN anterior, tambm gastou mais de um ano para confessar, bastante envergonhada e temero- sa de uma gozao geral, que ela ...ainda era virgem. O que estou pretendendo evidenciar o fato de que, embora a natureza humana continue sendo a mesma (ambas as moas apresentavam angstia, culpa, vergonha, temor de provocar decepo, rechao e um no-reco- nhecimento e aceitao dos demais), a causa desencadeante foi totalmente oposta uma da outra, pois, no espao de tempo decorrido en- tre as duas experincias 25 anos, logo, uma gerao mudaram as contingncias e os va- lores socioculturais. Esta vinheta tambm ser- ve para ilustrar que todas as consideraes que sero feitas neste texto partem do pressuposto de que impossvel separar o indivduo dos avanos tecnolgicos, dos grupos e da socie- dade nos quais ele estiver inserido. Cabe assinalar, a seguir, algumas das mais significativas mudanas biopsicossociais e eco- nmico-culturais. VISO SISTMICA Vivemos, hoje, em um mundo globalmen- te interligado, onde qualquer acontecimento importante repercute em todos os quadrantes de nossa aldeia global. Destarte, no mais cabe o individualismo e o isolacionismo dos indivduos e das naes, de forma que ur- gente a criao de novos paradigmas em todos os nveis, os quais esto unificados por uma interdependncia. Isto requer fundamental- mente uma nova maneira de pensar e de vi- sualizar todos os problemas coletivos, forma que chamada de viso sistmica do mundo e da vida. Por viso sistmica entendemos que em qualquer estado ou acontecimento humano, fsico, qumico, csmico e psicanaltico, entre outros sempre existem mltiplos elementos que esto arranjados e combinados em deter- minadas formas, nas quais a maneira como as diversas partes esto integradas e estruturadas na totalidade mais importante do que cada uma das partes isoladamente, por mais impor- tantes que elas possam ser. Por estrutura entendemos um arranjo dos distintos elementos, em que cada um ocupa determinado lugar e determinada funo, sen- do que todos esto inter-relacionados em um permanente movimento e interao, de modo que a modificao de qualquer um deles inevi- tavelmente provocar modificaes nos de- mais, e toda a estrutura sofrer uma transfor- mao em busca da harmonia. Trata-se de um movimento natural, espontneo e com flutua- es cclicas em qualquer matria orgnica ou inorgnica, psquica ou biolgica, individual ou grupal, subatmica ou csmica. A GLOBALIZAO A globalizao do mundo moderno, mer- c das novas tecnologias ligadas informtica e de uma fantstica rede de comunicao ins- tantnea via satlite, vem contribuindo para o extraordinrio poder de formao de nossos coraes e mentes, advindo de uma, cada vez mais gigantesca e poderosa, rede de veculos de comunicao que podemos chamar de midiologia , que exerce uma decisiva influ- ncia no psiquismo de todos, notadamente nas crianas e nos adolescentes, tanto no que diz respeito formao de uma ideologia poltica, um estilo de viver, quanto apologia do consu- mismo, um sagrado culto importncia da es- ttica, dos hbitos de alimentao, e assim por diante. Uma clara evidncia da globalizao pode ser observada diariamente quando algum cho- que econmico de uma determinada nao re- percute imediatamente no mundo todo. Igual- mente, impe destacar a progressiva navega- o do homem pelo infinito espao que pro- piciado pela Internet; a realidade virtual in- clusive no que diz respeito s relaes amoro- sas, correspondncia instantnea e universal por e-mail por um lado aproxima as pessoas, por outro torna as relaes algo impessoais e tcnicas. NOVOS PADRES TICOS Um importante aspecto, particularmente para o psicanalista, decorrente dessa vertigi- nosa mudana de padres cientficos e cultu- rais, a crescente problemtica de natureza
  17. 17. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 19 biotica e psicotica, conseqncia de vrios fatores. Assim, os incrveis avanos tecnol- gicos, a concluso do Projeto do Genoma Hu- mano, no qual, aps 15 anos de pesquisas em centenas de laboratrios espalhados em mais de 20 pases, foi possvel anunciar que o cdi- go da vida, ou seja, o seqenciamento dos ge- nes, foi decifrado! Concomitantemente, foi se desenvolvendo a engenharia gentica, com os avanados experimentos com a reproduo de clones. Tambm a crescente legalizao da prtica de aborto, inclusive com o aproveita- mento da clula-me do embrio, para trans- plantes genticos, vem fazendo com que mui- tos estudiosos da tica formulem a importante questo: Que tipo de ser o embrio? A FAMLIA A famlia nuclear est sofrendo radicais transformaes no que diz respeito ao nmero crescente de casamentos seguidos de descasa- mentos e re-casamentos, com uma nova com- posio familiar em funo dos filhos que cada novo cnjuge traz para o novo lar. Aumenta o nmero de mes adolescentes, de mes soltei- ras, entre as quais muitas deliberadamente as- sumem a condio de uma produo indepen- dente de filhos, assim como tambm vem au- mentando o nmero de casais que preferem residir em lares prprios e independentes um do outro. Existe uma evidente mudana nos papis que tradicionalmente eram conferidos ao pai, me, aos avs, ..., de modo que no rara- mente os papis e os lugares ocupados se superponham ou at se invertam, tudo isso podendo ser encarado com naturalidade, po- rm tambm podendo gerar uma sria confu- so, sobremaneira para os filhos, os quais, por sua vez, esto se emancipando da famlia nu- clear cada vez mais cedo. Notadamente, o papel da mulher, na sua insero familiar, social, sexual, poltica e pro- fissional, vem sofrendo vertiginosas transfor- maes. Igualmente, vem havendo uma pro- gressiva unio estvel de homossexuais, inclu- sive com a adoo de filhos, sendo que o as- pecto mais importante a destacar o fato de que a clssica funo de continente que a fam- lia exerce em relao aos bebs e filhos meno- res tende a ficar severamente perturbada, com os imaginveis traumas precoces. necessrio tambm levar em conta que, no Brasil, o Novo Cdigo Civil, em vigncia des- de janeiro de 2003, altera profundamente os direitos e os deveres dos cnjuges e dos filhos. O somatrio de tudo isso que foi dito est con- tribuindo para uma crescente e generalizada crise de identidade. CRISE DE IDENTIDADE Esta aludida crise processa-se tanto no mbito individual quanto em nosso sentimen- to de identidade grupal e social. De fato, a ace- lerada mudana dos valores ticos, morais e religiosos, somada a todas as formas de vio- lncia urbana que regem o modo e a finalida- de de viver, tornou os indivduos, inseridos em um mundo que, cada vez mais, exige uma ve- locidade crescente para uma exitosa adapta- o aos padres vigentes, algo ansiosos, con- fusos e perdidos quanto sua identidade, isto , quem eles so, como devem ser, para o que e para quem eles vivem. Um forte motor gerador desta angstia social reside no fato de que h uma crescente necessidade de exitismo, ou seja, desde crian- a o sujeito est programado pela famlia e pela sociedade para ser bem-sucedido, em uma in- terminvel busca pela procura de xitos, o que o deixa em constante sobressalto de vir a cum- prir a presso dessas expectativas que carrega nos ombros e na mente. Um outro fator que vem contribuindo para uma confuso de iden- tidade nos indivduos, comunidades e naes consiste no fato de que a crescente globalizao acarreta uma diminuio e um borramento das diferenas entre os indivduos, quando sabi- do que a manuteno das inevitveis diferen- as representa a matria-prima na formao de qualquer sentimento de identidade. VALORES Uma profunda mudana nos valores humansticos consiste no fato de que, at pou- cas dcadas, a humanidade era regida pelos
  18. 18. 20 DAVID E. ZIMERMAN valores de certezas: era fcil definir em termos absolutos o que era certo e o que era errado, valorizado ou desvalorizado, dentro de uma concepo universalmente aceita de uma cau- salidade linear, ou seja, a toda causa correspon- deria um determinado efeito, em uma cadeia facilmente explicvel pelo raciocnio lgico e objetivo. Atualmente, impossvel desconhecer os avanos em todas as cincias, notadamente nos ensinamentos provindos da fsica moderna, que conserva os seus princpios clssicos, mas vem cientificamente demonstrando mistrios, incer- tezas e paradoxos que cercam os fenmenos da natureza no que se refere ao infinitamente pequeno (a fsica subatmica, quntica) e ao infinitamente grande (a cosmologia, com a di- fundida concepo de um universo em cont- nua e infinita expanso). Em grande parte, inspirados nessa consta- tao de que nem tudo pode ser explicado pela lgica mecanicista, os estudiosos da natureza humana reconhecem que o entendimento do homem moderno repousa nos conceitos de in- certezas (principalmente no conceito do que e onde est a verdade), negatividade (todo e qualquer fenmeno, fsico ou afetivo, sempre tem dois plos opostos), paradoxalidade (a per- manente coexistncia dos opostos e contradi- trios) e relatividade (nenhum fenmeno, fato ou conhecimento absoluto, tudo est inter- relacionado), tudo conduzindo vigncia de um estado catico universal, tanto negativo quanto positivo, levando em conta o conheci- do princpio de que do caos nasce o cosmos. Assim, talvez no seja exagero a afirmativa de que a cincia se faz cada vez mais filosfica, enquanto a filosofia se faz mais cientfica, em grande parte com inspirao na psicanlise. A CULTURA DO NARCISISMO Cada vez mais, os indivduos debatem- se em uma acirrada competio para ter di- reito a um lugar ao sol, em uma cultura em que predomina fortemente a lei do mais ca- paz, ou, pelo menos, a lei daquele que apa- renta ser bem-sucedido. Em um grande con- tingente de pessoas, isso provoca um desgas- tante conflito resultante da necessidade de atingir metas idealizadas pela famlia, pela sociedade, pela cultura e por si prprio, as quais podem ultrapassar as suas inevitveis limitaes. Na linguagem psicanaltica, essa disparidade conhecida como um conflito en- tre Ego ideal versus Ego real. Esse tipo de estado conflituoso tem gerado um crescente valor de que, falsamente, o sujeito vale mais pelo que tem ou aparenta ser do que, de fato, ou, autenticamente, pode vir a ser. Em ou- tras palavras, a nsia por um reconhecimento pelos demais to premente que est aumen- tando significativamente o nmero de pesso- as portadoras de um falso self, e, da mesma forma, quando no h o referido reconheci- mento, a cultura narcisista fora uma baixa da auto-estima do indivduo, o que acarreta um maior surgimento de estados depressivos. PS-MODERNISMO De forma muito resumida, pode-se di- zer que a essncia do ps-modernismo con- siste na progressiva introduo da imagem no lugar classicamente ocupado pelo pensamen- to e pela palavra o que se processa funda- mentalmente em funo da midiologia e dos incrveis recursos da moderna informtica, com a criao de imagens virtuais, de modo que isso promove a possibilidade de que haja uma superposio, e at uma certa confuso, entre o que real e o que imaginrio, o que representa um estmulo busca de iluses, de simulacros, de fetiches, sendo que aquilo que parece ser tomado como, de fato, sendo. Da mesma forma, a participao ativa de in- divduos e massas passa a ser substituda por uma forma passiva de observao ou de par- ticipao mais tcnica do que espontnea, como fcil perceber, por exemplo, no Car- naval brasileiro da atualidade. Igualmente, o ps-modernismo tende a repudiar tudo o que representa uma lgica de causalidade e faz a apologia dessa casualidade, do ilgico, do intuicionismo, das incertezas, do relativismo, do surrealismo e do misticismo. Em relao a isso, h quem encare a poca atual de uma forma apocalptica, esperando as pio- res desgraas para a humanidade, enquanto outros consideram o ps-modernismo de uma forma apologtica, isto , com uma apologia dos novos rumos e das novas perspectivas pro-
  19. 19. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 21 missoras para o desenvolvimento da humani- dade. Particularmente, entendo que possvel admitir a existncia simultnea tanto dos as- pectos positivos quanto dos negativos. Os pri- meiros esto representados pelo incremento da criatividade e o ingresso do indivduo em pla- nos mais profundos e diversificados do espri- to humano, como so as dimenses de nature- za esttica, mtica e espiritual. Como exemplo, o surrealismo (super-realismo), inspirado em seu fundador, Breton, nasceu como uma for- ma da arte de tentar abolir as diferenas entre sonho e realidade. Exemplos de aspectos ne- gativos so aqueles que prevalecem quando o ps-modernismo sistematicamente emprega- do com o propsito de iconoclastia, ou seja, de uma excessiva derrubada dos valores clssicos. TRANSFORMAES NA PSICANLISE Como no poderia ser diferente, seguin- do as profundas transformaes que acompa- nham a evoluo da humanidade, tambm a cincia psicanaltica vem sofrendo significati- vas mudanas em suas teoria, tcnica e aplica- bilidade prtica. Aqui, ser enfocado, separa- damente, as transformaes na pessoa do pa- ciente e do analista e no processo analtico, alm de tecer algumas consideraes sobre o quo vadis (ou seja, para onde) vai a psicanlise. O paciente Em relao figura do paciente, cabe con- signar que, nos tempos pioneiros de Freud e seus seguidores imediatos, o atendimento era quase que exclusivamente com pacientes por- tadores de quadros com claras manifestaes de sintomas tpicos de algum tipo de neurose. Assim, no incio das descobertas de Freud, a totalidade da sua prtica clnica era composta por mulheres, jovens e histricas; posterior- mente, o atendimento foi se estendendo a pa- cientes portadores de sintomas fbicos (o caso do menino Hans), obsessivos (o caso do ho- mem dos ratos) e afins. Aos poucos, a psica- nlise no ficou mais restrita remoo de sin- tomas, mas passou a priorizar os pacientes por- tadores de algum grau de transtorno caractero- lgico. A partir das contribuies kleinianas, a psicanlise ampliou o seu raio de ao para pacientes bastante mais regressivos, como os psicticos, da mesma forma que tambm abriu as portas para a anlise de crianas. Alis, notrio o fato de que tem aumen- tado significativamente a demanda de crian- as que, motivadas por pais, professores, m- dicos, mais esclarecidos, buscam terapia ana- ltica. O mesmo vale para pberes, adolescen- tes e tambm para uma mais espontnea e menos preconceituosa procura de anlise por parte de homens. Na atualidade, as pessoas que procuram tratamento analtico fazem-no principalmente com queixas de problemas relativos a algum transtorno do sentimento de identidade, assim como tambm h uma alta incidncia de paci- entes com um sentimento de baixa auto-esti- ma, o que, por sua vez, gera em escalada cres- cente o surgimento de quadros depressivos e tambm de indivduos estressados, com um alto grau de angstia livre (a alta incidncia da do- ena do pnico talvez seja um bom exemplo disso). Outros transtornos que prevalecem no perfil dos pacientes da atualidade referem-se a personalidades tipo falso self: transtornos narcisistas; patologias regressivas, como o so, por exemplo, as psicoses, os borderline, os per- versos, os somatizadores, os transtornos alimen- tares (tipo bulimia e anorexia nervosas), ocor- rendo um grande aumento, sobretudo em jo- vens, de inmeras formas de drogadies, per- verses e psicopatias e, significativamente, da- queles casos que a psicanlise contempornea est denominando patologia do vazio. Neste ltimo exemplo, fica mais claro re- conhecer que a demanda de pacientes aos con- sultrios no se deve tanto patologia decor- rente de um estado mental de o sujeito sentir- se um pecador em decorrncia de desejos e sen- timentos proibidos, que sofrem uma ao repressora e de fuga, promovida pelos mais di- versos mecanismos defensivos. O que hoje constatamos que a queixa inicial dos pacien- tes postulantes anlise recai freqentemente em uma angstia existencial quanto ao sentido de por que e para que continuam vivendo, ou seja, quanto validade da existncia em si. Nos pacientes que sofrem da patologia do vazio, o eixo do sofrimento no gira tanto em torno dos clssicos conflitos resultantes do embate entre pulses e defesas, mas, sim, o
  20. 20. 22 DAVID E. ZIMERMAN giro se faz predominantemente em torno das carncias, provenientes das faltas e falhas que se instalaram nos primrdios do desenvolvi- mento emocional primitivo, e determinaram a formao de vazios no ego, verdadeiros bura- cos negros espera de serem preenchidos pela figura do psicanalista, o que poder ser feito por meio de sua funo psicanaltica. Ademais, hoje em dia, os pacientes que procuram alguma forma de tratamento psica- naltico apresentam, em boa parte, uma ntida tendncia para a busca de solues mais rpi- das e, alegando razes econmicas reais por- que inegvel que de modo geral baixou bas- tante o poder aquisitivo , eles insistem em querer ter um menor nmero de sesses se- manais, alm de uma durao mais curta da anlise. Tudo isso adicionado ao sucesso dos antidepressivos e a um convencimento negati- vo que alguns setores da mdia fazem contra a psicanlise concorre para uma perigosa pre- ferncia de muitos pacientes por mtodos al- ternativos que prometem curas rpidas, s ve- zes at milagrosas. O psicanalista Relativamente figura do psicoterapeu- ta, tambm prevalece, na atualidade, um per- fil bastante modificado. Assim, tanto no per- odo da psicanlise ortodoxa quanto no da cls- sica, os atributos mais valorizados na pessoa do analista eram as suas habilidades em deco- dificar os conflitos latentes que apareciam in- diretamente em vestgios de contedos mani- festos expressos em atos falhos e lapsos, so- nhos, sintomas e nas dobras da livre associa- o de idias. Igualmente, um bom psicana- lista deveria manter uma total fidelidade s regras da abstinncia, da neutralidade e do anonimato, de forma a manter uma dis- tncia (quase que eu ia adjetiv-la como as- sptica) de seu paciente. Mas, principalmente, o uso exclusivo da arte de fazer interpretaes brilhantes, me- dida que descobria um significado simblico em tudo o que era narrado pelo paciente, que se constitua como uma qualidade do psi- canalista, aparentada com a de uma divinda- de. A partir da influncia kleiniana, o selo da legitimidade que conferia o status de um exce- lente analista repousava na sua habilidade em fazer, de forma sistemtica, interpretaes transferenciais que, na maioria das vezes, independentemente do que o paciente dizia, costumava ser convertido de forma reducio- nista pessoa do terapeuta, por meio do cls- sico chavo de que tudo o que o paciente trou- xesse deveria ser interpretado na base do comigo, aqui, agora, como l e ento. No auge da gide do kleinianismo dcadas de 60 e de 70 , era uma exigncia fundamental que as interpretaes se dirigissem aos objetos inter- nos, parciais, ou seja, o analista seria percebi- do pelo paciente como sendo, parcialmente, um seio (ou um pnis...) bom, mau, idealiza- do, perseguidor, ou um objeto total, composto por esses ltimos quatro elementos. Do mesmo modo, de uma forma pratica- mente aceita por todos, a anlise processava- se de uma forma unilateral: de um lado, dei- tado em um div, ficava um paciente sofre- dor cujo papel restringia-se a associar livre- mente, de maneira a trazer o seu material; enquanto, do outro lado, atrs do div, refes- telado em uma cmoda poltrona, estava o analista, com a sua postura de sujeito supos- to saber (s.s.s.), para usar uma expresso de Lacan. No momento atual, que podemos chamar de psicanlise contempornea a qual resulta de uma combinao de contribuies de diver- sos autores de distintas correntes psicanalti- cas , o perfil do psicanalista sofreu significati- vas mudanas. Assim, de algumas poucas d- cadas para c, mais marcantemente a partir de Bion, o analista considerado no mais do que uma pessoa, bastante bem-treinada e pre- parada, que, junto com a outra pessoa o pa- ciente , constitui o campo analtico, isto , uma mtua e permanente interao, na qual cada um influencia e influenciado pelo outro. A propsito, cabe citar Bion, para quem na situ- ao analtica, sempre existem duas pessoas angustiadas, no entanto ele continua, de for- ma jocosa espera-se que uma seja menos que a outra. Assim, a evidncia de que a relao analtica de natureza vincular mudou signifi- cativamente o perfil do analista contempor- neo. Creio que as seguintes caractersticas me- recem ser mencionadas:
  21. 21. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 23 1. O analista desceu do pedestal, mudou de residncia: ele no mais mora no Olimpo dos deuses sagrados, de modo que no mais lhe cabe exibir o seu pomposo emblema de s.s.s., ou seja, aquele terapeuta que, quando est interpretando, julga estar ditando a ver- dade definitiva. Hoje, o terapeuta analtico sen- te-se mais gente, como toda gente; predomi- na nele a aceitao de uma atitude de incerte- za, o que favorece a formao de um necess- rio estado mental interrogativo. 2. Desse modo, a nfase da anlise incide no vnculo analtico que unifica as pessoas do paciente e do analista, de sorte que, embora mantenha-se uma necessria assimetria entre os papis, lugares, posies e funes que cada um deles deve desempenhar, h uma maior si- metria quanto condio de seres humanos, portanto sujeitos s mesmas angstias e dvi- das existenciais. Assim, no obstante o fato de o analista preservar a necessria distncia, ele mais espontneo, informal e de afeto mais modulvel. Uma significativa parcela de ana- listas atuais j est aceitando a incluso de al- guns parmetros, como o uso de medicao concomitante ao curso da anlise, alguma re- duo do nmero de sesses semanais, etc. 3. Decorre da que o analista contempo- rneo, no obstante persista valorizando os mo- vimentos transferenciais do paciente, no es- teja se colocando de forma sistemtica e reducionista, unicamente como sendo o cen- tro do universo da vida do analisando. Essa postura analtica vem tornando o terapeuta uma pessoa mais simples e com uma atitude de maior abertura para escutar as mltiplas dimenses que esto embutidas nas narrativas do paciente. 4. Na atualidade, ento, cresce de vulto uma velha polmica: se, na situao analtica, o psicanalista representa unicamente uma pantalha transferencial dos mltiplos e diver- sificados objetos que habitam o interior do psiquismo do paciente ou, indo muito alm dis- so, ele tambm influi decisivamente nos desti- nos da anlise, pela sua condio de pessoa real, como, particularmente, acredito. 5. Caso admitamos a legitimidade da l- tima hiptese, aumenta a importncia dos atri- butos da pessoa real do analista, como o caso do seu cdigo de valores (morais, culturais, ti- cos, etc.), seus referenciais psicanalticos, suas capacidades intrnsecas de continente, empatia, intuio, etc. 6. Partindo da possibilidade de ser vlida a importncia da pessoa real do analista, igualmente ganha relevncia aquilo que alguns psicanalistas norte-americanos chamam de match, ou seja, um encontro das caractersti- cas de um determinado paciente com as de um determinado analista, de maneira que a anli- se de um mesmo paciente diante de dois ana- listas de igual competncia e mesma corrente psicanaltica pode evoluir bem com um e mal com o outro e vice-versa. 7. Em relao atitude psicanaltica inter- na do terapeuta, convm destacar o fato de que, na psicanlise contempornea, a posio racio- nal do analista que classicamente busca cone- xes lgicas e conseqentes entre causas e efei- tos vem cedendo lugar ao que no formal- mente lgico, tal como aquilo que est presente no princpio da negatividade, nas contradies, nos paradoxos, na concomitncia dos opostos daquilo que o paciente nos traz, por vezes sob uma forma catica, espera, inconsciente, de que o analista possa fazer uma integrao. 8. Como decorrncia, o analista contem- porneo no mais est se obrigando a obede- cer fanaticamente aos conceitos emanados pe- las autoridades superiores a ele, como sendo as sagradas escrituras da psicanlise, de forma que valoriza o que aprendeu, porm passou a respeitar mais o seu consenso racional, afetivo e intuitivo, diante de cada paciente em sepa- rado, na sua prtica cotidiana. 9. A recomendao de que o analista se ativesse a uma determinada escola, sob o ar- gumento de que assim evitaria se dispersar em um ecleticismo diluidor e, portanto, empobre- cedor, est sendo substituda pela valorizao de uma formao mltipla, ou seja, a vanta- gem de o analista conhecer as contribuies de distintos autores, de variadas correntes psi- canalticas, a fim de construir, livremente, a sua verdadeira identidade de psicanalista, respei- tando o seu estilo pessoal. 10. Tambm deve ser altamente conside- rado o fato de que as mudanas econmicas e culturais e a concorrncia que mtodos alter- nativos, principalmente o da moderna psicofar- macologia, esto impondo psicanlise fazem
  22. 22. 24 DAVID E. ZIMERMAN com que muitos consultrios de analistas, in- cludos muitos daqueles reconhecidamente veteranos e competentes, estejam com preocu- pantes espaos vagos, em flagrante contraste com uma recente poca anterior, quando era comum uma longa fila de espera para algum renomado psicanalista liberar uma vaga. Es- pecialmente entre os candidatos e analistas jovens, existe um indisfarvel medo de per- der pacientes, fato que, de alguma forma, in- flui no desenvolvimento da anlise. 11. Um outro fato que caracteriza a trans- formao do perfil do analista, comparando com pocas passadas, que, acompanhando o movimento de mudanas da prpria ideologia da psicanlise, o terapeuta atual est procu- rando fazer uma mais abrangente e slida integrao da psicanlise com as demais disci- plinas do saber humano. 12. Creio ser til refletirmos sobre o fato de que, s vezes, as transformaes so cclicas. Assim, desde antes de Cristo, no havia uma discriminao rigorosa entre as noes de or- gnico/psicognico; sagrado/profano; materi- al/espiritual; objetivo/subjetivo; real/imagin- rio; convencional/mstico. A partir do raciona- lismo de Descartes, as respectivas distines comearam a se impor na filosofia e nos incipientes movimentos cientficos. No entan- to, decorridos alguns sculos, a tendncia ci- entfica atual de voltar a integrar em uma unidade os aspectos manifestamente opostos e aparentemente contraditrios, sem uma ra- dical distino como era outrora. O processo analtico Ningum mais contesta que a psicanlise vem sofrendo sucessivas transformaes, no obstante conserve a essncia dos princpios fundamentais legados por Freud. Diante da impossibilidade de, aqui, desenvolver essa temtica de forma profunda e detalhada, como seria o merecido, limitar-me-ei a enumerar al- guns dos pontos que, a meu critrio, sejam os mais relevantes, e o fao baseado nas mudan- as que se processaram (e continuam se pro- cessando) na minha forma de entender e pra- ticar a psicanlise ao longo de uma experin- cia de mais de quatro dcadas de prtica clni- ca e de superviso com colegas mais jovens. A multiplicidade de correntes psicanalticas No incio da minha formao psicanalti- ca h 40 anos , os referenciais que compu- nham nosso ensino-aprendizagem praticamen- te fundamentavam-se quase que unicamente na metapsicologia, na teoria e na tcnica pro- vindas de Freud e de M. Klein, com esparsas referncias a autores pioneiros da escola da psi- cologia do ego, como Hartmann. Na verdade, o que na poca de longe predominava era a fun- damentao da escola kleiniana que dissec- vamos exausto. Na atualidade, os institutos de psicanlise abrem as portas s demais esco- las psicanalticas que foram se formando a par- tir das razes e do grande tronco de Freud. As- sim, os candidatos entram em contato com as principais contribuies advindas das sete es- colas de psicanlise, a saber: freudiana, klei- niana, autores da psicologia do ego, os da psi- cologia do self, a escola estruturalista de Lacan, as concepes provindas de Winnicott e as de Bion. Novos paradigmas Durante longas dcadas, o paradigma vi- gente na psicanlise foi o modelo freudiano que se pode denominar pulso-represso (o emba- te entre as pulses, principalmente os desejos libidinais proibidos, e os mecanismos de defe- sa do ego). Por volta do incio da dcada de 60, M. Klein e R. Fairbairn, desenvolveram, separa- damente, a teoria das relaes objetais, a qual ganhou um enorme espao em importncia, principalmente nas sociedades britnicas e nas do cone latino-americano. Este segundo mo- delo de paradigma pode ser chamado de objetal-fantasmtico, tal foi a nfase nas fanta- sias inconscientes ligadas aos objetos parciais internalizados. O terceiro paradigma aquele que, basea- do na obra de Bion, proponho chamar de vin- cular-dialtico, o qual baseia o trabalho anal- tico nos vnculos intra e intersubjetivos, de modo que o analista deve estar em permanen- te interao dialtica com seu paciente, ou seja, tese do paciente (a sua realidade psquica), o analista prope sua anttese (atividade inter-
  23. 23. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 25 pretativa), do que resulta uma sntese (insights), que, por sua vez, funciona como uma nova tese, e assim por diante, em um movimento espiralar ascendente e expansivo, promovendo um cres- cimento mental. Na atualidade est sendo bastante valo- rizado um quarto paradigma, o qual se refere aos dficits-vazios, ou seja, formao de ver- dadeiros buracos negros psquicos decorren- tes das falhas primordiais no decurso do de- senvolvimento emocional primitivo, do que resulta uma grande demanda de pacientes por- tadores do que se denomina patologia do va- zio, os quais, acima de tudo, ficam espera de que o analista consiga preencher tais vazi- os. claro que esses quatro paradigmas no se excluem, pelo contrrio se complementam, em- bora cada um deles tenha uma maior aplicabi- lidade, conforme a singularidade da psicopa- tologia de determinada situao clnica. Psicanlise e psicoterapia Na poca em que iniciei a minha forma- o psicanaltica, a distncia imposta entre psi- canlise e psicoterapias analticas era enorme, a ponto de que, caso um terapeuta, sem for- mao psicanaltica oficial, se atrevesse a fa- zer alguma interpretao transferencial, mes- mo que essa fosse obviamente necessria, cor- ria o srio risco de ser rotulado como atuador. Essa situao vem mudando significativamen- te, embora ainda persistam fortes grupos de psicanalistas que insistem em manter uma po- sio maniquesta, por meio do surrado re- curso denegridor de proferir a cruel sentena isso no psicanlise a tudo aquilo que no se enquadra em seus pressupostos. A esse respeito, a posio predominante na psicanlise atual est bem sintetizada na metfora que enfatiza o fato da existncia ine- quvoca das diferenas totais entre o que ca- racteriza o dia e a noite. No entanto, existem os estados de aurora e de crepsculo, nos quais as diferenas desaparecem porque a noite e o dia interpenetram-se e se confundem. Pois bem: o mesmo se passa com algumas diferenas b- vias entre psicanlise e psicoterapia, porm inegvel que, cada vez mais, a zona de conflu- ncia crepuscular, ou de aurora entre ambas, est se ampliando notoriamente. Assim, os critrios externos que costumam ser utilizados para definir o que psicanlise verdadeira (mnimo de quatro sesses sema- nais, uso compulsrio do div, emprego siste- mtico de interpretaes transferenciais...) es- to perdendo a legitimidade, cedendo lugar a critrios intrnsecos, como so os de uma mai- or ou menor acessibilidade que o paciente con- fere ao seu inconsciente e, principalmente, se esto ou no se processando verdadeiras mu- danas psquicas. Como respaldo dessa afirmativa, vale ci- tar duas passagens, uma de Winnicott e outra de Bion. Contam que uma vez algum pergun- tou a Winnicott se ele tambm fazia psico- terapia, ao que ele respondeu que no sabia bem o que era aquilo, mas sabia, sim, que era psicanalista e que fazia, sim, psicanlise de duas, uma vez por semana, ou com uma ses- so quinzenal... Igualmente, um prestigiado psicanalista conta que na poca em que super- visionava com Bion, este lhe encaminhou um paciente com as seguintes palavras: Estou lhe remetendo uma pessoa para tratares, porm, como no tem condies financeiras, peo-lhe que faa com ele uma psicanlise de uma vez por semana. Campo analtico Uma srie de elementos e de fenmenos psquicos como o setting, a resistncia e con- tra-resistncia, a transferncia e contratransfe- rncia, a comunicao, a interpretao, os actings, as identificaes, o insight, a elabora- o e a cura, alm de outros compe o cam- po analtico, em uma permanente bidireciona- lidade interativa entre paciente e analista. Como no cabe, aqui, esmiuar cada um dos referidos aspectos at porque cada um dos respectivos tpicos ser detalhado em um ca- ptulo especfico , limitar-me-ei a fazer no mais do que uma referncia telegrfica a cada um deles, no que tange fundamentalmente ao que, em meu entender, representa ser uma transformao significativa de ontem para hoje. Setting (ou Enquadre) Indo muito alm do significado que alu- de necessria combinao de regras, arran-
  24. 24. 26 DAVID E. ZIMERMAN jos e combinaes que favoream o desenvol- vimento de uma anlise, na atualidade, enten- demos o insight como a criao de um novo espao singular, raro e nico , em que o pa- ciente vai reexperimentar, com o seu analista, velhas experincias emocionais que na poca foram mal-resolvidas pelo seu entorno ambien- tal e, em conseqncia, por ele prprio, quan- do criana. Assim, diante de um novo modelo de empatia e de continncia que ele vivencia com seu analista, em uma atmosfera emocional que ainda no conhecia, o paciente vai promoven- do ressignificaes e desidentificaes, segui- das de novos significados a fatos e fantasias passadas, assim como de novas identificaes sadias no lugar das patognicas. Tambm a uti- lizao das regras tcnicas, recomendadas por Freud, que constituem um pilar bsico do setting, sofreu transformaes bastante signi- ficativas, tal como aparece no captulo que enfoca as mudanas nas regras tcnicas. Den- tro dessa concepo, possvel afirmar que o setting, por si s, constitui-se em um impor- tante fator teraputico psicanaltico. Resistncia At h pouco tempo, o surgimento (ine- vitvel) de algum tipo de resistncia do pa- ciente no curso da anlise era considerado um fator obstrutivo que deveria ser vencido, como fator prioritrio. Na psicanlise atual, no obstante estar claro que realmente exis- tem resistncias obstrutivas e, s vezes, de- letrias para o livre curso de uma anlise, na grande maioria das situaes analticas, as resistncias constituem-se em uma excelen- te amostragem (assim como os frutos escla- recem qual a rvore original) de como o paciente construiu o seu mundo interior e de como ele age no mundo exterior. Assim, costumo sintetizar a importncia benfica das resistncias com a frase: dize-me como resistes e dir-te-ei quem s. Contra-resistncia til destacar a diferena que o terapeuta atual deve fazer entre a resistncia que proce- de do prprio analista e a resistncia desperta- da no analista pelo paciente. O importante a registrar a possibilidade de surgimento no par analtico de conluios inconscientes, como, por exemplo, o de uma recproca fascinao narcisista. Transferncia O fenmeno transferencial foi considera- do por Freud como exemplo de um dos even- tos relativos a uma, compulsria, necessidade de repetio; hoje ele encarado como sendo basicamente o inverso disso, ou seja, uma re- petio de necessidades, malresolvidas, espe- ra de uma nova chance. Existe transferncia em tudo, mas nem tudo transferncia a ser trabalhada na situao analtica. Tambm cabe assinalar que, em muitos casos, o analista ter necessidade de se dedicar construo da transferncia. Contratransferncia Trata-se de um fenmeno analtico que deve ser entendido como indissocivel da trans- ferncia. Nos primeiros tempos da psicanlise, a contratransferncia no mereceu o crdito de Freud nem de M. Klein. No entanto, hoje considerada como um provvel canal de co- municao primitiva, bem como um potencial instrumento de empatia com o paciente. Da mesma forma como foi dito em relao con- tra-resistncia, tambm aqui cabe ao analista atual discriminar quando o seu sentimento que emerge nas sesses, s vezes muito difceis, de responsabilidade unicamente sua ou quan- do a reao emocional emerge nele porque o paciente, de alguma forma, coloca dentro dele. Comunicao A comunicao deixou de ser unicamen- te a dos relatos verbais do paciente, de sorte que a comunicao no-verbal, nas suas dife- rentes modalidades, ganhou uma alta relevn- cia na tcnica atual. sabido que o maior mal da humanidade problema dos mal-entendi-
  25. 25. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 27 dos da comunicao, e isso se deve fundamen- talmente ao problema dos transtornos dos seus trs fatores componentes: emisso, recepo e canais de comunicao. Um aspecto particu- larmente relevante na psicanlise contempo- rnea refere-se forma de comunicao pri- mitiva que se expressa sob a forma de imagens (ou ideogramas, hologramas, fotogramas) que irrompem na mente do analista, desperta- das por algo que est contido na narrativa do paciente. Interpretao A arte de o analista interpretar est pas- sando por profundas transformaes. Sou do tempo em que nossa atividade interpretativa recaa sistematicamente em decodificar de for- ma simblica, inclusive na transferncia, tudo aquilo que o paciente dissesse. Assim, se ele chegasse atrasado, alegando que o trnsito es- tava congestionado, era comum que o analista interpretasse que o que estava congestionado era o seu trnsito mental, em decorrncia de.... Se o paciente iniciasse a sesso dizendo que fez um lanche, no bar perto do consultrio, antes de vir sesso, provvel que interpretssemos que era to grande a sua fome (quase sempre atribuda sua inveja) que, para se precaver e nos poupar, ele a saciava l fora. E assim por diante (mesmo dando desconto possibilidade de que eu esteja exagerando um pouco). Igual absurdo, que em certos setores ain- da persiste bastante, a interpretao siste- mtica reduzida ao aqui-agora-comigo, inde- pendentemente do teor qualitativo, do signifi- cado, daquele momento especial, daquilo que o paciente falou. Na atualidade, parece que as coisas esto mudando bastante: o analista j percebe que a sua interpretao no senten- a categrica, uma verdade final, mas, sim, que a sua interpretao no mais do que uma hiptese que pode ser aceita ou refutada pelo paciente. necessrio destacar que hoje a ativida- de da interpretao continua ocupando um papel fundamental no processo analtico, po- rm est ganhando uma convico crescente de que muitos outros fatores, mais alm da interpretao, tambm desempenham uma funo importante. Funes do ego consciente A psicanlise valorizava quase que exclu- sivamente os aspectos inconscientes. Hoje, imprescindvel tambm analisar o ego cons- ciente, como so as funes de perceber, co- municar, conhecer (ou no querer conhecer), pensar, juzo crtico, etc. Ademais, fundamen- tal que o paciente se responsabilize consciente- mente por aquilo que diz, pensa e faz, de ma- neira que mais importante do que simplesmen- te levar o paciente a ter acesso ao que est ocul- to no seu inconsciente, ele adquirir a capaci- dade de liberar um trnsito de comunicao, em uma via de duas mos, entre o consciente e o inconsciente. Atuaes Hoje em dia, as atuaes deixaram de ne- cessariamente ser consideradas como equiva- lente a um nome feio e podem ser utilizadas como um excelente meio de compreender como o paciente est comunicando aspectos que ele ainda no consegue entrar em contato. Esta dificuldade est de acordo com as causas que promovem as atuaes, como a de que ele no consegue recordar, pensar, verbalizar e conter determinados sentimentos angustiantes. Insight, elaborao, cura So diversos os tipos de insight. Na atua- lidade, o insight de natureza cognitiva ( bem diferente de intelectiva) est sendo bastante valorizado. Em relao elaborao dos insights parciais, o analista de nossos dias est atribuindo uma importncia fundamental ao fato de o paciente desenvolver a capacidade de aprender com as experincias da vida e do ato analtico, as boas e as ms. A cura analtica nunca total, de acor- do com Freud, para quem podemos resolver as misrias neurticas, mas jamais os infort- nios da vida. O importante que tenha havido no paciente um significativo crescimento men- tal, um fortalecimento do ego, suficientemen- te equipado para enfrentar as vicissitudes na- turais da vida, alm de despertar um sentimen- to de liberdade, aquisio de capacidades la-
  26. 26. 28 DAVID E. ZIMERMAN tentes, de criatividade e fruio de prazeres e lazeres. PARA ONDE VAI A PSICANLISE? Segue uma enumerao de aspectos que, a meu juzo, devero determinar novas trans- formaes e caminhos na trajetria da cincia psicanaltica. 1. Sada do hermetismo. Ningum contes- ta que a psicanlise durante um longo tempo ficou encastelada na sua torre de marfim, no facilitando uma maior aproximao com as demais cincias e de certa forma assumindo uma atitude de arrogncia em relao a elas. Isso tem representado dois custos: um, mais evidente em poca mais passada, o revide das demais disciplinas, sob a forma de algum desprezo, deboche e um afastamento cientfi- co. O outro que a formao do analista ficou sensivelmente prejudicada, limitada a girar em torno do seu prprio umbigo. Freud percebeu isso, tanto que, j em 1926, no seu clssico A questo da anlise leiga (p. 278), ele sabiamente profetiza que se ti- vesse que fundar uma escola de psicanlise, muito teria que ser ensinado pelo corpo mdi- co, junto com a psicologia profunda que per- maneceria sempre como disciplina principal; deveria haver uma Introduo Biologia, in- cluindo o mximo possvel da cincia da vida sexual, assim como familiarizao com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, o ensino dialtico incluiria ramos do conheci- mento que no esto relacionados com a me- dicina e com os quais o mdico no tem que lidar na sua prtica: histria da civilizao, mitologia, psicologia da religio e cincia da literatura. A no ser que se sinta vontade nestes domnios, um analista no ser capaz de entender uma grande parte de seu traba- lho. No necessrio dizer que no passa de um sonho utpico que est longe de vir a ma- terializar-se algum dia. Creio que se Freud escrevesse hoje o mes- mo texto, incluiria outras disciplinas, como a filosofia e as neurocincias, e daria um enfoque transdisciplinar. Em relao a este ltimo as- pecto, para ficar em um nico exemplo, atual- mente no difcil fazer a constatao de que existem surpreendentes paralelos entre as mais antigas tradies msticas e as atuais descober- tas da fsica moderna e, indo ainda mais lon- ge, destas ltimas com as da metapsicologia psicanaltica. 2. Uma maior abertura para as neuro- cincias e para a moderna psicofarmacologia. At h muito pouco tempo, a psicanlise funda- mentava-se em princpios da neurologia da poca de Freud, os quais esto obsoletos, di- ante das atuais comprovaes rigorosamente cientficas, no que diz respeito s ntimas e re- cprocas conexes entre corpo e mente. Igual- mente, estudos modernos comprovam que a afetividade e a cognio so indissociveis. Da mesma forma, no mais se justifica a resistn- cia de importantes setores da psicanlise que se opem a um eventual uso de medicao es- pecfica, concomitantemente ao curso normal da anlise de seus pacientes. Os resultados da moderna psicofarmaco- logia esto suficientemente comprovados (por exemplo, o uso de antidepressivos nas depres- ses endgenas e na doena do pnico) e, pelo menos em minha opinio, salvo em inegveis situaes de uso abusivo, em nada prejudicam o normal desenvolvimento da anlise, pelo con- trrio, muitas vezes auxiliam. Alis, foi o pr- prio Freud que, no seu trabalho pstumo Es- quema de psicanlise, profetizou ...que o futuro nos ensinasse a influir de forma direta, por meio de substncias qumicas especficas... Especialmente o campo das neurocincias (j existe, entre alguns psicanalistas, um mo- vimento chamado de neuropsicanlise) est ganhando uma crescente respeitabilidade no que tange s pesquisas que esclarecem um pro- gressivo mapeamento das zonas cerebrais e dos sistemas nervosos responsveis por determina- das respostas orgnicas e, reciprocamente, a forma de como as emoes estimulam os refe- ridos circuitos neuronais, com a respectiva li- berao de substncias, como as serotoninas, entre outras. 3. Uma abertura para as teses propostas pelos psiclogos das formas. Alguns pensadores importantes, como Cassirer, Merleau-Ponty e Sartre, dedicaram instigadoras e interessants- simas reflexes sobre os fenmenos da percep- o e da imaginao, os quais, acredito, po-
  27. 27. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 29 O maior desafio para o analista que ele possa enfrentar esses problemas sem perder a ma- nuteno do necessrio nvel de profundidade da anlise. 6. Mudanas na formao do psicanalista. Uma significativa parcela de importantes psi- canalistas, dentro da prpria IPA, no obstante haver uma tenaz oposio de outra parcela igualmente significativa, est se apercebendo que o atual sistema de formao tolhe bastan- te a liberdade e a criatividade do candidato. Alguns chegam a comparar o ensino ao candi- dato condio de um aluno de colgio. Aos poucos, entre os responsveis, uma nova men- talidade est se criando, bem mais aberta, sem renunciar aos princpios bsicos da psicanlise. 7. Outros pontos que j esto em anda- mento de uns tempos para c referem-se ne- cessidade de, sem alterar substancialmente o obrigatrio currculo atual, propiciar e estimu- lar o acesso do candidato a outros ramos do conhecimento em geral, tal como j est acon- tecendo com a filosofia, a lingstica e a fsica. A importantssima funo de superviso deve ser reformulada em alguns aspectos. Os insti- tutos formadores de analistas provavelmente devero abrir as portas para uma formao paralela de psicoterapia psicanaltica, em mol- des diferentes. Dever haver um melhor apro- veitamento da mdia, com a finalidade de es- clarecer a populao em geral, assim como ins- tituir debates pblicos multidisciplinares. Uma questo ainda controvertida em relao ao ensino-aprendizagem do tratamento psicana- ltico a que diz respeito poltica de um rec- proco aproveitamento, tanto ligao quanto de habilitao, da psicanlise com a universidade. 8. A psicanlise atual est em crise? Par- tindo do significado que a palavra crise de- signa que as coisas atingiram um ponto intole- rvel o que no significa necessariamente que esteja havendo uma deteriorao , a resposta sim, a psicanlise est em crise, exigindo s- rias mudanas para acompanhar as transfor- maes do mundo. Ao mesmo tempo, a res- posta que a psicanlise no est em crise (no sentido negativo), pois existem claras evidn- cias de que est muito viva, como no meio da educao, no qual a criana escutada e seus direitos reconhecidos; nas artes em geral, no- toriamente em produes teatrais e cinemato- dem enriquecer bastante a teoria e tcnica psi- canaltica. Para os leitores interessados no as- sunto, sugiro, como leitura inicial, o excelente trabalho de I. Melsohn publicado no Jornal de Psicanlise, v. 33, nos 60-61, 2000. 4. Enfrentamento de avanos na rea cien- tfica. Novas descobertas como as da engenha- ria gentica, a clonagem e a concluso do se- qenciamento do genoma humano, no mni- mo, esto acarretando problemas de tica, os quais exigiro uma tomada de posio dos psi- quiatras e psicanalistas. Descobriu-se que no centro de cada uma das clulas vivas est o genoma, termo que se refere ao contedo to- tal do material gentico de um organismo, seja este uma bactria, uma mosca, um smio ou um ser humano. O nmero de genes encontra- do no homem de 30.000, ou seja, um tero do que sempre foi estimado (uma minhoca tem 19.000). Tal resultado surpreendente mostra que a complexidade de uma espcie no di- retamente proporcional ao nmero de genes. Provavelmente a diferena reside na multipli- cidade de possveis combinaes de complexi- dade crescente. No se muito diferente de uma minhoca ou de uma mosca (a drosophila, por exemplo, tem 15.000 genes). Isso fere a fantasia de grandiosidade do homem, tanto que s muito recentemente est se deixando de negar as evidncias bvias da existncia de vida psquica no feto e no reino animal. Embora exa- gerando, atrevo-me a dizer que essa descober- ta relativa ao genoma tem um certo sabor de quarto rude golpe desfechado contra o narci- sismo humano. 5. Enfrentamento de mudanas sociais. Grande parte da assistncia mdica e psicol- gica est sendo, cada vez mais, entregue a en- tidades, privadas ou governamentais, presta- doras de servios, sob a forma de seguro-sa- de, nas quais predomina a ideologia monet- ria na equao custo-benefcio. Alm de epis- dicas crises internas institucionais, os psicana- listas tambm enfrentam desafios da prati- cidade, como so os custos de um tratamento analtico bem feito, as maiores distncias que separam o paciente do analista, a demanda por resultados imediatos, uma certa presso pela diminuio de sesses semanais, a compara- o com os resultados obtidos com medicao, uma certa desinformao por parte da mdia...
  28. 28. 30 DAVID E. ZIMERMAN grficas, com um crescente debate participativo com pblicos leigos; na sade mental; na me- dicina; e, de modo geral, em todas as cincias humansticas, como no direito e na sociologia, entre outros. Um ponto final que cabe para todas as transformaes aludidas no presente captulo o fato de que, at o incio do sculo XX, os avanos cientficos inovadores dobravam a cada 50 anos; a partir da dcada 40, os avan- os comearam a dobrar a cada 10 anos; e nos ltimos tempos, em uma mdia de cada trs anos. Nesta rapidez, o que o futuro prximo e o futuro remoto reservam para todas as reas da psicanlise?
  29. 29. MANUAL DE TCNICA PSICANALTICA 31 sonalidade real, ou seja, s suas qualidades, defeitos, idiossincrasias, valores, desejos, as- sim como ao seu tipo bsico de personalidade. FREUD Como quase tudo em psicanlise comea com Freud, sero rastreados os seus passos mais de perto. Mritos 1. Nos primrdios da psicanlise, no seu perodo pr-cientfico, Freud tentou o mtodo da hipnose induzida, principalmente para pos- sibilitar uma catarse (mtodo ab-reativo) dos traumas reprimidos. 2. Desiludido com o mtodo (at porque Freud no era um bom hipnotizador), substi- tuiu-o pela livre associao de idias, tambm conhecida como regra fundamental. Nos pri- meiros tempos, no era to livre como o nome sugere porque, deslumbrado com a idia de fazer um levantamento arqueolgico da men- te, camada por camada dos recalcamentos, ele forava suas pacientes histricas, mediante uma presso na fronte, a que elas espontane- amente falassem tudo o que lhes viesse ca- bea, quer elas achassem importante quer no. Posteriormente, em 1896, entendeu o apelo de uma paciente, Emmy Von N., para que ele a deixasse em paz, pois assim ela cumpriria me- lhor o papel que lhe cabia na anlise. 2 Os Principais Autores das Sete Escolas de Psicanlise e sua Contribuio Tcnica. Mritos e Crticas A essncia da sabedoria da psicanlise no est neste ou naquele autor; est entre eles. O maior mal da humanidade est no problema do mal-entendido da comunicao entre as pessoas. Dando continuidade ao assunto tratado no captulo anterior, de modo sumarizado, cabe traar um quadro sinptico das contribuies tcnica psicanaltica, por parte de autores de distintas pocas, geografias e escolas, discri- minando-os individualmente, com as particu- laridades que tornam a prtica clnica bem dis- tinta uma da outra, embora, de alguma forma, todas as contribuies estejam, de algum modo, entrelaadas, conservando a essncia da cin- cia psicanaltica. A obra tcnica de cada autor ser descrita, de forma resumida, tanto nas con- tribuies que so julgadas consensualmente como meritrias quanto, de igual modo, em separado, nos aspectos que constituem o alvo de crticas. Antes, porm, necessrio enfatizar que, no obstante a tcnica psicanaltica venha, des- de a criao da psicanlise at hoje, sofrendo ininte