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INSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
MARCAS QUE DEMARCAM CORPO, TATUAGEM E BODY PIERCING EM CONTEXTOS JUVENIS
Vtor Srgio Ferreira
Tese submetida como requisito para a obteno do grau de
Doutor em Sociologia Especialidade em Sociologia da Cultura e da Comunicao
Orientador: Prof. Doutor Jos Machado Pais
Julho, 2006
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AGRADECIMENTOS Este trabalho, como qualquer tese de doutoramento, resultado de uma longa jornada
empreendida, em grande medida, solitariamente. H, no entanto, muitos que, mais prxima ou longinquamente, sempre a acompanharam, e que, sob a forma de apoio emocional ou de discusso intelectual, nela contriburam. a todos esses que, desde logo, gostaria de deixar os meus sinceros agradecimentos.
Aos meus entrevistados, pelo tempo, histrias e segredos que, com entusiasmo e
confiana, comigo partilharam. Fundao para a Cincia e a Tecnologia, pela Bolsa de Doutoramento que me
concedeu, com recursos do Fundo Social Europeu no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio, e que me permitiu sobreviver nos ltimos quatro anos.
Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, pelo apoio financeiro que, no mbito do Observatrio Permanente da Juventude, me permitiu realizar o trabalho de campo deste projecto.
Ao Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa, pelas ptimas condies de acolhimento que me proporcionou para o desenvolvimento deste projecto de investigao.
Ao Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa, na pessoa institucional do seu Departamento de Sociologia, por ter acreditado neste projecto de investigao como forma de obteno do Grau de Doutor.
A tod@s @s coleg@s que tiveram a generosidade de me conceder o seu tempo, o seu
interesse, a sua pacincia, a sua capacidade crtica e reflexiva a propsito deste trabalho: Vanda Aparecida, Aurlio do Nascimento, Luis Gonalves Junior, Marc Breviglieri, Vincenzo Cicchelli, Leila Blass, Susana da Cruz Martins e Lia Pappmikail. Agradeo especialmente Sandra Saleiro e Elsa Pegado, pelas suas leituras, sugestes e revises atentas no final deste trabalho.
A amizade e apoio de muit@s amig@s que ao longo destes quatro anos sempre
acreditaram em mim e me estimularam atravs de palavras de conforto e incentivo, em especial Ana Cotrim, Teresa Amor, Mnica Saavedra, Pedro Alcntara da Silva, Fernando Tavares Junior, Rita Raposo, Sofia Aboim, Vanessa Cunha, Fernando Baio, Graa Silveira, Manuela Loureno, Maria de Aires, Alexandra Figueiredo, Susana Valente, Sofia Marques, Sandra Mateus, Luisa Luzio, Joo Taborda e ngela Barreto Xavier.
Ao Nuno, pelo seu afecto. minha me, Maria de Lourdes, por sempre me ter instigado a vontade de saber sempre
mais. Por fim, ao Professor Jos Machado Pais, no s pela orientao, estmulo e apoio
constante e duradouro no decorrer deste trabalho, mas, sobretudo, pela sua amizade e confiana que, desde h muito, tanto me prestigia academicamente e me orgulha pessoalmente.
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Quero furar o mamilo Tatuar um peixe no brao
Afirmar l o meu estilo E demarcar o meu espao.
()
[A minha me] no sabe a angstia
Que esta diferena me poupa No vou ser o zombie cinzento Que ela tem no guarda-roupa.
()
Mostrar na pele o meu tabu Ser por direito um ser tribal
Quero ser afro-zulo Nativo urbano industrial.
Carlos T Extractos de O Meu Estilo Cl, lbum Kazoo (1997)
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Resumo: No obstante o renascimento e a recente visibilidade social que as modificaes corporais tomaram nas sociedades ocidentais, nomeadamente na sociedade portuguesa, os jovens que cultivam o gosto pela tatuagem e o body piercing em larga extenso no corpo tm merecido, ao longo do tempo, mais ateno e interesse analtico por parte da psicologia ou da psiquiatria do que por parte da sociologia. Este trabalho prope-se ento descobrir os significados que esses jovens investem nas suas marcas corporais, compreender e interpretar sociologicamente as lgicas simblicas subjacentes sua utilizao, e examinar o papel da marcao corporal na produo e manuteno de identidades e sociabilidades. Simultaneamente, o trabalho prope-se ainda caracterizar as condies sociais de produo dos corpos extensivamente marcados, bem como analisar os efeitos sociais da sua assuno, numa sociedade que vive com alguma relutncia e preconceito a modificao corporal mais perene, em particular a que revisita e evoca figuras corporais histrica e socialmente estigmatizadas, na medida em que exige um elevado grau de plasticidade identitria e de maleabilidade corporal dos seus actores. Em sntese, objectivo genrico deste trabalho identificar os diferentes usos, reconstruir a pluralidade de sentidos e averiguar dos potenciais efeitos, relativos prtica de marcar extensivamente o corpo em contextos juvenis. Palavras-chave: corpo; tatuagem; body piercing; culturas juvenis. Abstract: Despite of the renaissance and increasing social visibility of body modifications in western societies, namely in the Portuguese society, young people cultivating the taste for tattooing and body piercing in large extensions of their body have deserved more attention and analytical interest from Psychology and Psychiatry than from Sociology. The purpose of this work is to undercover the meanings that these people associate with such body marks, to understand and to interpret sociologically the symbolic connotations of their practices, and to examine the role of body marking in the production and maintenance of identities and sociabilities. At the same time, this work intends to describe the social conditions of production of extensively marked bodies, and finally, to analyse the social effects of these tattooed and body-pierced young people in a society where permanent body transformations are received with prejudice and aversion (in particular those changes that revisit and evoke body-uses historically stigmatized), a society that demands to their actors, instead, a high level of identity plasticity and body malleability. To summarize, the goal of this study is to identify the different uses of extensive body marking practices in youth contexts, to reconstruct their multiple meanings and to analyse their potential effects. Keywords: body; tattoo; body piercing; youth cultures.
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NDICE
INTRODUO...
13
1. Da curiosidade impressionista inquietao sociolgica.. 13 2. Objectivos e questes de partida 16 3. Itinerrio de um percurso. 21
PARTE I
CORPOREIDADES JUVENIS: QUESTES E PERSPECTIVAS SOCIOLGICAS
I. O lugar do corpo na sociedade contempornea: arqutipos corporais e condies sociais de produo..
27
1.1. Um lugar de tenses: entre o culto e a obsolescncia do corpo .. 27 1.2. Socializao, racionalizao e poderes colonizadores do corpo... 38 1.3. Individualizao social e subjectivao identitria: contexto da actual experincia
social dos jovens
53 1.4. Individuao e libertao do corpo: emancipao social ou deslocamento dos
constrangimentos?.........................................................................................................
73 II. Resgates sociolgicos do corpo: um trptico sobre a relevncia analtica da corporeidade.
87
2.1. Da corporeidade: o resgate da socialidade do corpo.. 87 2.2. Da incorporao excorporao: o resgate do poder sobre o corpo... 96 2.3. Do corpo vivo e vivido: o resgate da carnalidade pela sociologia. 108 III. Do corpo jovem e dos jovens nos seus corpos
121
3.1. Juvenilismo, etarismo e o valor social do corpo jovem. 121 3.2. Valor, sentidos e vivncias do corpo entre os jovens.. 132 3.3. Da reflexividade corporal juvenil: uma realidade socialmente fragmentada 139 3.4. Comportamentos radicais e manifestaes corporais entre os jovens.. 153 IV. Corpos vistos e entrevistos: delimitao do universo de observveis e estratgias metodolgicas de observao..
167
4.1. Corpos vistos: ensaio de aproximao tipolgica a figuras do corpo radical 167 4.2. Corpos entrevistos: da observao fala com corpos marcados.. 174 4.3. Corpus discursivos: das falas sobre aos contedos dos corpos
marcados....
196
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PARTE II DA CORPOREIDADE MARCADA: USOS, SENTIDOS E EFEITOS SOCIAIS
DA TATUAGEM E BODY PIERCING EM CONTEXTOS JUVENIS
I. Marcas que sempre demarcaram: uma sociognese das prticas de marcao corporal..
207
II. Usos e atitudes dos jovens portugueses perante as marcas corporais: um
retrato dermogrfico...
223
2.1. Do renascimento portugus das marcas corporais.. 223 2.2. Atitudes perante as marcas corporais e perfis sociais das clientelas... 230 2.3. Localizaes corporais das marcas e gnero... 239 2.4. Constelaes simblicas em torno dos desusos, usos e abusos das marcas
corporais..
245 III. Da experincia ao vcio: a construo de um projecto de marcao corporal
251
3.1. A iniciao nas marcas corporais 251 3.2. Os contornos da experincia de marcar o corpo.. 256 3.3. As vivncias da experincia de marcar o corpo 262 3.4. A formulao de um projecto de marcao corporal 276 IV. Joalharia exclusiva, permanente e invasiva: a expresso corporal de uma
esttica da divergncia..
287
4.1. Do gosto pelas marcas corporais 287 4.2. Dos valores de ordem esttica nos projectos de marcao corporal 292 4.3. Da incorporao permanente das marcas corporais... 298 4.4. Da incorporao invasiva das marcas corporais.. 304 V. Marcar a diferena: a expresso corporal de uma identidade auto-bio-grfica...
315
5.1. Ser eu prprio: consistncia e autenticidade nos projectos de marcao corporal 315 5.2. Ser diferente: distintividade e singularizao nos projectos de marcao corporal 330 5.3. A circunstncia actual de um rito de passagem: ruptura e metamorfose nos projectos
de marcao corporal
339 5.4. Uma biografia flor da pele: memria e narratividade nos projectos de marcao
corporal
359 VI. Do acto de rebeldia produo de um estilo de vida escapatrio: a expresso
corporal de uma poltica de dissidncia...
373
6.1. Um acto de rebeldia emancipatria 373 6.2. Da poltica do corpo poltica de vida 384 6.3. Da contestao celebrao: ticas e pragmticas de um estilo de vida escapatrio. 412
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VII. Entre ns e os outros: expresses sociais da intercorporalidade marcada..
431
7.1. Entre ns: marcas corporais e a biossociabilidade contempornea 431 7.2. Afinidades electivas: estrutura e referentes simblicos das redes de
sociabilidade...
447 7.3. Afinidades afectivas: hierarquias e contextos de estruturao das redes de
sociabilidade...
465 7.4. Ns e os outros: um confronto de gramticas.. 471 7.5. Gesto social do projecto: estratgias de enfrentamento e evitamento... 492 VIII. Os ofcios de marcar o corpo: a realizao profissional de um projecto
identitrio...
501
8.1. O significado do trabalho nos ofcios de marcar o corpo 501 8.2. Vidas de artfice da marcao corporal: motivaes, circunstncias e trajectrias 513 8.3. As artes dos ofcios de marcar o corpo: talentos, aprendizagens e disciplinas.. 529 8.4. Legitimao artstica do ofcio de tatuador e relao com a clientela... 542 CONCLUSO: ESTRUTURAS DE SENTIDO E PROCESSOS DE PRODUO SOCIAL DA CORPOREIDADE MARCADA....
555
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..
591
ANEXOS.
645
Anexo n. 1 Questionrio aos jovens portugueses (aplicado em 2000 pelo OPJ) . 647 Anexo n. 2 Caracterizao sociogrfica dos entrevistados .. 677 Anexo n. 3 Guio de entrevista a praticantes de tatuagem e body piercing .. 679 Anexo n. 4 Grelha de unidades de anlise das entrevistas .. 689
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INTRODUO
1. Da curiosidade impressionista inquietao sociolgica
Corria o ano de 1997 quando, no mbito do Festival Atlntico, mostra internacional de arte,
performance e tecnologia organizada pela produtora lisboeta Z dos Bois, nesse ano sob o lema
O corpo na sociedade ps-moderna: manipulaes e limites, tive o primeiro contacto directo
com a realidade da modificao e explorao corporal mais extrema. Nesse evento tive
oportunidade de contactar de perto com alguns projectos de relevo internacional habitualmente
inscritos na body art pela expertise do mundo da arte contempornea, como os de Orlan
(Frana), de Stelarc (Austrlia), de Annie Sprinkle (EUA) ou Fakir Musafar e Clo Dubois (EUA),
entre muitos outros, quer na forma de espectculos propriamente ditos, quer na forma de
apresentao e discusso de propostas estticas, num ciclo de conferncias e debates
promovido no mbito desse mesmo festival.
Por entre vdeos de cirurgias plsticas esteticizadas com batas Gautier, performances que
apostavam na demonstrao de corpos robotizados ou na estetizao e politizao da
pornografia, ou na apresentao de sujeitos que se dependuravam em cabos presos pelos
mamilos, que danavam ao som de ritmos frenticos balanceando ganchos que seguravam, em
peso, volumes vrios espetados nos corpos1, tudo isto ocorreu, ao jeito dos freak shows de
outrora, defronte de uma plateia que se dividia entre reaces de curiosidade, impresso ou mal-
estar2, e reaces de entusiasmo, excitao e participao activa nos rituais reproduzidos.
Para alm da minha prpria perturbao, perplexidade e assombro perante cada um dos
espectculos que integraram esse evento, uma das curiosidades que mais me suscitou a
ateno foi verificar que, por entre um pblico maioritariamente jovem, muitos deles se
apresentavam extensivamente tatuados e perfurados, com uma joalharia muito especfica e
padronizada (que oscilava entre barras e argolas de metal com pequenas bolas nas
extremidades), colocada em lugares corporais, para a poca e em Portugal, bastante inusitados.
1 Supostas revisitaes de rituais tradicionais como a dana das bolas Hindu, onde frutas pesadas so dependuradas na pele dos participantes, a dana do Sol executada por vrias tribos ndias norte-americanas, onde se assiste extenso dos mamilos dos seus participantes, ou das muitas cerimnias ritualistas onde as prticas de perfurao da pele so habituais. 2 Diversas pessoas saram da sala com sintomas de desmaio ou vmitos.
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A partir daqui, a visibilidade meditica concedida ao body piercing e, por decorrncia,
tatuagem, foi enorme, no s atravs de reportagens sobre o assunto na imprensa escrita
generalista, passando por programas televisivos de debate e informao exclusivamente
dedicados ao tema, at apresentao na Culturgest do documentrio Of Skin & Metal,
realizado por Olga Shubert sobre a comunidade de body piercing em Nova Iorque, com honras
de debate intelectual3, evento de tal maneira povoado que no lhe consegui aceder. Em face da
visibilidade pblica que prticas como o body piercing e a tatuagem vieram a adquirir na poca,
comecei ento a colocar-me a questo das motivaes que estariam na base da mobilizao
desses apetrechos mais radicais por parte de alguns jovens.
A concepo deste trabalho de investigao comeou a desenhar-se, ento, a partir da
curiosidade pessoal suscitada por uma observao impressionista: a crescente exposio,
valorizao e investimento social do corpo na sociedade contempornea, nomeadamente entre
os seus segmentos juvenis urbanos, porm um corpo que j no surge necessariamente
naturalizado mas, pelo contrrio, sujeito a experincias que desafiam alguns dos seus limites,
como a invasividade da sua superfcie e a experincia voluntria da dor. O excesso atribudo s
modalidades de mobilizao corporal enunciadas revelou-me uma tenso que, actualmente,
atravessa o lugar do corpo, presente no duplo movimento que, simultaneamente, impele sua
exposio e ocultao social.
Pela familiaridade e proximidade na sua presena quotidiana, ritualmente abandonado s
rotinas e automatismos que o envolvem, o corpo tende a ser uma realidade que interpela de
maneira discreta, tornando-se quase transparente para o seu habitante, uma espcie de
facticidade evanescente (Berthelot, 1987). Inevitvel presena enquanto suporte da existncia do
indivduo, tende a manter-se simultaneamente ausente sua prpria conscincia.4 No entanto,
quando colocado perante determinadas situaes limite, o corpo irrompe da sua ausncia
presente e torna-se objecto de reflexividade pessoal e social. Entre outras situaes, tal pode
ocorrer quando, em determinados meios sociais, as suas potencialidades plsticas e cinticas
so intencional e conspicuamente investidas e exploradas ao extremo. Nesses contextos, o
corpo acaba por ganhar um protagonismo que o coloca em posio de exibio, passvel de
apreciaes, categorizaes, e interpretaes scio-simblicas.
3 Esse colquio, realizado no dia 14 de Junho de 1997, versou a problemtica dos Modernos Primitivos e teve como convidados Maria Carrilho, Jos Gil, Andr Lepecki, Alexandre Melo e Jos Antnio Fernandes Dias, tendo sido moderado por Antnio Pinto Ribeiro. 4 Embora, como veremos neste trabalho, hoje em dia estejam reunidas condies sociais, econmicas e simblicas cada vez mais propcias induo da auto-reflexividade corporal.
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o que acontece em determinados contextos juvenis, onde o corpo se evidencia pelos
excessos de que investido, emergindo da descrio quotidiana que lhe socialmente prescrita.
Algumas das manifestaes juvenis hoje em dia socialmente percebidas e categorizadas como
radicais, tm na base deste qualitativo justamente a excessividade lida nos usos e
investimentos corporais que as revestem, ostensivos quer em termos de imagem quer de
movimento. Os corpos extensivamente tatuados e perfurados, bem como os que desafiam os
seus limites cinticos em actividades desportivas mais extremas ou em noites e dias de dana
que se sucedem, so exemplos desse tipo de manifestaes radicais juvenis. Assim se explica
que os interesses sociolgicos centrados na juventude acabem por problematizar as questes
simblicas que estruturam as culturas juvenis contemporneas e, em especial, as que surgem
associadas a processos de incorporao e a prticas de excorporao, encaminhando-nos para
essa nova rea disciplinar que a sociologia do corpo.
A realidade da modificao corporal mais radical comeou ento a interpelar-me j no
apenas como mera curiosidade perante manifestaes artsticas mais iconoclastas, mas tambm
enquanto objecto cientfico: ao dar-se a ver no seu crescimento, foi-me estimulando para o
desvendamento de alguns enigmas susceptveis de serem sociologicamente equacionados
(Pais, 2002:60-68). A mera curiosidade impressionista foi tomando assim a forma de inquietao
sociolgica: se o trao de radicalidade atribudo a determinados comportamentos juvenis passa
pela excessividade reconhecida aos usos e investimentos feitos no corpo, porque este
objecto de regulao social, no sentido da sua normalizao, normativizao ou docilizao,
como diria Foucault (1979), em funo de determinados padres sociais de utilizao,
interveno e explorao. Alguns jovens, todavia, tentam escapar ou contestar esses mesmos
padres, ao introduzir sub-repticiamente alguma desordem na ordem corporal dominante. Que
jovens so estes? Que razes os mobilizam? Sob que formas o fazem? Com que objectivos?
Desenha-se, assim, a ideia de que o corpo , simultaneamente, objecto de constrangimentos
mas tambm recurso de agncia social.
Ter sido a espectacularidade associada a algumas dessas mobilizaes corporais
juvenis, portanto, a suscitar-me a atractividade do corpo enquanto objecto de estudo, remetendo
constataes impressionistas para mundos da reflexo sociolgica, ricos em novidade terica e
potencialidade hermenutica, como veremos adiante. No fundo, uma adeso subjectiva induzida
por essa sensao de estranhamento que marca a nossa distncia perante um certo fenmeno,
sensao essa que se entranha quando esse mesmo fenmeno assume o estatuto de potencial
objecto de estudo, marcando a necessidade de transformar o extico em prximo para que o
conhecimento venha a ser produzido: o que vemos e encontramos pode ser familiar mas no
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necessariamente conhecido e o que no vemos e encontramos pode ser extico mas, at certo
ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como
fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente (Velho, 1987 [1981]:126).
2. Objectivos e questes de partida
Perante o cenrio traado, o trabalho de investigao efectuado vem abordar a relao
dos jovens com o seu corpo, no mbito da problemtica dos processos de construo identitria
especficos sociedade contempornea, a partir de um caso particular focalizado em sujeitos
que, em dado momento das suas vidas, geralmente localizado na transio da adolescncia
para a idade jovem, comeam a marcar extensivamente o seu corpo com tatuagens e body
piercing. O trabalho centraliza-se, mais particularmente, na articulao entre esta forma de
mobilizao radical do corpo isto , que supe uma forma voluntria de usar, de explorar e de
intervir no corpo que tende a ser socialmente reconhecida como excessiva ou transgressiva,
considerando os limites fsicos, as convenes culturais e as normatividades sociais que tendem
a regular actualmente as suas possibilidades de mobilizao e as estruturas scio-simblicas
que manifesta enquanto prtica de referncia nos processos de construo de identidades
sociais e pessoais em determinados contextos juvenis.
Uma das chaves analticas fundamentais para entender o que os investimentos (materiais,
simblicos e sociais) em prticas de marcao corporal significam, hoje, para os sujeitos que as
mobilizam, passa por reconhecer que: por um lado, quanto mais permanente e inalienvel a
posse de determinados objectos, maior valor simblico susceptvel de lhes ser individualmente
investido e socialmente atribudo; e que, por consequncia, objectos como as tatuagens e o body
piercing, dada a sua natureza indelvel, intencionalmente ou no passam a fazer parte estvel e
durvel da identidade social do seu praticante.
Nesta ptica, este trabalho prope-se descobrir, compreender e interpretar
sociologicamente os significados subjectivos que os praticantes investem neste tipo de objectos,
alcanar as lgicas simblicas que esto subjacentes utilizao destes recursos corporais, e
examinar a relao entre a posse destes objectos e o respectivo papel na criao e manuteno
de um sentido de identidade. Prope-se ainda analisar os efeitos sociais que da decorrem,
numa sociedade que exige um elevado grau de plasticidade identitria e de maleabilidade
corporal, e que ainda vive com alguma relutncia e preconceito a modificao corporal mais
perene, nomeadamente a que revisita e evoca figuras corporais historicamente estigmatizadas
- 17 -
na vida social, como o caso do corpo extensivamente marcado. Em ltima instncia,
objectivo genrico deste trabalho inventariar os diferentes usos, reconstruir a pluralidade de
sentidos e averiguar dos potenciais efeitos, relativos experincia de marcar extensivamente o
corpo nas culturas juvenis existentes na sociedade portuguesa contempornea.
Na tentativa de ir mais alm do que, durante longos anos, e no raras vezes ainda hoje, foi
tratado como puro account psicolgico, como uma questo de inadequao da subjectividade,
ou como simples disfuno no sistema social, propomo-nos caracterizar a densidade simblica
(lgicas e racionalidades, sentidos e significados, motivaes e intenes) inerente
reflexividade produzida em torno da aco de marcar o corpo, nomeadamente por parte dos
agentes que a praticam na sua forma mais extensiva, sem esquecer as condies sociais de
produo do corpo marcado, bem como os efeitos sociais da respectiva assuno. Que dizer
acerca dos seus representantes? Em que contextos sociais so produzidos e vividos os seus
corpos? E o que dizem os seus representantes? Que sentidos constroem sobre os corpos que
produzem? Que conhecimentos, valores e representaes invocam e excluem? Que particulares
formas de identidade e subjectividade os corpos extensivamente marcados representam? Que
reaces estimulam na vida social, e sob que formas estas so geridas na vida social dos seus
portadores? Que efeitos produzem nas sociabilidades e trajectrias sociais destes?
No propsito de dar resposta a este conjunto de questes, tentou-se desenvolver um
quadro analtico que permitisse compreender e interpretar sociologicamente estes fenmenos
singulares, perante a sua intensa visibilizao, circulao e produo global. A aproximao
sociolgica ao objecto proposto far-se-, genericamente, a partir de dois grandes eixos de
questionamento analtico, cada um deles, por sua vez, desdobrvel em mltiplas interrogaes
com elevadas potencialidades de problematizao terica e incurso emprica. O primeiro, a que
dedicaremos a primeira parte deste trabalho, corresponde s questes e perspectivas
sociolgicas mais amplas geradas em torno das corporeidades, nomeadamente das
corporeidades juvenis. Nele prope-se uma reflexo sobre as condies scio-histricas que, no
contexto da modernidade mais recente e, especificamente, em alguns dos seus segmentos,
trouxeram o lugar do corpo para o centro da vida social enquanto matria-prima significante.
Que processos sociais e que dinmicas culturais enquadram a actual centralidade do lugar
corporal enquanto matria significante e justificam a sua extensa visibilidade e valorizao
social? Que arqutipos o consubstanciam historicamente e quais as respectivas condies
sociais de produo? Que problemas epistemolgicos, tericos e metodolgicos a crescente
adeso cultural a tal significante pe sociologia? Que valor e sentidos o corpo jovem adquire
na sociedade contempornea? Que valor e sentidos o lugar do corpo adquire nas vivncias
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propriamente juvenis? Que prevalncia adquirem determinadas prticas mobilizadas com o
corpo e sobre o corpo entre os jovens portugueses de hoje e respectivas ancoragens sociais?
Que relaes se estabelecem entre as suas diferentes formas de mobilizao e as actuais
formas dos processos de transio para a idade adulta?
Este quadro de questes de partida remete para a aproximao ao contexto analtico que,
objectivamente, enquadra sociologicamente o lugar corporal na sociedade contempornea. Tal
contexto corresponde ao conjunto de variveis sociologicamente relevantes (condies
estruturais, institucionais, materiais e/ou ideolgicas de existncia) que inscrevem o fenmeno
social num determinado espao e tempo. Assim sendo, a construo desta linha de abordagem
supe a identificao dos elementos que, na realidade social, so pertinentes para a
compreenso sociolgica do objecto de estudo. Tal implica uma operao de recorte analtico da
realidade social, um processo de construo sociolgica que permite descobrir aquilo que os
respectivos autores [da aco social] no se propunham directamente comunicar ou, at, se
proporiam ocultar (Pais, 1993:523).
Nesta perspectiva, os contextos analticos acabam por traduzir os enquadramentos de
vida que norteiam as condutas5, aqui, especificamente, as que implicam a mobilizao do corpo
por parte de determinados segmentos sociais juvenis. Em ltimas instncia, a primeira parte
deste trabalho corresponder ao levantamento e anlise das condies objectivas que
circunscrevem os cdigos e lgicas simblicas que consubstanciam diferentes culturas
somticas (Boltantsky, 1975) partilhadas em diferentes contextos sociais, permitindo aceder
profundidade antropolgica das respectivas aces com o corpo e sobre o corpo na sociedade
de hoje.
Considerando a visibilidade social e a relevncia simblica adquirida pelo corpo marcado
entre os jovens de hoje, este foi seleccionado como universo observvel entre vrias
manifestaes juvenis onde o corpo se impe pela espectacularidade e expressividade de que
se reveste. Assim sendo, a segunda parte deste trabalho ser totalmente dedicada anlise
compreensiva da colocao de tatuagens e piercings, sociologicamente observada e interpelada
na sua utilizao mais radicalizada por parte de alguns jovens. Que jovens so estes? Quais os
respectivos ancoramentos sociais? Que configuraes de sentido associam aos seus corpos
extensivamente marcados por tatuagens e body piercing? Que constelaes de valores e
representaes sociais informam as suas mobilizaes mais radicalizadas? Que justificaes e
5 Comportamentos individuais orientados (em graus de conformidade ou transgresso diversos) por sistemas normativos, ou seja, maneiras de agir socialmente consolidadas e legitimadas que servem de referncias prescritivas s ditas condutas.
- 19 -
motivaes lhes esto subjacentes? Que estruturas simblicas orientam e justificam a sua
mobilizao? Que consequncias decorrem da sua utilizao no espao social?
Esta ordem de questionamento remete, por sua vez, para os contextos subjectivos dos
indivduos, simultaneamente produzidos e agenciados na vida social. Esses contextos
correspondem aos universos simblicos relevantes na prtica quotidiana dos indivduos,
consubstanciados em mapas de significao e idealizao normativa que orientam e justificam
as suas condutas pessoais e interpessoais, bem como as opes e decises que informam os
seus projectos de vida. Pode-se ainda adicionar neste tipo de contextos os elementos
situacionais associados a circunstncias sociais especficas que envolvem os indivduos no seu
quotidiano, nomeadamente em termos dos quadros de interaco nucleares e das redes sociais
em que se inscrevem (no quadro familiar, amical ou escolar, por exemplo), onde surgem figuras
que personalizam referncias significativas de aco.
A considerao destes elementos contextuais de ordem subjectiva ou vivencial permite dar
conta dos sentidos inerentes aos aparentes sem sentido dos excessos subjacentes aos
comportamentos radicais, muitas vezes remetidos para um quadro patolgico. Ao longo do meu
trabalho, senti efectivamente de perto o peso social das representaes maioritariamente
patologizadoras sobre este mundo e os seus respectivos agentes. Entre as vrias reaces que
a enunciao do meu trabalho suscitava, de fascnio e curiosidade pelo extico e o
desconhecido, salientou-se muitas vezes a repulsa por esse tipo de mutilaes. A minha me
chegou a advertir-me contra aquilo que ela achava ser um mundo perigoso e de gente
maluca, no realizando a necessidade e o interesse dele me aproximar.
Ora, ultrapassar este tipo de pr-conceitos pressupe ir alm da gramtica de recepo
historicamente firmada sobre estes corpos, e conhecer a respectiva gramtica de produo, o
que implica um trabalho etnogrfico de levantamento, compreenso e interpretao sociolgica
das constelaes simblicas associadas s marcas que alguns jovens fazem no corpo, enquanto
recursos de expresso identitria de pertena e diferenciao social. Movendo-nos no terreno
analtico do comportamento habitualmente tido como excessivo e transgressivo, localizado em
zonas sociais intersticiais e de margem, s a aproximao aos contextos subjectivos de quem o
agencia potencia a descoberta sociolgica acerca das margens do nomos dominante, bem como
das formas de produo de nomos marginais e da sua difuso na vida social.
Reconhecer aos indivduos a capacidade de produo dos seus prprios nomos e em
coloc-los no jogo da vida social, traduz uma perspectiva sociolgica onde a aco social e os
respectivos contextos subjectivos no so encarados como reflexo determinado pelas estruturas
objectivas. Os significados que os jovens atribuem s possibilidades concedidas pelas estruturas,
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assim como os sistemas normativos que informam os modos como lidam com as mesmas,
podem condicionar o curso das suas aces (Castro, 2005). Da que determinados
comportamentos sejam no um efeito (causal) de estrutura, mas uma reaco (contextual)
estrutura. A descoberta dos significados dos smbolos [qualquer objecto ou evento que se
refere a alguma coisa, o referente] passa pela compreenso dos significados que esses
smbolos tm para os indivduos, mas vai mais longe do que isso: passa tambm pela
compreenso do uso que os indivduos fazem desses smbolos. (Pais, 1993:522)
Nesta perspectiva, privilegiamos a anlise dos contextos subjectivos dos jovens
portadores de corpos extensivamente marcados, tomando-os como matria informante do
espao de possveis reactivos s estruturas (e concedido pelas mesmas), de forma a ver como a
sociedade se traduz, se gere e se negoceia nas opes referentes s condutas corporais dos
jovens portugueses. As diferentes modalidades de mobilizao do corpo por parte destes tornar-
se-o assim nos prprios instrumentos de uma leitura das condies sociais da sua produo e
representao. Ser, portanto, a partir da relao que se estabelece entre contextos subjectivos
e objectivos que nos propomos identificar, compreender e explicar sociologicamente uma
manifestao juvenil onde o corpo, na sua forma de apropriao, explorao e investimento,
assume protagonismo expressivo, a partir dos significados simblicos de que se reveste em
determinadas condies objectivas.
Ensaiar este olhar implica partir de um enquadramento terico geral e alargado, com
incurses no que tem sido produzido no mbito quer de uma sociologia do corpo em
emergncia, quer de uma sociologia da juventude em mutao paradigmtica, onde as atenes
se dirigem para uma perspectiva culturalista sobre as suas manifestaes sociais e o
funcionamento dos processos de transio para a idade adulta. O objecto de estudo e a
respectiva problemtica ganham assim consistncia analtica, na medida em que tais incurses
permitiro a articulao de um campo de reflexo que convoca eixos tericos como as
configuraes actuais da transio para a idade adulta, as novas formas e dimenses
estruturantes das sociabilidades juvenis, os novos recursos de construo identitria orientada
por noes de individualidade e de diferena no quadro da actual dinmica de individualizao
social, o actual lugar do corpo como territrio existencial central na experincia social juvenil,
bem como acessrio privilegiado na produo, representao e apresentao social de
identidades e estilos de vida entre os mais jovens.
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3. Itinerrio de um percurso
Boa parte dos socilogos interessados pela investigao sobre o significado cultural dos
hbitos, tcnicas ou projectos corporais tendem a adoptar sobre estes uma aproximao
ahistrica. As vrias sensibilidades sobre as modificaes corporais no permanecem, contudo,
encapsuladas dentro de quadros especficos a perodos histricos particulares. Elas so produto
no apenas de dinmicas sociais sincrnicas, como de dinmicas sociais diacrnicas,
associadas a processos histricos mais amplos. Ignorar as tendncias e condies no tempo
que influenciam a forma como os indivduos vem o seu corpo como lugar apropriado a
determinados tipos de modificaes poder revelar, portanto, uma lacuna de compreenso
sociolgica. Da a apresentao dos dados relativos ao caso investigado comear (Parte II),
justamente, por contextualizar em termos histricos os usos que tm sido dados a adereos
invasivos e permanentes no corpo, com os seus respectivos cdigos culturais de apropriao
(ponto 1).
Embora as suas formas e contedos tradicionais estejam, actualmente, sujeitos a um
profundo processo de ressemantificao, dando origem a novos usos investidos de novos
significados sociais, o facto que as tradicionais constelaes simblicas que envolvem as
marcas corporais permanecem enraizadas na memria colectiva das sociedades ocidentais,
insistindo em informar processos de categorizao e de estigmatizao sobre os seus novos
utilizadores. A pluralidade estratigrfica de constelaes de sentidos atribudos s marcas
corporais , com efeito, uma evidncia desta pesquisa, conforme ser analisado no ponto 2,
onde sero identificadas as condies que permitiram a sua actual disseminao social, bem
como o espectro de atitudes que as marcas corporais suscitam, em correspondncia com os
significados atribudos, perfis de clientelas que as adoptam e respectivos usos que lhes do.
importante que no se trate as marcas corporais, actualmente, como redutos de
sistemas de significao unos e estagnados, convencionados e cristalizados no tempo, mas
como formas iconogrficas cujos investimentos simblicos se transformam no decorrer do
prprio processo de inscrio corporal desses adereos ao longo do tempo. Nesta perspectiva,
depois de caracterizado o universo scio-simblico dos jovens praticantes e no praticantes de
marcas corporais em Portugal, passaremos a conhecer as trajectrias, os contornos e os limites
que circunscrevem a construo de projectos (extensivos) de marcao corporal entre os jovens
portugueses, dando conta dos respectivos contextos sociais de descoberta, de experimentao e
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de formulao (ponto 3). S depois, se tomar em mos o duro empreendimento de anlise e
interpretao da densidade simblica subjectivamente incorporada nas marcas, desde o seu
grau zero de significao, enquanto investimento esttico (ponto 4), passando pela sua valia
enquanto suporte de referncia fundamental na construo e expresso social de uma
determinada forma de identidade pessoal (ponto 5), at chegar sua configurao de sentido
socialmente mais comprometida, enquanto expresso corporal de uma forma de existncia que
quer ver socialmente reconhecido o espao de estilos de vida escapatrios relativamente s
formas estilsticas disponibilizadas de forma mais massificada e, portanto, mais normativas e
institucionais (ponto 6).
Considerando que o corpo marcado um corpo dotado de uma densidade semitica
acrescida no s enquanto suporte expressivamente investido de significados por parte de
quem nele inscreve signos, mas tambm suporte que se d a ler, passvel de ser interpretado,
classificado e categorizado por parte de quem com ele se confronta , procurou-se compreender
as gramticas de produo intracorporalmente utilizadas, isto , os investimentos expressivos
subjacentes aos usos das marcas corporais por parte de quem as inscreve no seu prprio corpo
(pontos 4 a 6). Que sentidos subjectivos so investidos nas marcas no mbito da relao que o
sujeito constri com o seu prprio corpo? De que forma o projecto de marcao social se
relaciona com a identidade pessoal e social do seu proprietrio? Em que medida ultrapassa a
mera configurao esttica de um projecto corporal e vai mais alm, expressando ticas e
polticas do corpo e da vida relativamente especficas?
Dadas as caractersticas materiais e simblicas que particularizam as marcas corporais, a
deciso pelo seu uso mais ou menos extensivo e mais ou menos visvel no se traduz,
efectivamente, num mero acto de consumo instrumental, como se de um vulgar adorno de pr e
tirar se tratasse. Como veremos, a marcao do corpo com recurso a tatuagens e body piercing,
nomeadamente quando utilizada de forma mltipla e extensiva, corresponde a um projecto
corporal que agrega vrias prticas investidas de um valor esttico particular, bem como de um
importante valor simblico enquanto referente expressivo na estruturao da identidade pessoal
e social do indivduo, associada a projectos identitrios e de vida caractersticos, e indutora de
efeitos sociais considerveis.
Posteriormente colocado a um nvel intercorporal, prestar-se- ento ateno
problemtica dos efeitos sociais decorrentes de ser portador de um corpo extensivamente
marcado. Importa conceder uma ateno primordial ao sentido dos signos corporais, aos seus
contedos representativos, mas tambm aos seus efeitos prticos. Interessa conhecer as
significaes que se escondem por detrs dos smbolos incorporados e excorporados, mas
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tambm procurar as foras que eles captam, que eles encerram, e atravs de que mecanismos
so susceptveis de desencadear determinados efeitos. Trata-se de no ficar apenas pela
interrogao acerca da carga semntica das foras, mas tambm sobre o poder enrgico dos
signos.
Nesta perspectiva, e dada a pluralidade de universos simblicos associados ao corpo
marcado, informando gramticas de produo e as gramticas de recepo potencialmente
descoincidentes, importa salientar o papel que as marcas asseguram como recursos de
classificao e categorizao social dos indivduos e respectivas consequncias a nvel da
interaco social. Identificar as gramticas de recepo e compreender a respectiva filognese,
bem como os impactes que produzem sobre a identidade e o comportamento social do sujeito
marcado, torna-se, portanto, num objectivo da pesquisa (ponto 7). Enquanto tradicional signo
expressivo de processos simultneos de excluso e incluso social, em que medida projectos de
marcao corporal potenciam a criao de biossociabilidades, ou seja, de cumplicidades sociais
com epicentro no corpo? Em que situaes sociais tal ocorrer? Por outro lado, de que forma
que perturbam as relaes sociais do indivduo, ao nvel da sua aco no seio dos quadros de
interaco nuclear em que quotidianamente se v envolvido? Que estratgias de gesto,
ocultao e/ou provocao social induz?
Por fim, no ltimo ponto deste trabalho (ponto 8), enfatizar-se- um dos efeitos
culminantes de alguns projectos de marcao corporal, e que respeita ao seu prolongamento em
termos profissionais. O que leva um usurio de tatuagem e/ou body piercing a passar do estatuto
de consumidor para o estatuto de produtor? Que trajectrias, valores, motivaes e expectativas
esto subjacentes opo por este tipo de prtica enquanto actividade profissional?
Em suma, a anlise que se prope neste trabalho passar por uma apreciao
compreensiva de como foram sendo construdas as imagens do corpo marcado, como e por qu
estas figuras arquetpicas so (re)incarnadas no mundo contemporneo em corpos particulares,
e ainda como estes corpos particulares funcionam no espao social, incluindo as interaces
com outros actores incorporados. Para tal, partir-se- de uma noo incarnada do actor social,
de uma anlise que parte da vivncia e experincia do corpo do ponto de vista dos sujeitos que o
portam, enquanto matria viva e vivida no espao social.
Isto, claro est, sem deixar de entrar em linha de conta com as transformaes sociais
mais amplas que fizeram emergir o recente interesse social e sociolgico pelo corpo, e que
enquadram as experincias corporais nas sociedades contemporneas. Da a necessidade de
localizar o sentido histrico do corpo contemporneo nas suas transformaes culturais no
tempo e no espao, de averiguar as condies sociais que tornaram possvel uma srie de
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prticas e representaes corporais na contemporaneidade, apostando numa perspectiva
voltada para a apreenso das condies de possibilidade que fazem emergir, em cada poca, as
relaes e as oposies entre os corpos, suas designaes e suas especificidades (Parte I).
Pois o corpo , ele prprio, um processo. Resultado provisrio das convergncias entre tcnica
e sociedade, sentimentos e objectos, ele pertence menos natureza do que histria
(SantAnna, 1995:12). S deste modo se poder compreender a historicidade no apenas do
corpo, mas tambm da constante remoralizao da vida quotidiana, bem como da relao do
indivduo consigo prprio e com a sociedade na qual emerge. Porque o indivduo, ao modificar
o seu corpo, mais ou menos reflexivamente, estar inevitavelmente a criar novos elos simblicos
entre si prprio e o corpo social, numa luta corpo a corpo entre o presente, o passado e o futuro
de ambos.
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PARTE I
CORPOREIDADES JUVENIS:
QUESTES E PERSPECTIVAS SOCIOLGICAS
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I. O LUGAR DO CORPO NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA: ARQUTIPOS
CORPORAIS E CONDIES SOCIAIS DE PRODUO
1.1. Um lugar de tenses: entre o culto e a obsolescncia do corpo
O corpo , hoje, numa propriedade de primeira ordem, objecto de cuidadas atenes e
investimentos quotidianos, capitalizados sob a forma de beleza, seduo, exuberncia, sade,
vitalidade, destreza, emoo, poder, contestao, etc. tema de predileco no discurso social,
como se pode verificar na proliferao pblica dos discursos estticos, tcnicos, jurdicos, morais
ou polticos a propsito da multiplicidade das suas aparncias, gestos, constrangimentos,
potencialidades, alteraes. matria de intensa mediatizao sob a forma de imagem,
enquanto suporte de atraco do olhar e de devoluo expressiva de quadros simblicos e
estilos de vida em presena na sociedade actual.
A salincia e o valor social que lhe vm sendo conferidos, bem como a crescente
solicitao e exigncia a que as suas prticas e aparncias tm sido sujeitas, valeram ao corpo o
despertar inaugural do interesse sociolgico, traduzido, nomeadamente, em qualificativos como
corporeista (Maisonneuve, 1976), somtica (Turner, 1996 [1984]) ou somatfilas (Pais, 1998:45)
para designar a sociedade contempornea ocidental. So designaes que convocam a hiper-
visibilidade que tomou na vida social, quer enquanto lugar destacado de investimentos esttico,
poltico, cultural ou cientfico (Turner, 1992:12), quer enquanto matria reificadora de um
conjunto de valores expressivos em ascendncia como sejam, por exemplo, o primado do
individualismo e da diferena, do hedonismo e da ludicidade, da estetizao e da
experimentao.
A histeria do corpo que se vive actualmente (Cruz, 2000), com a proliferao social de
discursos, imagens e actividades corporais em correlao com inquietaes vivenciais ou
institucionais quase obsessivas com essa dimenso da vida, costuma ser tomada por referncia
a uma certa discrio ou ausncia que o tem caracterizado historicamente. No quer isto dizer
que se esteja perante uma novidade histrica absoluta. J houve, no passado das sociedades
ocidentais, tempos de grande exaltao ou refreamento do corpo, como sucedeu, por exemplo,
sob a gide do perodo barroco ou vitoriano; e mesmo quando, no medievo, se pregava ao seu
desprezo e mortificao, houve sempre quem lhe prestasse ateno, na ptica da aparncia, da
produtividade e/ou do prazer carnal.
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O corpo, enquanto lugar de mediao da presena do sujeito no mundo, nomeadamente
no mundo social, sempre foi investido, na sua silhueta, cinestesia e sensorialidade, de
estratgias aloplsticas e/ou autoplsticas6 representativas do contexto scio-simblico que
incorpora. De facto, para alm dos recursos que permitem a satisfao das necessidades
bsicas de alimentao, higiene e proteco do corpo, a histria tem registado a produo e
mobilizao de mltiplos dispositivos e tcnicas que permitem a manipulao da sua morfologia
e fisiologia, no sentido da conservao, correco ou do aperfeioamento das suas formas ou
funes, da experimentao das suas fronteiras ou da ampliao das suas capacidades
(Maisonneuve & Bruchon-Schweitzer, 1999; Vigarello, 1985, 1988, 2001 [1978]; 2004).7
Desde toda a gama de adornos mais ou menos invasivos (tatuagens, escarificaes,
perfuraes) s tcnicas de circunciso ou exciso de rgos, das tecnologias de modificao
da sua silhueta (corpetes, prteses, dietas e ginsticas vrias, de natureza mais ldica ou
espartana) aos recursos utilizados para domesticar as suas secrees (cosmticos, perfumes,
ps e unguentos), das tcnicas para induzir o seu relaxamento (yoga, tai chi, massagens,
meditao ou aromoterapia) a tantas outras recorrentes na intensificao das sensaes que
proporciona (produtos afrodisacos, alucinognios e outros produtos psicoactivos, actividades
fsicas como os desportos radicais ou de aventura), ou no reforo do seu desempenho
(produtos indutores de energia fsica, sexual ou intelectual, de natureza farmacolgica ou
naturista), estas so apenas algumas das opes que formaes sociais diversas sempre
dispuseram, sob a mais variada forma, para registar no corpo os imaginrios e os laos que
unem ou desunem os seus membros numa dada unidade de tempo e de espao.
Ao contrrio da tese da ausncia histria e, portanto, da actual (re)descoberta do corpo,
pode-se concordar com Helena Neves quando sugere que a presena do corpo sempre foi
espantosamente obsessiva na histria do mundo ocidental. No somente no domnio
ideolgico, mas tambm no campo objectivo das foras, meios e relaes de produo e
6 Maisonneuve & Bruchon-Schweitzer (1999) designam de prticas aloplsticas os investimentos corporais que mobilizam o exterior do corpo sem nele intervir de forma indelvel, como o vesturio, os cuidados de higiene, a maquilhagem, o tratamento dos cabelos, barba ou outras pilosidades, por exemplo. Reservam, por sua vez, a designao de prticas autoplsticas para as mobilizaes do corpo cuja interveno acaba por reconfigurar mais ou menos radicalmente a sua morfologia ou fisiologia, incluindo nesta categoria as tradicionais inscries corporais como as tatuagens ou outros adornos invasivos, ablaes, escarificaes, incises, at s mais sofisticadas tcnicas e acessrios de modificao, correco ou manuteno corporal. 7 Sem pretender fazer uma histria do corpo, a incurso histrica desenvolvida neste captulo no corresponde seno a um exerccio exploratrio no sentido de situar alguns arqutipos que moldaram o pensamento contemporneo sobre o corpo. Para uma mais aprofundada arqueologia das imagens corporais ao longo da histria, ver Ferguson 1997a, 1997b; Braunstein & Ppin, 2001 (1999); Le Breton, 1991 (1985), 2000 (1990), exaustivos na genealogia que fazem para o corpo moderno; Synnott (1993) tem uma interessante abordagem da histria dos sentidos, respectiva utilizao e representao social; para uma abordagem histrica de diversas figuras e recursos de modificao das corporeidades, ver antologia organizada por SantAnna, 1995; e Poirier, 1998 (1990); para as mais recentes transformaes, ver Travaillot, 1998.
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consumo (2004:66), enquanto lugar de inscrio de distines sociais vrias (de estatuto social,
classe, sexo, idade, etnicidade, raa, etc.), ou como fora de produo, matria que
consumida e organismo que consome. O que acontece actualmente, na verdade, que um
conjunto de factores veio transformar a estrutura social e cultural da actual cultura somtica
(Boltantsky, 1975) relativamente do passado8, alterando as condies de socializao
(incorporao), de experincia (corpo vivido) e de reflexividade (corpo pensado) corporal das
novas geraes nas sociedades contemporneas, incluindo Portugal, condies essas
favorveis desnaturalizao e individuao crescente da relao dos sujeitos com os seus
prprios corpos e com os corpos dos que os rodeiam.
Quer isto dizer que o crescimento exponencial do valor e deferncia social a uma certa
ideia de corpo malevel e individuado que se pressente nas sociedades contemporneas
ocidentais e que incarna simbolicamente os seus membros, esse sim, um fenmeno
relativamente recente. Se a preocupao com os cuidados corporais, no passado, era prpria
das minorias poderosas (Crespo, 1990:448), j que o indivduo comum no tinha acesso a
recursos e a tcnicas susceptveis de criar um corpo esbelto e bem nutrido, a emergncia
recente de uma imensa indstria de engenharia genrica e de design corporal veio facilitar o
acesso a este tipo de tecnologias a segmentos sociais at aqui dele excludos, promovendo
simultaneamente a circulao de um quadro simblico perante o corpo favorecedor do
escoamento alargado e contnuo das tcnicas e produtos colocados no mercado ao seu servio.
O corpo nem sempre foi amado como hoje. O seu valor social nem sempre foi o mais
positivo. Pelo contrrio, o corpo tem sido uma ideia historicamente "odiada" e desde h muito
remetida para um lugar simblico menor (Le Breton, 1999). Desde o incio da especulao
filosfica aos tempos mais modernos, passando pelo pensamento teolgico cristo, a carne e os
rgos dos sentidos foram sempre colocados como alteridade radical e de estatuto simblico
inferior perante a alma, o esprito, a razo ou a mente. O dualismo reificado no
pensamento ocidental, e que veio a enformar e informar as atitudes dominantes sobre o corpo
durante largos sculos e que persiste ainda com fortes resduos, instituiu de forma muito
profunda e enraizada o corpo como um lugar a controlar, a disciplinar, a conter.
8 A cultura somtica corresponde a um conjunto de regras, cdigos e condutas produtivas, perceptivas e consumistas que tm o corpo como avatar e que resultam, segundo o autor, de condies sociais objectivas. Nas suas palavras, a construo do corpo faz-se em primeiro lugar pelo sistema de relaes entre o conjunto de comportamentos corporais dos membros de um mesmo grupo e, em segundo lugar, pelo sistema de relaes que unem aqueles comportamentos corporais e as condies objectivas de existncia prprias quele grupo, relaes que no podem em si mesmas ser estabelecidas a no ser () que se proceda anlise e descrio somtica prpria desse grupo (Boltantsky, 1975:208).
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Na filosofia clssica, a psique (compreenso ou alma) ope-se soma (corpo),
imperfeito, corruptvel, perecvel, equivocado, um fardo imperfeito do qual importa desembaraar,
uma priso da qual convm se libertar, situao s totalmente possvel com a morte. A alma,
apesar de presa no corpo, tem a nobreza de constituir a verdadeira essncia do indivduo, s
encontrada no mundo das ideias, no mundo inteligvel, distinto do mundo sensvel, mundo dos
sentimentos e paixes que conservam o Homem longe da razo. Da Plato insistir nas dietas,
no exerccio fsico e na meditao no s como dispositivos para educar o corpo, para purg-lo
dos seus riscos, mas tambm para preparar o futuro enquanto via de evaso da carne.9
O dualismo entre alma e corpo existente no pensamento grego foi prolongado no
pensamento medieval cristo, aqui restaurado sob a forma de oposio entre esprito e carne,
a parte maldita da condio humana, nascida e votada ao pecado, doena, degradao,
morte, ao contrrio do primeiro, fadado perfeio e eternidade. Enquanto templo do esprito,
tudo o que se fizesse matria atingia o primeiro e vice-versa. nesta ptica que a tortura, a
dor, a abstinncia ou outras formas de disciplina corporal eram vividas como formas de
purificao ou de punio do esprito. No mesmo sentido, a dissecao do corpo humano com
vista observao era veementemente repudiada, tida como profanao do templo. O olhar
cientfico ainda no detinha a legitimidade social necessria para faz-lo. A exaltao do corpo,
atravs da experimentao dos seus limites, da explorao das suas potencialidades ou da
interveno no sentido de alargar o seu conhecimento, era religiosamente vedada enquanto
manifestao derivada do pecado original.
O dualismo prefigurado na ideia de corpo desde os filsofos clssicos e telogos
medievais acabou por ser consagrado ao longo do sculo XVII, no pensamento cartesiano.
Descartes (1596-1650) desliga, de uma vez por todas, a inteligncia (res cogitans) da matria
(res extensa), um mundo a dominar pela sua impossibilidade de acesso ao conhecimento
verdadeiro. O clebre enunciado penso, logo existo pressupe o privilgio do cogito sobre o
corpo, assumindo que o sujeito s chega sua subjectividade abstraindo-se da sua carne e
reconhecendo-se enquanto ser vivo atravs da sua capacidade pensante. O corpo cartesiano
concebido como uma mquina, fbrica de nervos e msculos, organismo que funciona
controlado e disciplinado segundo as leis exactas da mecnica. Isolado da subjectividade do
sujeito, o corpo torna-se um objecto de curiosidade em si. Desde Vsale (1514-1564) e a
empresa iconoclasta dos primeiros anatomistas que desafiam os limites da pele para chegar
9 H que no esquecer como a cultura grega, na prtica, no se dissociava do prazer carnal, o gozo do mundo no era interdito apesar do embarao da carne.
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dissecao do corpo, a representao mdica do corpo deixa de ser solidria de uma viso
simultnea do sujeito incorporado (Le Breton, 1993).
O corpo, outrora pensado como priso da alma (Plato), templo do esprito (So Paulo)
ou mquina orgnica (Descartes) por parte das mais elevadas instncias sociais de produo
reflexiva a teologia e a filosofia era, no entanto, vivido ao nvel rasante da vida quotidiana
das pessoas comuns como algo naturalmente existente, um dado adquirido to banal que se no
questionava. S se tornava presente na conscincia dos sujeitos quando fraquejava, sendo
mesmo a doena e a morte vivenciadas como situaes relativamente familiares e habituais,
encaradas como componentes inevitveis do ciclo de vida, enquanto forma de punio divina, no
caso de doena, ou de transio para um estdio mais afortunado, em caso de morte (Crespo,
1990:119-176; Neves, 2004:78).
J longe dos naturalismos de natureza fsica ou metafsica do passado, hoje o corpo
brindado com todo um conjunto de novas e inmeras possibilidades de pensar, sentir e operar
sobre ele prprio, passando a suportar novos papis, bem como novas presses sociais e
exigncias pessoais: pensado e vivido j no como um destino intocvel e desprezvel, mas
como um valioso acessrio de presena no mundo que o indivduo detm e sobre o qual
susceptvel de poder agir (Le Breton, 1999:42; 2000; 2004). Passa a ser entendido j no como
suporte mecnico, maneira da medicina, como entrave moral, maneira da teologia, ou
exemplo da evoluo da espcie, maneira da biologia. Mas sim como algo que se justape
noo de pessoa e d conta das transformaes do humano (Vale de Almeida, 2004:30). E se
algo caracteriza o actual ser humano , justamente, o notrio acrscimo na conscincia e nas
capacidades que este detm de poder manipular os seus limites e potencialidades corporais.
A grande diversidade de prticas em que se empenham presentemente cada vez mais
indivduos, quer do ponto de vista da produo, quer da predisposio para o consumo, com o
objectivo de actuar com e sobre o corpo, fazendo dele o meio e o fim da aco em matria de
beleza (corpo belo), sade (corpo so), vitalidade (corpo enrgico), higiene (corpo limpo) ou
sensaes (corpo emotivo), traduz uma dinmica social sobreinvestimento corporal que no
encontra paralelo no passado. Nas palavras de Agostinho Ribeiro, hoje cada vez mais pessoas
investem no corpo, na esperana de obter dele mais prazer sensual e de lhe aumentar o poder
de estimulao social (2003:7).
Muitos autores descrevem este fenmeno como um novo culto10, num tempo em que as
figuras celebradas tendem no a ser homens ou mulheres de pureza ou de virtude, mas
10 Ver Barreiro, 2004a:139; Baudrillard, 1975:212; Castro, 2003:15; Lipovetsky, 1989 [1983]:57, 1994 [1992]:60; Pais, 1994b:142, 1998:34; Perrin, 1985; SantAnna, 2001:108-109; Varga, 2005:229-231.
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portadores de corpos ideais, corpos de sonho, associados a vidas de sucesso e celebridade:
estamos menos inclinados imitao de Cristo que imitao dos cosmticos e modas da
Princesa Diana (Shusterman, 1988:338). Numa poca saturada pela imagem, nomeadamente
por imagens corporais (Maffesoli, 1990a, 1990b, 1993)11, o corpo assume um papel destacado
na vida social enquanto destino icnico (Maisonneuve, 1976:559), lugar principal de figurao
do actor social.
A actual devoo dirigida ao corpo habitualmente aferida, em termos analticos, a partir
dos paralelos estabelecidos entre, por um lado, a apregoada crise das grandes narrativas que
radicavam em iderios de colectivismo societal e o enfraquecimento dos sistemas de valores
transmitidos pelas religies tradicionais e dominantes, de orientao hegemonicamente crist,
dotados de uma ampla histria de regulao e controlo, de estriamento do territrio corporal nas
sociedades ocidentais (Coakley, 1997; Mellor & Shilling, 1997; Synnott, 1993); e, por outro lado,
a proliferao social do iderio individualista e o pronunciamento de novas instncias de
(con)sagrao, associadas a novas formas vivenciais de religiosidade, mais difusas,
fragmentadas e politestas (Diaz-Salazar, Giner, Velasco, 1994), frequentemente subordinadas a
aspiraes individuais (realizao pessoal, direitos privados, iniciativas prprias, individualidade
e autenticidade) e regidas pelos princpios do do-it-your-self & for-your-self.
Neste contexto, a carne acaba por ser absorvida por um movimento algo paradoxal: ao
mesmo tempo que se v secularizada liberta dos tradicionais propsitos cristos com que era
mobilizada enquanto invlucro transitrio a penalizar e a disciplinar tendo em vista fins espirituais
mais etreos e elevados , v-se ela prpria sacralizada, j no como templo da alma, essa
entidade mstica, etrea e imortal, mas como templo do eu (Lipovetsky, 1994 [1992]:60),
realidade bem mais mundana, sensual e perecvel: a sua redescoberta [do corpo], aps uma
era milenar de puritanismo, sob o signo da libertao fsica e sexual, a sua onmipresena (em
especial, do corpo feminino ver-se- por qu) na publicidade, na moda e na cultura de massas
o culto higinico, diettico e teraputico com que se rodeia, a obsesso pela juventude,
elegncia, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, prticas sacrificiais que com ela se
conectam, o Mito do Prazer que o circunda tudo hoje testemunha que o corpo se tornou
objecto de salvao. Substitui literalmente a alma, nesta funo moral e ideolgica (Baudrillard,
1975:212).
11 Quer atravs da presena ubqua dos media, quer mesmo na esfera privada, com todos os meios de registo e reproduo audiovisual disposio na domesticidade do lar (mquina fotogrfica, telemvel com cmara incorporada, cmara de filmar, vdeos e DVD, computador, etc.).
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A dessacralizao da relao dogmtica que mantinha com Deus convertida em
ressacralizao na relao que passa a ter com o indivduo. O desejo de salvao e de
imortalidade transposto da alma para o corpo, apropriado como signo celebratrio de
distintividade individual e auto-identidade (Giddens, 1997 [1991], Shilling, 1993). No restringindo
a dimenso do sagrado ao fenmeno religioso que no seno uma das suas possveis
transladaes e conceptualizando-o como um princpio supremo em torno do qual as pessoas,
com crena, devoo e respeito, do ordem e coerncia sua vida quotidiana, se orientam e se
re-ligam nas prticas e valores que estruturam o seu estilo de vida, o corpo eleito, se no como
o actual totem por excelncia, pelo menos como mais uma entre outras das dimenses sagradas
na contemporaneidade. Isto na medida em que em torno dele identificam a criao de novos
espaos privados e culturais de re-ligao social e cultural, que coadjuvam, deste modo, nas
tarefas de unificao e coerncia biogrfica outrora tradicionalmente preenchidas pelas
instncias religiosas.
Se o corpo tende a ser assumido como instncia de salvao do indivduo contemporneo,
h que cuid-lo o melhor possvel para que este ltimo se sinta bem na sua pele, h que
explor-lo para que se descubra a si prprio, h que investi-lo para que se exprima
integralmente. Os discursos que emergiram sobre o corpo e que entopem o espao pblico
mediatizado funcionam como uma cartilha de mandamentos (bblicos) que instituem um conjunto
de normas corporais (comer moderadamente, evitar gorduras, sal e doces, praticar exerccio
fsico, no fumar, no beber lcool, praticar sexo seguro, etc.): durante sculos o corpo foi
considerado o espelho da alma. Agora ele chamado a ocupar o seu lugar, mas sob a condio
de se converter totalmente em boa forma. () Vaidosa e dominadora, a boa forma talvez seja
mais obsessiva e apressada em seus propsitos do que j o fora a alma. Pois a boa forma sabe
que no tem vida eterna. (SantAnna, 2001:108-109).
E quem diz boa forma, diz boa aparncia, equilbrio energtico e emocional, bem-
estar fsico e psicolgico, etiqueta e saber estar, tudo designaes que pressupem um tipo de
relao dos indivduos com os seus prprios corpos cuja preocupao central a respectiva
modelao em conformidade a determinados cnones socialmente institudos do que ser
belo, saudvel, equilibrado, bem educado. Cnones de uma corporeidade modal, cada vez
mais conotada com um corpo etariamente codificado sob a designao de corpo jovem,
imaginrio socialmente produzido, reproduzido e consumido, numa palavra, celebrado, como
modelo corporal de referncia e reverncia na contemporaneidade, como se ver mais adiante.
Mas do mesmo modo que fcil encontrar indicadores do sobreinvestimento no corpo
prprio da sociedade contempornea, tambm h indcios que vo exactamente no sentido
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contrrio, do seu subinvestimento em vrias esferas da vida quotidiana (no trabalho, no lazer, na
domesticidade do lar, na circulao entre estas esferas, etc.). Paradoxalmente, o valor social do
corpo tem aumentado na exacta medida da sua subutilizao, fruto de estilos de vida mais
sedentrios, que o distrofiam ou o atrofiam, da criao de cada vez mais dispositivos
tecnolgicos (meios, instrumentos e mquinas) responsveis pelo redimensionamento das suas
capacidades morfolgicas, fisiolgicas, sensoriais e cognitivas (Babo, 2000, 2001, 2004;
Barreiro, 2004a; Guibentif, 1991; Le Breton, 1999; SantAnna, 2001:29-54). Nas palavras de Le
Breton, nunca como hoje nas nossas sociedades ocidentais os homens utilizaram to pouco o
seu corpo, a sua mobilidade, a sua resistncia. () At as tcnicas do corpo mais elementares
como andar, correr, etc., recuam consideravelmente e s raramente so solicitadas na vida
quotidiana a no ser como actividades de compensao e de cuidado de sade (1999:14-15).
So efectivamente inmeros os recursos tcnicos e tecnolgicos que, actualmente,
resultam na reduo do uso do corpo, ao mesmo tempo que modificam a sua arquitectura e
reajustam a conscincia que o sujeito tem de si e do mundo: desde as prteses facilitadoras
(carro, elevador, escadas ou tapetes rolantes), extensivas (telemvel, computador porttil,
controlo remoto, pagers, acessrios na prtica de desportos radicais como pranchas, skates,
patins, etc.) ou substitutivas das suas funes (robots, organismos sintticos miniaturizados que
colonizam o corpo sob a forma de implantes como pacemakers, vlvulas, veias de plsticos,
implantes auditivos, etc.), at s novas tecnologias que pura e simplesmente o excluem,
transformando-o em vestgio, em sintoma (fertilizao in vitro e outros procedimentos
tecnolgicos de reproduo humana, clonagem e outras manipulaes genticas como a
seleco do sexo, peso ou a cor dos olhos da criana esperada, proporcionadas pela engenharia
dos designer babies).
Hoje, efectivamente, pode-se intervir no apenas sobre o soma, mas tambm sobre o
gene, um patrimnio que at ento correspondia to-somente herana transmitida pela famlia,
um destino biolgico inescapvel: o corpo real, esse, vai sofrendo um processo que deixou de
ser uma simples operao protsica para se tornar num corpo manipulado, definindo-se pela sua
capacidade de incorporao de componentes alheias carne mas que a potenciam nos seus
mltiplos desempenhos. () A mutao do corpo protsico em corpo hbrido d-se, porm, na
ruptura tecnolgica que o ciberntico vem proporcionar (Babo, 2004:25-31).
O crescimento exponencial da indstria de design e revitalizao corporal, de
transfigurao do corpo e manipulao gentica, vai, portanto, bastante alm do imprio das
vaidades (Couto, 2000:254), com a medicina, a informtica e a engenharia gentica a
associarem-se na produo de uma multiplicidade de tcnicas e tecnologias que invadem cada
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vez mais a vida quotidiana. Tomando caminhos variados, avanam como nunca nas conexes
entre o bios e a tecnologia, do biolgico com o maqunico, nas interfaces do electrnico,
informtico e telemtico com o organismo humano, o que vem produzir efeitos no apenas em
termos de possibilidades de remodelao do corpo, mas tambm na reconfigurao das atitudes
sociais perante essa dimenso da vida (Miranda, 1998; Santaella, 1998). Os problemas tico-
polticos recentemente gerados em torno das noes de vida e humanidade, da propriedade
do corpo do prprio, do carcter informacional da sua conformao gentica, da fragilidade da
separao entre o interior e o exterior, entre o tecnicamente modificado e o naturalmente
desenvolvido, etc., so disso exemplo. Fora as consequncias ao nvel fenomenolgico, ao nvel
da experincia do mundo, nomeadamente do mundo social, por parte dos indivduos.
A tecnologia invade e implode o corpo para que o homem possa ser projectado ao
exterior, alm, muito alm dele mesmo, formula Couto a este propsito (2000:112). O
sentimento de insuficincia que esse conjunto de tcnicas e tecnologias promove sobre o corpo,
culmina na vontade de ultrapassar os seus limites, ou at mesmo de o liquidar, apostando em
ultrapassar a sua fronteira ltima, o seu desaparecimento fsico, tornando-o vtreo, virtual,
fractal, transparente, utpico (Alves & Barbosa, 2000). Ou seja, h actualmente todo um
universo tcnico e cientfico que constata a precariedade e a imperfeio do corpo e que impele
sua progressiva obsolescncia, chegando a ser ambicionado, como futuro utpico, por parte de
certos adeptos da cybercultura para quem o corpo, lento, frgil, limitado e perecvel, no est
altura das capacidades exigidas na era da informao, a sua supresso radical, a sua total
desmaterializao (Dozois, 1998; Farnell, 1999; Stelarc, 1999): em sociedades devotadas a
laicizar a vida e a reconhecer a importncia do corpo, uma parte daquela antiga paixo pela alma
foi transmutada na busca por um corpo transparente, imaterial, eterno, capaz de se movimentar
por muitos espaos e ultrapassar todas as fronteiras. () Depois do direito ao rejuvenescimento,
o direito permanncia (SantAnna, 2001:24).
O objectivo final desses cybercultores ser j no apenas a cyborgisao do corpo12, j
em curso, ou a antropormofizao da mquina, estilo Robotcup, mas a prpria desincorporao
da vida humana, tentando a sobrevivncia e ligao desta com o mundo sob a forma de uma
espcie de espectro informacional, em ruptura com os limites existenciais do indivduo, o
12 O termo cyborg, cybernetic organism, designa essa fico diversa e imprecisa que corresponde ao organismo humano hibridado com a mquina com vista a um aumento de eficcia num domnio particular (Le Breton, 1999:14-15). Outros autores apelidam tambm esta mesma figura corporal de corpo binico ou homem-satlite, uma figura digital que encontra a sua existncia no domnio simblico da comunicao e da linguagem trocada no ciberespao (Couto, 2000). Para uma reflexo sobre o cyborg ou o organismo ciberntico ver, entre outros, o clssico de Haraway (1991), ou o texto de Tucherman (2000). Ver ainda o n. 33 da Revista de Comunicao e Linguagens, organizado por Marcos & Cascais (2004), sobre o tema Corpo, tcnica, subjectividades.
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nascimento e a morte: a prtese mais radical do corpo que poderemos na verdade imaginar,
diz-nos Teresa Cruz, ser aquela que vir, no rectificar ou ampliar a corporeidade, mas sim
rectificar a corporeidade em incorporeidade, garantindo-lhe atributos desde sempre sonhados
pela metafsica e pela teologia imperecibilidade, omniscincia e perfeio. () Atravs da
construo de uma inteligncia e de uma sensibilidade artificiais, que os actuais sistemas de
realidade artificial comeam a anunciar (Cruz, 2000:366).
Pode-se encontrar, de facto, nesta concepo de corpo obsoleto, os contornos simblicos
renovados que, desde os pr-socrticos, configuravam a atitude sob suspeita perante o corpo,
partilhada por um certo segmento social mais erudito e intelectualizado, outrora ligado aos
filsofos da metafsica e da teologia, hoje localizado entre as instncias de produo cientfica de
vanguarda. Se a suspeio e o desprezo eram as atitudes eticamente correctas para quem via o
corpo como uma priso da alma (Plato), o identificava com um mundo dominado pelas foras
do mal (gnsticos), o associava ao pecado original ou s tentaes da carne (teologia crist),
actualmente continua a ser essa a premissa bsica da abordagem dura da inteligncia
artificial, segundo a qual o corpo no seno um entrave ontologicamente distinto do sujeito,
procurando desincorporar os mecanismos do crebro e reproduzi-los ciberneticamente.
O seu objectivo ltimo ser a obteno de um corpo imaterial, possibilitado por uma
ontologia puramente informacional, que muitos associam por seu lado a uma nova
espiritualidade, a qual implicaria, na verdade, uma nova arquitectnica do que no ocidente se
pensou como a dualidade corpo e alma ou a problemtica conjuno do esprito com a matria,
cuja dificuldade sempre foi a de encontrar a justa mediao entre ambos. A nova arquitectnica
em construo parece assumir a forma de um corpo que seria o contrrio da imagem inaugural
do corpo como priso da alma, j que seria ele prprio pura incorporalidade, pura animao,
puro simulacro, cujo princpio de vida dependeria exclusivamente da matriz logicial e digital da
tcnica actual, prometendo esta estender um dia a possibilidade simulacral de animizao a todo
o existente. Mais do que mediao entre corporalidade e incorporalidade, a tcnica actual
pareceria estar assim em condies de converter uma na outra (Cruz, 2001:1).
Em resumo, hoje, no que modernidade ocidental diz respeito, a mesma sociedade que
cultiva intensamente o corpo, tambm trabalha na mesma medida para o seu degredo. O lugar
do corpo na sociedade contempornea v-se assim atravessado por uma forte tenso,
decorrente da coexistncia de dois movimentos aparentemente antagnicos: por um lado, um
movimento de ampla descorporizao do social, ou de certas regies sociais, alicerado num
quadro atitudinal de profunda desconfiana e suspeio sobre o corpo, com base na constatao
da sua fragilidade, das suas limitaes e da fatalidade do seu envelhecimento, e visvel na
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multiplicao de produes que pretendem tornar o corpo desnecessrio e que conduzem ao
seu apagamento; por outro lado, em simultneo, um movimento de intensa celebrao e
glorificao do corpo como finalidade em si, na sua aparncia, movimento e sensorialidade,
traduzida num esforo redobrado de superao das suas fragilidades e limites morfolgicos e
fisiolgicos, e reiterado num forte crescimento quer da produo e do consumo de bens e
servios relacionados em primeira linha com o corpo, quer ainda, em termos fenomenolgicos,
das preocupaes e cuidados redobrados com o prazer, o bem-estar, o bem-parecer, a
vitalidade e a tentativa de salvao da eterna juventude (Guibentif, 1991:83-85; Le Breton, 2000
[1990]:229-231); Raveneau, 2000:20).
Seja pelo culto ou pela obsolescncia, hiper-valorizado ou obsoleto, como explicar a
extensa visibilidade e focalizao discursiva, imagtica e vivencial que o corpo tomou na
sociedade contempornea? H um largo consenso na literatura sociolgica de que a salincia do
corpo na vida social est relacionada com um determinado conjunto de mutaes estruturais, de
natureza cultural e politico-ideolgica, por um lado, mas tambm de natureza econmica e
tcnica, por outro.13 O desenvolvimento do capitalismo e o crescimento da cultura de consumo, o
aumento do tempo para o exerccio de prticas de lazer, os avanos no campo da cincia e da
tecnologia, a politizao das aces corporais e sobre o corpo, bem como as diversas
modalidades de criao contempornea que se apropriaram do corpo como suporte de
interveno artstica, so alguns dos factores determinantes na promoo do actual clima de
histeria (Cruz, 2000) ou obsesso (Fisher, 2002:102) social e cultural com o corpo, como se ver
de seguida.
Como diz Jorge Crespo, em relao a um passado onde o corpo era assimilado a um
objecto real, existindo por si prprio, na sua materialidade biolgica, hoje, o corpo no um
dado imutvel, antes se revelando na sua historicidade, sendo a origem e o resultado de um
longo processo de elaborao social (1990:8). No mbito desse processo, cruzam-se
poderosas e intensas dinmicas, entre as quais Shilling (1997a:92-99), inspirado em Elias (1987,
1989 [1939], 1990 [1939]) destaca as progressivas socializao, racionalizao e
individualizao do corpo. Quanto mais o processo civilizacional socializa o corpo, mais o corpo
se torna numa localizao para e de um cdigo de comportamento expressivo a que as pessoas
tm dificuldade em resistir. Analogamente, quanto mais esse processo racionaliza o corpo, mais
capacidade tm as pessoas de controlar os seus corpos, e maiores so as exigncias no
controlo dos seus corpos.
13 Ver, entre outros, Fournier, 2002, 2004; Travaillot, 1998, 2002; Barreiro, 2004a, Shilling, 1993, Turner, 1995
[1991], 1996 [1984], 1997.
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Por ltimo, com o desenvolvimento da modernidade, os indivduos tendem a
conceptualizar-se como separados dos outros, operao onde o corpo assume o papel de
configurao material e perceptiva aos sentidos do prprio e dos que o rodeiam. A
individualizao do corpo repousa ainda sobre uma dinmica colectiva de maior
consciencializao e responsabilizao de cada indivduo sobre o seu prprio corpo,
estruturando uma nova economia psquica que tende ao controlo ntimo das emoes, das
maneiras e das aparncias. Este , um dos principais traos que marcam a cultura somtica
contempornea, demarcando a novidade da actual civilizao do corpo relativamente ao
passado. Mas detenhamo-nos com mais mincia sobre cada uma destas condies de
emergncia da hiper-visibilidade contempornea do corpo.
1.2. Socializao, racionalizao e poderes colonizadores do corpo
O que vem ocorrendo com o corpo pode ser compreendido luz do processo que Giddens
designa de socializao da natureza (1995 [1990]), expresso que alude ao facto de certos
fenmenos anteriormente tidos como dados da natureza serem, nas condies inauguradas pela
modernidade, socialmente colonizados e reflexivamente projectados pelas suas instncias de
poder e de contra-poder, emancipando-se progressivamente de uma aparente condio natural
medida que vo sendo constitudos objecto de discusso, deciso e interveno humana,
sujeito a revises constantes. Ora, o corpo, desde o sculo das Luzes, vem sendo efectivamente
sujeito a um processo dessa natureza, gradualmente colonizado pela cincia, medicina e,
fundamentalmente, pela lgica capitalista de produo.
Com a ascenso social da burguesia, emancipada do poder feudal, o corpo submerge na
actividade de produo capitalista, vindo a ser institudo como mercadoria, propriedade individual
e privada com um destacado valor de troca que comea por ser sobretudo cintica. Capitalizado
enquanto instrumento de produo14, como ferramenta produtora de fora de trabalho, importa
ao novo estabelecimento que o corpo seja racionalizado, atravs do respectivo conhecimento,
vigilncia e disciplina, no sentido da promoo da sua mxima eficincia e rentabilidade laboral
(Tucherman, 1999:138; Turner, 1997). Vai ser este o modelo de corporeidade imposto pela
burguesia aos seus dominados, corpos enrgicos e alienados que se trocam por um salrio.
14 Capitalizao que total no caso da figura do escravo, simplesmente considerado um corpo-ferramenta (Neves, 2004:67), sem qualquer valor de troca, apenas com valor de uso.
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nesta ptica que, no decorrer do sculo XIX, emerge uma vaga higienista que concede
um novo lugar ao corpo, que se v valorizado nos hbitos de higiene, de actividade fsica, de
alimentao, bem como objecto privilegiado dos avanos da medicina na luta contra as doenas
(Le Breton, 1993, 1995a; Turner, 1992; Vigarello, 1985, 1988, 2001 [1978]). J nesta altura
existiam numerosos regimes e exerccios recomendados, e a obesidade era condenada. Os
banhos de mar, as curas termais, ou os exerccios tornavam-se moda entre a burguesia
europeia. O corpo do povo, por sua vez, vai sendo constitudo como objecto de conhecimento e
adestramento, vendo-se alimentado e fortificado, medicalizado e higienizado, vigiado e
controlado nos potenciais excessos, no sentido do ascetismo e da conteno, nas suas
dimenses imagtica, cintica e sensual.
Neste contexto, segundo Bryan S. Turner (1996 [1984]), um dos primeiros artesos na
sociologia do corpo de lngua inglesa, o corpo v-se politicamente colocado no centro do
problema hobbesiano da ordem social, objecto de regulao a nvel da reproduo das
populaes no tempo e no espao, de restrio do desejo e da emoo individual, e a
representao exterior na vida quotidiana. Jorge Crespo (1990), por sua vez, inspirado no
quadro terico desse autor, vem analisar pormenorizadamente o conjunto de operaes e de
valores em jogo no controlo poltico realizado sobre os homens, atravs dos seus corpos, na
transio do sculo XVIII para o sculo XIX portugus. Uma poca, no seu dizer, marcada pela
degradao das condies de vida corporal e a misria fisiolgica das populaes,
sobretudo as que migravam para as zonas urbanas em crescimento, submetidas a mltiplas
carncias (alimentares, mdicas de higiene, etc.) (1990:11). Mas uma poca tambm
assinalada por um novo projecto nacional, onde o corpo assumia um lugar central enquanto
instrumento fundamental na luta contra o desregramento social e o desperdcio econmico no
sentido da civilidade e do progresso, submetendo-se a normas racionalizadas no s em
termos de sade e higiene, mas tambm a nvel da expresso gestual e imagtica, dominadas
por uma tica orientada pelo rigor e sobriedade.
O objectivo estratgico desse novo projecto de pas passava, designadamente, pela
economia dos corpos dos seus cidados, no s do povo, por vrios motivos condenado
inutilidade e doena, como tambm dos seus grupos mais privilegiados, demasiado amantes
do prazer e da vida fcil. Esse objectivo era concretizado na tentativa de implantao de um
dispositivo de conteno dos gestos e de represso dos excessos, promovendo o controlo das
vrias formas de desperdcio de energia, reduzindo-o despesa mnima () e evitando a
desestabilizao dos corpos, bem como a formulao de um quadro de pensamento, baseado
na austeridade e na moral dos comportamentos, englobando a proposta de um novo conjunto de
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tcnicas do corpo, de atitudes e de movimentos inscritos com rigor e disciplina num determinado
quadro espao-temporal. (Crespo, 1990:12). Para esse efeito, cooperavam entre si, na
vigilncia e controlo dos corpos, bem como na validao cientfica das operaes, autoridades
policiais, mdicas e educativas.
Tal dispositivo inclua uma poltica higienista que pressupunha a avaliao mdica dos
corpos segundo critrios cientficos de utilidade social, na medida em que pudessem
contribuir para a afirmao dos novos valores do trabalho, do rendimento e do progresso
(Crespo, 1990:464-465). A luta contra as imperfeies corporais e pelo controlo das epidemias,
constituam os principais objectivos da aco poltica nesta matria, que deixava de ter um
contedo eminentemente religioso para tomar ntidos contornos econmicos e polticos,
reclamando comportamentos mais racionalizados de organizao e de gesto da doena, e
menos dominados pelo mbil da caridade perante as ideias de redeno ou punio divina. No
mbito dessas estratgias, foi instituda uma autoridade policial que, encontrando na medicina
fundamentos e justificaes supostamente cientficas para a sua interveno, estava
encarregada do controlo e vigilncia quer das condies propcias subsistncia corporal, quer
dos comportamentos considerados excessivos ou brbaros. A interveno desta polcia
mdica concretizava-se quer na superintendncia sobre a higiene do ar e guas, ou a
conservao dos alimentos e dos medicamentos, quer no policiamento dos corpos considerados
suspeitos do ponto de vista da sade pblica tudo e todos se confundiam doentes e
ladres, micrbios e salteadores (Crespo, 1990:18-19) , dos actos praticados15 ou das
aparncias exibidas.16
A poltica de controlo e represso dos potenciais excessos corporais nos seus gestos,
sensaes ou aparncias (violncia, astcia e malcia, o espectculo do corpo), fruto da
agitao ou do gesto apaixonado ou, por outro lado, resultado da subverso da ordem imposta
pelo destino (Crespo, 1990:271), tinham tambm como mbil principal a reclamada economia
dos corpos, velando por poupar-lhe as energias inutilmente desperdiadas em festas e
divertimentos, em jogos ou actos de violncia, bem como as tcnicas corporais que atentassem
contra o bom gosto e os bons costumes impostos pelas novas normas civilizacionais: o
corpo valorizava-se na medida em que se tornasse silencioso e discreto. Tudo quanto
15 Garantiam, por exemplo, o respeito pelos actos religiosos, a defesa da tranquilidade pblica, a luta contra a mendicidade e o roubo ou a represso dos jogos ilcitos. 16 Que ia ao ponto de tentar controlar os excessos conotados com o luxo: A necessidade de reprimir os excessos, o desejo de acompanhar os ritmos do progresso e as novas exigncias da economia davam ao problema do luxo uma dimenso mais complexa, introduziam novas variantes, e distanciava, cada vez mais, uma poca em que a simplicidade na avaliao das questes permitia a objectividade de uma lei como aquela que, em 1749, tinha como objectivo a normalizao dos adornos e das ostentaes (Crespo, 1990:478, refere-se Lei e Pragmtica sobre o luxo dos trajes, carruagens, mveis, lutos: corrigindo outros abusos, de 24 de Maio de 1749).
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