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T R I B U T A Ç Ã O, PROPRIEDADE e IGUALDADE FISCAL sob elementos de Direito & Economia

Marcelo Martins - Tributação, propriedade e igualdade fiscal

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Direito Tributário

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  • TRIBUTAO, PROPRIEDADE e IGUALDADE FISCAL

    sob elementos de Direito & Economia

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  • MARCELO GUERRA MARTINS

    TRIBUTAO, PROPRIEDADE e IGUALDADE FISCAL

    sob elementos de Direito & Economia

    Fechamento da edio: 15 de outubro de 2010.

  • Cip-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    M344tMartins, Marcelo Guerra Tributao, propriedade e igualdade fi scal : sob elementos de direito & economia / Marcelo Guerra Martins. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2011. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-352-4213-3

    1. Direito e economia. 2. Tributos. 3. Capacidade contributiva (Direito tributrio). 4. Igualdade perante a lei. I. Ttulo.

    10-4561. CDU: 34:351.713

    2011, Elsevier Editora Ltda.

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    Copidesque: Renato Mello MedeirosReviso Grfi ca: Emidia Maria de BritoEditorao Eletrnica: Tony Rodrigues

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    Nota: Muito zelo e tcnica foram empregados na edio desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitao,impresso ou dvida conceitual. Em qualquer das hipteses, solicitamos a comunicao nossa Central de Atendimento, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questo. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicao.

  • D e d i c a t r i a

    Dedico esta obra memria de meu av materno, Horcio Jos Guerra, advogado que me apresentou as Arcadas quando eu ainda muito jovem e, com isto, fez nascer o sonho de mergulhar num universo desafiador, fascinante e infinito.

    Ao meu pai, Nelson Valente Martins, mdico e professor da Escola Paulista de Medicina, por ter lanado em mim as primeiras sementes do amor cincia e do desprezo superstio e s crenas infundadas.

    Aos meus filhos, Guilherme e Henrique, qui um dia eu neles consiga lanar sementes to frteis.

    Em especial, ao orientador do meu doutorado, Enrique Ricardo Lewandowski, professor titular do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo e Ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre dos mestres, pai acadmico, por sua confiana e generosa liberdade concedida a este eterno aprendiz.

  • A g r a d e c i m e n t o s

    Por mais que me esforce, no consigo reunir em palavras a minha profunda gratido s foras que, de um modo que ainda no compreendi inteiramente, permitiram que uma concepo prefacial, sumria e difusa do assunto proposto se transformasse em convico fundada.

    minha esposa Adriana, por seu decisivo e indispensvel estmulo, apoio e compreenso, desde a ideia inicial at a concluso da obra. Sua discreta presena ao tudo a minha volta cuidar foi, de fato, determinante para o finalizar do projeto.

    minha me Maril, porque me me e nada a substitui.

    A todos aqueles que, de alguma forma, acreditaram e me auxiliaram nesse desafio gigante.

  • IX

    O a u t o r

    M A R C E L O G U E R R A M A R T I N SDoutor e mestre em Direito pela Universidade de So Paulo. Juiz Federal desde

    1998. Titular da 9 Vara Federal de Execues Fiscais de So Paulo desde 2004. Coordenador do Frum Federal das Execues Fiscais de So Paulo entre 2006 e 2008. Professor universitrio e de cursos preparatrios desde 1999, nas reas de direito financeiro e tributrio. Juiz auxiliar no Supremo Tribunal Federal desde fevereiro de 2009. Autor dos livros Leso contratual no direito brasileiro (Renovar, 2001) e Tributos e contribuies federais (Renovar, 2004) e de diversos artigos publicados em revistas jurdicas.

  • XI

    P r e f c i o

    A democracia um dos mais instigantes modos de organizao poltica j criados pelo homem. Identificada como o governo da maioria, sua prtica inaugural remonta Grcia de vinte e cinco sculos atrs, correspondendo em linhas gerais antiga noo grega de politeia, regime em que os cidados participavam ativamente da gesto da polis. Quando surgiu, contudo, apenas uma minoria da populao, ou seja, os cidados de pleno direito podiam participar da tomada das decises polticas, sempre por meio do voto direto tomado em assemblia. Praticava-se, ento, a chamada democracia direta, modelo rarssimo na histria humana.

    Finda essa experincia pioneira, a ideia de participao popular no governo sofreu um longo eclipse, ressurgindo somente cerca de dois mil anos depois, ao final do sculo XVIII, no bojo do movimento iluminista, sob nova roupagem. A participao direta do povo na gesto da coisa pblica deu lugar, ento, democracia representativa, em que os cidados exercem o poder por meio de mandatrios eleitos. Surgiu, assim, a democracia indireta, cujas primeiras prticas desenvolveram-se sob o signo de severas restries quanto participao popular, sobretudo pela submisso do direito de votar posse de propriedades e rendas elevadas.

    O Iluminismo, como se sabe, tomou como ponto de partida para as suas especu-laes o homem natural, ou seja, o homem antes de seu ingresso na vida social. Os jusnaturalistas e contratualistas, que se inspiraram naquele movimento intelectual, advogavam a ideia segundo a qual existiriam direitos naturais, eternos e absolutos, demonstrveis pela razo, vlidos para todos os homens em todos os tempos e lugares,

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    sendo a principal, seno a nica, misso do Estado, criado por um pacto entre as pessoas, assegurar a sua plena fruio.

    Ao Estado, de feio liberal, inspirado na doutrina do laissez-faire, laissez passer dos fisiocratas franceses, ficava absolutamente vedado intrometer-se na esfera dos direitos do indivduo, em que figuravam com destaque o direito vida, liberdade, igualdade, segurana, propriedade e participao poltica. A nica tarefa das autoridades pblicas consistia em zelar por sua observncia e conservao.

    Com a Revoluo Industrial, que eclodiu no sculo seguinte, a qual correspondeu a um salto tecnolgico deflagrado pela aplicao da mquina a vapor aos processos produtivos, o indivduo, embora protegido contra o arbtrio estatal por diversos ins-trumentos legais, viu-se completamente desguarnecido em face dos efeitos perversos do novo sistema econmico. As pssimas condies de vida dos trabalhadores desen-cadearam um surto de greves, agitaes e rebelies por toda a parte.

    A crescente presso das massas forou o Estado a abandonar a posio de mero espectador passivo dos conflitos sociais, na qual havia sido colocado pelos idelogos liberais, obrigando-o a atuar na busca de solues para os problemas da comunidade. Renunciando a uma postura abstencionista, o Estado passou a adotar uma atitude proativa, conferindo ao indivduo, enquanto membro da coletividade, os denominados direitos econmicos, sociais e culturais.

    Na verdade, a Revoluo Industrial, no plano ftico, e o iderio socialista, na esfera intelectual, revelaram ao mundo um novo tipo de homem, o homem real, situado, longe daquele ser natural dos iluministas, titular de direitos eternos e imutveis.O homem abstrato de antanho, assim, cedeu lugar ao ser concreto do presente, que passou a constituir o novo sujeito de direitos.

    Dentre os direitos econmicos e sociais recm desvendados destacam-se: o direito ao trabalho, a um salrio mnimo e a uma durao mxima para a jornada de traba-lho; o amparo em caso de desemprego, doena, velhice, invalidez e morte; a proteo da mulher e do menor no trabalho; a aposentadoria; o acesso educao e aos bens da cultura etc. Nessa classificao tambm esto includos o direito de greve e o de formar sindicatos.

    A partir da passou-se a requerer mais da democracia do que simplesmente assegu-rar a participao do povo no poder ou garantir formalmente os direitos fundamentais dos cidados previstos no texto constitucional. Passou-se a exigir que o Estado empre-endesse aes para garantir qualidade de vida dos governados, sob pena de perder a sua legitimidade como forma historicamente qualificada de organizao poltica.

    Nesse aspecto, o presente livro de Marcelo Guerra Martins, que resultou de tese de doutorado defendida com invulgar brilho na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, surge como uma contribuio inovadora para o estudo da democracia.

  • XIIIP r e f c i o

    Com efeito, o autor traz uma nova perspectiva para a anlise dessa experincia histrica, estudando-a a partir de uma perspectiva fiscal, que transcende o enfoque tradicional conferido ao tema.

    O cerne da proposta, inteligentemente arquitetada pelo autor, decorre da conju-gao dos valores liberdade e igualdade na seara da tributao, dentro do contexto de uma democracia liberal ou, no limite, de uma social democracia, regimes nos quais os bens de produo encontram-se majoritariamente sob o domnio privado. Para ele, o conceito da democracia fiscal arrima-se em trs fundamentos, que atuam de maneira harmnica, conjunta e interdependente, tal como num sistema de freios e contrapesos, no qual cada um deles influencia e influenciado pelos demais, a saber: a liberdade material; a igualdade de sacrifcios perante o fisco; e a no inibio da atividade econmica pelo Estado.

    A liberdade material consubstancia-se no respeito ao direito de propriedade (que engloba a garantia dos contratos e a segurana jurdica como um todo) e de livre iniciativa, cujo exerccio permite ao indivduo decidir como melhor satisfazer suas necessidades e desejos, independentemente de qualquer imposio estatal.

    A igualdade de sacrifcios, por sua vez, corresponde necessidade de que a perda causada pelo pagamento das exaes seja igualmente dividida entre todos os integran-tes da sociedade, isonomia que se obtm pela aplicao dos princpios da capacidade contributiva, progressividade e pessoalidade da tributao. Nesse aspecto, o autor preconiza que a arrecadao tenha origem o mais possvel nos tributos diretos (em especial, sobre a propriedade e a renda), recolhidos por pessoas fsicas.

    Entre ns, porm, segundo revela o autor, com base em dados estatsticos, a maior parte da arrecadao tem origem em tributos indiretos (os quais incidem sobre a cadeia produtiva e o consumo final), apresentando elevado teor regressivo. Em razo disso, conclui que o Brasil no consegue adotar um patamar mais igualitrio na seara fiscal, em contraste com os Estados Unidos e outros pases que integram a Europa Ocidental, nos quais impera uma maior isonomia nesse campo.

    O autor pondera que a soluo desse problema no comporta polticas simplistas, a exemplo da majorao de impostos sobre a renda e a propriedade, porquanto tais intervenes mostram-se contraproducentes (por afrontarem o primeiro fundamento da denominada democracia fiscal), alm de acarretar a fuga de riquezas do Pas, com possvel retrao da economia (em desconformidade com o terceiro fundamento por ele proposto).

    Por fim, com arrimo no fundamento da no inibio da atividade econmica, o autor entende que possvel alcanar o incremento da arrecadao, uma vez que as exaes, que de um modo geral incidem sobre fatos e atos de cunho econmico, permitem que Estado obtenha mais recursos e, assim, se desincumba melhor de suas

  • ELSEVIERXIV Tributao, Propriedade e Igualdade Fiscal Marcelo Guer ra Mar t in s

    funes. Aqui, o autor adverte que a tributao jamais pode ser exagerada, sob pena de gerar distores nos preos e, dessa maneira, fazer minguar mercados ou, o que pior, estimular que os contribuintes desbordem os lindes do ordenamento legal, passando a operar na informalidade. Em ambas as hipteses, conclui, o prejuzo sempre do errio.

    O grande mrito do autor neste trabalho, a meu ver, que ele logrou amalgamar os conceitos de Direito e Economia, na linha da escola acadmica Law and Economics, construindo uma proposta interdisciplinar que procura concentrar permanentemente o foco na realidade ftica. De forma consciente e sistemtica, sua argumentao mantm um pragmatismo dosado, sugerindo a instaurao de um sistema de tributao mais justo e eficiente, que levar quilo que chama de democracia fiscal.

    Penso que o autor conseguiu demonstrar eficientemente a tese central de seu trabalho, embora tenha, em alguns pontos, buscado apoio, com os temperamentos explicitados, na doutrina do laissez faire, cuja eficcia hoje, diante da recente crise econmica mundial, desperta srias dvidas quanto capacidade de o Estado liberal promover a incluso de grupos menos favorecidos economicamente no sistema de consumo de bens e servios de uma sociedade moderna. Nada obstante esse vis metodolgico, o autor desincumbiu-se bem da tarefa a que se props, qual seja a de rediscutir, de forma mais isenta possvel, a ao do Estado no mbito fiscal, sem olvidar o carter dialtico das cincias sociais.

    Estou convencido de que o trabalho ora editado constituir fonte de consulta obrigatria para todos aqueles que queiram compreender melhor a interao entre os fenmenos do Direito e da Economia, sobretudo aos que pretendam aprofundar a sua reflexo sobre modelos fiscais que conjuguem eficincia, equidade e crescimento, cuja implantao, em nosso Pas, j se faz tardar.

    Enrique Ricardo LewandowskiProfessor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    Ministro do Supremo Tribunal Federal

  • XIX

    Introduo

    O presente livro , em essncia, fruto das conjecturas, argumentos e concluses da tese de doutoramento que defendi perante a Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, em abril de 2010, sob a prestimosa orientao do Professor Enrique Ricardo Lewandowski, titular do Departamento de Direito do Estado e Ministro do Supremo Tribunal Federal, com o ttulo de Democracia fiscal e seus fundamentos luz do Direito & Economia.

    Trata-se, com efeito, de um estudo interdisciplinar que, em resumo, busca fincar as bases de um modelo de tributao que, operando dentro de um sistema capitalista de orientao predominantemente liberal, ainda que sob o temperamento das bases da social democracia, corresponda ansiada justia fiscal.

    Parte-se do pressuposto de que grupamentos humanos, dos mais efmeros aos mais perenes, necessariamente, devem decidir acerca da diviso das despesas comuns, isto , faz-se de rigor indicar quem e em que medida o patrimnio ser onerado em prol do atendimento das necessidades no exclusivamente individuais.

    Com efeito, tome-se como exemplo um prosaico passeio dominical de automvel a ser realizado por trs ou quatro pessoas. Obrigatoriamente, o grupo dever acordar sobre questes como: quais critrios sero utilizados para saber quem arcar com as despesas de combustvel e pedgio? A diviso ser igual entre todos ou, de modo diverso, levar em conta a capacidade econmica de cada um? Deveria apenas o proprietrio do veculo arcar com tudo?

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    O mesmo fenmeno ocorre em face de ajuntamentos mais estveis, como, por exemplo, os condomnios de bens imveis. A convivncia estendida no tempo, aliada relevncia no apenas econmica, mas muitas vezes emocional do objeto comum, presumivelmente, so potenciais geradoras de conflitos de interesses que podem se apresentar das mais variadas maneiras (v.g. valor do condomnio a ser pago por cada uma das unidades, rateio especial para reforma e manuteno das reas comuns, contratao ou dispensa de empregados, horrios de uso das reas de lazer, demarcao das vagas de garagem etc.).

    intuitivo vislumbrar que, quanto maior o nmero de pessoas envolvidas num determinado grupamento, ainda mais se existirem diferenas relevantes entre elas sejam elas econmicas, sociais, culturais, etrias ou religiosas se potencializa o surgimento de diferentes vises na escolha dos critrios a serem adotados para o suporte das despesas comuns. Inevitvel, assim, o choque de interesses divergentes.

    Em suma, a questo de saber quais patrimnios e sob qual grau sero onerados recorrente e inevitvel nos mais variados grupamentos humanos. O que se modifica o grau de dificuldade para se atingir uma resoluo razoavelmente aceita pelos envolvi-dos, percalo que se liga primordialmente s seguintes circunstncias: a) relevncia do objeto comum (v.g. passeio de automvel, bem imvel, clube ou associao, sociedade profissional etc.); b) nmero de componentes do grupo; c) diferenas econmicas, culturais, sociais e religiosas entre os envolvidos.

    Todavia, por mais espinhosas que se mostrem essas questes, decises havero de ser tomadas ainda que sob severo descontentamento e, possivelmente, protestos daqueles cujas propostas no se fizeram vingar.

    Ora, se interesses conflitantes ou, ao menos, no coincidentes so verificveis mesmo nos grupamentos socialmente menos expressivos e de perenidade relativa, o que dizer, ento, quando esse tipo de deciso se trava do mbito das despesas do Estado?

    Alm de milhes de pessoas cujos patrimnios so potencialmente atingidos, exis-tem milhares de necessidades a serem sopesadas, desde o cuidar da segurana interna e da defesa das fronteiras, at o desenvolvimento das mais variadas polticas pblicas (v.g. educao, sade, preservao do meio ambiente e do patrimnio histrico, linhas de crdito para o financiamento agrcola e industrial etc.).

    Ora, no se pode negar que todas estas tarefas custam dinheiro, numerrio que, via de regra, somente pode ser fornecido pela sociedade, principalmente por meio da arrecadao de tributos, uma vez que as outras formas de obteno, principalmente a explorao dos bens dominicais e a oferta de ttulos da dvida pblica, so insuficientes, pois a receita daqueles diminuta frente ao volume de necessidades pblicas e a destes ltimos, por dever ser devolvida em algum momento ao prestamista, claramente temporria.

  • XXI

    Entretanto, a possibilidade de contribuio da sociedade em benefcio do Estado inegavelmente limitada, inclusive porque no se pode produzir riqueza infinita. elementar, outrossim, perceber que existe, sob a dura realidade da escassez, um limite de suportabilidade tributao, o que refletir diretamente na capacidade do Estado de fazer retornar sociedade na forma de comodidades e benefcios aquilo que previamente foi arrecadado. Na incisiva colocao de Castro (2006, p. 51):

    Do ponto de vista econmico, a implementao dos direitos sociais implica redistribui-o de renda. Isto significa que o atendimento dos direitos sociais depende da despesa estatal, que, a seu turno, requer a existncia de receita fiscal compatvel. Portanto, o limite da capacidade dos governos de atender s reivindicaes articuladas mediante a mobilizao social equivale ao limite de possibilidade de despesa do Estado, dado por sua base fiscal (ou creditcia no caso da necessidade de algum endividamento estatal).

    A importncia do assunto se mostra verdadeira, sendo notrio que, em muitos pases, a carga tributria j est em aproximadamente ou, at, em alguns casos, supera os 40% do respectivo Produto Interno Bruto PIB,1 proporo semelhante s obri-gaes de trabalho do vassalo nas terras do senhor feudal que giravam em torno de dois ou trs dias por semana, segundo informa o historiador Huberman (s.d., p. 4).

    Entra em cena, portanto, uma questo que no comporta resposta nica, mas cujas solues possveis no so de simples engendramento: quais pessoas devem ter seus respectivos patrimnios atingidos pela tributao e sob qual intensidade isso deve ocorrer. Chegar a alguma concluso de suma importncia, uma vez que, segundo prelecionam Murphy e Nagel (2005, p. 5):

    Numa economia capitalista, os impostos no so um simples mtodo de pagamento pelos servios pblicos e governamentais: so tambm o instrumento mais importante por meio do qual o sistema poltico pe em prtica uma determinada concepo de justia econmica ou distributiva.

    A tributao se tornou, destarte, pedra angular na maioria das sociedades, notada-mente pela concepo do tributo como coisa pblica, algo separado do patrimnio pessoal do rei, o que, na lio de Torres (1991, p. 121 e s.), somente ocorreu nos idos do sculo XVIII, como fruto da influncia da doutrina liberal dos iluministas, cameralistas e fisiocratas.

    O assunto ganha dimenso ampliada aps a dcada de 1920 com o surgimento do welfare state, a partir de quando as funes e competncias do Estado passaram

    1. Conforme Nusdeo (2005, p. 299), o PIB corresponde a todos os bens e servios produzidos por um sistema econmico ao longo de um dado perodo, normalmente um ano.

    I n t r o d u o

  • ELSEVIERXXII Tributao, Propriedade e Igualdade Fiscal Marcelo Guer ra Mar t in s

    a se ampliar para bem alm da garantia da ordem pblica interna e da proteo das fronteiras contra invases estrangeiras.

    Fato que, de um modo geral, o Estado sistematicamente passou a promover aes voltadas universalizao de servios gratuitos como sade, educao, previdncia e assistncia social. fcil inferir que todas essas novas tarefas implicaram numa cres-cente necessidade de arrecadao de recursos financeiros de modo a fazer-lhes frente.

    E, levando-se em conta que a quase totalidade dos servios e atividades estatais dependem de remunerao em dinheiro, com rarssimas excees (v.g. os mesrios nos certames eleitorais e jurados no Tribunal do Jri), a tributao se mostra como fenmeno essencial e emerge como uma atividade de notrio interesse pblico, posto que o Estado, atualmente, o principal garantidor do ordenamento jurdico e da paz pblica, alm de financiador de diversas polticas sociais.

    Nessa linha, segundo adverte Carvalho (2005a, p. 103): Sociedade sem Estado uma impossibilidade, pois a entropia social fatalmente levaria lei do mais forte ou a um Estado hobbesiano, anmico.

    Dada a significativa diversidade de circunstncias envolvidas nas sociedades ao redor do mundo, que vrios modelos de tributao podem se apresentar. De fato, nota-se que certos pases tributam mais acentuadamente o patrimnio e a renda de seus cidados; outros optam por gravar mais intensamente o consumo de bens e ser-vios; alguns se apresentam como parasos fiscais para incentivar a vinda de capitais externos, e assim por diante.

    Evidentemente, muito provvel que todas essas escolhas no derivem simples-mente da vontade ou da ideologia do legislador local, mas sim da imposio das circunstncias econmicas e sociais vigorantes em determinado instante.

    Diante de um cenrio de possibilidades to complexo, inegavelmente composto por uma enormidade de circunstncias desprovidas de perenidade, de se indagar sobre a viabilidade de cientificamente ser elaborada uma proposta apta a solucionar, de forma minimamente aceitvel, a questo apresentada acima: quais pessoas numa sociedade devem ter seus respectivos patrimnios atingidos pela tributao e sob qual intensidade isso deve ocorrer.

    Acredita-se que, pelo amalgamento dos valores primordiais da democracia (liber-dade e igualdade) com medidas que promovam o crescimento e o desenvolvimento econmico, seja vivel encaminhar uma resposta, culminando no objeto deste trabalho, denominado de democracia fiscal.

    Numa apertadssima sntese, democracia significa o governo do povo, no sentido de fazer coincidir o mximo possvel governantes e governados. Assim, numa primeira ideia, a explicao da democracia considera o nmero de pessoas aptas a influrem nas decises polticas de certa sociedade, que deve ser a maioria.

  • XXIII

    Segundo coloca Bobbio (1995, p. 7), por democracia: se entende uma das vrias formas de governo, em particular aquela em que o poder no est nas mos de um s ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo s formas autocrticas, como a oligarquia e a monarquia.

    Com efeito, no se pode esquecer que o que se considera hoje por democracia, com a prtica de direitos polticos universais, sem qualquer restrio quanto ao sexo, etnia, religio, escolaridade ou condio econmica, notavelmente diferente do que se entendia por democracia no passado, recordando-se que na Atenas de Scrates apenas uma pequena parcela da populao estava autorizada a tomar as decises polticas na gora.

    Fato que, finda a experincia grega, a ideia submerge por quase dois mil anos e somente ressurge ao final do sculo XVIII como fruto das ideias iluministas e liberais, mas no mais na forma direta, e sim mediante a representao num Parlamento eleito sob o voto censitrio, segundo o patrimnio e a renda do eleitor, com as consequen-tes restries quanto ao sufrgio. Os valores da liberdade e da igualdade, ainda que primordialmente sob o aspecto formal, naquele momento, so o cerne dos regimes liberais que se instalam nos Estados Unidos e na Europa aps a queda do absolutismo monrquico.

    A liberdade, nesse primeiro instante, teve uma conotao nitidamente econmica, ou seja, buscava-se proteger o indivduo contra a ingerncia do Estado em seus neg-cios particulares. Trata-se da conhecida doutrina do laissez faire, laissez passer, pois a famosa mo invisvel do mercado se encarregaria de regular a economia, garantindo liberdade e prosperidade. Acreditava-se, outrossim, que, em face da liberdade merca-dolgica, com estmulo concorrncia e a ausncia de exaes de cunho extrafiscal, haveria a melhor alocao possvel de recursos na sociedade.

    A igualdade, de incio, teve uma feio eminentemente formal, mas j representou enorme avano na estrutura social ento vigorante. Derrubados os privilgios da nobreza e do clero, muitos deles no campo fiscal, ao isentar aquelas classes das pesadas exaes, proclamou-se a igualdade de todos perante a lei, sendo vedada, a partir daquele instante, qualquer distino quanto a origem ou classe social.

    Todavia, em vista de vrios fatores que sero indicados no decorrer deste trabalho (v.g. ideias socialistas e marxistas, excessiva concentrao de capitais, fortes crises econmicas e sociais), ocorreu uma mudana profunda na concepo desses valores. Em resumo, passou-se a aceitar certa restrio da liberdade em nome da existncia de maior controle, pelo Estado, dos negcios particulares, de modo a imprimir uma direo econmica mnima e, com isso, caminhar na direo da igualdade material (no apenas perante a lei, mas na lei, ou seja, considerando as condies reais de vida da maioria dos cidados).

    I n t r o d u o

  • ELSEVIERXXIV Tributao, Propriedade e Igualdade Fiscal Marcelo Guer ra Mar t in s

    Logo, valores que anteriormente se completavam passaram potencialmente a se atritar, eis que, segundo certo entendimento da poca, atingir a igualdade substancial dependeria necessariamente da profunda reduo da liberdade econmica.

    A proposta que buscou conciliar esse impasse deu ensejo ao welfare state e, mais tarde, social democracia, que ainda hoje mostra sua fora em pases como Alemanha, Frana e Itlia. A alternativa mais radical, que defendia a total transferncia dos bens de produo para o Estado, resultou nos regimes comunistas e socialistas, dos quais restam somente dois exemplos moribundos: Cuba e Coreia do Norte.

    Nessa linha de raciocnio, a democracia fiscal decorre da conjugao dos valores primordiais da democracia (liberdade e igualdade) na seara da tributao, tomando como pressuposto estar-se diante de uma democracia liberal ou, no mximo, de uma social democracia, regimes em que a maior parte dos bens de produo se pulveriza nas mos dos indivduos.

    Dessa feita, afirma-se que o conceito da democracia fiscal se alicera em trs fundamentos que devem operar de maneira harmnica, conjunta e interdependente, analogamente a um sistema de freios e contrapesos, em que um influencia e influen-ciado pelos demais, apresentando-os a seguir, de forma inaugural. Este equilbrio, alis, que indicar o grau de democracia fiscal vivenciado por determinado pas.

    1o fundamento: liberdade material. Trata-se da necessidade instransponvel de o Estado respeitar os direitos fundamentais da propriedade e da livre iniciativa, uma vez que por meio do seu exerccio regular que os indivduos se tornam menos dependentes dos desgnios estatais ou da caridade alheia, ambas as situaes que, se presentes, ostentam potencial para colocar sob risco a dignidade da pessoa humana. Logo, sendo a tributao um fenmeno que atua diretamente sobre estes direitos, no se pode pratic-la a tal ponto da liberdade material restar ameaada.

    2o fundamento: igualdade de sacrifcios perante o fisco. A ideia aqui trazida pre-coniza que as exaes devem incidir de modo que a perda do bem-estar pela obrigao de entregar parte dos recursos ao fisco seja proporcionalmente equivalente ao rico e ao pobre, que pode inclusive ser dispensado de qualquer contribuio fiscal se isso lhe ameaar o mnimo vital. Em suma, o Estado deve buscar fazer com que o custo real, e no apenas o financeiro, seja o mais igual possvel para todos.

    Isso se consegue, principalmente, pela edificao de um sistema imposicional de tributao alicerado primordialmente sobre tributos que respeitem a capacidade contributiva do obrigado e ostentem carter pessoal, isso , no permitam o repasse de seu nus a terceiros. Trata-se, em suma, de aplicar o valor da igualdade no campo da tributao.

    3o fundamento: menor inibio possvel da atividade econmica legal. A carga tributria imposta sobre uma coletividade qualquer no pode chegar a ponto de se

  • XXVI n t r o d u o

    tornar exagerada e passar a inibir a economia formal, na medida em que, se isso ocor-rer, levando em conta que os tributos incidem sobre fatos econmicos (v.g. aquisio de renda, transferncia de bens e direitos, titularidade de propriedade, circulao de mercadorias, prestao de servios etc.), a arrecadao cair na medida em que o fizer a prpria economia.

    Consequentemente, com menos recursos em seu poder, o Estado diminuir sua capacidade de exercer as diversas atribuies e competncias constitucionalmente delineadas, ou seja, a prpria sociedade civil, principalmente os mais pobres, sofrero baixa no respectivo nvel de bem-estar.

    Qui seja ousadia desmedida pretender agregar mais um conceito de democracia ao par daqueles solidificados h tempos pelos mais doutos. Talvez o mais prudente fosse aposentar a pena num patamar mais modesto, contentando-se em chamar aten-o imperiosidade de se aprofundar as pesquisas na rea da Law and Economics, evidenciando as inseparveis interpenetraes diuturnamente travadas entre o direito e a economia, com seus estmulos e feedbacks recprocos, numa dinmica infindvel verificada h tempos imemoriais.

    Opta-se, contudo, pelo caminho que maior desafio encerra na esperana de que isso permita ao autor descortinar horizontes mais abertos e fecundos, que inclusive permitam melhor compreender a complexidade desse momento histrico particular, tanto no mbito jurdico, como no econmico e, ainda, se no for desejar demais, que instigue a continuidade nessa trilha que provavelmente sem fim.

    Manifesta-se aqui o desejo sincero de contribuir, mesmo que sob o plio de um pequeno passo, para a construo de uma proposta que consiga minimante ligar dita-mes e valores constitucionais de relevo, com destaque para a liberdade e a igualdade, j consagrados como componentes primordiais da democracia, com as inequvocas limitaes materiais do cotidiano vivenciadas pela maioria das sociedades humanas. o que se prope.

  • c a p t u l o u m

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    1.1 O tema

    Na medida em que este trabalho embasado em conceitos jurdicos e econmicos, ainda que os primeiros prevaleam no cmputo final do trabalho, este captulo tem por inteno investigar algumas das relaes que se travam entre o direito e a economia.

    Na realidade, quando se aborda esse assunto, possvel inferir a existncia de, no mnimo, dois nveis de convivncia: o primeiro, estabelecido entre as normas jurdicas (o direito em si) e os fatos e aes de ndole econmica (a economia), e o segundo, vigente entre as cincias que se debruam sobre cada um destes fenmenos sociais, atentando-se que um fato ou conjunto de acontecimentos, seja de cunho natural ou social, no se confunde com a cincia que o vem a estudar.1

    1.2 O direito como um fenmeno socialSe, na colocao de Carvalho (2004, p. 2), as regras do direito existem para

    organizar a conduta das pessoas, umas com relao s outras, conclui-se que mesmo as primeiras sociedades humanas vivenciaram o fenmeno.

    Noticia Coulanges (1954, p. 284-285) que: Entre gregos e romanos, do mesmo

    1. Assim, de modo a diferenciar o mbito do fenmeno daquele da cincia que o analisa, neste trabalho, a expresso direito, quando utilizada por este autor com a inicial minscula, quer indicar o fenmeno. Contudo, se a inicial estiver em maiscula, a referncia respectiva cincia, o mesmo se aplicando aos vocbulos economia e Economia.

    Relaes entre o Direito e a Economia

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    modo que entre os hindus, desde o princpio, espontaneamente, a lei surgiu como especialidade de sua religio. oportuno relembrar nesse instante que um dos primei-ros conjuntos de normas escritas de que se tem notcia data do dcimo oitavo sculo antes de Cristo, sendo composto pelas duzentas e oitenta e duas regras inscritas no denominado Cdigo de Hamurabi.2

    Nesse sentido, como bem preleciona Ro (1991, p. 29), encontra-se, pois, a origem do direito na prpria natureza do homem, havido como ser social, o que torna possvel afirmar, portanto, que no h direito sem sociedade e vice-versa, conforme aponta Miguel Reale (1996, p. 703). E isso vem ocorrendo h milnios provavelmente porque, na colocao sucinta de Pereira (1980, p. 47), o direito feito para o foro, para a praa pblica; sua experincia uma experincia social ou, se se quiser, intersubjetiva (mais do que isso Heidegger dir ser ser com os outros).

    Regular a conduta de seus membros predizendo a soluo de potenciais divergn-cias de interesses, alm de impor efetivas sanes e penalidades aos faltosos, essencial em qualquer sociedade que pretenda desfrutar de um ambiente no violento, visto que a convivncia humana continuada ordinariamente conflituosa.

    Assim que, de um modo geral, o contedo de uma norma jurdica reflete prescri-es de proibio, permisso, estmulo ou desestmulo de condutas a serem praticadas pelos diversos agentes sociais, sendo que, pela lio de Telles Jr. (2001, p. 51), pelo simples fato de existir, a sociedade impe essas interaes. As finalidades da sociedade ou dos grupos sociais no seriam alcanadas se as mencionadas exigncias no fossem permitidas.

    Nessa linha de raciocnio, as normas jurdicas se revelam essencialmente como prescries diretivas e tm como objetivo, de acordo com Ross (2003, p. 31), no proclamar verdades tericas, mas sim influenciar o comportamento dos membros que compem certa comunidade. E assim ocorre provavelmente porque, conforme ponderado por Bitti (1969, p. 368), qualquer norma, ou complexo de normas, cor-responde necessidade de pr termo a conflitos de interesses socialmente relevantes ou de organizar funes socialmente teis, ou a uma e a outra necessidade ao mesmo tempo.

    Portanto, onde quer que exista ou tenha existido uma sociedade humana, alta-mente presumvel a sua regncia por meio de normas, seja como fruto de antigos costumes ou de tradies imemoriais, ou, segundo hodiernamente mais usual, como resultado da interao de vrias foras polticas perante um Parlamento em obedincia aos trmites formais de um processo legislativo.

    2. Segundo Vaz (1993, p. 51): HAMURABI considerado o mais ilustre dos reis da Babilnia, tendo vivido entre 2003-1961 a.C. O Cdigo foi elaborado em 1965 a.C., sobre 22 colunas horizontais em baixo-relevo, encimadas pela figura de Hamurabi adorando o deus Shamash, que lhe teria ditado as leis.

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    Nesse ponto, deixa-se claro que as normas jurdicas, apresentem-se sob a forma escrita ou no, advm exclusivamente da vontade humana, ficando descartada qual-quer viso que porventura encare o direito como um conjunto de regras presentes na natureza e demonstrveis pelo uso da razo, cuja validade inclusive se estenderia a todos os homens em qualquer poca e local, conforme prediziam as teorias jusnaturalistas do sculo XVIII descritas por Lewandowski (1984, p. 11).

    De fato, na abalizada lio de Carbonier (1979, p. 177), todos os fenmenos jurdicos so sociais, isso , oriundos da criao humana.

    Ento, sofrendo constantemente a interveno humana e, ao coadjuvarem a rea-lidade ftica e social, as normas jurdicas, segundo Friede (1997, p. 78), usualmente ostentam caractersticas de manuteno de certa conjuntura ou do status quo, num sentido conservador ou, ao contrrio, buscam a reestruturao ou transformao das relaes sociais, numa perspectiva reformadora.

    O que se observa, em realidade, que, num mesmo ordenamento jurdico, con-vivem, simultaneamente, normas que ora representam modificaes num ponto, ora noutro, depois implicam em retroao num terceiro item para, ao depois, refletirem nova mudana, num dinamismo constante.

    Nos dizeres de Lvy-Bruhl (1997, p. 29-30): se o direito emana do grupo social, no poderia ter mais estabilidade que esse mesmo grupo. evidncia, no se pode negar que um mnimo de perenidade normativa e institucional essencial, pois, conforme Friedman (1985, p. 152), nenhuma sociedade pode permanecer estvel, a no ser que exista um ncleo bsico de julgamentos de valor aceitos inconscientemente pela maioria dos seus membros.

    Logo, ainda mais se considerado algum interregno temporal, da essncia do direito o carter da mutabilidade, o que qualifica seus princpios, normas, regras, figuras e institutos como eminentemente transitrios e isso se intensifica notadamente aps a entrada em cena da escola positivista no sculo XIX, conforme ressalta Ferraz Jr. (1980, p. 43), a partir de quando o direito legislado por isso positivado sobrepuja a aplicao dos costumes e tradies como parmetro decisrio.3

    Com efeito, no se pode negar que a edio de uma lei pode alterar, de um dia para o outro, toda uma sistemtica at ento vigente, ainda que isso venha causar prejuzos a certas pessoas ou quebrar suas expectativas, como nos casos em que a lei passa a exigir um nmero maior de anos de trabalho para o gozo da aposentadoria.

    3. Conforme Bobbio (1988, p. 91-92): Com o advento do positivismo jurdico, o problema da legitimidade foi completamente subvertido. Enquanto segundo todas as teorias precedentes o poder deve estar sustentado por uma justificao tica para poder durar, e, portanto, a legitimidade necessria para a efetividade, com as teorias positivistas abre caminho a tese de que apenas o poder efetivo legtimo.

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    No se est aqui valorando esta plasticidade da norma positivada, apenas se registra uma caracterstica cada vez mais incisiva na sociedade contempornea.

    Alis, em adio a essa marca da no perenidade das normas jurdicas no tempo, de forma assemelhada, no se constata uma uniformidade nos ordenamentos dos diversos pases, mesmo no que se refere a direitos elementares, o que significa, por-tanto, a impossibilidade de se admitir nessa seara o elemento da universalidade. Assim, qualquer esperana quanto possibilidade da prevalncia de um ordenamento jurdico universal qualificada por Ro (1991, p. 74) como utpica.

    Basta observar, por exemplo, as diferenas inconciliveis entre os sistemas nor-mativos nazifascistas e aqueles prprios dos Estados democrticos. Por isso, enfatiza Lvy-Bruhl (1997, p. 30) que: Uma confrontao com os sistemas jurdicos do passado ou dos pases estrangeiros basta para se conceber a prodigiosa diversidade das normas jurdicas praticadas sobre a superfcie do globo. Segundo expe Azevedo (2008, p. 8-9):

    A ideia primitiva das cidades isoladas de que as leis eram imutveis, promulgadas talvez por um legislador mtico (Licurgo) ou especial (Slon), caiu por terra. O filsofo Protgoras (480-411 a.C.), fiel sua concepo revolucionria de que o homem a medida de todas as coisas, sustentou, ento, com clareza, e com algum escndalo, que as leis devem ser obedecidas, porque so fruto de deciso coletiva, mas que no tm nenhuma base natural ou divina.

    Qui at se possa admitir certa uniformidade ou consenso em torno de alguns valores e princpios arraigados na conscincia da maioria dos povos (v.g. respeito dignidade da pessoa humana, no discriminao quanto ao sexo ou condio social, liberdade religiosa etc.), mas, mesmo assim, isso est muito longe de qualquer sentido de universalidade, sendo notrio que a implantao de tais concepes no tem se mostrado equivalente nos diversos Estados dadas as controvrsias que ordinariamente se impem sobre cada um desses temas.

    Assim, descartada a viso de normas jurdicas de mbito universal e atemporal, para fins deste trabalho concebe-se o direito como um fenmeno de origem humana (e no natural) que sempre se mostra ativo em qualquer sociedade, expressando-se por um conjunto de normas no necessariamente escritas ou editadas segundo um processo legislativo qualquer, com a finalidade precpua de regular a convivncia humana e solucionar possveis conflitos, sempre sob as caractersticas marcantes da transitoriedade e da aplicao limitada no espao.

    Evidentemente, dado o nvel de conscincia humanitria apresentada pela maioria dos povos de hoje, ao menos no mundo ocidental, sempre desejvel que o contedo presente nas normas jurdicas respeite a dignidade da pessoa humana, bem como

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    contemple, o mximo possvel, os chamados direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerao.4

    Todavia, resta inegvel que a previso e, sobretudo, a implantao de tal desiderato depende dos esforos e opes tomadas por cada uma das sociedades que habitam a Terra, uma vez que, segundo Maia (2006, p. 183-184):

    A funo que o Direito exerce na sociedade aquela de ser um sistema cognitivamente aberto para processar expectativas normativas passveis de serem mantidas em situao de conflito. Diante dos conflitos sociais, o Direito deve mostrar-se apto a dar uma resposta, a tratar a decepo oriunda de uma expectativa desapontada.

    Por fim, uma questo que poderia aqui ser levantada a pertinente aos critrios identificadores do status jurdico de uma norma, ou seja, mesmo que reste inegvel a circunstncia do direito se revelar por meio das normas, seria possvel separ-las daquelas pertencentes moral, boa educao, sociabilidade, etiqueta e religio?

    A complexidade envolvida nesse tema obrigaria a um desvio de rota por demais alongado, desnecessrio, por sinal, aos objetivos inicialmente traados. Ficam indi-cadas, portanto, para os que pretenderem aprofundar, as lies de Bobbio (2005, p. 147-176) e Ferraz Jr. (1988, p. 104 e s.).

    1.3 A cincia do direitoNota-se que, enquanto nos eventos naturais vige o princpio da universalidade,

    pelo qual um fenmeno qualquer ocorre da mesma maneira em todo e qualquer local do universo,5 quanto s normas jurdicas, essa caracterstica totalmente ausente, pois inegvel que variam, constantemente, no tempo e no espao numa verdadeira plasticidade, conforme visto acima.

    Nesse sentido, seria possvel aplicar ao direito mtodos cientficos de busca de conhecimento? A constante alterao das normas e a impossibilidade de estatu-las

    4. Lewandowski (2005, p. 175) noticia que atualmente se cogita dos direitos de quarta gerao, ou seja, para alm dos direitos de terceira gerao (v.g. autodeterminao dos povos, paz, desenvolvimento, meio ambiente protegido etc.). Tais direitos decorrem: de novas carncias enfrentadas pelos seres humanos, especialmente em razo do avano da tecnologia da informao e da bioengenharia. Trata-se da proteo contra a manipulao gentica, a invaso desmedida da privacidade ou, ainda, a prevalncia de uma burocracia autoritria e tentacular. 5. Acerca do assunto, segundo Zelinger (2005, p. 22): Hoje sabemos que a constante de Planck h uma constante universal da natureza. Isso significa que ela possui um valor fixo que independe de circunstncias externas. E que tem a mesma grandeza tanto entre ns como em galxias distantes e tampouco se altera com o tempo. Ou seja, h quatro bilhes de anos atrs a constante de Planck h era exatamente to grande quanto hoje. Essas constantes universais da natureza so de grande importncia para a descrio fsica do mundo. Uma outra constante da natureza semelhante a velocidade da luz c. Sabemos que as constantes da natureza no se alteram com o tempo e que matm sua dimenso tanto muito longe de ns quanto aqui na Terra por observaes experimentais meticulosas, sobretudo pelas medies exatas do espectro da luz que chega at ns oriunda de estrelas e galxias distantes.

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    sob o cunho da universalidade no tornaria estril um empreendimento como esse? Resumindo, o fenmeno direito seria vivel de ser investigado dentro de mtodos preordenados?

    A resposta a ambas as questes comporta juzo positivo, mas desde que se leve em conta que, segundo prope Aguillar (1996, p. 62), o status de cincia implica o prvio carter convencional, ou seja, do consenso conferido essencialmente por uma comunidade de pesquisadores cientistas que se ligam ao redor de um paradigma ou programa de pesquisa.

    Destarte, a par da dificuldade de identificar em todas as hipteses o objeto obser-vado, o Direito deve conviver com a possibilidade da constante mudana do contedo do seu objeto.

    Na sntese de Pereira (1980, p. 50), a definio de cincia do direito, como realidade ou possibilidade, como fato a descrever ou processo em vias de atualizao, depende de nossos juzos ontolgicos e da eficcia dos mtodos que empregamos para o desvelamento do objeto direito.

    de se atentar que o direito em si no cincia. Ele pode ser objeto de cincia, isso , suas prescries podem ser investigadas de maneiras variadas e para diversas finalidades. Certamente, no h se confundir o fenmeno com a sua anlise.

    Assim, a ma que cai da rvore poder ser objeto de observao pela cincia da mecnica desenvolvida por Newton, mas a fruta e as foras que sobre ela atuam em si no so cincia, ao contrrio, so objetos dela. Nesse ponto, segundo bem ressalta Luhmann (1990, p. 41), naturalmente, no se deve confundir as proposies com seus respectivos objetos.

    Com o fenmeno direito, o mecanismo se assemelha, sendo assim amplamente reconhecido. De fato, segundo Kelsen (1987, p. 89-90), o jurista cientfico que des-creve o Direito no se identifica com a autoridade que pe a norma jurdica.

    Portanto, ser cincia um texto elaborado por um eminente Professor a respeito do homicdio. No ser cincia, mas se constituir no prprio direito, a norma insculpida no art. 121 do Cdigo Penal. Enfatizando, na lio de Ross (2003, p. 32):

    Na medida em que a literatura jurdica pretende ser conhecimento do que efetivamente o direito vigente, tem que se constituir em asseres, no em diretivas. Toda proposio de um livro precisa ser entendida sob a condio geral de que o autor est expondo o direito vigente dentro de um sistema legal especfico, o direito de Illinois, o direito da Califrnia, a common Law etc.

    Dessa forma, a cincia jurdica trabalha com ilaes sobre o direito, mas com ele no se confunde. Conforme Friede (1997, p. 71), a distino se revela precisamente na circunstncia das proposies doutrinrias no atriburem, in concreto, deveres ou

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    direitos a quem quer que seja, sujeitando-se a qualificaes de aceitabilidade ou no, enquanto que as normas jurdicas no se mostram verdadeiras ou falsas, mas sim vlidas ou no, concorde-se ou no com seu contedo.

    Essa separao entre o direito e a cincia que o investiga uma viso relativamente nova. No ensinamento de Ferraz Jr. (1988, p. 55):

    O conhecimento do direito, como algo diferenciado dele, , pois, uma conquista tardia da cultura humana. A distino, pois, entre direito-objeto e direito-cincia exige que o fenmeno jurdico alcance uma abstrao maior, desligando-se das relaes concretas (como as de parentesco: o pai tem direito de vida e morte sobre o filho, porque pai, sem que se questione por que a relao pai/filho se identifica com uma relao jurdica de poder de vida e morte), tornando-se um regulativo social capaz de acolher indagaes a respeito de divergentes pretenses.

    Alis, segundo Grau (2005, p. 37), no haveria uma, mas vrias cincias do direito, v.g., Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Histria do Direito, Sociologia do Direito, Dogmtica Jurdica etc.

    Segundo o autor: Todas as cincias do direito so cincias sobre o direito. Assim, as linguagens das cincias do direito so metalinguagens. O direito, destarte, uma manifestao denominada por Grau (2005, p. 42) de prudncia que no se confunde com os estudos que o abordam.

    E, conforme Friede (1997, p. 4), dentro da classificao binria das cincias que as divide entre as naturais e as sociais, a cincia do direito se encaixa nesse ltimo grupo na medida em que seu objeto no desvendar ou explicar as ocorrncias dos inmeros fenmenos naturais, mas sim se debruar em torno do evento da ordenao social por meio de normas jurdicas criadas e moldadas pelo homem ao longo dos tempos.

    Prosseguindo, pela exposio de Ferraz Jr. (1988, p. 44 e s.), o resultado da pesquisa cientfica jurdica pode se alinhar a duas perspectivas. A dogmtica e a zettica.

    1.3.1 Cincia do direito sob o enfoque da dogmticaO enfoque dogmtico do direito obriga o cientista a aceitar certos enunciados,

    sendo-lhe vedado questionar sua validade ou legitimidade, sob pena de assim o fazendo adentrar no campo da zettica, que ser visto adiante. Melhor explicando, segundo Ferraz Jr. (1988, p. 44):

    O importante aqui a ideia de que uma investigao zettica tem como ponto de partida uma evidncia, que pode ser frgil ou plena. E nisto ela se distingue de uma investigao dogmtica. Em ambas, alguma coisa tem de ser subtrada dvida, para que a investigao se proceda. Enquanto, porm, a zettica deixa de questionar certos

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    enunciados porque os admite como verificveis e comprovveis, a dogmtica no ques-tiona suas premissas porque elas foram estabelecidas (por um arbtrio, por um ato de vontade ou de poder) como inquestionveis. Neste sentido, a zettica parte de evidncias, a dogmtica parte de dogmas. Propomos, pois, que uma premissa evidente quando est relacionada a uma verdade; dogmtica, quando relacionada a uma dvida que, no podendo ser substituda por uma evidncia, exige uma deciso. A primeira no se questiona porque admitimos sua verdade, ainda que precariamente, embora sempre sujeita a verificaes. A segunda, porque diante de uma dvida, seramos levados paralisia da ao: de um dogma no se questiona no porque ele veicula uma verdade, mas porque ele impe uma certeza sobre algo que continua duvidoso.

    Em concluso, possvel afirmar que o fruto da pesquisa realizada sob a tica da dogmtica ser, em suma, a descrio das normas e figuras jurdicas como um todo e sob absteno axiolgica, por isso que dogmtica se revela. O enfoque, ento, se centra na norma em si e no adentra em possveis relaes ou implicaes decorrentes de sua aplicao. Nessa linha, conforme colocado por Faria (2004, p. 45):

    No limite, portanto, a dogmtica almeja tornar possvel a reduo da experincia jur-dica dimenso estrita da norma. Para tanto, configura o jurdico como uma realidade que basta a si mesma, ou seja, que capaz de se autofundar e de no ser condicionada nem por poderes absolutos nem por ideologias [...] Deste modo, o pensamento jurdico no est autorizado a promover julgamentos morais ou avaliaes polticas sobre a experincia jurdica, devendo encarar as relaes sociais concretas exclusivamente pela tica das prescries normativas, ou seja, pela relao de imputao entre sanes e atos considerados ilcitos.

    Portanto, verifica-se que a dogmtica, segundo Amaral Jr. (1993, p. 88), no procura explicar a existncia das normas jurdicas segundo o princpio da causalidade ou analisar a eficcia do direito sobre a vida social. A sua funo simplesmente a de explicitar critrios para a aplicao e funcionamento do direito positivo.

    dizer, conforme esclarece Luhmann (1983, p. 27), que: A caracterstica mais importante no conceito da dogmtica para sua compreenso habitual a proibio de negao: a impossibilidade de negar os pontos de partida e as correntes de argu-mentao. Esto subtrados da crtica.

    Percebe-se, dessa forma, que a pesquisa realizada sob a tica da dogmtica se apresenta primordialmente como um problema ontolgico, isso , no leva em conta questes como a justia da norma ou mesmo valores sociais capazes de fundamentar sua existncia, de modo que o resultado seja simplesmente identificar o direito como ele se apresenta no mundo real e no como ele deveria ser idealmente estruturado.

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    Aduz Kelsen (1987, p. 1) que essa a linha que deve ser seguida pelo cientista, sob pena de desbordar da proposta de limitar a investigao ao mbito de uma teoria pura, cujo objeto primordial : responder esta questo: o que e como o Direito? Mas j no lhe importa a questo de como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. cincia jurdica e no poltica do direito. A proposta se resume em libertar a cincia jurdica de todos os elementos que lhe so estranhos. Esse o seu princpio metodolgico fundamental.

    Segundo coloca Ross (2003, p. 25), a cincia, nesses termos, visa a um desiderato duplo: por um lado livrar a cincia do direito de qualquer ideologia moral ou poltica, de outro livr-la de todo vestgio de sociologia, isto , consideraes referentes ao curso efetivo dos eventos.

    1.3.2 Cincia do direito sob o enfoque da zetticaPor outro lado, se o enfoque for zettico, o resultado do trabalho no se limitar

    na descrio do sistema e respectivas normas, mas adentrar na considerao e intro-duo de elementos prprios de outros ramos do conhecimento, galgando o campo da anlise explicativa, da comparao, da fundamentao, da valorao, da interpretao, da indicao de origens e bases histricas, alm da formulao de juzos crticos e propostas de lege ferenda.

    Nesse diapaso, tomando como exemplo a iseno concedida pelo Decreto-Lei no 2.324, de 30 de maro de 1987, e revogada pelo art. 7o da Lei no 7.988, de 28 de dezembro de 1989, um enfoque dogmtico do ocorrido estaria limitado a descrever a referida isen-o, as hipteses de cabimento e, ainda, que ela se aplicou a partir do exerccio de 1987 (com base no incremento das exportaes dos produtos manufaturados dos exerccios de 1986 e de 1985), bem como que deveria ter vigorado at 31 de dezembro de 1991, mas que foi revogada antes da previso inicial por fora do art. 7o da Lei no 7.988/1989.

    O mesmo caso, sob a perspectiva zettica, teria incio com a descrio acima, mas acrescentaria consideraes complementares, nessa linha: a impossibilidade de se revogar a iseno concedida por prazo certo e sob condies importante para assegurar a segurana jurdica em determinadas circunstncias.

    Ora, muitas vezes o exerccio de alguma atividade econmica, por implicar inves-timentos vultosos, bem como em vista de peculiaridades mercadolgicas, somente vivel se acompanhada da desonerao tributria, ainda que por certo perodo.

    O incentivo fiscal tem por funo justamente isso, ou seja, estimular atividades que possam gerar riqueza em determinadas situaes e regies que no se implemen-tariam sob o jugo da tributao plena. Nesses casos, a retirada da iseno (ou sua diminuio) representaria um ludbrio e efetivo sinal para que o agente econmico deixe de acreditar em futuros acenos semelhantes do Estado.

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    Ao contrrio da pesquisa dogmtica que enfrenta o direito de maneira essencial-mente ontolgica, pois apenas intenta descrever uma realidade como efetivamente se apresenta e no como deveria ser construda, o enfoque zettico aborda o direito de modo predominantemente deontolgico, uma vez que, dentre outros objetivos, aceita sejam perquiridas questes ligadas justia da norma e, nos dizeres de Bobbio (2005, p. 46):

    O problema se uma norma justa ou no um aspecto do contraste entre o mundo ideal e mundo real, entre o que deve ser e o que : norma justa aquela que deve ser; norma injusta aquela que no deveria ser. Pensar sobre o problema da justia ou no de uma norma equivale a pensar sobre o problema da correspondncia entre o que real e o que ideal. Por isso, o problema da justia se denomina comumente de problema deontolgico do direito.

    Nota-se que, tanto a zettica, quanto a dogmtica, atualmente, convivem na cin-cia jurdica, no sendo oportuno nesse ponto tecer consideraes valorativas sobre cada uma delas, mesmo porque, em princpio, possuem objetivos e espaos de ao diferentes.

    O que se colocou, e em linhas gerais, so apenas as caractersticas principais que os resultados da pesquisa jurdica podem ostentar, sendo que no existe uma linha fronteiria clara entre tais enfoques, podendo uma mesma tese tratar de certos assuntos sob inspirao zettica e outros amparada por critrios mais ligados dogmtica.

    1.3.3 Cincia do direito, exatido de suas proposies e reflexividadeNo seria razovel esperar que uma cincia social, como o caso da cincia do

    direito, consiga formular proposies com o mesmo nvel de exatido, pureza e iseno valorativa prprio das cincias naturais que se socorrem dos resultados fornecidos por aparelhos refinados.

    As cincias sociais no se debruam sobre a realidade pouco mutvel da natureza; ao contrrio, concentram seus estudos num universo cujos princpios e caractersti-cas no so estveis e ostentam compreenso muitas vezes subjetiva, haja vista, por exemplo, as controvrsias inconciliveis a respeito da pena de morte ou do aborto assistido pelo Estado.

    Com efeito, segundo Aguillar (1996, p. 22), o estudo do direito no tem conduzido a respostas de validez universal. Ao contrrio, convivemos com muitas correntes, que resistem ao tempo e s crticas permanentemente formuladas por seus adversrios.

    E, conforme sintetizado por Ross (2003, p. 370-371), mesmo que sob grande esforo se procure tratar o objeto escolhido (v.g. uma lei, um princpio geral de direito) com objetividade, constata-se que dificilmente o cientista social deixar de ser, em

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    algum grau, tambm um reformador social. E isso ocorre, segundo o autor citado, em vista de que:

    Mesmo aps haver feito a mais exaustiva coleta de todos os fatos e suas correlaes, sempre haver um salto a ser dado, o que significa que todas as consideraes sero levadas em conta e pesadas numa resoluo, isto , num ato irracional. A cincia social jamais pode pretender uma soluo, quer dizer, uma diretiva que brote inequivocamente do objetivo dado em conexo com o conhecimento tcnico.

    Trazendo em socorro mais uma vez o comento de Aguillar (1996, p. 64), uma cincia social somente possvel se se admite um certo trao de relativismo, vale dizer, se se tolera uma convivncia de ideologias que se afrontam na base da produo terica, sendo importante, para que no se diga fulcral, que tais alertas sempre acompanhem, mesmo que implicitamente, a pena do cientista do direito.

    Alis, segundo Soros (2008, p. 101): Conceder cincia social o prestgio da cincia natural possibilita que teorias cientficas sejam utilizadas para propsitos mani-pulativos em vez de cognitivos.

    Essa caracterstica peculiar das cincias sociais, notadamente da cincia do direito, faz com que surja a possibilidade das pesquisas realizadas sob sua rbita influenciarem de algum modo o prprio objeto de anlise de estudo, algo impensvel de se manifestar perante as cincias naturais.

    De fato, no seria absurdo considerar que as manifestaes da doutrina jurdica (v.g. com formulaes e propostas de lege ferenda) possam servir de embasamento ao trabalho futuro dos legisladores e operadores do direito, sendo a recproca verdadeira, ou seja, nos casos em que o cientista empreender laboro descrevendo modificaes ocorridas em determinada norma ou comentando os termos de alguma deciso judicial. Conforme assevera Carvalho (2005a, p. 175-176):

    O feedback, que o direito positivo processa a partir das mensagens enviadas pela Cincia do Direito, influencia o prprio caminho a ser escolhido pelo sistema normativo. Isso plenamente verificvel quando percebemos que diversas decises jurisdicionais impor-tantes, ou mesmo leis fundamentais de nosso ordenamento, jamais teriam existido se no fosse pelo advento de teorias marcantes no curso de nossa histria jurdica.

    Esse fenmeno, relativamente comum das cincias sociais, denominado por Soros (2008, p. 34) de reflexividade.

    Em concluso, mesmo que a cincia do direito no se confunda com seu objeto pri-mordial de pesquisa, no caso os princpios e normas jurdicas em geral, tratando-se de eventos separveis criados pelo labor humano, no se pode ignorar a existncia de uma ntima relao, para que no se diga interpenetrao entre ambos, sendo concebvel

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    um certo nvel de mtua influncia ou reflexividade, o que acaba ocorrendo tambm em relao s demais cincias sociais, como a cincia da economia.

    1.4 A economia como um fenmeno socialNesse ponto, inicia-se a digresso a respeito do que se constitui a economia,

    expresso cuja origem etimolgica grega, qual seja, do termo oikonomia, extrai-se a ideia da constituio de normas dirigidas administrao, organizao e proviso da casa: oikos (casa) + nomos (lei ou regra), segundo colaciona Rossetti (1987, p. 47) e Nusdeo (2005, p. 31).

    Destaca-se, aqui, segundo Rister (2006, p. 40), que a ideia de casa possua na Antiguidade um sentido mais abrangente que o atual, constituindo uma unidade no limitada ao consumo, mas igualmente produo, dentro do regime de autoconsumo.

    1.4.1 A irrevogvel escassez de recursos materiaisEntender como funciona a dinmica da economia, aqui tambm vista como

    fenmeno social, implica considerar que os recursos materiais de algum nunca so suficientes para atender a todos os seus desejos sem qualquer tipo de restrio, visto que, sob essa tica, os anseios podem tender ao infinito.

    Nessa linha, mesmo os milionrios encontram limites para realizar suas pretenses, devendo, necessariamente, mold-las, de alguma forma, sua capacidade financeira de aquisio e manuteno dos mais variados bens.

    O mesmo raciocnio vlido para a prpria sociedade, ou seja, no vivel atender plenitude a todos os anseios de uma comunidade, ainda que em sua maioria sejam perfeitamente legtimos. Essa constatao, denominada de escassez, foi encampada como um dos pressupostos da cincia da economia, que merecer consideraes adiante.

    Nessa toada, reconhece-se que sempre existir algum nvel de escassez, seja em termos individuais, seja sociais, isso , no surpreende a insuficincia de meios para satisfazer tudo o que se necessita ou se deseja. Ainda que sob severas variaes em face de circunstncias de local (v.g. comparando o nvel mdio de bem-estar vivido atualmente na Europa com o da frica) e de tempo, a insuficincia de recursos ora mais, ora menos severa sempre ocorreu na humanidade e isso no novidade, ao contrrio, segundo noticia Nusdeo (2005, p. 27):

    A lei da escassez uma lei frrea e incontornvel, tendo submetido os homens a seu jugo desde sempre, levando-os a se organizarem e a estabelecerem entre si relaes especficas a fim de enfrent-la ou, melhor falando, conviver com ela, atenuando-lhe o quanto possvel a severidade.

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    De fato, o desenvolvimento econmico, com significativa melhoria na qualidade de vida de milhes de pessoas, algo que remonta h, qui, meros 200 anos e tal interregno certamente diminuto se comparado quele que o separa do surgimento do homo sapiens. Nessa esteira, em realidade, at recentemente, o que prevalecia era a pobreza generalizada, com exceo, segundo Sachs (2005, p. 53):

    de uma minoria muito pequena de governantes e grandes proprietrios de terras. A vida era to difcil em boa parte da Europa quanto na ndia ou na China. Com muito poucas excees, nossos trisavs eram provavelmente pobres e viviam no campo. O historiador de economia Angus Maddison estima a renda mdia por pessoa na Europa Ocidental de 1820 em torno de 90% da renda mdia da frica de hoje. Em 1800, a expectativa de vida na Europa Ocidental e no Japo estava ao redor de quarenta anos.

    De maneira a ilustrar o desenvolvimento da renda per capita no mundo nos lti-mos 2000 anos, o grfico abaixo6 mostra um notvel qui explosivo aumento experimentado nos ltimos 100 anos:

    Em linha semelhante, Nbrega (2005, p. 58) aponta que a economia mundial dobrou de tamanho nos primeiros quinhentos anos do segundo milnio. Hoje, bastam oito anos para a China obter o mesmo resultado. [...] Em menos de dois sculos, de 1820 a 1998, o crescimento explodiu: 1800%!.

    Sem sombra de dvida, no obstante o mundo atual ainda ostentar contrastes acentuados entre as vrias regies, nota-se que o desenvolvimento se operou no apenas em termos econmicos, mas atingiu as searas sociais e polticas. Pela exposio de Sen (2008, p. 9):

    6. Fonte: Sachs (2005, p. 55).

    Figura 2 RENDA PER CAPITA MDIA DO MUNDO

    US$ i

    nter

    nacio

    nais

    de 19

    90

    0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000 1100 1200 1300 1400 1500 1600 1700 1800 1900 2000

    6000

    5000

    4000

    3000

    2000

    1000

    0

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    O sculo XX estabeleceu o regime democrtico e participativo como modelo preemi-nente da organizao poltica. Os conceitos de direitos humanos e liberdade poltica hoje so parte da retrica prevalecente. As pessoas vivem em mdia muito mais tempo do que no passado. Alm disso, as diferentes regies do globo esto agora mais estri-tamente ligadas do que jamais estiveram, no s nos campos da troca, do comrcio e das comunicaes, mas tambm das ideias e ideais interativos.

    No se pode negar a gigantesca evoluo experimentada pela populao europeia, ainda mais se forem recordadas as precrias condies de vida dos servos nos feudos medievais onde, segundo Huberman (s.d., p. 4 e s.):

    O campons vivia numa choa do tipo mais miservel. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terras espalhadas (todas juntas tinham, em mdia, a extenso de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20, na Frana), conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miservel [...] A propriedade do senhor tinha que ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada primeiro.

    Mesmo que profundas melhorias tenham se verificado no nvel de bem-estar dos seres humanos, notadamente, a partir do sculo passado, os recursos materiais continuam e permanecero finitos frente ao gigantesco volume de necessidades ou desejos (individuais ou coletivos).

    Em ltimo grau, alis, esses limites acabam sendo impostos implacavelmente pelo prprio meio ambiente, que, inclusive, h certo tempo j vem acenando certa exausto, bastando atentar s notrias e inegveis alteraes do clima nos ltimos anos, bem como reconhecer que uma das principais fontes de energia e matria-prima de uma enormidade de bens o petrleo pode se esgotar nas prximas dcadas ou sculo.

    1.4.2 A inafastvel necessidade de escolher e o agir racionalNesse sentido, inserido numa ambincia muito poucas vezes amigvel em termos

    de deteno de recursos, qualquer pessoa que desejar obter certa comodidade (v.g. uma refeio, um remdio, um automvel, uma mquina fotogrfica, uma viagem, um lote de aes de uma companhia aberta etc.), usualmente, age racionalmente e compara as possibilidades de aquisio que despontam diante de si, de maneira a escolher a que, em seu juzo, mais lhe agregar benefcios e utilidades, isso , corresponder ao melhor custo-benefcio. Alis, o agir racionalmente tambm outro elemento de relevo na cincia da economia.

    Vale ressaltar a intuio de Bentham (1974, p. 9), que, no final do sculo XVIII, ao edificar as bases do utilitarismo, afirmou que o ser humano sempre est s voltas e sob o domnio da dor e do prazer, elementos estes que nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer

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    tentativa que faamos para sacudir este senhorio outra coisa no faz seno demonstr-lo e confirm-lo.

    Nada h para espantar, ao contrrio, no dia a dia muito usual esse tipo de atitude, desde as mais comezinhas situaes, at as decises que implicam prvia reflexo qualificada, como, por exemplo, a compra de um bem de raiz. Nesse caso, alis, certo que com a mesma quantia de dinheiro possvel adquirir um imvel de propores diminutas num bairro nobre e silencioso ou outro de metragem maior em localidade mais popular e no to tranquila. A deciso depender de quais necessidades e satisfaes o futuro proprietrio anseie.

    Independentemente do grau de reflexo engendrado pelo agente em cada caso concreto, certo que algum pode vir a comprar um imvel de maneira leviana, sem avaliar-lhe corretamente o preo pedido ou a sua futura utilidade. Fato que, nos dizeres de Rodrigues (2007, p. 14):

    Todas as nossas escolhas, dando ou no lugar a um desembolso monetrio, tm custos: se de verdadeiras escolhas se trata, quando optamos por uma alternativa abdicamos de outras. [...] A necessidade de escolher decorre do confronto de desejos, potencialmente ilimitados, do agente econmico e as restries que enfrenta.

    Ressalte-se que, em regra, no se trata de esperar que o agente sempre possua uma tendncia em escolher a opo mais barata disponvel. Outros critrios ordinariamente so levados em conta.

    Assim, o tempo que ser despendido na pesquisa de mercado pode se mostrar importante caso exista urgncia na aquisio ou, ainda, na hiptese de o agente, por ter que empregar parte de seu tempo na procura do item desejado, deixar de exercer alguma outra atividade que lhe daria mais prazer do que o eventual benefcio advindo da busca mais acurada.

    Isso no implica abandono do agir racionalmente, ao contrrio, o confirma. que, segundo Posner (2007a, p. 48): as decises tomadas com base em informao incompleta so racionais quando os custos de adquirir mais informao superam os benefcios provveis da capacidade de tomar uma deciso melhor.

    Outras circunstncias tambm se destacam como fatores de relevo para a escolha, de modo que acabam conjugadas com o preo dentro desse usual juzo do custo-benefcio, tais como: a qualidade e durabilidade do produto, o prazo de entrega e os limites da garantia oferecida, eventual tributao adicional caso o bem venha do exterior, o status social que o bem possa conferir ao seu titular, o simples prazer de possu-lo e tudo o mais que a mente humana, individualmente, for capaz de fantasiar.

    evidncia, tais reflexes sero variveis de pessoa para pessoa. No existe um padro que se poderia chamar de correto ou mais acertado. H opes individuais

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    que agridem flagrantemente a razo comum, como, por exemplo, utilizar drogas ou conduzir veculos sob efeito do lcool e colocar em risco a prpria vida e a de terceiros.

    No entanto, sabido que tais escolhas so recorrentes para muitos indivduos. Coloca, nessa linha, Galves (1967, p. 58) que: a necessidade econmica faz abstrao do juzo moral ou jurdico sobre a natureza ou o objeto da necessidade: o desejo de coisas inteis ou mesmo nocivas pode determinar atividades econmicas de produo, mercado, preos, consumo.

    Em concluso, o pr-falado agir racionalmente significa muito mais o engendra-mento de uma estratgia qualquer para obter um prazer, a procura pela autosatisfao, um sentimento hedonista, do que uma ao precedida de minuciosa reflexo em torno da melhor opo objetivamente considerada. Na lio de Posner (2007b, p. 474):

    Deve ficar subentendido que tanto as satisfaes no monetrias quanto as monetrias entram no clculo individual de maximizao (de fato, para a maioria das pessoas o dinheiro um meio, e no um fim), e que as decises, para serem racionais, no pre-cisam ser bem pensadas no nvel consciente na verdade, no precisam ser de modo algum conscientes. No nos esqueamos de que racional denota adequao de meios a fins, e no meditao sobre as coisas, e que boa parte de nosso conhecimento tcita.

    Em resumo, essa maneira de agir, normalmente encontrada na maioria das pes-soas, se mostra como uma atividade econmica, independentemente, do nome a si atribudo pela cincia (v.g. ao-racional, hedonista, egostica, autossatisfatria etc.).

    1.4.3 Atividade econmica natural e monetriaExpe Weber (2006, p. 9-10) que: uma atividade econmica quando est orien-

    tada a procurar utilidades (bens e servios) desejveis ou as probabilidades de disposio sobre as mesmas, ou seja, ainda segundo o autor, a ao econmica est: condicionada e orientada pela escassez de meios: para satisfazer o desejo de certas utilidades, cujos meios, quando somente se dispe deles com limitao, devem submeter-se gesto econmica.

    Destaque-se que a ao econmica no envolve necessariamente a presena ou a circulao de dinheiro, posto que as diversas operaes possam ocorrer na forma de trocas de bens em espcie, como ocorria no incio da Idade Mdia, poca em que o feudo produzia quase tudo que seria consumido pelas famlias, havendo poucas e espordicas trocas em mercados semanais mantidos junto a mosteiros ou castelos controlados pelo bispo ou o senhor local, conforme Huberman (s.d., p. 15-16).

    Disso se fazem cabveis os termos economia natural (desconhece o dinheiro) e economia monetria (utiliza o dinheiro de forma preponderante) sugeridos por Weber (2006, p. 13).

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    Certamente que o emprego da moeda, meio de troca por excelncia,7 eis que em regra aceita por todos agentes econmicos, facilita em muito a materializao das transaes entre as pessoas que desejam satisfazer suas mais diversas necessi-dades, justamente porque, ao dispor de um bem, possvel guardar o numerrio entregue em contrapartida para, depois, utiliz-lo na aquisio de alguma outra necessidade.

    Assim ordinariamente ocorre porque, na exposio de Belluzzo (2009, p. 212): Nas economias contemporneas, a moeda est fundada na confiana. A confiana um fenmeno coletivo, social. Tenho confiana na moeda porque sei que o outro est disposto a aceit-la como forma geral de existncia do valor das mercadorias particulares, dos contratos de riqueza.

    Com efeito, a ao econmica no requer a presena de dinheiro, ainda mais porque, sob certas circunstncias (v.g. episdios de hiperinflao, como ocorreu na Alemanha na dcada de 1930), o regime de trocas diretas entre as partes interessadas ganha revelo especial. Com efeito, frente a episdios de hiperinflao, aponta Belluzzo (2009, p. 204) que as finanas pblicas e a intermediao financeira entram em colapso. A economia regride para o escambo.

    1.4.4 Decises da comunidade e seus reflexos a questo dos preos e da inflao

    Prosseguindo, no apenas os seres humanos individualmente considerados se deparam com dilemas a serem superados diuturnamente, mas a prpria sociedade tambm deve realizar opes em torno de uma srie de necessidades coletivas (v.g. segurana pblica, proteo ao meio ambiente, polticas pblicas de educao e sade etc.), relembrando-se que, inevitavelmente, no haver recursos suficientes para o atendimento integral e simultneo de todas elas, pois a possibilidade de contribuio compulsria dos indivduos em benefcio de um caixa comum inegavelmente limitada, inclusive, porque no se pode produzir riqueza infinita.

    Logo, medida que uma pessoa (ou a prpria sociedade) escolhe certa necessidade para contemplar, independentemente de sua relevncia ou urgncia, intuitivo, para que no se diga obrigatrio, concluir que outra provavelmente remanescer pendente, isso , toda e qualquer opo implica numa simultnea renncia ao exerccio de outra possibilidade e nisso se revela a dinmica econmica.

    7. Na lio de Galves (1967, p. 210-211): O dinheiro ou moeda , pois, um meio geral de trocas, aceito por todos, dentro de uma comunidade social, ou comunidade de pagamentos. [...] Que tipo de bem econmico o dinheiro? No um bem de consumo, porque, salvo o caso do usurio que se deleita com sua contemplao, no satisfaz de modo direto nenhuma necessidade humana. No , tambm, um bem de produo, porque diretamente no d nascimento a outros bens. Entra numa categoria parte: um bem de troca.

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    Tome-se, como ilustrao, uma comunidade hipottica constituda por 100 pes-soas que diariamente produzem o alimento estritamente necessrio sobrevivncia de seus membros. Dessa forma, a cada manh todos saem aos campos e, ao anoitecer, retornam com uma quantidade de gneros que ser dividida igualmente entre todos, supondo-se que no h sobra (ou poupana), ou seja, o total produzido inteiramente consumido durante a noite, repetindo-se essa rotina indefinidamente.

    Obviamente, trata-se de uma situao ideal que dificilmente se consumaria na prtica, mas que serve de modelo elucidativo elementar da dinmica econmica.

    Suponha-se, ainda dentro dessa proposta, que, como moeda (meio de troca), essa comunidade se sirva de pedras verdes redondas,8 do seguinte modo: ao final do dia, quando um indivduo entrega o que produziu no lado direito do armazm geral e recebe da autoridade A cinco pedras.

    De posse delas, pode se dirigir ao lado esquerdo do armazm e, mediante controle feito pela autoridade B, possvel trocar as pedras pelos gneros alimentcios que ali se encontram e que foram produzidos pelos demais indivduos at que tudo o que foi entre-gue no lado direito tenha sido retirado no lado esquerdo e todos se recolham em descanso.

    Suponha-se, mais uma vez e em continuao desse exemplo, que, numa certa ocasio, tenha se percebido que, na eventualidade de se majorar os resultados, haveria melhora na qualidade de vida e sade de todos, uma vez que a quota diria de calorias de cada um poderia ser ampliada.

    Todavia, no se sabe exatamente qual a melhor maneira de se implantar tal desg-nio. Ento, na manh seguinte, so designadas 10 pessoas para pesquisar possveis tcnicas de aumento da produtividade, recebendo elas ao final do dia a mesma quan-tidade de pedras verdes que os 90 que seguiram aos campos.

    O que ocorrer de incio? Se o resultado do trabalho de 100 era inteiramente consumido, no havendo qualquer sobra, presume-se que, pelo labor de apenas 90, no haver a mesma quantidade disponvel de alimentos do dia anterior. No se pode esquecer que 10 pessoas, por estarem desenvolvendo tecnologia por meio de pesquisa, deixaram de produzir alimentos em espcie.

    8. Com efeito, a moeda, como meio de troca, no necessariamente o dinheiro impresso oficialmente por um pas. Assim, por exemplo, notrio que nas cadeias os cigarros tm tal serventia. Uma hiptese absolutamente curiosa narrada por Mankiw (2007, p. 631). Cuida-se da moeda utilizada em Yap, uma minscula ilha localizada no Pacfico Sul. Em que pese ser um territrio norte-americano, h mais de 2.000 anos os yapenses utilizam discos de pedras calcrias como moeda de pagamento para grandes aquisies (v.g. terras, canoas, licenas de casamento). O dlar somente entra em cena nas transaes de pequena monta, como aquelas do supermercado e do posto de gasolina, que tambm podem ser quitadas com cerveja. Os discos de pedra chegam a ostentar 90 centmetros de dimetro ou mais, o que requer a fora de vrios homens para carreg-los quando necessrio. O autor informa, ainda, que na ilha remanescem apenas algo em torno de 6.600 discos, o que implica reconhecer a estabilidade da moeda, uma vez que sua oferta no se modifica.

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    Cria-se, imediatamente, a necessidade de se rediscutir a diviso do produto social e isso se dar, por exemplo, com um sacrifcio geral e uma reduo no consumo dirio individual, na esperana de que no futuro, pelos resultados da nova tecnologia que se desenvolve, se consiga no apenas retornar ao patamar anterior, mas se d um passo adiante no nvel de bem-estar.

    Caso no se concorde com isso, ou seja, em se querendo a mantena do mesmo nvel de consumo e bem-estar, a insuficincia de alimento gerar inflao em seu preo9 de maneira a que aqueles que realmente desejarem consumir a mesma quantidade do dia anterior ofeream em troca algo mais do que as cinco pedras verdes redondas recebidas (v.g. tomando com a autoridade A um emprstimo de mais duas pedras a ser pago em uma semana o tempo suficiente para o muturio encontrar novas pedras da mesma espcie na natureza).

    Note-se, contudo, que, se ocorrer aumento expressivo do nmero de pedras em circulao, seu valor intrnseco diminuir dado o excesso de moeda em curso, havendo risco da autoridade B passar a exigir a entrega de seis ou sete pedras para entregar os alimentos dirios em vista da predominncia do volume monetrio sobre o econmico.

    Trata-se, em suma, da aplicao da vetusta regra oferta-demanda como indicadora do preo. Na explicao de Mankiw (2007, p. 674), o que determina o valor da moeda? A resposta a essa questo, como muitas questes em economia, est na oferta e na demanda. Assim como a oferta e a demanda de bananas determinam o preo das bananas, a oferta e a demanda determinam o valor da moeda.

    Em concluso, ao considerar o exemplo em tela, quanto mais pedras verdes redon-das (a moeda) circularem, menos bens e comodidades cada uma poder comprar com uma mesma quantidade de pedras.

    Outra soluo seria simplesmente colocar em vigor a lei do mais forte, sendo que a diviso se realizaria pela fora bruta, isso , quem conseguisse se apossar de maior quantidade dos gneros, melhor aquinhoado estaria.

    Contudo, esse caminho dificilmente seria o mais eficiente em termos econmicos, uma vez que a violncia gerada certamente causaria prejuzo fora de trabalho da comunidade, pois os feridos (e qui mortos) estariam impossibilitados de produzir no dia seguinte, diminuindo ainda mais a quantidade final produzida.

    A realidade demonstra que as sociedades em geral sempre se defrontam com esse tipo de dilema: deve-se preparar o futuro e, com isso, passar alguma privao no presente ou, ao contrrio, o melhor consumir imediatamente todo o produto social?10

    9. Na lio de Gastaldi (1970, p. 264): De fato, o mais correntio conceito de inflao o que a considera como a resultante de um excesso de procura de bens e servios sobre a oferta dos mesmos, aos preos correntes. 10. A esse respeito Rossetti (1987, p. 149) indica que: No h exemplos histricos de economias de rpido desenvolvimento que no tenham reduzido suas taxas de consumo. As que sucumbiram seduo do consumo

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    Consta-se, destarte, que as diversas opes que se descortinam frente s varia-das circunstncias da vida diria, sob plio da j referida escassez presente, geram implicaes (ainda que em potencial) diversificadas e impedem que se desfrute dos eventuais benefcios de uma opo no escolhida, entrando em cena, pois, os custos de oportunidade ou tradeoffs. Melhor explicando, segundo Mankiw (2007, p. 5):

    Quando as pessoas esto agrupadas em sociedade, deparam-se com tipos diferentes de tradeoff. O tradeoff clssico se d entre armas e manteiga. Quanto mais gastamos em defesa nacional (armas) para proteger nossas fronteiras de agressores estrangeiros, menos podemos gastar com bens de consumo (manteiga) para elevar nosso padro de vida interno. Igualmente importante na sociedade moderna o tradeoff entre um meio ambiente sem poluio e um alto nvel de renda. As leis que exigem que as empresas reduzam a poluio elevam o custo de produo de bens e servios. Devido aos custos mais elevados, essas empresas acabam obtendo lucros menores, pagando salrios meno-res, cobrando preos mais elevados ou fazendo alguma combinao dessas trs coisas. Assim, embora os regulamentos antipoluio nos proporcionem o benefcio de um meio ambiente com menos poluio e a melhor sade que dele decorre, eles trazem consigo o custo da reduo da renda dos proprietrios das empresas, trabalhadores e clientes.

    1.4.5 Os modelos econmicos possveis: sistemas da tradio, autoridade e autonomia

    Com base no acima narrado, conclui-se que a organizao da economia em qual-quer sociedade implica a resoluo de algumas questes elementares, mas de fulcral importncia no desenho social que se pretende imprimir. Conforme sugerido por Boarati (2006, p. 15-16), preciso que se tomem decises acerca dos seguintes tpicos:

    1) O que ser produzido? Dada a insuficincia (escassez) de recursos materiais, no sendo possvel atender a todas as necessidades (e ou desejos) simultaneamente, preciso fazer opes e escolhas sobre a quantidade e qualidade de bens e servios que sero confeccionados num dado momento histrico.

    2) Como ser produzido? Frente a diversos processos produtivos possveis em que cada um apresenta custo e resultado diferente, de modo a evitar o desperdcio e se atingir um patamar de maior eficincia, de rigor decidir quais meios de produo devem ser aplicados para cada finalidade desejada.

    3) Quem sero os destinatrios do que foi produzido? Significa resolver como ser a distribuio de renda na sociedade, de forma a determinar como o produto resultante da ao econmica dos indivduos deve ser dividido.

    Aqui entra em cena uma srie enorme de questes, incluindo, por exemplo: o

    enfraqueceram seus potenciais de acumulao trocaram pelo ilusrio consumo do presente as possibilidades de um bem-estar mais slido no futuro.

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    mercado ser predominantemente livre ou existir algum nvel de controle sobre a fixao dos preos praticados pelos agentes econmicos? Se a opo for pela existncia do controle, em quais setores isso se operar e sob qual intensidade? Qual a exten-so dos direitos de propriedade? Uma vez que pela tributao possvel redistribuir parte da riqueza produzida, como se edificar o sistema tributrio? O maior enfoque ser dado s exaes que gravam a propriedade e a renda ou, noutro sentido, ser o consumo de bens e servios objeto de maior rigor fiscal? Em adio, quais servios e benefcios sero fornecidos gratuitamente pelo Estado populao? Quanto dos impostos arrecadados ser empregado na segurana pblica ou na proteo do meio ambiente? E assim por diante.

    Das respostas a tais questes, segundo detalhadamente coloca Nusdeo (2005, p. 100-125), podem resultar, em resumo, trs sistemas bsicos de organizao econ-mica, denominados pelo autor de: tradicional, autoridade e autonomia, sendo que, obviamente, cada um deles comporta subsistemas com seus matizes e caractersticas peculiares segundo condies de tempo e local, nos seguintes termos.

    1) sistema da tradio: marcado por quatro caractersticas bsicas, quais sejam:a) estabilidade nas formas de agir e nos usos e costumes, cujas alteraes se

    ultimam de modo realmente lento ou quase imperceptvel, sendo necessrio um intervalo de duas ou mais geraes para que seja possvel notar qualquer mudana de relevo;

    b) ausncia de um marco temporal definido como identificador da adoo de certo costume ou cabedal cultural da comunidade, o que confere quele modus operandi econmico um mbito definitivo;

    c) papel secundrio da economia no conjunto da vida social, sendo ela ordina-riamente mera atividade-meio para o desenvolvimento de atividades-fins, tais como: religio, danas, guerra, esporte ou saber;

    d) no unidade de regimes, isso , sensveis variaes no contedo das diversas tra-