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MÁRCIO TÚLIO VIANA - ltr.com.br · Outro abraço, com o maior dos carinhos, vai para todos os meus alunos e ex-alunos, que ao longo desses anos me fizeram pensar e repensar tantas

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MÁRCIO TÚLIO VIANA

em memória do

Juiz Paulo Penna Alvarenga

Atualização de:

bruno azalim rodrigues da Costa, Cybele rennó leite e

raquel betty de Castro pimenta

EDITORA LTDA.

© Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-001São Paulo, SP — BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.br

Agosto, 2014

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Viana, Márcio Túlio

Para entender o salário / Márcio Túlio Viana. — São Paulo : LTr, 2014.

Bibliografia

1. Direito do trabalho — Brasil 2. Empregados — Benefícios adicionais 3. Salários 4. Salários — Brasil I. Título.

14-07649 CDU-34:331.2

Índices para catálogo sistemático:

1. Salários : Direitos do trabalho 34:331.2

Versão impressa - LTr 5107.7 - ISBN 978-85-361-3048-4Versão digital - LTr 8261.2 - ISBN 978-85-361-3114-6

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Conversa Com o Leitor

Este pequeno livro revê, amplia e atualiza um texto publicado há alguns anos, em obra coletiva organizada pelos colegas e amigos Jorge Luiz Souto Maior e Marcus Orione Gonçalves Correia, da USP.

A ideia é aclarar, criticar e aprofundar o estudo do salário, auxiliando os estudantes e os que se iniciam na prática trabalhista, mas também servindo àqueles — mais tarimbados — que até hoje não tiveram tempo ou interesse para pensar melhor sobre certos aspectos do tema.

Na medida do possível, tentei escrever sempre de forma simples e agradável, e espero, por isso, não ter criado novas dúvidas ou confusões. No entanto, ficarei feliz se o Leitor se sentir instigado a continuar pensando, ainda que eventualmente discorde de alguns de meus pontos de vista.

Ao longo do texto, o Leitor encontrará diversos exemplos, alguns deles envolvendo cálculos — para os mais interessados nesse aspecto. Não me esqueci também da jurisprudência, do mesmo modo que tentei recolher, aqui ou ali, enfoques interessantes da doutrina.

Naturalmente, ficaram de fora muitos artigos e julgados que mereceriam estar presentes, alguns dos quais por não terem chegado às minhas mãos, outros porque excediam aos limites desse livro, e outros ainda porque escapuliram, como crianças peraltas, pelas portas e janelas de minha memória — o que me obriga a pedir desculpas aos seus autores.

De todo modo, para não correr o risco — agravado pela idade — de citar alguma OJ já revogada ou de cometer certos deslises matemáticos, decidi pedir a valiosa colaboração de três pessoas — já citadas na capa — além de outras ajudas pontuais.

Bruno Azalim Rodrigues da Costa dirige o setor de cálculos do TRT da 3ª Região. Tem mais de 20 anos de experiência na área, além de uma bela inteligência. Em suas horas de folga, conferiu e sugeriu vários pontos, com a ajuda da amiga Ana Cristina Batista Moreira, a quem também agradeço.

Cybele Rennó Leite e Raquel Betty de Castro Pimenta, minhas queridas ex-alunas, sempre se destacaram entre os colegas pela sutileza de pensamento e

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pela sensibilidade. Têm ótimos textos publicados e hoje são mestras em Direito do Trabalho, pela PUC-Minas, caminhando para o doutorado. Sem elas teria sido bem mais difícil publicar este livro.

Deixo-lhes aqui o meu abraço pela paciência e dedicação.

Outro abraço, com o maior dos carinhos, vai para todos os meus alunos e ex-alunos, que ao longo desses anos me fizeram pensar e repensar tantas coisas, especialmente nas salas da graduação. Alguns deles, aliás, estão lembrados aqui — com muita honra para mim.

Deixo também uma palavra amiga à LTr, que desde os anos 90 vem me acompanhando nessas aventuras pelo mundo das palavras, assim como sempre tem apoiado tantos outros autores.

Mas também devo agradecer a você, caro Leitor, que agora me dá o prazer de seguir ao meu lado, esperando que possa tirar algum proveito desses singelos escritos.

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sobre o Juiz PauLo Penna aLvarenga (1925-2014)

Em geral, os livros homenageiam os grandes juristas. Poucos se lembram dos homens simples, ainda que tenham sido grandes juizes. Paulo Penna Alvarenga, Juiz do Trabalho na 3ª Região, teve essas duas virtudes. Passou pela vida quase anonimamente, doando para a família — e para os seus jurisdicionados — tranquilas e profundas sabedorias. Era um homem bondoso e afável, inteligente e sensível. Por onde andou, sempre foi admirado e querido. Boa prosa, grande memória, conversa amena, espírito alegre e um fino senso de humor, sabia rir das pequenas coisas do cotidiano e adaptar-se filosoficamente aos problemas sem solução. Gostava especialmente dos livros: espírito curioso, versátil e sem preconceitos, lia desde romances de cavalaria até os mais variados temas de ciências humanas, biológicas e exatas, sem se esquecer de acompanhar as peripécias de seu querido Galo — o tão carismático, imprevisível e passional Clube Atlético Mineiro. Ler sobre a vida das formigas, para ele, talvez fosse tão interessante quanto aprender uma nova doutrina jurídica. Assim como sabia pescar e conhecia passarinhos, era hábil em decifrar as pessoas, em instruir os processos e em sentenciar de forma justa e humana, marcas que foi deixando pelos lugares por

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onde passou: Belo Horizonte e Conselheiro Lafaiete (Minas) e Anápolis (Goiás). Nesta última cidade, ajudou a fundar a primeira Faculdade de Direito, onde também lecionou. E como foi tudo isso, e muitas coisas mais, sua morte comoveu profundamente todos que o conheciam. Certamente teria sido também um grande doutrinador ou famoso ministro, se as esquinas da vida o tivessem levado a esses caminhos. Ou talvez — se pudesse viver de novo — teria preferido ser apenas o que foi, tal como um dia se foi, numa tarde também anônima de verão.

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sumário

Capítulo I aspeCtos geraIs do salárIo

1. Conceito .............................................................................................. 151.1. A extração da mais valia ............................................................... 151.2. O salário como contraprestação global ........................................ 181.3. Salário e remuneração .................................................................. 191.4. Outras denominações ................................................................... 20

2. os caracteres centrais do salário ......................................................... 21

3. efeitos do salário ................................................................................ 24

4. Como identificar as verbas salariais ...................................................... 274.1. O salário como prestação do empregador .................................... 274.2. O salário como efeito da relação de emprego ............................... 274.3. O salário como obrigação ............................................................. 274.4. O salário como pagamento do trabalho ....................................... 28

4.4.1. O objeto da retribuição salarial .......................................... 284.5. O salário como prestação continuada .......................................... 294.6. O salário e as exceções legais ....................................................... 29

4.6.1. O movimento de dessalarização ......................................... 304.7. Síntese .......................................................................................... 31

5. as classificações do salário ................................................................. 31

Capítulo II salárIo em utIlIdades

1. Introdução .......................................................................................... 33

2. Características .................................................................................... 34

3. utilidades mais comuns ...................................................................... 363.1. Moradia ........................................................................................ 363.2. Alimentação .................................................................................. 373.3. Transporte .................................................................................... 373.4. Vestuário ....................................................................................... 383.5. Higiene ......................................................................................... 38

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4. descontos ........................................................................................... 38

5. utilidades e salário mínimo .................................................................. 39

6. o salário utilidade e a dessalarização ................................................. 39

Capítulo III o pagamento do salárIo

1. algumas perguntas importantes ......................................................... 41

2. Quem paga .......................................................................................... 41

3. a quem se paga ................................................................................... 42

4. Quando se paga ................................................................................... 42

5. Quanto se paga ................................................................................... 43

6. Como se paga ...................................................................................... 45

7. onde se paga ....................................................................................... 46

8. o que acontece quando não se paga ................................................... 46

9. Como se prova o que se paga .............................................................. 46

10. Como se prova o que foi pago a mais ................................................. 47

Capítulo IV eQuIparação salarIal

1. Introdução .......................................................................................... 49

2. a visão da oIt. alguns aspectos sociais e psicológicos ...................... 51

3. evolução legislativa ............................................................................ 52

4. equiparação por identidade ................................................................ 534.1. Identidade funcional .................................................................... 554.2. Identidade produtiva .................................................................... 574.3. Identidade qualitativa ................................................................... 574.4. Identidade de empregador ............................................................ 58

4.4.1. Grupo empresarial .............................................................. 584.5. Identidade de local de trabalho .................................................... 594.6. Identidade (relativa) de tempo de serviço .................................... 60

4.6.1. A questão da contemporaneidade ...................................... 604.6.2. O problema das substituições ............................................. 60

4.7. Fatores excludentes ...................................................................... 614.7.1. Readaptação profissional .................................................... 614.7.2. Quadro de carreira .............................................................. 61

4.7.2.1. Exceções à exceção: quando o quadro de carreiranão elide a equiparação salarial ............................ 62

4.7.3. Impossibilidade de comparação ......................................... 634.7.3.1. Cargos de confiança .............................................. 64

4.7.4. Equiparação no setor público ............................................. 64

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4.8. O objeto da equiparação ............................................................... 654.9. Ação equiparatória ....................................................................... 664.10. Ação de reenquadramento ............................................................ 67

5. equiparação por analogia ...................................................................... 67

6. equiparação por equivalência ou semelhança ...................................... 68

Capítulo V parCelas salarIaIs

1. aspectos gerais ...................................................................................... 69

2. Comissões .............................................................................................. 69

3. gratificações e prêmios ......................................................................... 703.1. O 13º salário ................................................................................. 72

4. abonos ................................................................................................... 73

5. adicionais salariais em geral ................................................................ 745.1. Conceito ....................................................................................... 745.2. Espécies ........................................................................................ 755.3. Natureza jurídica .......................................................................... 765.4. Princípios gerais ........................................................................... 765.5. Adicionais e habitualidade ........................................................... 76

5.5.1. Habitualidade e supressão do pagamento .......................... 775.6. Adicionais e alterações do contrato .............................................. 785.7. Adicionais e convenção coletiva de trabalho ................................ 785.8. Adicionais e base de cálculo ......................................................... 78

6. adicional de horas extras ...................................................................... 796.1. Generalidades ............................................................................... 796.2. A hora extra na Constituição ....................................................... 80

6.2.1. Turnos ininterruptos de revezamento ................................ 816.3. Pessoas excluídas.......................................................................... 826.4. Horas extras pactuadas ................................................................. 83

6.4.1. Proibição expressa de contratação de horas extras ............ 846.5. Cálculo da hora extra ................................................................... 84

6.5.1. Para se chegar ao número delas .......................................... 846.5.2. Horas extras de quem ganha por produção ........................ 856.5.3. Para se chegar ao valor das horas extras ............................ 856.5.4. Reflexos nas horas extras ................................................... 866.5.5. Reflexos das horas extras ................................................... 876.5.6. Cálculo dos reflexos ........................................................... 87

6.6. Horas extras além da 10ª .............................................................. 896.7. Supressão das horas extras habituais............................................ 896.8. Horas extras não pactuadas .......................................................... 90

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6.9. Regime de compensação............................................................... 926.10. Hora extra e jornada reduzida ...................................................... 956.11. Hora extra in itinere ...................................................................... 956.12. Horas extras e intervalos .............................................................. 966.13. Minutos extras e tolerância .......................................................... 996.14. Sobreaviso e uso de BIP, instrumetos telemáticos ou informáticos 1006.15. Duplo emprego, empregador único e promiscuidade .................. 1006.16. Horas extras e aviso prévio ........................................................... 1016.17. Hora extra da mulher ................................................................... 1016.18. Hora extra do menor .................................................................... 1026.19. Prova da hora extra ...................................................................... 1026.20. Hora extra e prescrição ................................................................. 105

7. adicional noturno ................................................................................. 1067.1. Generalidades ............................................................................... 1067.2. Conceito de noite ......................................................................... 1077.3. Valor do adicional ......................................................................... 1077.4. Pessoas excluídas.......................................................................... 1087.5. Horário misto ............................................................................... 1087.6. Cálculo e prova ............................................................................. 1087.7. Dupla incidência .......................................................................... 1107.8. Alteração de turnos ...................................................................... 1107.9. Habitualidade ............................................................................... 1107.10. Trabalho noturno da mulher ........................................................ 1117.11. Trabalho noturno do menor ......................................................... 111

8. adicional de transferência .................................................................... 1118.1. Generalidades ............................................................................... 1118.2. Momentos e formas de transferência............................................ 112

9. adicionais de insalubridade e periculosidade ..................................... 1139.1. Generalidades ............................................................................... 1139.2. Pontos em comum e primeiras diferenças .................................... 1159.3. Outros pontos destoantes ............................................................. 118

10. o salário mínimo ................................................................................... 11910.1. Generalidades ............................................................................... 11910.2. Tipos ............................................................................................. 12110.3. Indexação e pisos salariais ............................................................ 12210.4. Outros pontos importantes .......................................................... 122

Capítulo VI parCelas não salarIaIs: gorjetas, dIárIas,

ajudas de Custo e partICIpação nos luCros

1. Introdução .............................................................................................. 125

2. gorjetas .................................................................................................. 126

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2.1. Conceito ....................................................................................... 1262.2. Origem e etimologia ..................................................................... 1262.3. Causas .......................................................................................... 1272.4. Tipos ............................................................................................. 127

2.4.1. Tipos paralelos .................................................................... 1282.5. Natureza das gorjetas ................................................................... 1282.6. Natureza dos reflexos ................................................................... 1292.7. Estimativa das gorjetas ................................................................. 1302.8. Gorjetas sem reflexos ................................................................... 1302.9. Gorjetas e salário mínimo ............................................................ 1312.10. Gorjetas e alterações do contrato ................................................. 1312.11. Projetos de lei sobre gorjetas ........................................................ 131

3. diárias e ajudas de custo .................................................................... 1323.1. Aspectos gerais ............................................................................. 1323.2. Instrumentos de trabalho e indenizações ..................................... 1323.3. A obrigação de fornecer os meios de trabalho ............................. 1323.4. Aspectos específicos das diárias ................................................... 1333.5. Aspectos específicos das ajudas de custo ..................................... 135

3.5.1. Espécies .............................................................................. 1363.5.2. Figuras afins ....................................................................... 137

4. participação nos lucros e resultados ................................................... 138

referências bibliográficas ........................................................................... 141

Colaborações informais .............................................................................. 147

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Capítulo I

ASPECTOS GERAIS DO SALÁRIO

1. ConCeIto

Se perguntarem a um de nós o que é o salário, talvez respondamos algo assim:

“É o que um homem, trabalhando para outro, recebe em troca de seu trabalho(1).”

Mas um conceito como este, embora correto, não seria completo — pois esconde dois fenômenos importantes.

De um lado, porque, num sentido mais superficial, o que há é mais do que uma troca pura e simples. Ou — se preferirmos dizer assim — é uma troca que pode envolver não só o trabalho, mas a falta dele.

De outro lado, porque, em sentido mais profundo, o que há é menos do que uma troca. Ou — mais exatamente — é uma troca desigual. Uma troca... com um troco.

Invertendo a ordem das questões, vejamos primeiro porque a troca é desigual.

1.1.  A extração da mais-valia

Como ensina Marx, o empregador não paga ao empregado todo o valor que este incorpora ao produto. Fica com a sobra, com o lucro — a mais valia.

Como se dá essa operação?

Tentemos explicá-la da forma mais simples.

(1) BERTRAND, Louis. La Rémunération du Travail en Régimes Capitaliste, Coopératif, Socialiste. Bruxelas: L’Eglandine, 1930. p. 20.

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A natureza nos oferece, a todo momento, coisas úteis e inúteis. Nós mesmos, ao criarmos essa outra natureza que nos cerca, a cada instante construimos ou destruimos objetos que nos servem, nos desservem ou nos são indiferentes.

O problema é que o mundo natural nos foi dado; ao passo que o mundo artificial tem de ser conquistado palmo a palmo. No mito bíblico, Adão podia colher sem esforço todas as frutas — salvo a maçã. Na vida real, devemos trabalhar para comê-las.

Ora, é o trabalho que transforma a argila num pote de barro. É ele que faz uma coisa inútil se tornar útil. E como entre as coisas úteis estão as mercadorias, o trabalho se insere também nelas. Ele está dentro do pote de barro — invisível, misturado, objetivado.(2) Compõe o próprio objeto.

Pois bem. Toda mercadoria tem um valor de uso e um valor de troca. O valor de uso é o valor — maior ou menor — que nós lhe damos, em razão daquilo mesmo que ela nos dá. Por isso, é algo variável e subjetivo. Um laptop pode valer muito para você e ser inútil para um lavrador. E com a enxada acontece o inverso.

Já o valor de troca revela qual o preço de uma mercadoria em relação a outra. Por isso, é algo objetivo e bem mais estável. Uma caixa de fósforos, na prateleira de um supermercado, vale sempre o mesmo tanto, seja qual for o comprador.

Mas o que a faz a caixa de fósforos valer 100 mil vezes menos do que um automóvel? O que a faz ter um maior valor de troca?

Na base de tudo está — ainda uma vez — o trabalho, ou mais exatamente a força de trabalho. O valor de troca de uma mercadoria será maior ou menor conforme a quantidade de energia que o operário usou(3). É ela que faz uma caixa de fósforos valer 100 mil vezes menos do que um automóvel.

Naturalmente, outros fatores entram em jogo. Mas o básico é mesmo a força de trabalho. A própria máquina é construída por ela — trazendo, dentro de si, o resultado do esforço humano. Dentro de um velho moinho de pedra ou do mais refinado robô, há sempre trabalho morto, produzido algum dia por trabalho vivo.(4)

Pois bem. Com o sistema capitalista, a própria força de trabalho se torna mercadoria. Do mesmo modo que compra sapatos e alfaces, o trabalhador vai ao mercado oferecer os seus serviços No entanto, trata-se de uma mercadoria diferente, já que — ao contrário dos sapatos ou alfaces — ela foge para sempre das mãos do vendedor.(5)

(2) A última expressão é usada por Marx.

(3) Tudo isso considerando-se uma média geral.

(4) A propósito, cf. MARX, K. O Capital. vol. I., Civilização Brasileira. São Paulo: 1980, passim.

(5) A observação, que é de Marx, encontra-se bem explicada em HYMAN, Richard. Europeização ou erosão das relações laborais? In: ESTANQUE, Elisio et alii (coord.) Mudanças no trabalho e ação sindical: Brasil e Portugal no contexto da globalização. São Paulo: Cortez, 2013. p. 15.

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Na escravidão, o que se compra é o próprio sujeito. No trabalho assalariado, é a sua energia, o que representa tempo de vida(6). Mas — num caso ou noutro — o modo de executar a prestação não parece ser tão diferente — pelo menos em sua essência. Tanto o patrão do operário como o senhor do escravo modulam os corpos alheios, impondo gestos e movimentos.(7)

Qual seria o valor de troca desta nova mercadoria?

Assim como acontece com o par de sapatos ou qualquer outro bem que compramos, a força de trabalho tem valor igual à quantidade de trabalho necessária para que ela própria subsista — o que inclui, por isso mesmo, gastos com a saúde, a moradia, a comida, a qualificação e tudo o mais que permite que o trabalhador se reproduza enquanto tal.

Em outras palavras: o valor da força de trabalho é a quantidade de trabalho necessária para que o empregado — com o dinheiro recebido — a mantenha viva e atuante. Esse dinheiro corresponde exatamente ao valor que ele acresceu na mercadoria. Ele lhe acrescenta valor e este valor lhe é devolvido.

Se o trabalhador recebesse o valor de sua força de trabalho e fosse embora para casa, a troca seria igual, tanto por tanto. E era o que acontecia, possivelmente, nas antigas aldeias, com os produtos que os camponeses levavam às feiras: a ideia não era lucrar na troca do trigo pela uva, mas apenas se livrar do trigo que sobrava e receber a uva que faltava.

Já na fábrica, porém, as coisas se passam de outro modo. A troca não é tanto por tanto. Mesmo depois de acrescer na mercadoria um valor igual ao necessá-rio para manter sua força-trabalho, o operário continua a trabalhar. Embora não o perceba, essas horas a mais lhe são sonegadas. São elas que produzem a mais valia.

Naturalmente, nem todos os trabalhadores ganham a mesma importância, mas também nem todos têm iguais necessidades — inclusive as subjetivas. Além disso, o operário especializado é como se fosse um múltiplo do operário sem qualificação.

Essa possibilidade de exploração — maior ou menor — da força de trabalho abre espaço para as lutas operárias e as resistências patronais. E elas acontecem a cada instante, minuto a minuto, não só quando a regra jurídica está sendo feita, mas em seu momento seguinte, quando ela é submetida à prova nas relações concretas de trabalho(8).

(6) A observação, também enraizada em Marx, foi-nos lembrada pelo amigo José Dari Krein, professor de Economia do Trabalho na Unicamp; e é objeto de inteligentes observações em dissertação de mestrado de BRANT, Matheus Campos Caldeira, recém-publicada, sob o título A música e o vazio no trabalho: reflexões jurídicas a partir de Hannh Arendt.

(7) É claro que o Direito impõe limites à exploração do operário, ao contrário do que costuma acontecer em relação ao escravo; mas não é disso que estamos falando aqui. De certo modo, a diferença é mais externa à execução da prestação. Você compra o homem ou o tempo do homem (e nisso está a diferença); mas num segundo momento, você dispõe (substancialmente da mesma forma) sobre o corpo de um ou de outro.

(8) Sobre as resistências patronais, cf. PIMENTA, Raquel Betty Freire; e ainda BARBATO, Maria Rosaria; Pereira, Flávia Souza. Proteção em face de condutas antissindicais: a ausência de uma legislação

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Talvez também se possa dizer, por tudo isso, que esses conflitos — visíveis ou invisíveis, individuais ou coletivos — carregam todo um simbolismo. Eles denunciam, a cada vez, a condição de dependência do empregado diante de seu patrão, ou do trabalho frente ao capital.

Note-se que há outras formas de explicar a relação entre os preços e o valor do salário. Mas esse modo de ver as coisas — que Marx examina de modo completo — tem ainda muito prestígio.

Vejamos agora porque a troca pode envolver o não-trabalho — embora esse fenômeno seja mais aparente do que real.

1.2.  O salário como contraprestação global

Se observarmos a nossa volta, veremos que nem sempre o salário é a resposta direta e precisa a um gasto de energia. Mesmo se nos abstrairmos da mais-valia, a troca não é tanto por tanto, como costuma acontecer nos contratos de compra e venda. Assim, ainda que o empregado esteja apenas esperando que algum trabalho lhe seja entregue, deve receber por esse tempo.

É por isso que, para Deveali, salário é

(...)a remuneração correspondente ao fato de o trabalhador pôr suas energias à disposição do empregador(9).

Aliás, em certos casos, o trabalhador nem sequer está disponível, e ainda assim deve receber a sua paga. É o que se dá, por ex., nas férias. Mas a razão é simples. Como ensina Ramirez Gronda, o contrato de trabalho

(...) é sinalagmático em seu conjunto, e não prestação por prestação(10)

Desse modo, aquela “disponibilidade” referida por Deveali tem também um caráter global. É por estar empregado (e não exatamente por ter trabalhado) que o trabalhador faz jus ao salário, embora em geral seja preciso que ele tenha prestado serviços ou ficado à disposição do empregador.

Daí a lição de Delgado:

Salário é o conjunto de parcelas contraprestativas pagas pelo empregador ao empregado em função do contrato de trabalho(11)

sistemática protetiva e os novos ataques ao direito fundamental à liberdade sindical. Disponível em: <www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9a49a25d845a483f>.

(9) DEVEALI, Mario L., Lineamientos de Derecho del Trabajo. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1953. p. 239 (tradução nossa).

(10) Apud RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: José Konfino, 1972.

(11) Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004. p. 681 (grifamos).