Marco Buti Doutorado

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marco buti doutorado

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    Esta tese foi defendida na Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo perante a seguinte banca examinadora: _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Prof. Dr. Presidente

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    IR, PASSAR, FICAR

    Tese de Doutorado em Artes Plsticas Orientador: Profa. Dra. Maria do Carmo Costa Gross Aluno: Marco Francesco Buti

    1998

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    Agradecimentos orientadora deste trabalho e a todos os artistas. Pela ajuda prestada na montagem final de textos e imagens, agradeo em especial a Antonio Henrique Sobrinho, Fbio Seiji Massui, Joo Luiz Musa, Madalena Hashimoto, Moacir Simplcio, Nivaldo da Silva Flix e Rolando Adolfo Farias.

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    Vspera: as horas que formam o longe.

    Guimares Rosa. Grande Serto:Veredas

    INTRODUO

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    No mbito artstico, acadmico tem sentido pejorativo. Refere-se s academias de Belas-Artes, que a partir do sculo XVI foram responsveis pela formao do artista, e onde se desenvolvia o debate esttico. Com o passar do tempo, os modelos clssicos foram se tornando inadequados para expressar o mundo, mas continuaram em vigor, transformados de conhecimento em imposio aos novos artistas. A partir do Romantismo, o ensino tradicional de arte foi cada vez mais posto em xeque, e juntamente com as novas correntes artsticas propunham-se tambm alternativas para a formao em Artes Plsticas. Todas tentaram se diferenciar das academias, e a palavra acadmico passou a designar aqueles artistas presos imitao do clssico erigido em modelo nico, se bem que toda imitao deveria ser considerada acadmica. O artista passou a trabalhar tentando sempre fugir da soluo pr-estabelecida, embora apenas uma minoria o consiga de fato. Na Universidade, acadmico tem um sentido totalmente diferente. Provm da Academia original, platnica. Refere-se ao ensino de nvel mais elevado, pesquisa rigorosa, a um conjunto de atividades que garantam a gerao e transmisso de conhecimento, com metodologias zelando pela qualidade e segurana dos resultados. Estes devem ser comprovados e justificados, fundamentando um saber real e no meras opinies. A Universidade o lugar privilegiado da reflexo, voltada ao ensino e pesquisa, que devem aspirar ao mais alto nvel, responsveis pela formao de uma cultura, de profissionais e de seus prprios quadros futuros. No mbito universitrio, acadmico o reconhecimento do saber, de um saber em desenvolvimento constante. 1

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    Se o artista procura operar sem modelos, creio que esta busca pode se estender ao texto complementar ao trabalho artstico. Sua forma no deve ser estabelecida a priori, mas parte do mesmo processo que gera a potica visual. mais um problema a ser resolvido, com a finalidade de atingir o padro de excelncia desejado pela Universidade. Ou seja, o artista encontra-se na ambgua posio de ser Acadmico sem ser acadmico. Para se tentar atingir o patamar de qualidade mais elevado, h que se respeitar em primeiro lugar o rigor e as exigncias da prpria arte, fundados na necessidade e na paixo, dificilmente quantificveis. No h texto perfeitamente formalizado capaz de transformar em arte o que no acontece de fato na obra. No creio que devamos aceitar, no mbito Acadmico, uma idia bastante aceita nos espaos artsticos: tudo que apresentado ali pode ser considerado arte. Em Poticas Visuais, a pesquisa em arte deve ser realmente Arte. Se no fr, uma pesquisa intil. 2

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    I O trabalho de Doutorado a exposio de gravuras intitulada Ir, Passar, Ficar, realizada no Centro Cultural So Paulo em maro de 1999. S quem visitar a montagem completa poder apreci-la plenamente. A obra de arte emite toda sua intensidade apenas pelo contato direto, e outras

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    aproximaes resultam empobrecedoras. No h registro totalmente satisfatrio. As gravuras apresentadas como Tese de Doutorado foram realizadas de 1992 a 1999. Apresento desde a primeira gravura subseqente ao trabalho de Mestrado at a ltima que terei conseguido realizar e considerar digna de figurar nesta exposio. O desenvolvimento da srie de gravuras exibidas em 1994, na exposio Estruturas Inevitveis, quando obtive meu ttulo de Mestre, foi a gnese do trabalho atual. Embora s tenha ingressado no Programa de Doutorado em 1995, esse trabalho comeou antes do trmino do Mestrado. No poderia postergar o incio, j que o processo artstico depende de uma complexa e delicada teia de reaes subjetivas, e no pode adiar sua realizao, sob pena de no acontecer. Porm so poucas as gravuras de 1992 e 1993; foram anos de busca com escassos resultados. O trabalho comeou a tomar corpo em 1994, no est terminado agora e continuar por prazo indeterminado. No posso encerrar um processo orgnico por um ato de vontade. O artista que produz apenas visando a oportunidade de exibio considerado pouco srio. A verdadeira realizao acompanhada por um processo invisvel e contnuo. No h como garantir objetivamente o sucesso das tentativas, mesmo trabalhando sempre no limite. Quando um artista tido como um Mestre, trata-se do reconhecimento de toda uma vida de buscas que gerou uma obra de fato. a avaliao mais exigente e segura. Creio que um ttulo Acadmico deve corresponder existncia dessa obra, mesmo em processo. Mas, se nos limitamos a prazos demasiadamente curtos, como saber se aqueles poucos anos no seriam uma promessa irrealizada, uma maturidade forada, ou j uma decadncia definitiva?

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    IR

    A obra visual realizada, mas realizada de fato, at s ltimas conseqncias, supera o

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    artista, emancipa-se das referncias, adquire vida prpria, emite freqncias fora do espectro verbal. O que resta palavra? 7

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    A primeira viso impressiona por faltar a memria percepo. Um segundo olhar pode corrig-la a ponto de mostrar que tudo fra apenas equvoco. A repetio contnua pode apagar os estmulos e transformar a surpresa em tdio. A repetio contnua pode revelar o que sempre foi e nos aguardava. Um instante pode refazer a histria do lugar. Quando estamos mais prximos do real?

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    Cada trao um momento de vida irrepetvel, cada desenho uma performance. No h volta na trajetria da linha.

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    11 O desenho no espontaneidade sem inteno, gesticular desorientado, iluso de liberdade sem limites.

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    13 A geometria cria figuras ideais, abstratas, simblicas, sagradas, pertencentes a uma esfera matemtica e metafsica, tida s vezes como mais real que o mundo humano. Sua origem a medio da terra.

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    15 A riqueza visual do mundo, a expressividade natural do corpo, o nmero e o invisvel se completam.

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    17 Desenhar um verbo intransitivo. Antes de pensar em abstrato e figurativo, passado e contemporaneidade, prudente atentar para o ser que j se manifesta. Os traos no papel, antes de se organizar como estrutura visual que possa ser classificada, possuem alguma

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    vida, mesmo ainda incapazes de eleger sua inteno. 19 A pergunta O que desenhar? no tem sentido. O que tentamos captar est escapando apreenso consciente. Desenhamos algo querendo dizer mais, procuramos o invisvel no espelho visvel. O desenho mais simples denota uma existncia

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    no mundo, uma identidade em formao. Manifesta-se tateando, escolhe sem saber, segue uma direo que s reconhecer mais tarde. Desenha. 21 O olhar opera por iluses e certezas que se invertem constantemente. Para traar um rumo, elege-se uma referncia fora de si.

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    23 Nossa mente est sempre aqum da compreenso global do desenho em processo. Foi possvel elaborar uma lei de contrastes simultneos para a cr como fenmeno tico; mas no ato potico, a simultaneidade abrange o pulsar de todas as relaes, unindo o material e o mental, o consciente e o inconsciente.

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    25 Compreender melhor o desenho no s ver mais ampla e profundamente, mas antever, ou ao menos vislumbrar a construo no tempo e no espao. O grande desenho seria ver e desenhar simultaneamente o verso e o reverso.

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    27 O desenho est completo apenas no passado e no futuro. No passado, por j ter sofrido e incorporado definitivamente a ao do real. No futuro, por ainda no t-la sofrido, correspondendo ainda inteno original. O presente oscila, podendo coroar ou destruir nossos projetos. Somos forados deciso, um ato tico e esttico. Se acertamos, fizemos modestamente coincidir o desejo com a possibilidade.

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    29 O incio do desenho no coincide com o primeiro trao no papel. O ltimo ponto no final.

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    31 O desenho constri relacionando linhas, formas, qualidades, manchas, materiais, escalas, direes. Pode ser um projeto, uma rota, um caminho, um mapa, uma viagem. Se orienta deslocamentos, construes temporais e espao-temporais so tambm desenhos: coreografias, roteiros, partituras, tticas, estratgias, uma cidade, um pas.

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    33 Desgnio e desenho tm a mesma raiz: signo. Mas no estaria faltando algo, gerando a inteno que dirige o ato de desenhar, um desejo anterior ao desgnio?

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    35 O sentido original de desejo cessar de ver, constatar e deplorar a ausncia, de onde procurar, desejar. Se o desenho nasce da ausncia, confirma a humanidade do artista, incompleto como todos. O desejo associado reflexo torna-se ato voluntrio, desgnio, desenho.

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    37 Se a manifestao intencional do desejo torna-se desenho, no s no plano do papel, mas no espao e tempo reais, gerando fatos, comprometimentos, conseqncias, escolhas e responsabilidades, buscando um fim, no deveramos acrescentar o destino ao conceito de desenho?

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    39 Desejo, desgnio, desenho, destino. Estas palavras no seriam adequadas realizao de um projeto artstico srio, sofrendo, ao manifestar-se no mundo, seus atritos, reconhecendo e cedendo a outras realidades, mas tambm sendo intransigente com estmulos e obstculos que, aceitos, transformariam a arte em atividade banal, destruindo a dignidade do artista?

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    41 No teria toda vida necessidade de uma forma, desconhecida a priori, construda ao decidir e passar ao, no tempo e no espao, desenhando uma imagem em movimento que s poder ser vislumbrada nos ltimos instantes? E no seria neste sentido que poderamos pensar todo ser como artista, muito mais que pela prtica de atividades reconhecidas como arte?

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    43 Vida, morte. Durante esta passagem, as decises, os atos perpetrados, o trabalho realizado, fazem diferena?

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    45 A inciso a marca primordial do ser humano, seu primeiro signo intencional, produzido por algum instrumento cortante sobre uma superfcie dura. Aspira permanncia, retarda o apagamento, sobrevive em fragmentos de muralhas h muito desabadas.

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    47 A escrita filha da imagem. A inteligncia, o intelecto, a emoo, a sensibilidade, so atributos do ser humano tanto quanto o andar ereto e a mo; a ferramenta to cultural quanto a linguagem. A inquietao do homem encontrou expresso plena na sntese visual antes de surgir o registro do verbo. As duas linguagens originalmente recorreram ao mesmo meio para fugir ao esquecimento: a inciso.

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    PASSAR

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    Se o signo inciso fica e se multiplica, a gravura como processo, o ato de gravar e imprimir, permanecem na obscuridade: os acontecimentos invisveis deflagrados por um desejo que busca um objetivo, passa para a matria, fica gravado. Esse territrio s acessvel ao prprio artista, mas ele no tem o domnio da situao: busca, no pesquisa. So duas procuras de naturezas diferentes: o artista est dentro, sujeito e objeto, provoca e sofre.

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    53 A gravura um fazer sem contradio entre artesanato e conceito. Como tantas outras manifestaes, o engajamento fsico do artista participa da intensidade do significado. Gravar no uma finalidade em si, mas continuidade do pensar atravs da matria. Nem puro conceito, nem ao mecnica. Como toda obra plstica, uma gravura literalmente pensamento visual: est impregnada pelos conceitos do artista sobre mundo, homem, arte.

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    55 A tcnica da gravura no est auto-centrada, mas dirigida pelas exigncias de linguagem e paixo. O artista organiza qualidades sensveis: uma sintaxe rigorosa, cujo sentido se vincula materialidade. Suas relaes so rima, msica, ritmo: linguagem potica.

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    Um ateli de gravura tem vrios equipamentos e atividades manuais em processo. Parecem a chave para a realizao, mas maior destreza no corresponde necessariamente a melhor obra. As atividades mentais, que no podem ser observadas, so a face invisvel dos procedimentos. Cada lance da gravao implica numa cadeia de outros, at imagem impressa. Como no xadrez, pensa-se por antecipao: o deslocamento das peas no todo o jogo.

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    59 O ateli no um laboratrio. Mesmo de maneira oblqua, o sujeito e o objeto das experincias visuais sempre e unicamente o ser humano integral. Uma substncia complexa e insubstituvel, preciosa demais para ser tratada exclusivamente com a razo.

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    A imagem impressa registra um processo, concretizado por meio da tcnica. A princpio, annima, aberta para as solicitaes de um usurio indefinido. medida que utilizada, vai absorvendo a identidade do autor.

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    Gravar e imprimir um processo de concepo contnua, cujos momentos so indissociveis e igualmente privilegiados. 65

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    A tcnica de gravura no um conjunto fechado de regras e procedimentos tradicionais ou experimentais, a ser aprendido e seguido, ignorando a realidade vivida do artista. O que foi inovador, integrado sua praxis original, j no ser mais, repetido por outros. Uma potica contempornea pode exigir tambm meios tidos por tradicionais. Tudo depende de uma necessidade de realizao procurando traduzir-se da maneira mais fiel. Um manual semelhante a um dicionrio - que no acerta nunca o matiz preciso, segundo Borges. Um livro a ser consultado, para ajudar a construo de uma potica que no prev nem poderia conter. 67

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    FICAR

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    A tcnica vivida, pessoal, serve unicamente para a realizao daquele trabalho, em cuja busca poder inclusive subverter a tcnica annima. Ao contrrio desta, uma atividade de risco, que opera sempre no limite das possibilidades, na linha divisria entre a realizao plena e o fracasso. mais que experimental: soma das experimentaes com sua crtica. Estende suas exigncias ao espao do ateli: se o coletivo uma oficina com recursos para todos, o ateli do artista torna-se uma extenso da sua mente e do seu corpo. No nvel tcnico assim entendido, j comeam a se definir os valores do autor. Se o compromisso, ao trabalhar artisticamente no plano material, com a estruturao de uma linguagem visual potica, intensamente significativa, ao menos para o artista, e talvez para o eventual espectador, contribuindo para a construo de ambos como seres humanos, ento existe, j no nvel tcnico, um fundo tico em cada ao. 71

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    opo, no plano tcnico, por determinados instrumentos, pela experimentao com certos materiais, por meios foto-mecnicos ou artesanais, pela combinao de tudo isto, corresponde um conceito de arte, posturas ticas, estticas e polticas, um lugar no tempo e no espao, um pensar, um sentir. 73

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    O sentido de fazer uma imagem potencialmente mltipla hoje, quando a reproduo e o simulacro se tornaram regra, inteiramente distinto de pocas em que a gravura era a nica imagem com tal caracterstica. As mesmas operaes descritas num manual antigo, executadas hoje, no so mais as mesmas, inseridas em outra dimenso temporal.

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    A gravura tornada estampa a primeira imagem a se antecipar ao olhar. No o aguarda, mas vai at ele. feita para o homem comum. Junto com o livro impresso, instala-se nas casas, ameaando a intimidade com o conhecimento. Parece um objeto de uso inofensivo, mas sempre pronto a tornar o olhar menos inocente. Se o espao real e pblico privilegia a escultura, o espao real e privado privilegia a gravura. Uma na praa, outra na mo. Em algum momento, o psquico se socializa, o ntimo torna-se poltico.

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    A arte de nosso sculo tentou abolir os limites entre palco e vida. Toda ao pblica ou privada uma performance. Praticada fora do espao artstico, sem uma audincia especializada, mas responsvel. A platia a sociedade.

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    O objetivo final da arte contribuir para a realizao do ser humano integral. Justamente por isso, est ligada ao destino do homem, compartilhando os mesmos perigos. Contemporaneamente, como resultado de um longo processo de alienao, a impossibilidade da experincia real num mundo mediatizado um dos focos da produo artstica. No entanto, coexistem muitos presentes num mesmo tempo. Ainda no possvel distribuir mais equilibradamente nem esta questo entre todos os seres humanos. O mundo, embora virtualmente globalizado, na realidade continua mantendo uma distribuio de riqueza desigual, sem dar sinais concretos de querer super-la. A mediatizao completa da existncia integralmente acessvel apenas s camadas mais abastadas da sociedade, numerosas somente nos pases centrais do sistema capitalista. So os mesmos estratos sociais que produzem a alienao, detm e veiculam a informao, institucionalizam a cultura, operam o mercado de arte, controlam o acesso ao circuito artstico. So os mesmos estratos sociais a que pertence ou quer pertencer a maioria dos artistas, crticos, curadores, diretores de museu e donos de galerias. A impossibilidade da experincia hoje um dado inevitvel da existncia humana, ou um privilgio das classes dominantes?

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    Boa parte do desenvolvimento da pintura foi ir em busca da luz. Para os artistas nascidos no Norte da Europa, significava ir para o Sul. Durante sculos, a grande meta era a Itlia. Drer, Rubens, Velsquez, fizeram viagens de estudos pennsula. Poussin e Claude Lorrain passaram a maior parte da vida em Roma, onde realizaram sua obra. As viagens de Turner a Veneza, Npoles, Roma, transformaram seus pigmentos em luz e ar. Corot buscou o tom exato nos campos romanos. O destino dos trs artistas mais fundamentais para a pintura moderna estava no Sul: Arles, Taiti, Aix-en-Provence. Quando Roma deixou de ser o centro artstico do mundo, os pintores foram para o Norte da frica: primeiro Delacroix, depois Klee e Matisse, que residiu longamente no Sul da Frana, prximo a Renoir e Bonnard. O Mxico atraiu e atrai muitos artistas norte-americanos. A luz smbolo de conhecimento e revelao. Sempre estivemos nela. O que vimos?

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    Na Europa, romper com os modelos artsticos, voltando-se para o futuro, significou buscar a renovao de uma cultura sobre a qual, literalmente, se pisa. Um desenvolvimento contnuo, atravs de sculos de realizaes, acabou levantando seu prprio questionamento. No Brasil, a busca do novo no levar tambm ao passado, procurando construir, finalmente, o cho que sempre faltou?

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    A partir do Romantismo, muitos artistas se tornaram referncias na histria da arte mais pelo que ocultavam do que pelo trabalho exibido. Constable, Turner, Corot, guardavam o que as instituies oficiais da poca no teriam admitido nos seus espaos. Kafka quis destruir sua obra. Devemos desobedincia do amigo Max Brod a publicao de seus livros. O Salo dos Recusados tornou-se mais importante que o oficial. freqente nas escolas de arte os alunos produzirem excelentes trabalhos e apresentarem outros, mais condizentes com a ideologia artstica do professor, porm inferiores. O tempo, mais equnime (ou indiferente), costuma emitir os pareceres mais justos. Encontraremos mais arte nas obras expostas em grandes feiras artsticas, ou nos atelis das escolas, nos primeiros esforos de alguns jovens artistas?

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    Quando a obra de arte mais plena? Ao ser concebida? Ao ser realizada? Ao ser terminada? Ao ser exibida? Ao ser comentada? Ao ser reconhecida? Ao ser consagrada? Ao ser esquecida? Ao ser redescoberta? Ao ser vulgarizada?

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    O mundo complexo. Nem arte, nem cincia, nem filosofia conseguem compreend-lo plenamente. No h resposta absoluta para suas perguntas, nem olho capaz de ver simultaneamente todos os ngulos. Muito conhecimento definitivo j se revelou ilusrio. Temendo parecer ingnuo, ao tomar posio, busca-se refgio na ironia, no cinismo, no niilismo, no ftil, no perverso, no repulsivo. No ser outro ngulo da ingenuidade?

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    Durante muito tempo, valorizou-se apenas a obra acabada. Passou-se a dar valor tambm ao processo que gerava aquela obra, atravs dos desenhos. Com muitos artistas, chegamos a apreciar mais os esboos ocultos do que as realizaes expostas. O pensamento puro pareceu mais digno de ateno que o trabalho, a teoria mais que a prtica. Preferiram-se as atitudes s obras, procurou-se negar o prprio conceito de arte. O trabalho fsico foi considerado pouco digno do artista. Tentou-se nivelar arte e informao. Mas como impedir o surgimento de novos artistas?

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    Quando o artista mais artista? Ao receber as experincias que se tornaro obra? Ao conceber um trabalho? Ao dar-lhe forma sensvel? Ao torn-lo pblico? Ao pronunciar-se por meio da fala e da escrita? Ao procurar compatibilizar sua atividade com as vrias instncias dos vrios poderes? Ao tornar-se referncia para outros artistas? Ao tentar transmitir um conhecimento fundado na experincia vivida e intransfervel, e no em bibliografias? Ao optar continuamente por manter-se disponvel ao trabalho da obra?

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    A sinceridade do artista sintetiza clculo e naturalidade, humildade e fico. A experincia acumulada reduz tudo expresso mais simples e complexa. O artista parte para um espao que continha sua medida. 97

    IR

    pg. 6 - 1992;14,6 cm x 15,5 cm pg.30 - 1996; 30 cm x 52 cm ponta-seca gua-tinta pg. 8 - 1992; 45 cm x 45 cm pg.32 - 1996; 30 cm x 60 cm

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    ponta-seca/gua-tinta gua-tinta pg.10 - 1994; 40 cm x 30 cm pg.34 - 1995; 30 cm x 50 cm gua-tinta gua-tinta pg.12 - 1994; 20 cm x 40 cm pg.36 - 1995; 45 cm x 45 cm gua-tinta gua-tinta pg.14 - 1994; 20 cm x 40 cm pg.38 - 1995; 30 cm x 50 cm ponta-seca/gua-tinta gua-tinta pg.16 - 1993; 26 cm x 60 cm pg.40 - 1997; 30 cm x 40 cm ponta-seca/gua-tinta gua-tinta/roleta pg.18 - 1994; 20 cm x 40 cm pg.42 - 1997; 30 cm x 40 cm gua-tinta gua-tinta/roleta pg.20 - 1995; 30 cm x 60 cm pg.44 - 1998; 30 cm x 40 cm gua-tinta gua-tinta/roleta pg.22 - 1995; 35 cm x 49 cm pg.46 - 1997; 30 cm x 40 cm gua-tinta/roleta gua-tinta/roleta pg.24 - 1995; 32,8 cm x 55 cm pg.48 - 1996; 30 cm x 52 cm ponta-seca/gua-tinta gua-tinta/roleta pg.26 - 1996; 30 cm x 60 cm pg.50 - 1998; 30 cm x 53,5 cm gua-tinta roleta pg.28 - 1996; 30 cm x 60 cm gua-tinta

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    PASSAR pg.52 - 1995; 36 cm x 40 cm pg.78 - 1993; 30 cm x 40 cm photo-etching maneira-negra pg.54 - 1995; 32,5 cm x 45,5 cm pg.80 - 1994; 40 cm x 30 cm photo-etching maneira negra pg.56 - 1995; 20 cm x 29 cm pg.82 - 1995; 40 cm x 30 cm

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    photo-etching maneira-negra pg.58 - 1995; 28,7 cm x 19 cm pg.84 - 1995; 30 cm x 40 cm photo-etching maneira-negra pg.60 - 1997; 40 cm x 40 cm pg.86 - 1995; 30 cm x 40 cm photo-etching maneira-negra pg.62 - 1998; 23,5 cm x 36 cm pg.88 - 1997; 30 cm x 40 cm photo-etching maneira-negra pg.64 - 1998; 19 cm x 18 cm pg.90 - 1995; 30 cm x 40 cm photo-etching maneira-negra pg.66 - 1998; 25 cm x 38 cm pg.92 - 1997; 30 cm x 40 cm photo-etching maneira-negra pg.68 - 1998; 22,8 cm x 19 cm pg.94 - 1995; 40 cm x 30 cm photo-etching maneira-negra pg.96 - 1997; 40 cm x 30 cm maneira-negra FICAR pg.98 - 1997; 26,3 cm x 20,5 cm maneira-negra pg.70 - 1994; 14,3 cm x 19,7 cm maneira-negra pg.72 - 1994; 20 cm x 40 cm maneira-negra pg.74 - 1993; 40 cm x 30 cm maneira-negra pg.76 - 1993; 40 cm x 30 cm maneira-negra

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    II

    O meu interesse pela fotografia coincide com o incio deste trabalho. um perodo muito mais curto do que a minha experincia de gravador, e fotografo sem uma formao especfica e estudos organizados. Para mim, no fundo, outra maneira de desenhar e gravar. Mas a fotografia acompanha agora todo meu processo de trabalho. Algumas so transmitidas diretamente chapa de metal com emulses fotosensveis e corroses, outras sugerem imagens gravadas que guardam semelhanas essenciais com as fotografias. A maioria tirada sem projeto definido, apenas para registrar um instante, uma luz, um espao. Mas percebo que

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    desenhando, gravando ou fotografando procuro sempre as mesmas vias. O desenho um s. Essas fotografias foram tiradas em vrias cidades que so uma s: aquela criada por minha presena. A qualquer momento, em qualquer lugar, podemos nos deparar com a Imagem, se estivermos atentos. Nenhum ponto da Terra privilegiado, mais generoso visualmente. nosso olhar que deve ser generoso, concedendo ao cu, s sombras, ao cho, o mesmo cuidado dispensado ao museu e galeria. Mesmo nesses locais especficos de cultura, s vezes as pessoas e o edifcio brilham mais que os trabalhos expostos. O que mais me fascina na fotografia poder captar as imagens que se apresentam, rigorosamente estruturadas, mas independentes de qualquer inteno, feitas e desfeitas a todo instante, que apenas existem num certo olhar. So soma de uma presena, um tempo, um espao, um ponto de vista. Procurando outra rua, um porto entreaberto, uma exata incidncia de luz, uma placa de trnsito fora de prumo, projetando uma sombra. As cores daquele fragmento de mundo parecem ter sido cuidadosamente escolhidas. Alguns minutos antes ou depois, um mnimo deslocamento da luz solar alteraria tudo, desfazendo a estrutura da imagem. Passando na calada oposta, ela no se revelaria. Atravs do visor, vemos um quadro que jamais saberamos imaginar. Segundo Morandi, nada mais abstrato que o real.

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    Podemos dizer que a gravura comeou com a primeira pegada impressa pelo corpo humano no solo. Gostaria que todos os meus sinais gravados tivessem a necessidade daquele ato primordial, evitando a vaidade que ronda o gesto artstico. O olhar que vai para o

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    horizonte, o corpo que passa, a pegada que fica.

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    Construir avies em miniatura caracterizou o meu trabalho artstico. Determinou uma relao de escala: nunca desejei as grandes dimenses. Uma maneira de operar se delineou, lenta, medida, delicada, precisa. Aprendi a ouvir os materiais, a considerar a precariedade do meu domnio, a aceitar a

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    incerteza do resultado. Notei que as tcnicas respondem altura s quando se aprende a dialogar com sabedoria e simplicidade. Admiti que desejo e inteno ainda no so nada, e a realizao apenas se alcana pela capacidade de fazer. E quando o produto custou esforo, o tratamos com respeito; no queremos que passe depressa demais. E como aquilo somos ns, o esforo no poderia ser compartilhado com mais ningum. A natureza da tarefa exclua a falta e o excesso, ensinando a pacincia de aguardar a hora justa para cada ao: um gesto inconseqente poria tudo a perder. O resultado era frgil e s podia voar na imaginao, asas pequenas demais para buscar um horizonte real, destinadas a ficar.

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    O rei Shakaba, da XII dinastia, por volta do ano 710 A.C., mandou gravar numa pedra de basalto negro um texto mitolgico, a fim de preservar seu contedo para a eternidade. um relato da criao do mundo. O texto foi danificado posteriormente, quando a pedra foi convertida em m. Atualmente, encontra-se no British Museum.

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    Aqui deveria figurar algo que esqueci. No anotei a idia na hora em que surgiu. Passou. Passei o dia indo em seu rastro, percorrendo os caminhos recentes do pensamento, buscando reproduzir aquele instante. Cheguei a sent-lo vagamente, mas no tomou forma. Seria belo um trabalho construdo apenas com o esquecimento.

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    110 Ir e ficar so decises, passar no.

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    preciso saber ver para desenhar, saber ouvir para tocar, ler para escrever. O artista um bom espectador.

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    114

    Espantamo-nos com as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento tecnolgico, os recursos de comunicao udio-visual distncia, a aproximao que possibilita entre seres humanos de todos os pontos do globo. H uma poesia nessa ligao sincrnica entre conhecidos distantes, ou desconhecidos, que se vem pela primeira vez atravs de uma imagem, separados por milhares de quilmetros, um no dia, outro na noite. Parece um pequeno milagre cientfico. Mais espantoso e milagroso o ser real, em carne e esprito, o outro, ao nosso lado, que

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    nos toca. um aprendizado que dura toda a vida. 116 Imagem: olhar que responde a outro olhar.

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    Veremos algumas obras apenas uma vez na vida. Gostaria de ver cada trabalho meu como um acompanhante do cotidiano, quase um objeto de uso, atingindo a intensidade pela sedimentao das pequenas experincias, quase desaparecendo pelo convvio. s vezes recordar sua existncia, procur-lo, v-lo novamente, redescobr-lo diferente. Oferecer ao espectador o ponto fixo de uma imagem esttica, onde comparar as mudanas ocorridas nele, vivente. A viso atual, o momento presente e a memria dos contatos

  • 67

    passados, como um poema relido, um filme revisto, uma msica ouvida novamente. Alm do espao pblico, alm da galeria, alm do museu, alm do cubo branco, o lugar da arte a mente e o corao. a nica questo. O resto silncio.

    120

    Para o espectador, no importa quem fez a obra, mas que ela suspenda o instante, unindo o nico e o total, a alma e a pedra. Para o artista vital, no s ter feito, mas estar fazendo. Como indivduo, o desafio do artista, seja maior ou menor, conseguir manter uma conduta esttica, onde o trabalho e o prazer no se distinguem. Os resultados j no lhe pertencem.

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    Os limites entre arte e vida nunca estiveram definidos. A experincia potica no se d necessariamente no recinto adequado. Devemos estar atentos, porque o Instante no se anuncia. tambm uma questo de qualidade: se a arte tentativa, nem sempre se consegue ir do desejo individual at a obra. Se o espectador to importante quanto o artista, poderia chegar a dispens-lo, e reconhecer o potico em algo no institucionalizado. No precisa esperar o beneplcito do artista que prope uma obra interativa. O mundo todo interativo, principalmente outro ser. A dificuldade est em no participar. Comparada com o real, a interatividade dirigida sempre sai perdendo:

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    revela muito mais limites que possibilidades. Podemos simplesmente ir embora. Mas participa-se muito de obras que impedem a manipulao. Livros, pinturas, gravuras, filmes, msicas, fotografias. Sem corpo, convidam e negam, deflagrando a imaginao. E da arquitetura, que percorremos, que nos abriga, que nos agride, que reverbera o calor e projeta as sombras.

    124

    Sob um nome comum, o artista que no se reconhece. Talvez nunca necessite escrever uma linha ou desenhar uma imagem. H vidas que so quase obras de arte, obras que so quase pessoas.

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    126

    Quando ando pela rua, estou sempre em busca do meu trabalho. Passante, espero a revelao da forma potica oculta pelo hbito, fitando a luz sempre diversa, a construo/destruio da cidade, os reflexos, o movimento, as pessoas, as sombras, os espaos. Os novos ngulos revelados pelo deslocamento do corpo no espao podem adquirir mais significado quando sugeridos por uma escultura, mas acontecem ininterruptamente. Basta ver. As limitaes do real esto em ns.

  • 71

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    As cidades, que no podem ser deslocadas, fazem com que vamos at elas. O percurso tem a mesma importncia.

  • 72

    145

    A cidade fica paisagem quando estou distrado. Para ver o que vejo todos os dias, preciso ser estrangeiro. O mundo aqui. Mas uma viagem, ir at aqui.

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    Ao trabalhar em pequena escala completa-se a percepo do real. Usam-se ferramentas que, sendo uma extenso da mo, diminuem em vez de amplificar a fora, tornando-a mais precisa. Observar o trabalho pronto convida aproximao, a desvendar os pequenos espaos, o universo dos detalhes, como uma instalao invertida, onde o corpo no pode adentrar. Esta dimenso est dentro de nossa capacidade perceptiva natural, faz parte de tudo, mas tambm precisa ser aguada. Ignorar as pequenas singularidades visveis transformar o mundo numa idia talvez perfeita mas intolerante, embotando a compreenso e o respeito pelos seres e lugares reais, pelas diferentes posturas artsticas. O p guarda um grau mnimo de majestade. Arte que s arte decepciona.

  • 74

    149

    O artista plstico no um especialista em artes plsticas. No quero que meu olhar se torne to educado a ponto de s enxergar o sutil, o inteligente, o precioso, o oculto, o conceito. Quero tambm o bruto, o evidente, o banal. Talvez o bvio esteja sempre por revelar.

  • 75

    151

    As miniaturas parecem estar a salvo dos grandes perigos, que nem as notariam, mas suas relaes com o mundo tambm so problemticas. Sempre muito frgeis, at uma aproximao mais interessada pode quebr-las. Procura-se proteg-las, do que no brutalidade, mas apenas a fora das coisas em sua escala real. Colocam-se navios em garrafas e obras de papel atrs de vidros, com pouca luz. Jamais suportariam o sol e a chuva. Atraem para sua dimenso interior, que pode ser infinita.

  • 76

    153

    As fotografias tornam o espao real mais misterioso. No temos a experincia do deslocamento do corpo, a transformao das coisas pelo olhar temporal, sua escala. Os ngulos so insuficientes. Mas podemos imaginar. s vezes a cidade decepciona.

  • 77

    155

    O fascnio do plano sua falta de espessura. Um mundo que no podemos habitar, e intil tocar. Por estar limitado a duas dimenses, mais infinito. O plano da imagem que vemos no est s: o ltimo de um slido cuja profundidade no grande nem pequena, apenas imensurvel. Nunca satisfaz. janela e parede. To longe, to perto.

  • 78

    157

    Uma miniatura como seu modelo real visto de longe. Mesmo tocada, permanece distante. Pode ser preciso se afastar para se aproximar.

    159

  • 79

    Voltar a um lugar onde se experimentou uma presena, reaviva-a, torna mais precisa a imagem mental que ficou. A cidade sentidos e imaginao, espanto e tdio, memria e esquecimento, invento e distrao, matria, espao, afeto, tempo, noite e luz. Meu ateli fica onde estou.

  • 80

    161

    A paisagem a extenso do mundo que nossa vista alcana. Mas tambm um espelho, onde o olhar atento vai alcanar o prprio observador. No revela seu rosto, mas um auto-retrato interior. Onde o espao real e mental ficam indistintos, toda rua pode ser parte do labirinto.

  • 81

    163

    Czanne dizia ser preciso pintar as coisas antes que desaparecessem. muito mais longo o tempo para uma idia esttica se formar, ser discutida, amadurecer, e, finalmente, passar a teoria, publicao, debate acadmico. Uma idia, mesmo brilhante, comea sua defasagem em relao ao mundo to logo formulada. Pretendendo fix-la, pode tornar-se um anteparo, ocultando em vez de revelar.

    165

  • 82

    Apenas para ser fiel ao mundo, o artista tenta reinvent-lo cotidianamente. As construes perfeitas no querem ter a mesma leveza. Indo em busca de sua obra, o artista parece destinado a passar pela humilhao. A escultura de Serra destruda. Uma escola de arte tenta expulsar seu maior professor, Joseph Beuys. Orson Welles no consegue financiamentos, tem filmes remontados pelos estdios, e ter roteiros inditos filmados por cineastas menores. Eisenstein retrata-se por iluso individualista. O juiz queima a aquarela ertica de Egon Schiele. San Juan de la Cruz preso por excesso de paixo religiosa. A esttua de bronze de Jlio II, de Michelangelo, destruda, fundida e transformada num canho. Todos os artistas annimos, pressionados a trabalhar menos e pior. O grande msico tocando para os clientes distrados do bar. O reconhecimento do falso artista. Viver muito perigoso.

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  • 83

    Hoje, existem tantas imagens entre o olho e o mundo que ir em busca do real chega a ser transcendente. Grande parte do trabalho do artista se livrar das iluses. As teorias estticas que antecedem a experincia potica tambm contribuem para a crise do sujeito.

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  • 84

    Uma obra. 171

  • 85

    Tentar enriquecer, com o trabalho atual, o significado de tudo que j foi realizado, aludindo ao que j existia em potncia, mas no se manifestava inteiramente, aguardando mais conhecimento, ateno, respeito pela independncia da imagem. Ao artista cabe apenas cumprir as solicitaes da obra, assentando aqui os tijolos de um projeto alm da viso.

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  • 86

    O horizonte tem um significado tanto espacial quanto temporal. Carregamos o espao nossa volta. Para qualquer lado, sempre longe. O horizonte feito de afastar, sempre futuro, um desejo, porque o tempo s ir.

    175

  • 87

    Para que as imagens surjam com preciso, devo dispor do tempo, permitindo que cada vista encontre seu momento. Continuo chamando isto de inspirao. Apress-la garantir o fracasso. Escrever este texto segue um processo semelhante revelao das imagens. Um longo tempo de acmulo de anotaes, sentimentos, lembranas, descobertas, a procura de suas ligaes, o inesperado, aguardar e construir o ponto em que tudo se junta, habita o esprito, atrai, incorpora e d sentido ao estudo. Tudo para escrever algumas linhas. Sempre tenho problemas com extenso, quantidade, prazos, modelos. Paro quando no tenho mais nada a dizer.

    177

  • 88

    III

  • 89

    H alguns anos venho me interessando pelas marcas aleatrias registradas pelas chapas de metal, e procuro incorpor-las gravao que realizo intencionalmente. Num primeiro momento, comecei invertendo o critrio de escolha das chapas de cobre industrializadas que se tornariam matrizes de gravura: em lugar de escolher aquelas que tinham sofrido menos impactos durante o transporte e a estocagem, e portanto interfeririam menos na imagem que pretendia gravar, passei a selecionar exatamente aquelas mais acidentadas, com maior nmero de riscos e atritos incisos ao acaso em sua superfcie. At o momento continuo seguindo este critrio, procurando vislumbrar, ao comprar a chapa de metal, como resultaro aqueles sinais impressos e como poderei integr-los estrutura da imagem que pretendo gravar. Desejo manter, na evoluo futura do meu trabalho, a visibilidade das marcas gravadas pelo mundo numa placa de cobre que ainda no matriz, formando um desenho que, embora aleatrio, nico e irrepetvel, singularizando aquela matria antes da minha ao.

    Outra tentativa de aliar as aes do mundo s minhas veio atravs do uso da imagem fotogrfica, tanto como uma finalidade em si quanto aplicada gravura. Em lugar de agir apenas atravs do desenho, atraiu-me a possibilidade de trabalhar com uma imagem gerada pela emanao luminosa da prpria coisa, sem t-la construdo com linhas e manchas. A fotografia passou a fazer parte do processo de trabalho, como registro, memria, procura da imagem; junto com o desenho, torna visvel o pensamento e orienta seu movimento e materializao.

    A fotografia se associa gravura para gerar imagens com a oxidao

    de chapas de ferro.Usando de vrias maneiras emulses sensveis luz, a imagem fotogrfica cria reas isoladas e outras expostas oxidao. Nestas, o progresso da ferrugem vai formando a imagem por oposio s partes que permanecem protegidas.

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  • 90

    Estas tentativas de incorporar ao trabalho tambm procedimentos independentes da minha vontade, sem confiar simplesmente no acaso, acabaram sugerindo mais um passo: o uso de materiais marcados pelos atritos do corpo humano, guardando alguma memria daquela presena. Objetos de uso, enfim. Desde o incio desse processo sentia-me atrado pelas mesas metlicas dos bares, gastas pelo uso, marcadas pelo deslocamento de copos sobre sua superfcie, parcialmente enferrujadas nas reas descascadas da pintura, testemunhas de inmeras presenas. Pensei em imprimir seu tampo como gravuras, apenas com as marcas j existentes, e tambm procurava imagens para somar ao que as mesas ofereciam. Nenhuma soluo me satisfazia, e enquanto isso realizava outros projetos. Finalmente, creio ter encontrado algo que vale a pena desenvolver. Neste projeto, pretendo associar fugacidade dos contatos humanos com as mesas e ao desgaste do prprio objeto, imagens de figuras geomtricas regulares, smbolos de uma realidade imutvel e transcendente, situada alm da matria: crculo, tringulo, quadrado, cubo, tetraedro, octaedro, icosaedro, etc. Tambm deverei gravar alguns pictogramas, desenhos que originaram a linguagem escrita, como as linhas onduladas paralelas, significando mar, gua, passagem do tempo. Em outras mesas, tentarei transformar em imagem e gravao definitiva as presenas daqueles que ali estiveram sentados. Mas tudo dever ser considerado no ato de gravar, quando poder ser percebido como fato visual. Por enquanto, posso apresentar apenas esboos deste processo de trabalho.

    181

  • 91

    RESUMO

    Este trabalho registra seis anos de produo com gravura em metal (1992/1998 ). Originou-se dos ltimos resultados includos na exposio de mestrado, somados experincia de uma viagem que despertou o interesse pela fotografia. O desejo era realizar imagens geradas pela percepo da paisagem, procurando evidenciar tambm seu aspecto invisvel. Com o tempo, o trabalho foi crescendo, conduzido pelos primeiros resultados, estimulado por leituras, filmes, observaes, maior conhecimento da linguagem fotogrfica, outras viagens e indagaes sobre as possibilidades da gravura em metal. Esse processo e o ttulo, definido apenas no ltimo ano, determinaram a estrutura em trs blocos interligados. Referem-se a diferentes faces e tempos da mesma realidade, caracterizados tambm por trs abordagens distintas da gravura em metal: gua-tinta, ponta-seca e roleta para Ir; photo-etching sobre ferro para Passar; maneira-negra para Ficar. Os textos surgiram da experincia do trabalho, sintetizando as reflexes despertadas pelo processo vivenciado. Referem-se ao desenho, gravura, fotografia, ao papel do artista e sua insero no mundo, e a aspectos mais pessoais da minha posio esttica. A base essa experincia, no um estudo sistemtico que possa ser resumido por uma bibliografia. O conhecimento gerado se expressa preponderantemente atravs das gravuras originais, e em menor medida, por suas reprodues aqui apresentadas, que tambm podero ser acessadas no site da ECA/USP na Internet: www.eca.usp.br

    196 ABSTRACT

  • 92

    This work registers six years of production in printmaking. It developed from the last results as sawn in the 1994 Master of Fine Arts Show, added to abroad travels experience, which arose interest on photography. The aim was to create images linked to landscape perception, trying to stress also its invisible appearence. The work grew on with time, lead by its own results, stimulated by further reading, observations, deeper knowledge of photographic language, travels and investigations about new possibilities in engraving. This process and its title, only defined last year, determined the works structure, in three linked groups. They refer to different faces and times of the same reality, also outlined by three different approaches of engraving: acquatint, dry-point and roulette in To Go; photo-etching on iron in To Pass; mezzotint in To Stay. The texts arose from the experience of everyday-work, summing up thoughts which brought up by the work-process. They relate to drawing, engraving, photography, artists role and their place in the world, and to more personal aspects of my aesthetic point-of-view. Their basis are this experience, not a systematic study which could be resumed in a bibliography. The produced knowledge expresses itself through original prints, and, in a lesser extent, through the reproductions shown here. They can be accessed in ECA/USP Internet site: www.eca.usp.br

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    EM LUGAR DE UMA BIBLIOGRAFIA Miles Davis Maria Callas Chet Baker Virginia Woolf

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    Giorgio Morandi Paolo Uccello Piero della Francesca Antoine Watteau Ceclia Meireles Maurice Ravel Wolfgang Amadeus Mozart Marcel Carn Ben Webster Glauber Rocha Claude Achille Debussy Jean-Luc Godard Paul Auster Bill Viola Rembrandt Armensz van Rijn Richard Serra Rainer Maria Rilke Alberto da Veiga Guignard Jorge Luis Borges Alberto Giacometti Anton Webern William Shakespeare Gyorgi Ligeti Jasper Johns Joseph Beuys John Dowland Giovanni Battista Piranesi Albrecht Drer James Abbott Mc Neill Whistler Giorgio de Chirico Masaccio Francesco Guardi Carlos Drummond de Andrade Pierre Bonnard Oswaldo Goeldi Luigi Pirandello Billie Holliday Amlcar de Castro Diego Velsquez Machado de Assis Brice Marden Ingmar Bergman Joo Guimares Rosa Andrei Tarkovski Alain Resnais Federico Fellini Franois Truffaut Michelangelo Antonioni Wallace Stevens Wim Wenders Luchino Visconti Fra Angelico Stphane Mallarm Tom Waits Joo Gilberto Josef Koudelka Lampedusa Stendhal 198 Simone Martini Marcel Proust James Joyce Franz Kafka Manuel Bandeira Thomas Mann Paul Verlaine Ando Hiroshigue Charles Baudelaire Kenji Mizoguchi Arthur Rimbaud Akira Kurosawa

  • 94

    Paul Valry William Mallord Turner Friedrich Murnau Antonio Canale Mrio Peixoto Alfredo Volpi Serguei Eisenstein Paul Czanne Orson Welles Camille Corot Cole Porter Charles Meryon Jacques Rivette Piet Mondrian Alban Berg Italo Calvino Gustav Mahler Bash Ettore Scola Filippo Brunelleschi Mrio de Andrade Franz Schubert Clarice Lispector Erik Satie Mark Rothko Dante Alighieri Michelangelo Francesco Petrarca Jacques Prvert Johann Sebastian Bach Mrio Quintana Vittore Carpaccio George & Ira Gershwin Edward Hopper Arnold Schoenberg Brassai Vermeer Giotto Robert Motherwell Frderic Chopin Caetano Veloso Armando Revern Paul Desmond Georges Seurat Pier Paolo Pasolini Mira Schendel Theos Angelopoulos Kurt Schwitters Leonardo da Vinci Sandro Botticelli Joaquin Torres-Garcia Django Reinhardt Cristiano Mascaro Fernando Pessoa Jacques Villon Rodgers & Hart 199 CIDADES So Paulo, Santo Andr, Campinas, Rio de Janeiro, Paranapiacaba, Porto Alegre, Madrid, La Corua, Paris, Chartres, Londres, Florena, Roma, Veneza, Milo, Assisi, San Gimignano, Siena, Arezzo, Padova, Ancona, Osimo, Bolonha, Empoli, Lucca, Viareggio, Viena.

  • 95

    LIVROS BENJAMIN, Walter. O Flaneur, in Obras Escolhidas,vol. 2.Brasiliense, So Paulo, 1991. BERGMAN, Ingmar. O Cinema segundo Bergman. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1977. GURIN, Michel. O que uma obra. Paz e Terra, So Paulo, 1995. LISPECTOR,Clarice. Perto do Corao Selvagem. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1992. MORANDI, Giorgio. Entrevista Voz da Amrica. 1957. RILKE, Rainer Maria. Cartas sobre Czanne. Sette Letras, Rio de Janeiro, 1995. ROSA, Joo Guimares. Grande Serto: Veredas.Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Martins Fontes, So Paulo, 1990. WOOLF, Virginia. Orlando. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1978.

    200 VISTAS E INSTANTES A neblina de Paranapiacaba; o topo dos prdios; a distncia; o reflexo das luzes de San Giorgio Maggiore nas guas da laguna, Veneza toda e sua recordao; a cidade pintada; chuva; atrs do MASP e o tnel 9 de Julho; os reflexos no Rio Tiet; a praia do Flamengo e a ponte Rio-Niteri; a cidade filmada; o mirante em frente ao parque da Aclimao; a praia de Copacabana ao crepsculo vista do avio; as sombras projetadas na parede

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    da sala; a runa romana na vitrine da agncia de turismo; os reflexos no Rio Pinheiros; a cidade gravada; os desertos que s vi no cinema e na televiso; a Pont-Neuf no carto postal; a luz do film-noir; o moinho Fanucchi, em Santo Andr; a nuvem vista da rodovia D. Pedro I, voltando de Campinas, no fim da tarde; Piazza Navona, o Teatro de Marcello, a luz rasante, o cair da noite na ponte sobre o Tevere e as paredes descascadas de Roma; o mirante do MASP; a imagem refletida na poa dgua; a igreja da Glria e a sombra de sua cerca; o edifcio em reforma, envolvido pelos plsticos azuis; o crepsculo em qualquer lugar; a cidade cantada; a avenida Duque de Caxias, em Porto Alegre; as rstias de luz entre a porta e o batente; longe; a luz saindo pela cortina negra do cinema, com a sesso j comeada; a luz projetada na parede da sala; a esquina do Hospital Matarazzo; a luz desenhando na parede do quarto; o horizonte visto do trem; arcos; os edifcios do Arte-Cidade III; a cor de Bolonha; a Cappella degli Scrovegni; o asfalto molhado refletindo as luzes; a grgula de Notre-Dame que aparece na gravura de Meryon; a foto batida na Dblergasse, em Viena, que no verei, por ter perdido o filme; as mesas de metal nos bares da Unicamp e da USP; Santa Maria del Fiore, Cappella dei Pazzi, Loggia del Bigallo, Piazza Santo Spirito, Convento de San Marco, Cappella Brancacci, em Florena; a curva do Arno em Empoli; o Elevado Costa e Silva; o sol brilhando por alguns minutos nas guas do Tmisa; os vitrais da catedral de Chartres; as nuvens; o navio negro, as poas, os guindastes e suas sombras em Porto Alegre, ao meio-dia; o centro do Rio de Janeiro s seis da manh; a cidade fotografada; as sombras projetadas no ptio do Departamento de Artes Plsticas da ECA, em dias de sol; o mar; a antena da Globo, ao longe, envolta pela nvoa; as mil e uma noites e os sete cus; 201