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  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

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    MARE NOSTRUM.

    ESTUDOS SOBRE O MEDITERRNEO ANTIGO

    2013, NMERO 04

    ISSN 2177-4218

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

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    SUMRIO I. EDITORIAL........................................................................................................iv

    II. ARTIGOS

    1. Processos de integrao e desintegrao na Grcia no final da Idade do Bronze e incio da Idade do Ferro (1300 a 800 a.C.). Juliana Caldeira Monzani...............................1

    2. Os Estudos Demticos e a Possibilidade de uma Nova Egiptologia. Thais Rocha da Silva.............................................................................................................................. ...................22

    3. Plnio, o Jovem, e suas atividades administrativas e jurdicas: a formao de uma carreira poltica durante o Principado Romano. Dominique Monge Rodrigues de Souza...............................................................................................................................................44

    4. O Processo de Legitimao e Reconhecimento do Priscilianismo na Segunda Metade do Sculo IV. Danilo Medeiros Gazzotti......................................................................67

    5. nforas Panatenaicas e Paisagens Estruturais. Gilberto da Silva Francisco..............81

    III. LABORATRIO

    Ensaio:

    1. Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira. Fbio Faversani............................................................................................................................100

    Comentrios:

    2. Comentrio ao artigo de Fbio Faversani intitulado Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira. Alexandre Agnolon........112

    3. Comentrio a Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira, de Fbio Faversani. Fbio Duarte Joly..................................................115

    4. Implementando apontamentos tenussima divisa entre Repblica e Imprio Romano. Paulo Martins..............................................................................................................118

    5. Comentrio. Rafael da Costa Campos..................................................................................126

    6. Comentrio crtico sobre o texto Entre a Repblica e o Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira, de Fbio Faversani. Juliana Bastos Marques.......132

    7. Commento a Fbio Faversani. Guido Clemente...............................................................139

    Rplica

    8. Entre a Repblica e o Imprio: multiplicidade de fronteiras. Fbio Faversani.....146

    IV. RESENHAS

    1. PAPA, Helena Amlia. A contenda entre Baslio de Cesareia e Eunmio de Czico (sc. IV d.C.): Uma anlise poltico religiosa. Por Pedro Lus de Toledo Piza.................153

    2. ZANKER, Paul. Arte romana. (col. Economica Laterza). Por Fbio Augusto Morales.............................................................................................................................. ............163

    3. GENZ, Hermann e MIELKE, Dirk Paul (org). Insights Into Hittite History and Archaeology. Por Anita Fattori.................................................................................................170

    4. CONGIU, M.; MICCICH, C. e MODEO, S. (a.c.d.), Dal mito alla storia. La Sicilia nellArchaiologhia di Tucidide. Atti del VIII Convegno di studi (Caltanissetta, 21-22/05/2011). Por Paolo Daniele Scirpo.175

    5. RICHARD, Carl. J. Why we're all Romans. The Roman contribution to the Western world. Por Gilberto da Silva Francisco.....................................................................182

    6. GUARINELLO, Norberto Luiz. Histria Antiga. Por Fbio Duarte Joly....................192

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    I - Editorial

    O Laboratrio de Estudos sobre o Imprio Romano (LEIR), que um

    laboratrio de mbito nacional, foi criado em meados de 2008 com o intuito de

    estimular as pesquisas em Antiguidade, principalmente aquelas relacionadas ao

    Imprio Romano. O LEIR-MA-USP (Laboratrio de Estudos sobre o Imprio

    Romano e Mediterrneo Antigo), que possui como especificidade a presena de

    membros que realizam pesquisas sobre temas para alm dos relacionados

    Roma antiga, responsvel pela criao da Revista Mare Nostrum, sempre

    procurou estimular o debate de ideias e a discusso na pesquisa acadmica.

    Seus colquios, sempre que possvel, buscavam criar espaos de crtica que

    pudessem auxiliar os pesquisadores a pensar sobre seus objetos e sobre seu

    prprio trabalho.

    Com essa mesma finalidade que a comisso editorial da Revista Mare

    nostrum apresenta em seu quarto nmero, alm dos artigos e resenhas, um

    debate entre pesquisadores de vrias partes do Brasil. A proposta do

    Laboratrio desta edio apresentarmos um artigo principal comentado por

    professores/pesquisadores de vrias universidades do Brasil e de fora do pas,

    com espao para resposta do autor principal. Essa experincia aqui realizada,

    com excelentes resultados, ser retomada nas prximas edies.

    O artigo principal do professor da UFOP Fbio Faversani, Entre

    Repblica e Imprio: apontamentos sobre a amplitude desta fronteira, prope

    um debate sobre a passagem da Repblica para o Imprio como demarcaes

    temporais rgidas e naturalizadas. Como o prprio ttulo aponta, o autor prope

    que a fronteira entre esses dois perodos (aqui entendida como barreira/diviso)

    seja estendida, que haja uma ampliao de escalas, ou melhor, que se

    proponham diferentes escalas para pensar a articulao entre rupturas e

    permanncias entre esses dois momentos. Ao final de seu artigo, Faversani

    constri uma espcie de poema construtivista, um esquema visual que visa

    demonstrar a articulao entre os dois momentos, e as infinitas possibilidades

    de pens-las.

    O comentrio de Alexandre Agnolon abre a sesso de comentrios, que

    seguido pelo de Fbio Joly. Este ltimo relembra o argumento de Aloys

    Winterling para comentar que, em vez de se falar em momentos republicanos

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

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    e momentos imperiais que se articulam de vrias maneiras, preciso lembrar

    que as fontes nos ajudam a pensar em uma mesma repblica em constante

    transformao. Paulo Martins busca destacar o papel dos conceitos de potestas e

    auctoritas nesse contexto de anlise estipulado por Faversani. Rafael Campos e

    Juliana Bastos vo redirecionar seus olhares para a dinastia jlio-cludia. O

    primeiro destaca o fato de que o principado deve ser visto como um momento

    de experimentao poltica e essa dinastia como um momento de transio, uma

    vez que encontramos prticas imperiais ao longo da Repblica, e memrias

    republicanas a partir da ascenso de Augusto. Bastos ressalta a importncia de

    se pensar as rupturas, principalmente no perodo na dinastia em questo,

    relacionadas, principalmente, ao novo para os antigos, que no algo indito,

    mas sim a retomada de um passado e a manuteno de determinadas tradies.

    Por ltimo temos o comentrio de Guido Clemente que prope um exerccio de

    reflexo comparativa, e coloca lado a lado o perodo de ascenso de Augusto e os

    pr-fascista, fascista e ps-fascista. Nele o comentarista ressalta a importncia

    de se considerar o papel de alguns atores polticos nas transformaes que no

    podem, nem devem, ser esquecidas e/ou ignoradas.

    A resposta de nosso autor principal se concentra basicamente em dois

    pontos: primeiro ressaltar a importncia do debate que props, lembrando que

    as periodizaes devem sempre ser encaradas pelos historiadores como

    problema histrico e no como um dado histrico. O outro destaque feito por

    Fbio Faversani fora com relao ao conceito de fronteira utilizado por ele, uma

    vez que faz questo de ressaltar a utilidade deste conceito como recurso

    analtico importante para os analistas, deixando sempre explicitado que seu uso

    intencional e arbitrrio (no natural).

    A seo corriqueira de artigos traz quatro contribuies independentes

    que no dialogam diretamente com o debate, mas que em vrios pontos

    tangenciam as questes que ali aparecem. O primeiro de autoria de Juliana C.

    Monzani. Com o ttulo de Processos de Integrao e Desintegrao na Grcia

    no final da Idade do Bronze e incio da Idade do Ferro (1300 a 800 a.C.); o

    artigo prope uma reflexo acerca do fim da cultura micnica e o incio do

    mundo clssico, destacando suas permanncias (continuidade de ocupao,

    lngua, plano dos templos derivados do mgaron, etc) e apresentando as vrias

    propostas de explicao para a crise que se deu no Mediterrneo Oriental no

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    sculo XIII a.C. Em seguida apresenta-se o artigo Os estudos Demticos e a

    possibilidade de uma nova Egiptologia, de Thais R. da Silva. Nele encontra-se

    uma extensa apresentao dos estudos da lngua demtica e das vrias

    possibilidades de estudos do Egito a partir deste idioma, principalmente no

    perodo Ptolomaico. Dominique M. de Souza e seu texto Plnio, o Jovem, e suas

    atividades administrativas e jurdicas: a formao de uma carreira poltica

    durante o Principado Romano nos faz conhecer o cursus honorum de Plnio, o

    Jovem e sua atuao como advocatus na passagem do sculo I d.C para sculo II

    d.C. Ao analisar algumas das cartas de Plnio, a autora procura pensar as

    relaes interpessoais entre a elite do principado poca da dinastia jlio-

    cludia. H ainda o artigo de Danilo M. Gazzotti, O processo de Legitimao e

    Reconhecimento do Priscilianismo na segunda metade do sculo IV. Nele o

    autor discute as questes relativas difuso da interpretao que Prisciliano,

    membro da elite local da Pennsula Ibrica, d ao cristianismo e como ocorre

    sua difuso, pensando principalmente nos embates deste e de seus seguidores

    com autoridades religiosas e polticas do Imprio. Por fim, h o artigo de

    Gilberto da Silva Francisco, nforas panatenaicas e paisagens estruturais, em

    que o autor discute a noo de paisagens estruturais para compreender a

    variao contextual em que esse tipo especfico de nfora se insere em

    diferentes momentos histricos.

    Ao fim deste nmero apresentamos cinco resenhas. As obras

    resenhadas so: A contenda entre Baslio de Cesareia e Eunmio de Czico

    (sculo IV d.C.): uma anlise poltico religiosa, de Helena Amlia Papa, feita por

    Pedro Piza; Arte Romana, de Paul Zanker, resenhado por Fbio Morales;

    Insights into Hittite History and Archaeology, de Hermann Genz e Dirk P.

    Mielke, feita por Anita Fattori; Dal mito alla storia. La Sicilia nellArchaiologhia

    di Tucidide, dos autores M. Congiu, C. Miccich e S. Modeo, escrita por Paolo D.

    Scirpo, Why we're all Romans. The Roman contribution to the Western world,

    de Carl. J. Richard por Gilberto da Silva Francisco e Histria Antiga de Norberto

    Luiz Guarinello, por Fbio Duarte Joly.

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    PROCESSOS DE INTEGRAO E DESINTEGRAO NA GRCIA NO FINAL DA IDADE DO BRONZE E INCIO DA

    IDADE DO FERRO (1300 A 800 A.C.)1

    Juliana Caldeira Monzani2

    RESUMO: O presente trabalho se prope a pensar os processos de integrao e desintegrao na

    Grcia no final da Idade do Bronze e no incio da Idade do Ferro. Assim sendo, pretendemos

    analisar a unidade cultural estruturada durante o perodo micnico e suas relaes comerciais

    bem como a desintegrao de ambas no final do segundo milnio e a configurao de um novo

    modelo baseado na distino regional.

    PALAVRAS-CHAVE: Idade do Bronze, Idade do Ferro, Grcia, unidade cultural, regionalizao.

    ABSTRACT: It is the intent of this work to investigate the connections and disconnections in

    Greece in the Late Bronze Age and Early Iron Age through the analysis of the cultural unity and

    the commercial relationships built during the Mycenaean period, the collapse of both by the end

    of second millennium, and the emergence of a new model based on regional traits.

    KEYWORDS: Bronze Age, Iron Age, Greece, cultural unity, regional characteristics.

    Introduo

    As culturas do continente grego e das ilhas vizinhas tornaram-se

    extremamente complexas no decorrer do terceiro e segundo milnios, atingindo

    seu apogeu entre 1600 e 1220.3 J o final do segundo milnio (sculos XIII e

    XII) testemunhou destruies macias acompanhadas de movimentos

    populacionais no Mediterrneo Oriental.

    At recentemente predominou a ideia de que o perodo micnico e a

    Grcia Clssica seriam dois mundos distintos e sem conexo alguma. Segundo

    tal abordagem a transio catica da Idade do Bronze para a Idade do Ferro

    teria apagado completamente os traos da cultura micnica e causado uma

    ruptura to profunda que impeliu um novo recomeo. Deste ponto de vista, o

    mundo micnico seria dependente demais de modelos externos orientais para

    desenvolver algo prprio, e quando os laos foram quebrados os gregos

    1 O presente artigo resultado de apresentao oral Processos de Integrao no Mediterrneo Antigo: acelerao e crise no IV Encontro do Laboratrio de Estudos do Imprio Romano e Mediterrneo Antigo da Universidade de So Paulo (LEIR-MA/USP) realizado entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 2011. 2 Mestre em Cincias Arqueolgicas pelo Museu de Arqueologia da Universidade de So Paulo (MAE-USP) e membro do Laboratrio de Estudos sobre Imprio Romano e Mediterrneo Antigo (LEIR-MA/USP). 3 Todas as datas so a.C.

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    tornaram-se livres para criar novos pontos de vista polticos e intelectuais

    (Starr, 1961).

    Entretanto, igualmente necessrio considerar a importncia da Idade

    do Ferro na formao das caractersticas da Grcia Clssica. Alguns traos que

    ligam a cultura micnica ao mundo clssico seriam a continuidade de ocupao

    de determinados stios, a lngua, o plano do templo derivado do mgaron4

    micnico e o culto heroico em sepulturas micnicas.

    Outrora denominada Obscura, a Idade do Ferro no o primeiro

    perodo em que a regio apresenta um retrocesso, outros perodos

    experimentaram declnios to longos embora no to severos. O Bronze Mdio

    (2100/2000-1600) no continente, por exemplo, foi um perodo de declnio

    cultural se comprado ao Bronze Antigo (3250-2000) e termina de forma

    abrupta, com o aparecimento das Shaft Graves,5 iniciando uma poca (1600-

    1450) de crescente prosperidade atestada pelos bens funerrios depositados em

    tais sepulturas.

    A tese de Vincent Desborough de que invasores drios retiveram pouco

    da cultura micnica, com exceo da cermica, vem sendo questionada, e a

    presena de invasores numericamente significantes parece bem menos

    proeminente enquanto as continuidades culturais parecem mais evidentes.

    (Thomas & Conant, 1999: xvi- xxii).

    Final da Idade do Bronze (O Bronze Recente)

    A denominao Civilizao Micnica foi adotada quando Schliemann

    escavou a cidade descobrindo sua magnitude e riqueza, desvendando para o

    mundo a civilizao da Idade do Bronze na Grcia, pelo fato que, nos poemas

    homricos, Micenas era a cidade de Agammnon, que liderou os gregos contra

    Troia, e pela uniformidade do registro arqueolgico no continente e nas ilhas

    aps 1600 (Finley, 1990:51). A maior evidncia da organizao poltica da Grcia

    vem-nos da uniformidade da arte micnica. Tal denominao, no entanto, no

    deve ser entendida como uma hegemonia do palcio de Micenas sobre os

    demais. O quadro arqueolgico mostra uma diviso da Grcia micnica em 4 Ampla sala com lareira central. 5 Tmulo em poo ou sepultura em fossa um tipo de estrutura de enterramento formada a partir de um poo estreito e profundo escavado na rocha natural. Estes tmulos possuem cerca de 4 metros de profundidade e os mortos eram colocados em cavidades situadas no fundo, juntamente com ricas oferendas funerrias.

    http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Oferenda_funer%C3%A1ria&action=edit&redlink=1

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

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    pequenos Estados burocrticos e nada indica uma supremacia por parte de

    Micenas. Os muros palaciais parecem ser um indcio que no havia um nico

    grande poder, mas vrios wanax (reis) igualmente poderosos.

    A partir do sculo XIII os micnios difundiram sua influncia para a

    maior parte do Egeu, formando uma rea que apresenta uma homogeneidade

    cultural como nunca antes na regio, ainda que haja variaes regionais

    significantes. Creta, em especial, mantm muitas caractersticas prprias. So

    caractersticas dessa cultura comum as chamber tombs,6 as tcnicas, formas e

    decoraes cermicas, selos em pedra, uso do Linear B com finalidades

    administrativas e as muralhas ciclpicas (Dickinson, 2006:24-5).

    H, alm dessa unidade cultural egeia, o comrcio estabelecido com as

    civilizaes do Mediterrneo Oriental. preciso admitir que se sabe muito

    pouco sobre a natureza do comrcio micnico de longa distncia, mas seus

    objetos de luxo (joias, vasos, mobilirio e relevos em marfim) so encontrados

    em stios da sia Menor, do Levante e, em menor escala, do Egito. Da mesma

    forma os produtos destas regies so encontrados em contexto micnico.

    O BR (Bronze Recente) III A7 corresponde ao estabelecimento dos

    palcios e do sistema palacial e o BR III B ao seu apogeu. O perodo Micnico

    apresenta-se com uma grande riqueza material, uma agricultura muito

    produtiva, uma organizao econmica baseada no armazenamento e

    redistribuio e uma sociedade hierarquizada. O perodo de 1400-1200

    marcado por um aumento no nmero de tumbas sugerindo que a populao da

    Grcia crescera muito nesta poca. Ao que tudo indica a populao no sculo

    XIII era mais numerosa do que jamais seria at o sculo V.

    J por volta de 1600 a Grcia tornara-se um centro de riqueza e poder,

    uma civilizao guerreira inigualvel na regio. Aos poucos os micnios foram

    ganhando importncia e em 1450 invadiram Creta, instalando-se em Cnossos.

    Em pleno auge a Civilizao Minoica teve o seu maior e mais rico palcio

    governado pelos micnios. Foi provavelmente quando ocuparam Cnossos que

    aprenderam o funcionamento do sistema burocrtico e a importncia da escrita

    minoica (Linear A), da qual tomaram alguns smbolos emprestados e criaram

    uma escrita prpria, o Linear B, que utilizaram na contabilidade e inventrios,

    6 Tmulos em cmara escavados na rocha. 7 Cronologia: ver quadro cronolgico no final do artigo.

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

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    caracterizando a escrita micnica como um instrumento de administrao. A

    julgar pelas tabuinhas em Linear B, os palcios micnicos, assim como seus

    contemporneos no Oriente Prximo, tinham um carter essencialmente

    centralizador. Klaus Kilian (1988: p. xxvi) demonstrou que os palcios eram

    centros administrativos, polticos, militares e religiosos.

    H poucos palcios e muitas vilas, que provavelmente eram

    independentes mas se submetiam ao poder do palcio principalmente em troca

    de segurana. Ainda uma questo de debate a natureza do poder exercido

    pelos palcios e as hipteses variam de um mero controle de rotas comerciais ao

    controle total vastos territrios. Nenhum palcio da Grcia era maior que

    Cnossos. Pilos, por exemplo, tinha 1/4 de seu tamanho. Diferentemente das

    construes cretenses, os palcios micnicos eram estruturas bem organizadas

    cujo centro era o mgaron.

    Os micnios eram povos belicosos e isso se refletiu no seu sistema

    palacial. Geralmente situados em elevaes ou colinas, o que lhes confere um

    carter essencialmente defensivo, os palcios eram fortemente protegidos por

    enormes muros denominados de muralhas ciclpicas devido lenda que atribui

    muros to grandes e espessos obra dos gigantes Ciclopes.

    Segundo Vernant (1972:12), exigindo uma aprendizagem difcil, o uso

    do carro em batalha reforou a especializao da atividade guerreira, trao

    caracterstico da organizao social e da mentalidade indo-europeia. A

    necessidade de dispor de uma reserva numerosa de carros para concentr-los

    no campo de batalha pressupe um Estado centralizado no qual homens e

    carros esto submetidos a uma nica autoridade. Embora os palcios micnicos

    fossem pequenos comparados aos cretenses, mesopotmicos ou egpcios,

    requeriam especialistas de mesma ordem para mant-los em funcionamento.

    No podemos deixar de lado as casas. Em sua maioria apresentam

    planos retangulares, sendo que durante o BR I, II e III A as dimenses so

    menores e, no BR III B, o plano mais complexo parece predominar. Uma grande

    inovao do perodo micnico o edifcio intermedirio, i.e., uma categoria

    entre as simples habitaes e os palcios, que apresenta um mobilirio mais

    variado e rico e as tcnicas de construo e de decorao semelhantes s dos

    palcios. Nesta categoria insere-se, por exemplo, a casa do mercador de leos

    em Micenas (Treuil, 1989: 460). A funo de tais edifcios, no entanto, ainda

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

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    no est clara: seriam a residncia de ricos mercadores ou apenas dependncias

    palaciais?

    O tmulo mais caracterstico eram as tholoi (construo arredondada

    que possui um corredor de entrada ou dromos) e as cmaras funerrias,

    chamber tombs. Embora poucas tholoi tenham permanecido intactas, as que

    forneceram vestgios das prticas funerrias demonstraram os mesmos tipos de

    prticas das cmaras funerrias, provando que o uso de dois tipos de sepultura

    no reflete necessariamente diferenas sociais. Tais prticas so muito variadas,

    mas predominam o enterramento mltiplo, a inumao e um grande nmero de

    bens pessoais e utilitrios que acompanham o morto. Na realidade as prticas

    funerrias so semelhantes quelas dos crculos funerrios, e atestam apenas

    uma mudana na estrutura da sepultura, mas no nos costumes (Torralvo,

    1993:143). interessante notar o quase total desaparecimento da sepultura em

    fossa, caractersticas do BM (Bronze Mdio), durante o BR. As necrpoles

    situavam-se dentro das muralhas das cidadelas.

    A partir do BR II a cermica liberta-se da forte influncia minoica e

    adota uma decorao cada vez mais estilizada, padronizada e homognea

    (Treuil, 1989: 245). Como em Creta, os micnios possuam uma cermica com

    um alto nvel tcnico e seus palcios eram decorados com afrescos cujo tema

    principal era de ordem narrativa.

    A expanso micnica prossegue do sculo XIV ao XII, levando os

    micnios a substiturem os cretenses no comrcio, espalhando a cermica

    micnica pela Anatlia, Oriente Prximo e Egito. Esta cermica amplamente

    difundida era trocada por estanho e marfim. Secundariamente exportavam

    tecidos e, talvez, mercenrios. Em troca recebiam bronze, estanho e vinho de

    Cana, mulheres e bronze de Chipre, marfim da costa da Palestina, prata e

    cavalos de Troia. Entretanto, ao que parece, os vasos micnicos parecem ter sido

    importados mais pelo seu contedo (vinho e leos) do que por suas qualidades

    tcnicas e artsticas (Treuil, 1989: 434).

    Entretanto, difcil avaliar a penetrao efetiva dos micnios em tais

    regies a partir apenas da ampla difuso de sua cermica. Para atestar a

    presena micnica so necessrios vestgios de significao sociocultural, tais

    como formas de habitao ou prticas funerrias, e no objetos utilitrios.

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    6

    Pouco sabemos sobre a religio micnica. Para os perodos anteriores

    poca micnica a interpretao religiosa baseia-se somente na iconografia.

    Doravante, s representaes figuradas em selos e afrescos vm se somar os

    vestgios arquitetnicos, os objetos e algumas menes dos tabletes em Linear B

    (Treuil, 1989: 523). As tholoi so, no sculo VIII, atestadas como locais de culto,

    o denominado culto aos heris, mas ser que podemos remeter tal prtica ao

    perodo micnico? O mgaron, com sua lareira central e enquanto sala

    principal, deveria ser o centro de culto palacial.

    As estatuetas de terracota, to frequentes em Creta, o so tambm no

    continente, sendo as figurinhas femininas as mais difundidas. Elas reaparecem

    no registro arqueolgico aps um lapso durante o BM e desaparecem

    completamente aps o fim da Civilizao Micnica, o que indica que so

    caractersticas deste sistema palacial. Hgg (1981:35-39) props uma

    interpretao para as estatuetas micnicas: elas estariam fortemente associadas

    ao culto popular em contraposio ao nvel palacial (ou oficial) da religio.

    Assim, a religio micnica apresentaria dois nveis de culto: um oficial, ligado ao

    palcio e elite com a adoo de costumes estrangeiros (influncia minoica)

    ainda que seu contedo seja heldico; e um popular, sem influncia minoica.

    Entretanto, as estatuetas femininas, embora tenham a forma e o estilo

    continental, parecem ter sua origem nos contatos e influncias externos, em

    particular Creta. Contudo, French (1971) considera, uma vez que os locais em

    que se encontram as estatuetas so os mais variados (habitacional,

    sepultamento e santurios), que o contexto fornece a funo a uma estatueta e

    no o contrrio, ou seja, um significado religioso ou de qualquer outra natureza

    no pode ser tomado a priori para determinar um contexto.

    Nos tabletes em Linear B decifrados do palcio de Pilos h um

    inventrio de doaes de devotos a uma lista de deuses, alguns caractersticos

    da religio grega dos perodos arcaico e clssico tais como, Zeus, Poseidon e

    Dioniso, um verdadeiro panteo com muitos nomes masculinos que pe em

    cheque o culto deusa-me associado s estatuetas.

    Todos estes dados esparsos tornam difcil compor uma ideia clara da

    religio micnica. Tal dificuldade acaba gerando diferentes interpretaes entre

    os estudiosos. Lvque (1967) fala em um sincretismo religioso indo-europeu e

    egeu (Creta). No muito distantes desta ideia, mas de forma mais cuidadosa,

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

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    Willian Taylour (1970) refere-se a uma identidade entre a religio micnica e

    minoica com diferenas nos cultos. J Martin Nilsson (1950) enfatiza a

    existncia de uma religio minoico-micnica.

    Os distrbios do final do sculo XIII a.C.

    No auge da Civilizao Micnica, o final da fase III B, comprova-se um

    estratro arqueolgico de destruies. O quadro arqueolgico o de um perodo

    instvel com vrios desastres ocorrendo em diferentes stios em diferentes

    momentos. Embora no seja o objeto deste estudo, impossvel negligenciar as

    perturbaes ocorridas no mesmo perodo em outras regies do Mediterrneo.

    Na Anatlia, em todos os stios relevantes h sinais de destruio e a

    capital hitita foi destruda por volta de 1200, levando dissoluo deste

    imprio; Troia VIIa apresenta um nvel de destruio por fogo com cermica

    micnica III C; h destruies considerveis na Sria (Ugarit) e na Palestina no

    final do sculo XIII; e o Egito assistiu a um perodo conturbado. Ramss III, o

    segundo fara da 20a Dinastia, enfrentou durante seu reinado pelo menos trs

    grandes invases que, se no destruram o Egito, marcaram o declnio e o final

    do Novo Imprio.

    O quadro geral que se obtm de que, em um perodo de 40 ou 50 anos

    entre o final do sculo XIII e o incio do XII, quase toda cidade ou palcio

    importante no Mediterrneo Oriental foi destrudo e muitos deles nunca mais

    foram ocupados. importante ressaltar que, com exceo de Chipre, as ilhas do

    Egeu no parecem terem sofrido grandes perturbaes.

    O palcio de Pilos destrudo pelo fogo na transio entre o III B-IIIC e

    no apresenta sinais de ocupao posterior. Em Micenas existem trs nveis de

    destruio: o primeiro ocorreu no final da fase III B 1 por volta de 1230 fora da

    cidadela; o segundo atestado tanto dentro quanto fora da cidadela e datado

    do final do III B 2 (1200/1190); e, por fim, no III C (c. 1125), h novas

    destruies dentro da cidadela. O palcio destrudo pelo fogo mas no se sabe

    ao certo se isto ocorreu na segunda ou na terceira destruio. De qualquer

    forma, a rea apresenta uma ocupao j no III C (Drews, 1993: 23).

    Situao idntica comprovada em Tirinto, onde h trs diferentes

    perturbaes com a destruio do palcio - no segundo ou terceiro distrbio -

    que imediatamente reocupado. Tebas apresenta um nvel de destruio no III

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    8

    B e uma nova ocupao. Em Orchomenos e Gla ocorreram distrbios ainda sem

    data determinada (Drews, 1993:24).

    Atenas e Volvos no apresentam qualquer nvel arqueolgico de

    perturbao, e sim uma continuidade de ocupao entre o III B-IIIC (Hooker,

    1976:148). Midea e Menelaion tambm foram destrudos e outras regies, como

    a Messnia, foram abandonadas.

    Como foi exposto, no final do sculo XIII, por volta de 1200 a.C., o

    quadro que se obtm no homogneo. Os distrbios no ocorreram da mesma

    forma nas diferentes regies da Grcia, tampouco tiveram os mesmos efeitos.

    H locais em que sequer se comprova qualquer nvel de perturbao

    arqueolgica. O que observamos o surgimento, j neste momento, de uma

    diferenciao regional que caracterizar a Grcia durante a Idade do Ferro.

    Hipteses

    Muitas explicaes foram dadas tanto para tentar-se entender este

    fenmeno localmente quanto de forma mais abrangente. Inicialmente as

    hipteses eram monocausais, ou seja, baseavam-se em apenas uma causa, sejam

    fenmenos naturais ou histricos. A sntese a seguir foi baseada no artigo de

    Betancourt, The End of Greek Bronze Age (1976).

    Uma das primeiras teses propostas neste sentido considerava que as

    destruies, tomadas de forma isolada, tinham sido causadas por um fenmeno

    natural: um terremoto. Evans foi pioneiro nesse tipo de explicao para a

    destruio do palcio de Cnossos em 1400. Logo outros arquelogos passaram a

    aceit-la. Blegen considerou que o mesmo teria acontecido com a cidade real de

    Troia VIh. Mylonas identificou o mesmo fenmeno para o Peloponeso e

    Iakovides, em 1977, declarou que um terremoto era a causa da destruio em

    Micenas. O mesmo foi sugerido por Klaus Kilian para Tirinto e toda a regio da

    Arglida, e por Paul Astrm para Midea (Drews: 36). Mas logo tal tese foi

    rejeitada pelos mesmos arquelogos que a defenderam. Baseavam-se em quatro

    pontos: primeiro, parece improvvel que um terremoto to forte tenha ocorrido

    em todo o Mediterrneo Oriental no final do sculo XIII a.C, mesmo porque,

    algumas cidades consideradas esto fora da zona ssmica; segundo, o estrago

    causado por um terremoto uma coisa, mas a destruio total e abandono,

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

    9

    como ocorreu, so caractersticos da ao humana. Aps um terremoto,

    geralmente observa-se a reocupao e reconstruo da parte afetada, bem como

    o enterro dos mortos. Mas isso no atestado arqueologicamente. Ora, como

    explicar que praticamente nada foi enterrado sob os edifcios destrudos, nem

    objetos, nem corpos?; terceiro, os incndios. Muitas das cidades e palcios

    atingidos foram totalmente destrudos pelo fogo, mas pouco provvel que um

    terremoto tenha causado incndios de tais propores; finalmente, nos

    documentos escritos a respeito do perodo, a saber, os arquivos egpcios, o

    templo de Ramss III e alguns documentos hititas, as causas das turbulncias

    neste perodo em outras regies so sempre atribudas ao de povos

    belicosos.

    Inserido perspectiva de catstrofe natural, Pomerance props a data

    da erupo do vulco em Tera por volta de 1200. Os obstculos tal teoria inclui

    o fato das ilhas no terem sido afetadas, apresentando uma continuidade entre

    o BR III B e C, enquanto que os maiores danos ocorreram no interior do

    continente grego. Alm disso, os depsitos arqueolgicos sugerem que a data da

    erupo bem anterior, provavelmente em torno de 1600. (Betancourt,

    1976:41).

    Outra tese que foi muito popular prope a alterao climtica.

    Carpenter, em 1965, props que uma seca avassaladora teria ocorrido na Grcia

    no final do sculo XIII. Ele se baseou na evidncia do abandono de muitas

    regies. Tal hiptese foi amplamente aceita, servindo como explicao tambm

    para o Levante e para a queda do Imprio Hitita. As destruies de palcios e

    cidades eram explicadas como sendo o resultado do ataque de populaes

    famintas. Entretanto, no h qualquer evidncia, nem arqueolgica, nem

    escrita, de uma mudana drstica no clima do Mediterrneo neste perodo. Com

    o aumento das escavaes e o incremento nas tcnicas empregadas, tornou-se

    claro que as destruies atestadas foram resultantes da ao humana e as

    hipteses com cunho de catstrofes naturais foram sendo abandonadas.

    Childe apontou para as debilidades internas dos reinos tentando

    explicar a falncia dos sistemas palaciais (apud Betrancourt, 1976:41). Nascia

    assim a ideia de crise interna, causada por fatores como guerras entre estados,

    fome, praga e, em especial, problemas sociais entre as classes. Embora este tipo

    de estudo seja til para a compreenso das economias e sociedades do final da

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    10

    Idade do Bronze, ele no explica, no entanto, o fim dessas sociedades. Por mais

    pertinentes que sejam as crticas que possam ser endereadas aos sistemas

    burocrticos e centralizadores destes Estados, o fato que eles sobreviveram

    durante um grande perodo e, no caso da Grcia Micnica, encontravam-se em

    seu auge. As debilidades internas de cada sistema no contemplam o aspecto

    fsico do fenmeno: a destruio e abandono das cidades.

    Entretanto, dentre as hipteses de cunho histrico, as que obtiveram

    maior popularidade foram aquelas baseada nas migraes populacionais, em

    especial a hiptese da invaso dria. Mesmo no caso das duas ltimas hipteses

    (seca e crise interna), as destruies eram geralmente atribudas a um fator

    externo e secundrio causa maior do colapso ocorrido por volta de 1200: as

    migraes. A movimentao de povos belicosos na bacia do Mediterrneo como

    o fator principal foi a tese mais popular e baseia-se nos documentos egpcios

    que tratam das invases que o reinado de Ramss III sofreu e em uma longa

    tradio lingustica de uma constante movimentao populacional na regio. Na

    verdade, em nenhuma das regies afetadas h qualquer prova arqueolgica de

    migrao. No caso particular da Grcia, as inovaes materiais atribudas

    chegada de novas populaes, provavelmente os drios, tais como a cermica

    geomtrica, a cremao nos enterramentos e a metalurgia do ferro, so

    atualmente atestadas como desenvolvimentos locais (no caso da cermica) ou

    continuidade de prticas anteriores (cremao e metalurgia).

    Uma tese recente, proposta por Robert Drews em The End of the Bronze

    Age. Changes in Warfare and the Catastrophe c.a. 1200 B.C. (1993) aponta que

    algumas inovaes e adaptaes nas armas e tticas de guerra causaram

    distrbios em todo o Mediterrneo e modificaram a natureza da guerra na

    Antiguidade. O surgimento da armadura para o soldado que combate a p, bem

    como do escudo redondo que, sendo menor e mais leve, permite maior

    mobilidade, somados utilizao do dardo de caa no campo de batalha e a

    predominncia da lana e das longas espadas desenvolvidas no apenas para

    perfurar mas tambm para cortar com eficincia, teriam permitido a

    supremacia de um exrcito de soldados contra os exrcitos de arqueiros e

    carruagens dos grandes imprios. Os imprios da Idade de Bronze,

    fundamentados na guerra de carros, teriam sucumbido a tais inovaes que se

    tornariam a regra para as batalhas nos sculos seguintes.

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

    11

    De qualquer maneira, paralelamente s hipteses migratrias, outros

    fatores foram sendo considerados. A invaso, por exemplo, no poderia ser

    explicada sem se pensar em um enfraquecimento interno ou quaisquer fatores

    que tenham propiciado, e at mesmo incentivado, a movimentao de povos.

    Gradualmente as hipteses monocausais forma sendo substitudas pelas

    pluricausais, que combinavam duas ou mais causas relevantes.

    Dentro do quadro terico da poca, tal mudana se insere nas propostas

    da Nova Arqueologia, que privilegiava o processo e no o evento. No entanto,

    uma ideia muito presente dentro da arqueologia micnica foi a de uma nica

    verdade, a de uma nica explicao, consequncia de uma viso positivista. Isto

    criou grandes dificuldades no estudo do final da civilizao micnica, pois at

    muito recentemente os autores tentavam explicar o fim da Civilizao Micnica

    atravs de uma causa nica, tal como a mudana climtica, ou a invaso de

    outros povos, ou o declnio da agricultura etc. Tal barreira s mudou com o ps-

    processualismo e a sua perspectiva de explanao baseada na pluralidade

    causal.

    A minha inteno neste artigo no o de afirmar quais as causas das

    destruies dos palcios micnicos, mas sim a de avaliar algumas teses

    plausveis e, principalmente, suas consequncias na organizao social da

    Grcia. Atualmente os arquelogos tm proposto uma pluralidade de causas

    para os desastres do final do perodo micnico e a relevncia de um fator sobre

    os demais dependeria das particularidades locais. Embora as propostas de

    Drews sejam pertinentes, acredito que outros fatores devam ser levados em

    considerao, principalmente em cada regio. Mesmo havendo uma causa

    maior, cada caso deve ser considerado separadamente. Mais do que tentar

    explicar o fim da Civilizao Micnica, pretendo adotar um ponto de vista que

    considera que as destruies dos palcios no foram um fim, mas ao contrrio,

    significaram um comeo. Na Grcia temos o fim de um sistema (o sistema

    palacial) mas no o fim de uma civilizao (Sarian, 1989: 585). Esta se

    desenvolver sob novas formas durante a Idade do Ferro

    A Idade do Ferro

    A denominao Idade Obscura foi empregada com sentido pejorativo

    pelos arquelogos classicistas que, com um estudo anacrnico baseado em

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    12

    fontes orais e literrias posteriores, entenderam o perodo subsequente ao da

    Civilizao Micnica como sendo um momento de declnio e estagnao. Foi

    somente a partir da dcada de 1960 que surgiram novas abordagens para tal

    perodo. Dentre elas destacam-se os trabalhos de Anthony Snodgrass (The Dark

    Age of Greece, 1971) e Vincent Desborough (The last Mycenaeans and theirs

    sucesssors, 1964; e The Greek Dark Ages, 1972).

    em Snodgrass que a acepo do termo Idade Obscura discutida,

    mostrando que at ento os estudos desconsideraram a potencialidade do

    registro arqueolgico, que a nica fonte para tal poca. O perodo seria, assim,

    obscuro mais pela nossa falta de conhecimento a respeito dele do que por uma

    real estagnao ou retrocesso. Tanto para Snodgrass quanto para Desborough a

    Idade Obscura corresponderia, grosso modo, ao perodo Protogeomtrico, i.e.,

    do sculo XI at o final do sculo X. Snodgrass considera a Idade Obscura um

    perodo com caractersticas definidas - diminuio populacional, declnio das

    habilidades artesanais, desaparecimento da escrita e interrupo dos contatos -

    que resultaram na escassez dos vestgios. Para Desborough exatamente o

    isolamento, quebrado com o advento do perodo Geomtrico, que define a Idade

    Obscura na Grcia. Para os dois estudiosos o perodo Geomtrico um

    momento de constante e gradual progresso que culmina na poca Arcaica. J

    Coldstream, em seu livro Geometric Greece (1977), considera tambm o perodo

    Geomtrico como uma poca de pobreza e estagnao, alargando as fronteiras

    da Idade Obscura at o final deste perodo.

    Snodgrass ainda discute a denominao Idade do Ferro (adotada

    neste artigo) que, para ele, determinaria a predominncia da metalurgia do

    ferro sobre a do bronze, embora ela j fosse conhecida no perodo Micnico, fato

    ocorrido na Grcia no final do sculo XI, i.e., ainda durante a Idade Obscura.

    A documentao material a nica disponvel e preciso ter em mente

    suas limitaes. No entanto, segundo Oliver Dickinson (2006: 240-1), parece

    seguro dizer que dificilmente um achado poder mudar o quadro geral

    estabelecido, pois h atualmente evidncias suficientes de stios em todo o Egeu

    e a instabilidade seria a principal caracterstica do perodo.

    Assentamentos

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

    13

    No se pode estabelecer um padro dos locais de habitao. Alguns

    stios como Pilos so abandonados e no mais ocupados. Outros como Micenas

    apresentam uma reocupao parcial aps um breve perodo de abandono.

    Tirinto parece ter sido ocupada continuamente a despeito das destruies e em

    Atenas no atestado qualquer nvel de destruio e a ocupao contnua. As

    evidncia para o perodo so a cermica e a metalurgia, e os achados provm em

    grande parte de cemitrios.

    O stio de Lefkandi, na Eubeia, a melhor evidncia para o perodo.

    um stio com assentamento e cemitrio, ocupado durante todo o perodo

    Protogeomtrico e abandonado no sculo VIII. Em Lefkandi, o sculo XI

    apresenta-se como um perodo de inovaes e contatos externos comprovados

    atravs dos contatos com Atenas, do crescente nmero de achados e de uma

    considervel quantidade de bronze e ouro que atestam contatos e comrcio com

    o exterior, em especial com Chipre. H uma grande influncia de Atenas em

    Lefkandi, que s no se verifica nos costumes funerrios, nos quais prevalece a

    inumao (Desborough, 1972: 191).

    O mais importante em Lefkandi , sem dvida, o heroon, um edifcio

    absidal de grandes propores (47x10m) com trs divises internas e um

    tmulo retangular sob ele. A sepultura possui dois compartimentos. Em um

    deles havia um vaso de bronze com figuras de caadores e animais, os restos

    cremados de um homem, uma ponta de flecha e uma espada de ferro e havia

    tambm a inumao de uma mulher. No segundo compartimento foram

    encontrados dois esqueletos de cavalos. A questo que emerge deste complexo

    determinar o que fora construdo primeiro, pois difcil separar o material que

    preenche a sepultura e o cho do edifcio. Tal dado indicaria que este ltimo

    fora utilizado durante um curto perodo. De acordo com a cermica

    protogeomtrica, o edifcio teria sido utilizado entre 1000 e 950. Os arquelogos

    de Lefkandi, Popham e Coulton, consideram que tanto o edifcio quanto a

    sepultura foram erguidos na mesma poca e que o edifcio seria, assim, parte da

    sepultura. Entretanto h evidncias de que o tmulo posterior. O cho do

    edifcio no cobre o sepultamento, mas mistura-se a ele. O plano do edifcio

    enquadra-se mais no contexto habitacional e no funerrio, dado reforado pela

    presena em seu interior de objetos de uso cotidiano. Soma-se a isso o fato de o

    edifcio ter sido posteriormente destrudo e transformado em um cemitrio

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    14

    (Mazarakis Ainian, 1985: 8-9). De qualquer forma, o edifcio de Lefkandi,

    datado da primeira metade do sculo IX, marca uma profunda transformao

    nos planos arquitetnicos. um dos primeiros edifcios absidais do perodo e

    apresenta dimenses inigualveis. Os paralelos com a planta clssica dos

    templos gregos evidente.

    Cemitrios

    Sepulturas e os objetos associados a elas constituem a maior parte da

    informao do perodo, o que levanta uma srie de questes. Cemitrios

    estabelecidos perto das reas habitacionais so em geral destrudos. Os

    cemitrios que utilizam sepulturas simples no tm a necessidade de se

    situarem prximos s reas de habitao, sendo estabelecidos em regies

    remotas, o que lhes garante maiores chances de sobrevivncia, mas ach-los e

    relacion-los a um assentamento se torna mais difcil. Cemitrios bem

    estabelecidos so utilizados continuamente e as novas sepulturas tendem as

    destruir as mais antigas. Assim, o que normalmente se costuma chamar de

    cemitrios totalmente escavados significa, na realidade, que o que sobreviveu

    foi totalmente escavado. Em Lefkandi os cinco cemitrios e reas de

    enterramento no correspondem cronologicamente s reas de habitao.

    Nenhum cemitrio do BA foi encontrado, a despeito de um substancial

    assentamento, embora alguns sepultamentos intramuros do sculo XII tenham

    sido encontrados. As evidncias de cemitrios mais antigas datam de 1125 a

    1000 (Submicnico e Protogeomtrico), perodo para o qual no h indcio de

    ocupao. A evidncia de sepultamento cessa por volta de 825, embora o stio

    ateste uma ocupao at c. 700 (Thomas & Conant, 1999: 88).

    No Ps-palacial (III C e Submicnico) h a continuidade de utilizao

    das chamber tombs, mas trata-se de um reuso, pois nenhuma nova

    construda. H uma ausncia significativa das tholoi. Substituem-se os

    enterramentos mltiplos por individuais, mas este um processo gradual s

    completado no final do perodo. Aparece a prtica da cremao que, embora no

    suplante a inumao, torna-se bastante popular em algumas regies.

    Em linhas gerais o Protogeomtrico apresenta continuidade das

    prticas funerrias bem como dos locais anteriores, e nem sempre possvel

    distinguir os sepultamentos submicnicos dos protogeomtricos. Uma das

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

    15

    principais caractersticas do perodo a grande diversidade dos sepultamentos

    que podem variar na forma da sepultura, na escolha entre inumao e

    cremao, na maneira em que os restos cremados so depositados e na

    disposio do corpo inumado. Enterramentos mltiplos em chamber tombs

    permanecem na Fcida e na Lcrida. Tholoi reaparecem na Tesslia e Messnia,

    que podem ser consideradas regies perifricas. No Geomtrico a grande

    inovao o aparecimento de marcos funerrios nos sepultamento em Atenas.

    Em Atenas observa-se uma uniformidade das prticas funerrias, com a

    cremao para os adultos (os homens so enterrados em nforas, estas com as

    alas no pescoo, e a mulheres em nforas com alas no bojo) e inumao para

    as crianas. interessante ressaltar o contraste entre a quantidade de vestgios

    do perodo em Atenas e a ausncia deles para o resto da tica (Desborough,

    1972: 119).

    Na Arglida os enterramentos so em cistas, mas a regra geral a

    inumao (Desborough, 1972: 161).

    Igualmente importante o desaparecimento de colares, figurinhas e

    selos como bens funerrios, outrora comuns no perodo micnico.

    A variedade das prticas funerrias das diferentes comunidades pode

    ajudar na compreenso das notveis diferenas de organizao social

    observveis nas comunidades gregas nos perodos posteriores.

    Contatos externos e comrcio

    Embora o Egito, a Assria, e grandes centros urbanos tenham

    permanecido como potncias no Mediterrneo, com os distrbios do final do

    sculo XIII e a desintegrao do imprio Hitita, o comrcio de longa distncia e

    as relaes diplomticas foram profundamente abalados. Vasos de metal

    desaparecem dos stios do Egeu, assim como os vasos de estocagem do tipo

    stirrup jar (jarro de estribo) deixam de ser fabricados. Raramente a cermica

    III C e Submicnica encontrada fora do Egeu. No entanto, a presena de metal

    em stios do Egeu indica algum tipo de contato externo, em escala menor do que

    anteriormente. H evidncia da introduo de objetos de ferro atravs de Chipre

    bem como de cermica eubeia no Oriente Prximo. A partir do sc. IX a

    cermica tica exportada em pequenas quantidades.

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    16

    Uma real expanso tanto na atividade comercial quanto na adoo ou

    adaptao de tcnicas orientais no parece ter comeado antes do final do

    sculo IX, e o ritmo aumenta gradualmente ao longo do sculo seguinte. No

    final do sculo IX, vasos gregos atingem a regio central do Mediterrneo at a

    Sardenha. Na segunda metade do sculo VIII todas as regies passam a

    produzir cermica do Geomtrico Recente e matrias-primas como metais se

    tornam mais abundantes. Objetos tpicos do Oriente Prximo como contas e

    joias aparecem em quantidade considervel. No geral observa-se uma

    intensificao nos contatos internos e externos. importante ressaltar que

    diferentes regies respondem diferentemente as influncias orientais.

    Tecnologia

    Muitas tcnicas atestadas no perodo anterior desaparecem e apenas

    uma inovao comprovada: a metalurgia do ferro. Mas este fato no envolve a

    adoo de novos tipos de instrumentos ou armas, mas a continuao das

    mesmas formas elaboradas com o novo metal. Com exceo do enterramento do

    heroon em Lefkandi, no h indcios de qualquer esforo excepcional e recursos

    empregados em nenhuma rea. A explicao mais plausvel que a organizao

    social no era complexa o suficiente para permitir a mobilizao de recursos em

    qualquer nvel.

    Cermica

    O perodo ps-palacial continua a tradio do BR, mas a qualidade da

    tcnica e decorao notadamente inferior, ainda que se possa encontrar certa

    inovao durante o III C. Mas deve-se notar que, como para o caso dos

    assentamentos, h uma considervel variao entre as regies. Em Atenas a

    cermica apresenta uma qualidade superior do que em Lefkandi e os padres

    nos stios da Arglida so muito variados. Os exemplos de Creta so os melhores

    de todo o Egeu, no entanto a pintura um pouco apagada. De modo geral nota-

    se um nvel inferior na tcnica de produo. No final da Idade do Bronze as

    formas mais elaboradas de decorao tendem a desaparecer e so substitudas

    por um padro abstrato que perdurar ao longo dos sculos.

    O surgimento do que se convencionou chamar Protogeomtrico no

    resulta em um estilo definido, mas o que se observa uma variao regional

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

    17

    bastante acentuada ainda que se possa atribuir o desenvolvimento de tal estilo e

    sua difuso a Atenas. Em Lefkandi, por exemplo, clara a influncia inicial de

    Atenas, ainda que s a partir do Protogeomtrico Mdio, mas um estilo prprio

    se desenvolve na Eubeia.

    Indubitavelmente, Atenas desenvolveu o estilo geomtrico que decora

    nforas e crateras. E os vasos mais elaborados so do Geomtrico Mdio. Tal

    estilo, que influenciou as regies vizinhas, ignorado em Lefkandi, onde se

    continua a produzir cermica protogeomtrica, ou em Corinto que,

    posteriormente, desenvolve um estilo prprio.

    Enquanto para Snodgrass o protogeomtrico tico apenas uma escola

    importante no meio das demais, para Desborough esse o estilo

    protogeomtrico por excelncia, influenciando todos os outros com exceo de

    taca e da Lacnia.

    Segundo Desborough (1972: 134-5), o protogeomtrico tico

    compreende o perodo de 1050 a 900 e possui trs fases. A primeira curta e

    sobrepe-se ao estilo submicnico. A segunda fase tambm curta, mas nela

    que se estabelecem as suas caractersticas. Por fim, a ltima fase a mais longa,

    na qual o estilo da tica passa a influenciar os demais.

    Em comparao com a cermica submicnica que toda pintada, a

    protogeomtrica apresenta a tendncia de deixar espaos vazios. Os motivos

    decorativos so os crculos e semicrculos concntricos.

    Na Arglida no h evidncias da transio para o Protogeomtrico

    como h na tica. Nessa regio a cermica submicnica continua aps o incio

    do Protogeomtrico em Atenas. Quando o novo estilo aparece nos stios da

    Arglida j a forma consolidada do protogeomtrico tico (3a fase). Em

    Corinto h pouqussimos vestgios para o perodo.

    H poucas evidncias nas Cclades at o sculo X, quando aparece a

    influncia da 3a fase do protogeomtrico tico. A Lacnia permanece isolada at

    o sculo seguinte, quando aparecem os primeiros sinais da cermica geomtrica

    (Desborough, 1972: 243). A Messnia, por sua vez, apresenta uma cermica

    protogeomtrica com influncias do Egeu e no de Atenas.

    Em sntese, o perodo Protogeomtrico foi essencialmente uma poca de

    isolamento. H menos de 30 assentamentos atestados no continente e no Egeu.

    So pequenas comunidades espalhadas e sem a coeso poltica do perodo

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    18

    Micnico. O primeiro fato notvel a substituio dos enterramentos mltiplos

    em chamber tombs e nas tholoi pelos enterramentos individuais em cistas. Mas

    esta uma caracterstica do Submicnico na Grcia Central. Na Messnia e na

    Tesslia h o reuso das tholoi com enterramentos mltiplos, uma sobrevivncia

    dos costumes micnicos. J em Creta atesta-se uma continuidade da utilizao

    da tholos. Na tica aparece a cremao, o segundo fator distintivo do perodo. A

    cremao, o uso da cista e a metalurgia do ferro so os argumentos utilizados

    por Desborough para afirmar a introduo de um novo elemento populacional.

    Snodgrass discorda desta hiptese e acredita tratar-se do ressurgimento de uma

    prtica atestada durante o Bronze Mdio. Para tanto temos a tese de Deshayes

    (1966) na qual o uso da cista uma prtica de um substrato do BM da qual os

    dirigentes da Civilizao Micnica quiseram se distinguir atravs da adoo de

    prticas funerrias diferentes, ou seja, as chamber tombs e os enterramentos

    mltiplos de carter familiar e smbolos de hereditariedade.

    Tanto para Desborough (1972) quanto para Snodgrass (1971), apesar do

    isolamento do perodo Protogeomtrico, observa-se, a partir do sculo X, um

    progresso constante com a movimentao populacional e comrcio, bem como

    um aumento do nmero de assentamentos e a preparao para os

    desenvolvimentos do Geomtrico a partir do sculo IX.

    Se por um lado a integrao cultural e comercial estabelecida no final da

    Idade do Bronze foi dissolvida no incio da Idade do Ferro, perodo que marcou

    um relativo isolamento da Grcia com relao ao Mediterrneo, por outro no

    se pode mais aceitar a ideia de um total e completo isolamento grego, nem de

    um retrocesso cultural ou poltico. O mais evidente, contudo, que a unidade

    cultural micnica fora substituda por uma regionalizao poltica caracterstica

    do Arcaico.

    As pesquisas sobre a Idade do Ferro na Grcia tiveram seu incio em

    1952 com a obra de V. Desbobough Protogeometric Pottery, mas o grande

    desenvolvimento ocorreu na dcada de 1960 com as trs snteses arqueolgicas

    da escola britnica, que so fundamentais at hoje. Aps quase duas dcadas

    sem estudos a respeito do perodo, novas abordagens passaram a considerar o

    potencial do perodo no sentido da continuidade: C. Thomas e C. Connat,

    Citadel to City-State. The transformation of Greece, 1200-700 B.E.C. (1999); O.

    Dickinson, The Aegean from Bronze Age to Iron Age. Continuity and change

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

    19

    between the twelfth and eighth centuries BC (2006); e Hall, A History of the

    Archaic Greek World ca. 1200-479 BCE. (2007).

    Nos sculos que se seguiram desintegrao do sistema palacial

    micnico, e que precederam a civilizao grega das plis, uma srie de

    desenvolvimentos importantes ocorreram de forma lenta e paulatina e seus

    desdobramentos so detectveis j no sculo IX. O processo final se torna claro

    no sculo VIII, naquilo que se chamou milagre grego: a retomada do comrcio

    em larga escala, o reaparecimento da escrita com a adoo do alfabeto, a

    colonizao, o retorno da arte figurativa e, por fim, a plis.

    Quadro cronolgico

    (todas as datas so a.C.)

    Idade do Bronze Antiga 3250-2000

    Idade do Bronze Mdia 2100/2000-1600

    Idade do Bronze Recente

    III A 1 1400-1375 Terceiro perodo palacial

    III A 2 1375-1325

    III B 1 1325-1250

    III B 2 1250-1200

    III C 1200-1150/1125 Ps-palacial

    Idade do Ferro (Id. Obscura)

    Submicnico 1125/1150-1050

    Protogeomtrico 1050-900 Id. do Ferro Antiga

    Geomtrico Antigo

    900-850

    Geomtrico Mdio

    850-770

    Geomtrico Recente

    770-700

    Fontes: Treuil (1989) para a Idade do Bronze; Desborough (1972) para os perodos IIIC, Submicnico e Protogeomtrico; e Coldstream (1977) para o Geomtrico. A terminologia Terceiro perodo palacial e ps-palacial de Oliver Dickinson (2006).

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    20

    Bibliografia BETANCOURT, P. The End of Greek Bronze Age. Antiquity, 50:40-47, 1976. COLDSTREAM, J. Geometric Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. DESBOROUGH, V. R. dA. Protogeometric Pottery. Oxford: Clarendon Press, 1952. _______________ The Last Mycenaeans and their Successors. An Archaeological Survey c. 1200-1000 B.C. Oxford: Clarendon Press, 1964. _______________ The Greek Dark Ages. London: Ernest Benn Limited, 1972. DESHAYES, J. Argos, les fouilles de la Deiras. Paris: Librairie philosophique J. Vrin, 1966. DICKINSON, O. The Aegean from Bronze Age to Iron Age. Continuity and change between the twelfth and eighth centuries BC. New York: Routledge, 2006. DREWS, R. The End of the Bronze Age. Changes in Warfare and the Catastrophe ca.1200 B.C. New Jersey: Princeton University Press, 1993. FINLEY, I. Grcia Primitiva: Idade do Bronze e Idade Arcaica. So Paulo: Martins Fontes, 1990. FRENCH, E. The Development of Mycenaean Terracotta Figurines. BSA, 66:102-187, 1971. HGG, R.; MARINATOS, N. Sanctuaries and Cults in the Aegean Bronze Age. Proceedings of the First International Symposium at the Swedish Institute in Athens-1980. Estocolmo 1981. HALL, J. A History of the Archaic Greek World ca. 1200-479 BCE. (Blackwell History of the Ancient World). Malden: Blackwell Publishing, 2007. HOOKER, J. Mycenaean Greece. London: Routledge & Kean Paul, 1976. KILIAN, K. Mycenaeans Up to date, Trends and Changes in Recent Research. In: FRENCH, E. B.; WARDLE, K. A. (ed.) Problems in Greek Prehistory. Bristol: Bristol Classical Press, 1988. LVQUE, P. A aventura grega. Rio de Janeiro: Cosmos, 1967. MAZARAKIS AINIAN, A. Contribuition ltude de larchitecture religieuse grecque des Ages Obscurs. AntCl, 54:5-48, 1985.

  • Juliana Monzani. Integrao e Desintegrao da Grcia (1300-800 a.C)

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  • OS ESTUDOS DEMTICOS E A POSSIBILIDADE DE UMANOVA EGIPTOLOGIA1

    Thais Rocha da Silva2

    RESUMO: Este texto apresenta os estudos demticos e os novos desdobramentos desse campo na

    ltima dcada para um pblico brasileiro que ainda no tem acesso a esses documentos e ao

    campo de pesquisa propriamente dito. Ao mesmo tempo, debato o seu desenvolvimento relacio-

    nado origem e ao estabelecimento da Egiptologia como cincia ao longo dos sculos XIX e XX.

    PALAVRAS-CHAVE: estudos demticos, papirologia, egito antigo, egiptologia,

    ABSTRACT: this text presents demotic studies and the new developments of this field in the last

    decade to the brazilian public, who does not have access to these documents and the research

    field itself. At the same time, I discuss its development related to the origin and establishment of

    Egyptology as a science over the last 19th and 20th centuries.

    KEYWORDS: demotic studies, papyrology, ancient egypt, egyptology.

    The papyri are not a particular closed world.

    (Roger Bagnall)

    Os estudos da lngua egpcia no esto dissociados da compreenso de

    sua histria. Mais do que repetir o bvio, no caso egpcio, a lngua, combinando

    sistemas diferentes, oferece a possibilidade de ver o mundo pelos olhos egpcios.

    E digo ver no sentido mais concreto do termo, uma vez que a iconografia est

    presente na escrita, conferindo novas possibilidades de compreenso da simbo-

    logia e dos textos. O estudo dos textos egpcios, portanto, no pode ser igualado

    ao de outras civilizaes do Mediterrneo, no por uma maior ou menor com-

    plexidade lingustica, mas pela combinao de diferentes modos de ver e associ-

    ar os significados do mundo traduzidos em textos.

    O egpcio antigo e seu ltimo estgio - o copta3 - representa um conjun-

    to de famlias lingusticas chamadas afro-asiticas. A primeira compreende as

    lnguas faladas na regio leste do Mediterrneo, em que se insere o egpcio anti-

    go, com algumas caractersticas comuns: a presena de razes bi ou triconsonan-1 Agradeo ao Prof. John Tait da UCL (Londres) pela generosidade em acompanhar a elaboraodeste texto ao longo de 2011 e tambm por ter me iniciado no estudo do demtico. Sou muitograta tambm ao Prof. Dr. Ronaldo Gurgel Pereira (Universidade Nova de Lisboa) pelos diversosapontamentos no texto. Ao Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr. pela leitura cuidadosa de sempre, epelo encorajamento a esta publicao. 2 Mestranda do Programa de Estudos Judaicos e rabes, Departamento de Letras Orientais,FFLCH-USP, sob orientao do Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr. 3 Sobre o desenvolvimento da lngua egpcia ver Tab. 3 no final deste texto.

    22

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    tais, um sistema voclico limitado a vogais como a, i, u, um sufixo femini-

    no -at, entre outros mais especficos (WOODARD, 2004). Esse tipo de com-

    preenso e classificao s foi possvel graas ao advento da filologia que, no s-

    culo XIX, ganhou um estatuto de cincia exata entre as humanidades. Mais do

    que sistematizar a histria e o desenvolvimento das lnguas, os fillogos tinham

    uma obsesso taxonmica.

    O grupo dos orientalistas com uma formao lingustica slida, fazia

    suas descries do Oriente em geral, baseadas em seu acesso aos textos antigos.

    Tais descries, no entanto, no deixaram de apresentar um juzo de valor no

    modo de apresentar esse material, inclusive nas tradues. O caso do Egito

    particularmente interessante, pois a traduo da Pedra de Roseta, colocada

    como marco fundador da Egiptologia, est imersa numa disputa imperialista

    que iria determinar o modo de se fazer Egiptologia at os dias de hoje. O posici-

    onamento dos estudos demticos e a respectiva seleo de fontes dentro da dis-

    ciplina so consequncia desse processo.

    A Pedra de Roseta (197-196 a.C.), atualmente no Museu Britnico, foi

    descoberta por Boussard (ou Bouchard), um oficial francs, na regio prxima a

    Rashid, ou Roseta, no Delta Ocidental. Com a derrota de Napoleo para a Ingla-

    terra e a conquista de Alexandria, a pedra passou para mos inglesas.4 A pedra

    chegou em Portsmouth em 1802 e ficou nas salas da Society of Antiquities of

    London at ser enviada para o Museu Britnico. Em abril desse mesmo ano, o

    Rev. S. Weston leu a parte grega do documento numa sesso pblica. Pouco de-

    pois, em julho, quatro cpias foram distribudas aos grandes centros de estudo

    da Inglaterra, Cambridge, Oxford, Dublin e Edimburgo num esforo para se tra-

    duzir o texto. Feita em granito negro, a pedra contm catorze linhas em hiergli-

    fos (ou hieroglifos), 32 linhas em demtico, e 54 em grego.5 As inscries da Pe-

    dra de Roseta formam uma verso de um decreto feito pelos sacerdotes de

    Mnfis estabelecendo que Ptolomeu V era o novo governante do Egito.

    4 O Tratado de Capitulao, artigo XVI, dizia que todas as peas coletadas no Egito, que j esta-vam prontas para a viagem a Paris deveriam ser entregues aos ingleses. O Gen. Hutchinson foi oresponsvel pelo embarque do material Inglaterra. 5 Para maiores detalhes sobre os estudos sobre a Pedra de Roseta, ver Budge, 1925; Ray, 2008;Parkinson, 1999.

    23

  • Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia

    O texto recebeu ateno de diversos pesquisadores6 e muitos absurdos

    foram escritos em relao ao deciframento. No entanto, os trabalhos de Cham-

    pollion e Thomas Young foram determinantes para o entendimento dos hier-

    glifos e para o demtico. Mais ainda, isso consagrou a clssica disputa entre

    Frana e Inglaterra no apenas pelo mrito do deciframento, mas pela paterni-

    dade da Egiptologia.

    Apesar de toda a fama ter sido endereada a Champollion, Thomas

    Young foi importante para que o sucesso francs fosse atingido. Young era

    mdico de formao, mas tinha profundo conhecimento sobre lnguas antigas.

    Aos 14 anos j tinha domnio de diversos idiomas, incluindo o grego, latim, cal-

    deu, persa, hebraico, turco, isso sem contar as lnguas modernas. Seus conheci-

    mentos lingusticos foram fundamentais para, por exemplo, estabelecer que os

    egpcios combinassem sinais alfabticos e no alfabticos nos textos.

    Seu primeiro trabalho no foi com a Pedra de Roseta, mas com um frag-

    mento de papiro trazido por W. Rose Broughtone, e foi com este texto que reali-

    zou progressos significativos no entendimento do egpcio antigo. Young identifi-

    cou que os cartuchos continham os nomes da realeza e, com isso, conseguiu tra-

    duzir os nomes de Ptolomeu e de Berenice, reconhecendo o sinal feminino final

    e a letra t. Dos treze sinais na lista, seis estavam corretos, trs parcialmente

    corretos e quatro errados; depois acrescentou o sinal para f, alm de outros,

    tambm tendo descoberto os numerais e o modo de se representar o plural

    (RAY, 2008; PARKINSON, 1999). O mdico se dedicou formao da Egyptian

    Society, subordinada Royal Society of Literature, a fim de garantir a publica-

    o das inscries egpcias e passou a se dedicar ao demtico anos mais tarde

    (REDFORD, 2001; BIERBRIER, 1995, p. 455).

    Champollion identificou o sistema de fonemas e diversos sinais corres-

    pondentes ao copta. Em 1824 foi responsvel pela publicao do Prcis du

    systme hiroglyphique des anciens gyptiens, com 450 palavras e, posterior-

    mente a criao de uma gramtica e um dicionrio (REDFORD, 2001). Apesar

    das narrativas do deciframento enfatizarem o hierglifo, o demtico teve um pa-

    pel importante nesse processo, o qual foi reconhecido, embora tal reconheci-

    mento ainda no tenha alavancado o campo de pesquisa na poca.6 Sobre as tentativas de deciframento antes de Champollion, ver Iversen, 1972.

    24

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    O fascnio despertado nas pessoas por conta dos hierglifos, dificultou o

    processo de transliterao e traduo do demtico, bem como o estabelecimento

    de uma sintaxe. Na verdade, no se tratava apenas de decifrar o significado dos

    sinais, mas a lngua em toda sua complexidade. O fato de o Egito antigo ganhar

    popularidade pelos objetos monumentais e pelo exotismo da lngua, associados

    a um orientalismo7 dos pesquisadores, colocou o demtico fora do centro das

    atenes. preciso lembrar que a formao da Egiptologia como cincia especi-

    alizada se d paralelamente formao das colees dos grandes museus euro-

    peus, sobretudo na Inglaterra, com o British Museum (MOSER, 2009). A trans-

    formao ocorrida na disposio das galerias organiza e ordena uma nova hie-

    rarquia de civilizaes, antes separadas segundo uma esttica clssica, ao tom

    da arquitetura do museu, mas posteriormente, numa ordem cronolgica (MO-

    SER, 2009, p. 221). Como a base das vitrines e das salas era uma tentativa de

    imitar os templos gregos, o aspecto extico, bizarro, e mesmo monstruoso

    dos objetos egpcios destoava muito e eles ficavam ressaltados. Por conta disso,

    a recepo foi considerada bipolar, mas nunca indiferente (MOSER, 2009,

    p.224). Uma vez que nesse momento os objetos eram classificados como obje-

    tos de arte,8 ficava evidente a discrepncia dos modelos estticos. As peas

    egpcias, quando comparadas s gregas e romanas, adquiriam um status de in-

    ferioridade, com um juzo de valor que apontava a sofisticao greco-romana em

    oposio simplicidade egpcia.

    O gradual isolamento dos egiptlogos e demais desdobramentos da es-

    pecializao contriburam para que os textos demticos no constassem na lista

    de prioridades de uma Egiptologia - e de um Egito - emergentes. A estagnao

    nos estudos demticos s viria a ser superada na dcada de 1970.

    No entanto, muito antes, o hierglifo j tinha provocado estranhamento

    na Antiguidade,9 identificado nos relatos de Herdoto e Horapolo. Apesar de

    posterior, o texto de Horapolo, que viveu em Alexandria no sculo V d.C., se tor-

    nou referncia para os estudos da lngua egpcia durante toda a Idade Mdia e

    7 Tomo por referncia aqui a ideia de Edward Said (1990) do orientalismo como um estilo depensamento e a disciplina acadmica dedicada aos estudos do Oriente. 8 preciso lembrar da Egitomania no sculo XIX que contribuiu para que o Egito fosse adapta -do e consumido, conforme o gosto burgus. 9 Refiro-me nesse caso diviso didtica tradicional, em que o perodo da Antiguidade vai dosurgimento da escrita at 476 d.C, quando h a queda do Imprio Romano do Ocidente.

    25

  • Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia

    Idade Moderna. Seu trabalho, no Livro I, traz um grande nmero de sinais com

    suas respectivas explicaes. Entretanto, o livro parece ser escrito por dois auto-

    res diferentes (BOAS, 1993, p. 17). No sculo XV sua obra foi adquirida por Cris-

    toforo Bundelmonti, mas o texto s foi publicado pela primeira vez em 1505,

    junto s fbulas de Esopo. Nos anos seguintes a obra de Horapolo chegaria ao

    nmero expressivo de trinta tradues e reedies, o que pode explicar em parte

    a viso renascentista sobre os egpcios. O texto contm referncias greco-roma-

    nas, de modo que possvel identificar tradies distintas da egpcia (BOAS,

    1993, p. 17). Os equvocos cometidos no eram conhecidos no sculo XVI e XVII

    e s seriam identificados muito depois.

    Os relatos de Herdoto so muito anteriores e nos deram informaes

    sobre a existncia de dois tipos de escrita: a sagrada e a demtica (II, 36), tradu-

    zida como escrita popular. Contudo, examinando a histria da lngua egpcia,

    sobretudo aps o perodo sata, veremos que os egpcios tinham uma viso dife-

    rente a respeito.

    O demtico

    Demtico o tipo de escrita cursiva desenvolvida pelos egpcios (RED-

    FORD, 2001, p. 210). O termo utilizado por Herdoto, , foi apropriado

    e difundido com uma forma de escrita popular, no sagrada. Os egpcios se refe-

    riam ao demtico como sX n Sa.t, letras, ou escrita das letras.10 O demtico se

    tornou a escrita corrente para assuntos ligados ao cotidiano. No entanto, a escri-

    ta demtica abarca praticamente todas as categorias de textos egpcios, tais

    como contratos, cartas, etc., com exceo das poesias amorosas. O primeiro tex-

    to em demtico do sculo VII a.C., mas seu uso em grande escala acontece so-

    mente no perodo ptolomaico.

    O termo demtico foi consagrado no mundo contemporneo graas ao

    deciframento da Pedra de Roseta, e passou a ser utilizado pelos egiptlogos de-

    pois de Champollion. Muitos pesquisadores do sculo XIX se referiam a encho-

    ria para se referir a esse tipo de caractere. No se trata de uma outra lngua,

    nem de uma lngua do povo,11 vulgar, ou simplesmente de uma escrita cursiva10 Redford traduz como document writing (2001, p. 210).11 H um grande debate na Egiptologia sobre o acesso da populao escrita e mesmo sobre onvel de alfabetizao. Discutirei isso adiante. A principal referncia Baines e Eyre, 1983.

    26

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    dos hierglifos. O demtico tem uma gramtica diferenciada, que se desenvol-

    veu a partir do egpcio tardio, marcando uma transio (lenta e gradual) para o

    copta, posteriormente.

    O demtico, como o egpcio, possui sinais que correspondem a um, dois

    ou trs sons, portanto no se trata de uma escrita alfabtica como a grega.

    Hierglifo Hiertico Demtico

    sS (n) mdw - nTr sS (n) Sa. t

    3000-664 a.C. 2500-664 a.C. 664 a.C. - declnio no Per-odo Romano

    TAB.1. Exemplo simplificado da transio das escritas egpcias.

    A escrita demtica pode ser considerada uma das muitas variaes dia-

    letais do hiertico, oriunda da regio de Sais. No entanto, pelo fato de o demti-

    co apresentar variaes na construo de palavras e frases, e tambm no uso dos

    sinais, como da gramtica, no podemos reduzi-lo a uma mera simplificao do

    hiertico (SHORE, 1972, p. 144). Conforme indica Depauw (1997), possvel

    identificar em fontes gregas referncias ao demtico em oposio ao hierglifo.

    Herdoto (2, 36; V sc. a.C.), Diodoro (1, 81 e 3,3; I sc. a.C) e Heliodoro (Ethi-

    op. 4, 8; III e IV sc. a.C.) apresentam distines para isso (ver Tab.2).

    Tais fontes no distinguem propriamente o hiertico e o hierglifo, to-

    mados como sagrados ou sacerdotais em oposio ao demtico, que seria

    popular. Ainda no mundo antigo, Clemente de Alexandria (Stromateis 5, 4,

    20-21; II e III sc. d.C.)12 j diferenciava trs tipos de escrita egpcia:

    , , . Em Porfrio ( Vit. Pythag. 12, III sc.

    12 Budge (1925) apresenta os trechos em grego a partir da p. 129. 27

  • Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia

    d.C) vemos -- / (DEPAUW,

    1997, p. 19). Outros registros como o Decreto de Canopo (238 a.C.), a Pedra de

    Roseta (196 a.C.), P.gr.Tebt. II 291 (162 a.C) apresentam uma clara distino en-

    tre a escrita dos gregos e a dos egpcios. Para os gregos, no entanto, a escrita

    demtica era considerada nativa, nacional. Entre os prprios egpcios havia

    uma diferenciao dos tipos de escrita, conforme se pode observar a seguir.

    No pretendo aqui realizar uma discusso filolgica sobre as origens e

    os problemas que envolvem o desenvolvimento do demtico como sistema de

    escrita, inclusive por limites de formao. O ponto ressaltar a complexidade do

    debate em torno das fontes e a dificuldade que envolve a pesquisa a partir desse

    material. A identificao precisa dos sinais nem sempre possvel, no apenas

    pelo estado de conservao dos textos, mas tambm pelas diferentes grafias -

    nem sempre habilidosas - de quem redigia o material.

    No que concerne ao uso do demtico, em seu perodo mais inicial (650-

    400 a.C.), correspondente aos domnios sata e persa, as fontes se restringem a

    documentos administrativos, legais e comerciais. Nos sculos subsequentes, so-

    bretudo o IV sculo a.C., o demtico parece ganhar importncia entre a popula-

    o, possivelmente por ser um tipo de escrita anteriormente vinculada admi-

    nistrao. Nos primeiros anos do domnio lgida, no perodo ptolomaico, o de-

    mtico aparece em diversos tipos de fontes e h uma vasta produo literria

    em demtico, o que poderia em parte justificar a apropriao dessa escrita pela

    populao letrada.

    28

  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    Fontes Hiertico/Hi-erglifo

    Demtico Grego

    Herdoto

    Diodoro (I)

    Diodoro (III)

    Heliodoro

    Clemente de Ale-xandria

    Porfrio

    /

    /

    -

    -

    -

    -

    -

    -

    Canopo: Grego

    Roseta: Grego

    P. g. Tebt. 2

    -

    Canopo: Hierglifo

    Roseta: Hierglifo

    sS (n) pr- anx

    sS (n) mdw - nTr

    sS (n) Sa. t

    sS (n) Sa. t

    sS n HAw-nbwt

    sS n HAw-nbwt

    Canopo: Demtico

    Roseta: Demtico

    sX (n) pr- anx

    sX (n) mdw - nTr

    sX (n) Sa. t

    sX (n) Sa. t

    sX (n)

    sX (n)

    TAB. 2. A escrita e as fontes (In: DEPAUW, 1997, p. 19 )

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  • Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia

    A chegada dos gregos compromete a permanncia do demtico como

    escrita. Tal comprometimento no se deu pelo fato de que o grego era uma es-

    crita alfabtica, em oposio ao egpcio, como se acreditou por alguns anos (DE-

    PAUW, 1997), sendo, portanto, mais fcil de aprender. Ora, se a grande maioria

    da populao j conhecia o egpcio como lngua falada e a escrita no era uma

    habilidade comum a todos, essa teoria no se sustenta. Ao mesmo tempo, se tal

    dificuldade tivesse existido, seria por parte de escribas gregos, e no egpcios.

    Durante o perodo ptolomaico, perodo de maior popularizao do de-

    mtico como escrita, uma parte dos documentos era produzida em duas lnguas,

    principalmente os contratos. Os tribunais em demtico funcionavam normal-

    mente e os gregos poderiam recorrer a eles se assim o desejassem. O decreto de

    146 a.C recomendava o registo em grego de documentos produzidos em dem-

    tico para que pudessem ser arquivados, pois do contrrio eles no seriam. O de-

    creto de Anistia de 118 a.C, de Ptolomeu VIII Evergeta II, reduziu um pouco da

    autoridade dos tribunais gregos em relao aos tribunais egpcios.13 H muitas

    divergncias sobre o uso do demtico e do grego na documentao legal ptolo-

    maica (principalmente MANNING, JOHNSON, CLARYSSE). O caso dos contra-

    tos interessante para verificar ainda que as instituies do perodo reconheci-

    am documentos escritos tanto em grego quanto em demtico. Tal simultaneida-

    de se justifica, por outro lado, pelo fato de que a administrao local no era ne-

    cessariamente grega, mas uma verso do documento era enviada a Alexandria e,

    portanto, referendada pela administrao central. Ao mesmo tempo, isso indica

    que o demtico permaneceu em seu uso original no domnio sata como uma es-

    crita da administrao real.

    Poderia se argumentar que o demtico foi mantido para marcar uma

    certa identidade egpcia nas prticas cotidianas, que no eram necessariamente

    afetadas pela administrao macednica. Contudo, no podemos trabalhar com

    essas polaridades simplistas no Egito ptolomaico. Nem sempre um documento

    escrito em grego era de fato grego e o mesmo ocorria com os textos em demti-

    co. Essa viso simplificada da sociedade egpcia contribuiu para que o demtico

    ficasse em segundo plano tambm pelos papirologistas que defendiam a heleni-

    zao do Egito.13 Sobre os tribunais e as interaes entre egpcios e gregos, ver PEREIRA, 2005.

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  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    preciso tomar cuidado com a ideia de que o grego parece ser mais

    fcil que o egpcio e que, por ser uma escrita alfabtica, teria trazido vantagens

    para o processo de helenizao. Esse tipo de abordagem, defendida por Goody

    (2003), insustentvel quando observamos os documentos produzidos em pa-

    piro. Na documentao demtica do perodo ptolomaico, h o intercmbio de

    termos egpcios em textos gregos (possivelmente escritos por escribas egpcios),

    e tambm o contrrio. Clarysse (1993) faz uma anlise desse intercmbio de-

    monstrando de que modo o Egito ptolomaico se constitui gradativamente, como

    um pas bilingue. Os escribas egpcios parecem no ter adotado as terminaes

    gregas nos nomes egpcios (CLARYSSE, 1993, p. 198) e adaptado um grande n-

    mero de partculas do grego ao modo egpcio de escrever. Assim, a helenizao

    dos escribas egpcios deixou marcas tambm de uma egipcianizao do grego

    utilizado pelos Ptolomeus. Para alm do fator lingustico, a adoo de equipa-

    mentos de escrita distintos (a caneta de junco e o pincel) marca esse intercm-

    bio. bem provvel que os gregos tenham aprendido demtico para se aproxi-

    marem dos conhecimentos mdicos dos egpcios, conforme atesta uma carta em

    que um grego parabenizado por aprender demtico.14 Acredita-se que apenas

    uma minoria de 10% falava grego (CLARYSSE,1995, p. 1), minoria esta que go-

    vernou o pas por 300 anos, deixando marcas importantes na vida social. No se

    trata, portanto, apenas da mudana de um registro lingustico.

    No caso especfico das cartas, por exemplo, o problema passa a ser de

    outra ordem. O nmero de cartas em demtico menor do que as cartas gregas,

    mas possivelmente porque grande parte delas se refira a assuntos administrati-

    vos entre os altos oficiais. Os textos propriamente em demtico no so distin-

    tos dos gregos nem relao aos contedos (DEPAUW, 2006), o que derrubaria a

    ideia de que os textos demticos so utilizados para assuntos privados e os

    gregos para os pblicos e oficiais.

    Durante o perodo romano possvel ver o progressivo desuso do de-

    mtico. Textos administrativos e jurdicos passam a ser mais raros, depois os li-

    terrios (menos relevantes para a vida pblica); at que no sculo V d.C. se en-

    contram ainda em grafites no Templo de Philae (Graff. Philae 365). Os motivos

    14 RMONDON, R. Problmes du bilinguisme dans lgypte lagide (UPZ I, 148). In: Cd 39(1964), pp. 126-146. Para outras referncias sobre o tema, ver Depauw, 1997.

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  • Thais da Rocha Silva. Os Estudos demticos e Uma Nova Egiptologia

    para a diminuio dos textos no so claros. Lewis (1993) apresenta um contras-

    te significativo na quantidade de documentos disponveis no perodo ptolomaico

    (600) e no perodo romano (por volta de 60).15

    Papyrologists concerned with Greek documents have traditionally viewed the disappearance of

    Demotic as a case of 'a largely non-alphabetic system, difficult to acquire and confined almost

    exclusively to priests and professional scribes, [being] allowed to slip into the oblivion toward

    which it had been headed for a long time'. Accuracy aside, this 'explanation' does not touch on

    etiology, unless it be implied in the reference to the nature of the script and to its professional

    associations. (LEWIS, 1993, p. 277)

    Esse processo precisa levar em conta outros aspectos da vida social no

    Egito Romano, como o desprezo dos romanos em relao aos seus hbitos br-

    baros,16 mas sobretudo as mudanas na administrao. Os romanos parecem

    ter diminudo as verbas para os templos egpcios, reduzindo significativamente

    o poder dos sacerdotes, que eram os principais responsveis pela manuteno

    da escrita nativa.

    Roman reorganization of the administration of Egypt denied such documents the recognition, or

    status, they had previously enjoyed. In other words, Demotic documentation was a victim, or ca-

    sualty, of the Roman annexation of Egypt. Or, to put it in homelier language, the Demotic docu-

    ment did not just wither and fade with age, it was starved to death.(LEWIS, 1993, p. 277)

    Se o Egito durante o perodo ptolomaico adota mltiplos registros escri-

    tos dependendo do tipo de texto, de se imaginar que outras questes possam

    ser investigadas a partir da. As relaes sociais (tomadas aqui num mbito mais

    geral) e a maneira como egpcios e gregos se relacionavam podem ser vistas pe-

    las apropriaes da lngua e da escrita. Entretanto, antes de fazer esse percurso,

    acredito ser relevante analisar/discutir o modo como o campo do demoticismo

    se constituiu no sculo XX. A formalizao desse campo de pesquisa afetou o

    modo como esses documentos foram escolhidos e estudados nos ltimos anos e,

    evidentemente, todas as leituras a partir de ento no fogem regra.

    15 O autor evidentemente leva em conta a presena significativa de straca encontrados no IIIsculo d.C., dos grafites e da produo literria no Alto Egito no mesmo perodo em demtico. importante lembrar que ainda h um grande nmero de papiros demticos no traduzidos e pu-blicados. 16 Lewis relembra o esforo de Otaviano em sua propaganda anti-Clepatra (p. 281).

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  • Mare Nostrum, ano 2013, n. 4

    Os estudos e a organizao do campo de pesquisa.

    O orientalista sueco J. D. kerblad foi o primeiro a estudar o trecho de-

    mtico da Pedra de Roseta, mas ainda entendia o demtico como uma escrita al-

    fabtica. Thomas Young foi o primeiro a sugerir que os hierglifos poderiam ser

    uma escrita alfabtica e no alfabtica e que o demtico derivava destes sinais.

    Champollion fez alguns progressos comparando o demtico e o copta, chegando

    a decifrar alguns dos sinais, mas os progressos no demtico s foram realizados

    no incio do sculo XX.

    Houve tentativas de se estruturar uma gramtica demtica. O pesquisa-

    dor irlands E. Hincks publicou em 1833 The Enchorial Language of Egypt17 e

    em 1848 Henri Brugsch publica em Berlim o Scritpura Aegyptiorum demotica

    e papyris com grande impacto nos estudos da rea. Somente em 1925, Spiegel-

    berg lana Demotische Grammatik, formalizando o campo de estudos do de-

    mtico.

    O crescimento dos estudos coptas colaborou para reposicionar o de-

    mtico na histria das escritas egpcias. Entre os alemes, principalmente, em

    finais do sculo XIX e incio do XX, o demtico foi situado entre o egpcio tardio

    e o copta, como uma escrita de transio.

    As gramticas demticas ainda esto em desenvolvimento e no preten-

    do nesse trabalho desenvolver todo o debate sobre os problemas e limites de

    cada gramtica.18 Vale mencionar aqui que Francis Ll. Griffith (18621934) ana-

    lisou cuidadosamente a construo gramatical do demtico na obra Stories of

    the High Priests of Memphis (1900) sobre os papiros mgicos de Leiden e Lon-

    dres e Catalogue of the Demotic Papyri in the Rysland Library at Manchester

    (1909) (com Sir Herbert Thompson). Um outro pesquisador digno de nota foi F.

    Lexa com Grammaire Dmotique, em sete partes com grande detalhamento,

    chegando a 1228 pginas quando publicadas entre 1949 e 1951. Mais recente-

    mente, Edda Breschiani public