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A Instituição Escolar e a Violência Marilia Pontes Sposito Texto disponível em www.iea.usp.br/observatorios/educacao As opiniões aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente as posições do IEA/USP.

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A Instituição Escolar e a Violência

Marilia Pontes Sposito

Texto disponível em www.iea.usp.br/observatorios/educacao

As opiniões aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente as posições do IEA/USP.

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A Instituição Escolar e a Violência

Marilia Pontes Sposito

Há um significativo conjunto de questões, ainda não investigadas, que afetam os

processos educativos e em especial a escola na sociedade contemporânea. Dentre esse

amplo espectro, certamente está presente o tema da violência escolar, pouco estudado em

nosso país. Uma das possibilidades de se evidenciar a falta de conhecimento sistemático

pode ser localizada no exame da produção discente na Pós-Graduação em Educação. Em

um período de 15 anos (1980 - 1995) foram defendidos cerca de 6.092 trabalhos entre teses

de doutorado e dissertações de mestrado. Desse expressivo volume, apenas quatro estudos

(duas teses de doutorado e duas dissertações de mestrado) examinaram a violência que

atinge a unidade escolar.1

Insuficientemente investigado, o assunto é complexo e deixa de ser fenômeno

peculiar à sociedade brasileira. Algumas informações e relatos, extraídos de jornais ou de

estudos realizados em outros países, podem anunciar, sem tons de falsa dramaticidade e

sensacionalismo, a extensão e a magnitude do problema.

Uma descrição das rotinas de dois colégios da periferia da cidade de Lion na França

introduz o leitor no universo da violência de forma incontestável:

Mulheres que já não ousam dar aula com a porta fechada. O

conselheiro de orientação espancado, carro deteriorado por trás de

portões de estacionamento fechados a cadeados, penetração

constante na área do estabelecimento de pessoas estranhas a ele, na

maioria das vezes ex-alunos que vinham acertar contas com colegas

ou ex-professores, inclusive dentro das salas de aula (PERALVA:

1996).

Nesse mesmo país, França - um dos pilares a partir dos quais foi construída a

moderna idéia da escola pública destinada à maioria, gratuita e leiga - foi criado em 1996

um “S.O.S. Professor” que possibilita o acesso a um número de telefone permanentemente

à disposição de professores de modo que estes possam se manifestar, fazer denúncias de

agressões e de situações de violência observadas no dia a dia de suas atividades

profissionais nas escolas (PERALVA:1996).

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Nos Estados Unidos, uma notícia publicada em 1994 pelo jornal Folha de S. Paulo

informava que pelo menos 270 mil estudantes entravam armados em sala de aula. Cerca de

70% dos colégios americanos revistam seus alunos na entrada e fazem inspeções

inesperadas em salas de aula. Nesse mesmo ano foram instalados detectores de metal tanto

nos portões de acesso aos prédios escolares e passaram a ser utilizados instrumentos

portáteis de verificação que acompanhariam as investigações repentinas de grupos de

alunos em salas de aula (Folha de S.Paulo 9/5/1994). Em 1997, em cidades como New

York, observa-se a iniciativa de criação de novos estabelecimentos de ensino em parceria

com instituições da sociedade civil, especialmente destinados a receber os alunos que

apresentavam condutas violentas no interior das escolas públicas da cidade.

Em países vizinhos como a Argentina, os jornais também retratam a queima de

documentos escolares (sobretudo boletins), roubo de móveis, depredações, tentativas de

incêndio em escolas da grande Buenos Aires. Tais atos seriam praticados, relatava a

notícia, provavelmente por menores de idade (Clarin 16/7/1993).

Assim, as reflexões a serem empreendidas devem incorporar o pressuposto de que

não se trata de um fenômeno estritamente brasileiro. Por essas razões a análise das causas e

das relações que geram condutas violentas no interior da instituição escolar impõe alguns

desafios aos pesquisadores e profissionais do ensino, pois demanda tanto o reconhecimento

das especificidades das situações como a compreensão de processos mais abrangentes que

produzem a violência como um componente da vida social e das instituições, em especial

da escola, na sociedade contemporânea.

As idéias aqui apresentadas exprimem uma reflexão originada em trabalho de

pesquisa que buscou acompanhar, por meio de fontes diversificadas, a questão da violência

nas escolas públicas na região da grande São Paulo. O conteúdo do material coletado

compreende: notícias publicadas nos grandes periódicos de São Paulo sobre o tema, de

1980 até 1992; levantamento de informações disponíveis sobre os índices de violência

junto aos órgãos públicos municipais e estaduais; registro das principais iniciativas

governamentais que visavam a alcançar soluções para atenuar a onda de violência;

entrevistas com 15 vigias de escolas públicas municipais, no início dos anos 90. A

compreensão do tema também foi ampliada pelo acesso aos poucos estudos produzidos no

Brasil e às pesquisas realizadas na França, sobretudo aquelas empreendidas por Angelina

Peralva (PERALVA: 1996).

Três são os aspectos a serem analisados de modo a estabelecer alguns parâmetros

para uma melhor compreensão do tema “A instituição escolar e a violência”. Em primeiro

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lugar apresento uma série de considerações buscando estabelecer aproximações mais

precisas sobre o fenômeno de modo a possibilitar maior clareza para se empreender novas

reflexões; práticas e processos sociais diversos estão pressupostos no binômio violência -

escola e precisam estar suficientemente deslindados. O segundo momento examina, ainda

que brevemente, algumas das mais significativas ações governamentais observadas em São

Paulo, a partir de 1980. Não se trata de um balanço exaustivo, ao contrário, pretende-se

oferecer apenas exemplos de tentativas de resposta encontradas pelo Poder Público para

superar a violência na rede de ensino. Finalmente, à guisa de conclusão, encaminho

algumas reflexões sobre o sentido da escola na sociedade contemporânea de modo a situar

a violência no interior de marcos sociais mais abrangentes.

AS MÚLTIPLAS FORMAS DE INTERAÇÃO ENTRE A VIOLÊNCIA E A ESCOLA

Em uma de suas definições mais amplamente aceitas, embora seja extremamente

difícil exprimi-la a partir de uma única categoria explicativa, a violência é todo ato que

implica na ruptura de um nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a possibilidade

da relação social que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo

conflito. Mas a própria noção encerra níveis diversos de significação, pois os limites entre

o reconhecimento ou não do ato como violento são definidos pelos atores em condições

históricas e culturais diversas. De um lado, ao se eleger prioritariamente nesta análise as

condutas que envolvem a destruição e a força, não poderia deixar de considerar, ao menos

como referência, práticas mais sutis e cotidianas observadas na sala de aula que veiculam o

racismo ou a intolerância e, até, os mecanismos relativos à violência simbólica presentes

na relação pedagógica, já estudada por Bourdieu (BOURDIEU e PASSERON: 1975). De

outra parte, os diversos usos e significados da palavra violência ao lado de termos

correlatos como indisciplina permitem alterações expressivas de significados correntes

sobre o conjunto das ações escolares. Atos anteriormente classificados como produtos

usuais de transgressões de alunos às regras disciplinares, até então tolerados por

educadores como inerentes ao seu desenvolvimento, podem hoje ser sumariamente

identificados como violentos. Ao contrário, condutas violentas, envolvendo agressões

físicas, podem ser consideradas pelos atores envolvidos episódios rotineiros ou meras

transgressões às normas do convívio escolar. Por essas razões, um dos aspectos ainda a

serem investigados diz respeito ao modo como, no âmbito da instituição escolar, são

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construídas as definições que designam e normalizam condutas - violentas ou

indisciplinadas - por parte dos atores envolvidos: professores, alunos, funcionários, pais,

entre outros.2

Ressalvadas essas distinções e retendo, preliminarmente, a definição inicialmente

estabelecida para o exame da violência, dois aspectos devem ser evidenciados. O primeiro

diz respeito ao espaço estrutural como possibilidade geradora da violência escolar e de

outro lado a violência escolar propriamente dita.

Os estudos que tentam investigar o fenômeno da violência social, sobretudo no

Brasil, buscam construir um quadro determinado por condições históricas e sociais que

explicariam o aparecimento de condutas violentas na escola. Reconhecer que essa moldura

propicia as condições para a eclosão da conduta violenta, não significa estabelecer

linearidade entre o quadro social que favorece o seu aparecimento e as práticas de

violência na instituição escolar.

Quando se recorre ao conjunto de determinações sociais, um primeiro par sempre

aparece: as relações necessárias entre a pobreza e a violência. Aparentemente impecável, o

raciocínio afirma ser a pobreza responsável pela violência social e, em conseqüência, os

atos de violência que atingem a unidade escolar ou que nela ocorrem, seriam mais uma das

expressões diretas da situação de miséria. Se a exclusividade dessa explicação fosse

suficiente, nós não faríamos as seguintes perguntas: todas as situações de pobreza tem sido

geradoras de violência? Como explicar a existência de escolas situadas na periferia das

grandes cidades submetidas às mesmas condições de pobreza, mas diversas quanto à

existência de práticas ou episódios violentos no seu interior? Como explicar a violência,

ainda não investigada, em escolas que atendem setores de classes médias urbanas?3

No âmbito do binômio - pobreza e violência - alguns estudos indicam que não são

as regiões mais miseráveis do país aquelas que condensam maior índice de violência. Mais

do que a pobreza em termos absolutos, seria uma certa exacerbação da desigualdade social,

a extremada distribuição desigual da renda ao lado da convivência no mesmo espaço de

dois mundos - excluídos e incluídos - uma das molduras propícias às relações de violência

e suas conseqüências sobre a escola. Talvez um exemplo importante dessa situação possa

ser visualizado na cidade do Rio de Janeiro que constrói um espaço urbano onde incluídos

e excluídos vivem cotidianamente esta relação de confronto, de mútua negação - a

abundância de um segmento diante da miséria do outro - e interações complementares

entre esses mundos, expressas muitas vezes pelo consumo e tráfico de drogas.

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Um outro elemento explicativo habitual reside no reconhecimento dos aspectos

históricos, culturais e políticos que imprimiram suas marcas na constituição de sociedades

colonizadas como o Brasil. Embora este não seja o objeto desta exposição, torna-se

importante registrar que, certamente, este país - caracterizado não só pela desigualdade,

mas pela existência de elites que privatizam a esfera pública e reiteram em suas práticas a

ausência de direitos, fortalecendo a impunidade e da corrupção dos governantes - tende a

ser uma sociedade que produz, ao mesmo tempo, a cultura da violência e a sua banalização

(PERALVA: 1995). A banalização da violência, tema a ser retomado em outro momento,

produz conseqüências importantes no âmbito da unidade escolar ao estruturar formas

diversas de sociabilidade que retiram o caráter eventual ou episódico de determinadas

práticas de destruição ou de uso da força.

Mas, como afirma Caldeira, os argumentos que enfatizam o peso histórico e as

raízes culturais da sociedade brasileira são insuficientes, pois a violência que atinge o país

a partir da década de 80 é, também, moderna. Ou seja, a violência, sobretudo aquela que

ocorre nas grandes cidades, é também produto do modo específico como tem ocorrido o

processo de transição em direção à democracia. A noção de democracia disjuntiva,

proposta por Caldeira, aponta para o fato de que os ritmos de instalação da ordem

democrática são dispares, desiguais, não obedecendo a uma lógica meramente cumulativa.

Assim, alargar direitos em uma esfera não significa, necessariamente, a dilatação de

direitos em outras, ao contrário, pode-se observar a sua retração ou encolhimento. O

processo de expansão de alguns direitos no âmbito da democracia política, como o voto e

outras formas de participação da sociedade, não significa que outros espaços e instituições

tenham alcançado estatuto mais democrático nesse mesmo período. Por essas razões,

interrogações sobre os destinos da escola pública se tornam mais diversificadas. Teria esse

período favorecido a emergência de padrões mais democráticos capazes de estruturar

novas relações no interior da escola pública? Além das questões clássicas relativas ao

acesso e à permanência na escola, tratar-se-ia de investigar se, de fato, tem havido

dilatação da esfera democrática na sociabilidade escolar. Mais do que novos marcos

institucionais definidores da gestão como os conselhos deliberativos, a indagação incide

sobre a possível criação de espaços públicos na vida escolar que permitiriam o

reconhecimento das diferenças, a emergência de conflitos e de práticas de negociação para

a sua resolução, a atenuação das desigualdades e a tolerância.

Um último elemento a ser considerado é a idéia de que a violência nas escolas se

dá, sobretudo, em áreas urbanas e não é restrita aos bairros periféricos, podendo ser

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registrados episódios em áreas centrais como foi o incêndio de tradicional edifício que

abriga escola estadual no centro da cidade de São Paulo, provocado por ex-alunos no início

de 1993.4

No âmbito desse cenário rapidamente esboçado - o espaço estrutural da violência -

alguns exemplos podem evidenciar as ressonâncias desse processo no interior da unidade

escolar.

A primeira situação é retratada em estudo realizado na cidade do Rio de Janeiro

(GUIMARÃES: 1995), nos primeiros anos da década de 90. Essa investigação foi

realizada em escolas públicas situadas em zonas do narcotráfico, inseridas no dia a dia

dos moradores dos morros. É irrecusável o reconhecimento da ausência do Estado nas

políticas sociais, imperando entre a população relações de desconfiança diante dos

aparelhos de segurança ao lado da ativa presença do narcotráfico. A pesquisa descreve uma

forma de agrupamento juvenil, as denominadas galeras - tema recorrente nos noticiários da

imprensa - articuladas em torno da música e dos bailes “funk” (VIANNA: 1988).

Recriando os “embalos de sábado à noite”, cerca de 1 milhão de jovens estão reunidos

nesses bailes em torno do fenômeno funk nos fins de semana da cidade.

Essas “galeras”, inscritas nos morros e agindo em territórios sob influência do

narcotráfico sem necessariamente manter interações com os traficantes, freqüentam a

escola ou a invadem em ocasiões de extremo confronto. Em momentos de crise, sobretudo

na disputa entre lideranças do tráfico por novos territórios ou nos conflitos entre galeras

rivais, observa-se praticamente a inviabilidade do funcionamento regular da escola. Parte

das possibilidades de funcionamento regular das atividades rotineiras do estabelecimento

decorre das negociações que diretores estabelecem com os chefes locais, por meio de seus

mediadores jovens, muitos deles ainda na condição de alunos. Neste caso, vale a pena

reiterar, a violência urbana invade a escola, mas ela não é, rigorosamente, violência

escolar. Parte dos alunos considera a freqüência à escola um momento importante de

descontração e lazer, construindo redes de amizades e vínculos com professores que

julgam mais próximos e interessados (GUIMARÃES: 1992).

Um outro exemplo, retirado das observações do trabalho de campo, ilustra nova

modalidade de violência que recobre o universo dos alunos. Na COHAB Tiradentes,

conjunto habitacional localizado no extremo leste da cidade de São Paulo, considerado um

dos mais violentos da metrópole, há em torno de oito escolas Municipais e Estaduais em

funcionamento. No interior desse amplo aglomerado de prédios há zonas destinadas à

desova de corpos, muitas vezes próximas das unidades escolares. Não é raro crianças e

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adolescentes chegarem à escola comentando os fatos e, de acordo com os depoimentos de

uma das diretoras, não mais perplexas com os assassinatos. Sequer consideravam violentas

as mortes, banais porque foram produzidas por poucos tiros ou facadas. Os acontecimentos

adquiriam cores espetaculares apenas quando eram amplamente caracterizados por rituais

de extermínio, expressos no elevado número de tiros ou de dilacerações provocadas pelas

armas. Nesse caso, os limites definidores do ato de destruição do outro são inscritos na

experiência cotidiana que integra a violência, banalizando-a, no âmbito da sociabilidade.5

Resta a pergunta: deveria a escola reconhecer essa exposição à violência, como um

elemento a ser considerado em seus projetos educativos? Seria possível conceber uma

proposta de educação para a democracia que não procurasse reconhecer a existência desse

universo a imprimir marcas nos processos de socialização dos alunos?

Uma última situação ainda ilustra a diversidade que deve ser retida na análise da

violência escolar. Nesse mesmo conjunto - a COHAB Tiradentes - era possível verificar o

contraste existente entre duas escolas, ambas mantidas pelo poder municipal. Uma delas,

no final dos 80, foi incendiada por alunos e ex-alunos e passava por um esforço de

reconstrução de seu projeto pedagógico de modo a estabelecer um novo padrão de

interação com os usuários, incluindo o grupo de pais e demais moradores. Outra unidade,

tendo em seus fundos um terreno baldio, não apresentava nenhuma grade ou muros altos

de proteção. Suas paredes internas, tomadas por enormes grafites desenhados por alunos,

testemunhavam, a despeito das dificuldades, um ambiente de relativa tranqüilidade para as

atividades pedagógicas.

Os exemplos podem descrever as condições que propiciam a emergência da

violência, sobretudo nas grandes cidades, em áreas periféricas e centrais, evidenciam como

tais condições afetam a vida diária da escola. Mas a diversidade também sinaliza para o

fato de que ambientes sociais violentos nem sempre produzem práticas escolares

caracterizadas pela violência.

Por essas razões, torna-se necessário percorrer uma outra possibilidade de análise,

traduzida na violência escolar stricto-sensu, aquela que nasce no interior da escola ou

como modalidade de relação direta com o estabelecimento de ensino.

De início, importa ressaltar que não há dados sistematicamente colhidos sobre o

assunto. As informações disponíveis nos órgãos públicos são pontuais e cada

administração tem imprimido orientações diversas nas formas de acompanhamentos do

fenômeno. Além do registro episódico, verifica-se a ausência de dados que discriminem os

tipos de ocorrências para subsidiar diagnósticos mais densos sobre a violência escolar. O

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acompanhamento do noticiário de imprensa, a partir do início dos anos 80, permite

algumas inferências, ressalvadas as peculiaridades que são próprias da cobertura realizada

por esses veículos, seus interesses em acompanhar ou não determinados eventos, a

definição do que é notícia, etc. (JANKOWSKI: 1997; DIAS: 1996).

A violência e a segurança nas escolas se tornaram visíveis na imprensa paulista,

sobretudo no início dos anos 80, com os primeiros governos eleitos pelo voto direto.

Tratava-se de dar espaço a demandas represadas no âmbito da sociedade e, dentre essas,

apareciam freqüentemente no noticiário as ações de professores, alunos e pais, buscando

garantias de segurança junto aos estabelecimentos de ensino. As modalidades de

ocorrências que incidiam sobre a escola muitas vezes ainda estavam qualificadas por um

retrato dessa violência externa ou social. Reivindicava-se melhores condições de

segurança diante dos assaltos, furtos e invasões das escolas para roubo da merenda escolar

e de alguns equipamentos, sobretudo a partir de 1983, quando ocorrem as expressões mais

visíveis da crise ecônomico-social que o país começava a viver. A reivindicação por

segurança indicava a existência de problemas, mas a sua diversidade já era perceptível: os

efeitos da violência urbana se faziam visíveis quando se reivindicava melhores condições

de iluminação nas áreas externas para que alunos pudessem se deslocar sem riscos no

trajeto de suas casas para as escolas, principalmente no período noturno. Mas já nessa

época aparecem com muita freqüência as ocorrências de depredações e vandalismo nos

prédios das escolas públicas, sem sentido aparente, sem o intuito do roubo, de acordo com

as reportagens que colhiam as impressões de professores, alunos, pais e demais moradores.

Em 1982, alguns levantamentos mostravam que cerca de 66% dos estabelecimentos

mantidos pelo poder estadual na cidade de São Paulo, haviam sofrido algum tipo de

ocorrência: depredações, invasões, roubos (SPOSITO 1994a).

Aos poucos, o tema deixa de ocupar o cenário da imprensa, a não ser

episodicamente por meio de reportagens voltadas para modalidades mais espetaculares de

violência, como incêndios em prédios escolares, ou para balanços de ordem geral a partir

de indicadores fornecidos pelas autoridades públicas. É, assim, perceptível a ausência de

correlação entre as evidências oferecidas pela imprensa e a intensidade das ocorrências e o

desaparecimento do fenômeno. Ao contrário, parece que se trata de sua banalização e a

prática da violência passa a ser incorporada no dia a dia das unidades escolares. Em 1990

para um total de 935 unidades estaduais existentes na capital, entre julho e novembro

(cinco meses) ocorreram cerca de 1.832 fatos de violência. Deste total 35%, correspondem

a depredações sem furto ou roubo. Em outubro de 1995, o Sindicato de Especialistas da

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Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo - UDEMO, concluiu pesquisa em

308 escolas da região metropolitana, apresentando os seguintes dados: 46% das escolas

pesquisadas sofreram depredação; 46% registraram invasões e 27% ocorrências de furto e

roubo.6

As depredações e os atos de vandalismo seriam uma das modalidades mais

freqüentes que caracterizariam a violência propriamente escolar. De acordo com as notícias

e as informações dos órgãos públicos, as agressões atingiam a escola nos fins de semana,

períodos em que existia certa ociosidade dos prédios. Essa situação era recortada por uma

interpretação cotidiana: o protagonista da violência é sempre o outro, aquele que não faz

parte da “comunidade” escolar. Os atos de vandalismo eram atribuídos à conduta de uma

minoria delinqüente, que habitava o bairro, mas estava fora da escola. Dessa forma o tema

da violência era submetido a um tratamento que enfatizava sua dupla marginalidade:

marginais ou delinqüentes eram os protagonistas e, por decorrência, nas interpretações

dominantes o próprio fenômeno não se inscrevia no centro da vida escolar, exprimia uma

agressão externa, um subproduto marginal ao conjunto das práticas escolares.

As ocorrências, consideradas como atos de minorias, começam, durante a década

de 80 e com maior intensidade nos anos 90, a explicitar práticas que invalidaram

argumentos anteriormente disseminados. Estudos de natureza qualitativa realizados sobre o

cotidiano escolar - ainda que não voltados para o exame da violência - depoimentos de

diretores e professores colhidos em entrevistas indicavam a incômoda presença de alunos

das escolas nos atos de vandalismo, alguns em processo claro de exclusão. As

investigações sobre o incêndio do grupo escolar na região da Liberdade identificaram os

responsáveis: ex-alunos, pré-adolescentes, que afirmavam terem sofrido injustiças e a

agressão era declarada como ato de vingança contra os professores.

A compreensão do fenômeno da violência começa a ser timidamente deslocada;

abandona-se a idéia de atribuir responsabilidade ao outro, o estranho, aquele que está fora

da comunidade escolar. As interrogações voltam-se para as práticas dos atores, inscritas no

dia-a-dia dos estabelecimentos de ensino. As entrevistas realizadas com vigias e

funcionários das escolas, durante o ano de 1992, indicavam novas modalidades de ações

que não eram tão freqüentes na década anterior. Tornam-se mais evidentes certas formas

da vida escolar ou da cultura escolar impregnadas de condutas violentas. Aumentam os

índices de agressões físicas entre grupos de alunos nas áreas internas ou nas proximidades

da unidade escolar e a invasão de grupos de jovens durante o período de aulas.7

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O fato novo na década de 90 deixa de ser a agressão em períodos de ociosidade do

prédio escolar nos fins de semana. As ações violentas ocorrem na escola nos minutos de

ociosidade entre uma disciplina e outra ou nas aulas vagas - “janelas” - devido à ausência

de professores. Vigia e funcionária de escola municipal da região leste declararam as

dificuldades em convencerem os alunos a entrar na classe após o breve intervalo entre uma

aula e outra; muitos aproveitavam esses momentos para atirar pelas janelas objetos no

pátio, incluindo cadeiras e mesas de trabalho. Quanto maior o período de intervalo, maior o

risco dos atos de vandalismo. Uma outra situação de ociosidade, relatada por uma

professora, foi observada a partir de uma interrupção geral do fornecimento de energia

elétrica no período noturno da escola em que trabalhava. Quando as luzes voltaram, após

30 minutos de escuridão, a escola estava destruída, não havia restado uma única carteira.

Aparentemente, a maioria dos alunos parecia ter se envolvido no ato de destruição. A

persistência da violência escolar revelou formas novas de disseminação nas práticas diárias

observadas no interior da escola.

Os anos 90 indicam a continuidade de algumas formas de agressão aos prédios e

equipamentos, muitas delas não mais denunciadas porque foram incorporadas às

vicissitudes das rotinas escolares. Apontam, também, novas práticas, neste momento

observadas no interior da instituição, durante a semana nos períodos de aulas, em plena

atividade.

AÇÕES DO PODER PÚBLICO: ALGUNS EXEMPLOS

Cada administração - estadual e municipal - buscou respostas variadas ao problema

da violência escolar, a partir da década de 80. O primeiro governo eleito pelo voto

popular, no início da distensão democrática - a administração Montoro - foi alvo de intensa

pressão da população para melhoria da segurança nas escolas. O traço característico das

respostas encontradas nesse período residia na tentativa de equacionar o problema

articulando o binômio: segurança e participação. Admitia-se, claramente, a idéia de que as

escolas precisavam estar mais bem equipadas para enfrentar a onda de violência urbana,

pois grande parte delas vivia em condições de absoluta precariedade. No entanto, parte dos

temas mobilizadores daquela conjuntura decorria dos esforços em direção à

democratização da sociedade brasileira na luta contra o regime autoritário. Assim, a

proposta de maior segurança não poderia estar dissociada de uma outra idéia central: criar

outras modalidades de interação da escola com seus usuários por meio de novos canais

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institucionais e pelo aumento dos espaços de participação. A idéia de participação

consistiria, assim, elemento importante capaz de neutralizar a violência nas escolas,

entendida, em grande parte, como expressão do seu isolamento em relação aos seus

usuários, a denominada “comunidade”.

Duas iniciativas semelhantes são observadas. Uma estabeleceu por meio de decreto

estadual a abertura das escolas nos fins de semana para uso da população para atividades

de lazer e esporte. Se alunos da unidade ou demais moradores do bairro solicitassem a

cessão dos espaços, as instâncias administrativas não poderiam recusar seu atendimento e a

escola deveria ter seus portões abertos nos fins de semana, evitando os momentos

favoráveis para a ocorrência de depredações.

Nesse mesmo período, a Secretaria Municipal de Educação - gestão Mário Covas

(83/85) - estabelece o projeto “Fim de Semana”, incentivando a adesão das unidades

escolares, pois aquelas que se inscrevessem para participar receberiam o material

necessário para o desenvolvimento das atividades a serem propostas a partir de consultas a

alunos, grupos organizados e moradores do bairro.

A reflexão em torno dos acertos e das dificuldades desse tipo de orientação é

propícia para a compreensão do fenômeno da violência escolar. A idéia dos responsáveis

pela formulação das políticas era clara: não se enfrenta a violência apenas com medidas de

segurança; essa reivindicação deveria se transformar em demanda de maior democracia,

sob o ângulo de uma participação qualificada dos usuários nos benefícios advindos da

existência do estabelecimento escolar em bairros carentes de equipamentos públicos para

esportes, cultura e lazer. Novos mecanismos institucionais como os conselhos deliberativos

integrados por professores, pais, alunos e funcionários, caminharam, assim, ao lado desses

projetos especiais que buscavam abrir os prédios para os moradores, ampliando

possibilidades de participação.

Os resultados foram diferentes e muito desiguais. Há inúmeras experiências de

sucesso: os portões abertos para atividades esportivas, culturais e de lazer reduziram

índices de violência anteriormente observados na escola. Mas houve também inúmeras

experiências de fracasso.

Para muitos diretores a adesão ao projeto significou a abertura da escola apenas

como ocupação do espaço físico, às vezes caracterizada pela vontade de ter acesso a

materiais esportivos escassos que poderiam vir a ser utilizados durante a semana nas aulas

de educação física. Nesse caso, certamente, esta abertura causou mais problemas do que

construiu novas modalidades de interação da escola com seu entorno. A idéia, com

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freqüência recoberta de representações descoladas das relações reais, de integração da

escola com a comunidade, muitas vezes desconsiderou as longas trajetórias de

distanciamento, de relações burocratizadas desenvolvidas com a população que não seriam

superadas mediante a simples abertura dos portões; a proposta não levou em conta as

diferenças existentes entre os moradores ou grupos organizados, suas relações de

vizinhança no bairro, as disputas, conflitos e formas de solidariedade. Em algumas

unidades houve dificuldades de atribuição aos funcionários ou professores da

responsabilidade pelo prédio durante as atividades nos fins de semana; em bairros

destituídos de canais de organização dos moradores ou alunos a ocupação do espaço

ocorria sem um mínimo de regras definidas de modo consensual. Era evidente que um uso

mais intenso das instalações significaria maior desgaste do material (torneiras, instalações

hidráulicas e elétricas, vidros) e as possibilidades de rápida reposição eram restritas,

atemorizando administradores diante das eventuais dificuldades.

O sucesso em alguns casos foi produto muitas vezes das ações de vigias que

trabalhavam nos fins de semana e, na condição de moradores dos bairros, conseguiam

responsabilizar-se pelas atividades, funcionando muitas vezes como animadores culturais,

em decorrência de seu empenho pessoal, sem qualquer apoio ou treinamento institucional

do poder público.

Se essa mesma abertura da escola nos fins de semana tendo em vista a ocupação

dos espaços e tempos ociosos foi produto de uma ação deliberada que exprimia aspectos de

um projeto educativo construído coletivamente, a experiência tendeu a ser bem sucedida.

Apesar das dificuldades, episódios de violência tenderam a diminuir. Talvez esse tenha

sido o eixo mais significativo para a avaliação desses programas gestados no início dos

anos 80. A mera abertura física da escola não supera padrões estabelecidos de interação se

não vier acompanhada de uma clara intenção dos atores de redimensionar suas práticas em

direção a um novo projeto para a unidade escolar.

A onda em defesa da idéia de participação rapidamente se esvaneceu nas

administrações seguintes, durante a década de 80. As escolas deixaram de abrir seus

portões a partir de orientações estabelecidas pelos dirigentes. Certamente permaneceram as

atividades que exprimiam práticas escolares já enraizadas, a despeito do silêncio dos

órgãos públicos. A violência na escola, sobretudo na esfera estadual foi cada vez mais

tratada apenas como problema da área de segurança pública e cada vez menos apresentou

desafios de natureza educativa.8 A partir dessa época nascem as rondas escolares,

edificam-se zeladorias nos terrenos dos estabelecimentos, são criados esquemas mais

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sofisticados de proteção mediante a instalação de alarmes ligados a distritos policiais. Não

se trata de negar a validade de algumas dessas iniciativas, porém é visível o deslocamento

no modo de tratamento do problema. A violência escolar passa a ser objeto da ação

pública, sobretudo sob o ângulo da segurança, da estratégia policial militar e menos como

questão educativa. No início dos anos 90, o assessor do Gabinete do Secretário, Tenente da

Polícia Militar que acompanhava a questão da violência nas escolas públicas, lamentava o

fato das escolas considerarem a ação da Polícia Militar como panacéia para resolver os

problemas da violência. Acreditava que professores e diretores não estavam pensando em

pequenas práticas cotidianas que propiciariam a violência escolar e, muito menos, em

analisá-las como temas de natureza educativa. Citava, como exemplo, a insistência de

diretores em proibir a entrada de alunos vestidos com trajes que indicavam certos estilos

juvenis (bermudas largas, bonés). Tais proibições geravam protestos silenciosos, grande

parte traduzida em atos de violência que, segundo o assessor, poderiam ser evitados.9

Outra iniciativa do poder municipal, nos anos 90, foi expressa na idéia de assegurar

procedimentos que permitissem às escolas propostas de melhoria das atividades incidindo

sobre suas práticas diárias. Essa diretriz, realização da proposta de autonomia da unidade

escolar, foi primeiramente pensada no governo Montoro, sendo retomada em algumas

administrações de feição progressista. Na gestão da prefeita Luisa Erundina (1989/1992),

algumas das escolas propuseram projetos que nasceram de iniciativas coletivas de seus

professores, como tentativa de implementar ações de melhoria da qualidade de ensino. Em

regiões com altos índices de criminalidade, como é o caso de São Mateus na zona leste,

grande parte das unidades que apresentaram suas propostas elegeram a violência como

tema central capaz de articular, transversalmente, as várias disciplinas do currículo. Outro

exemplo é o Projeto RAP pensando a escola pública. Seu caráter inovador decorre da

participação de grupos musicais de jovens articulados em torno do RAP - Ritmo e Poesia -

em debates com alunos das escolas municipais, discutindo temas ligados ao racismo, à

intolerância, ao preconceito, formas mais ou menos dissimuladas de atitudes e práticas

recobertas pela noção da violência (SPOSITO:1994).

Esses exemplos sucintos de ações públicas observadas ao longo de 15 anos, na

região da grande São Paulo, evidenciam questões ainda não superadas. O tratamento da

violência escolar como problema que não está restrito à esfera da segurança pública ainda

não é fato consensual do ponto de vista do conjunto da rede de ensino. Mais ainda, é

preciso reconhecer que eventuais diretrizes de governantes voltadas para o

desenvolvimento de ações capazes de enfrentar a violência como um problema de natureza

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estritamente educativa são atitudes importantes, mas insuficientes. A força das políticas

públicas depende, fundamentalmente, da adesão dos atores que integram a unidade escolar

a um projeto coletivo voltado, efetivamente, para a sua superação.

O QUE REVELA A VIOLÊNCIA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR?

Finalmente, o último aspecto a ser examinado é, certamente, o mais complexo. Por

que alguns equipamentos públicos e privados localizados nos mesmos bairros não sofrem a

mesma intensidade de agressões como aquelas observadas na unidade escolar? Expressaria

a violência escolar aspectos epidérmicos de processos de natureza mais ampla ainda

insuficientemente conhecidos?

Em que medida a violência escolar, utilizando-me de uma expressão de Henri

Lefebvre, não seria o elemento revelador de situações, a porta de acesso privilegiada para

uma análise mais densa do próprio sentido da escola no mundo contemporâneo? Qual é o

lugar ocupado pela instituição escolar no processo de socialização de crianças,

adolescentes e jovens?

A escola foi pensada, sobretudo a escola pública, como espaço de socialização de

novas gerações, operando no sentido da formação e construção de humanidades capazes de

viverem ativamente a vida social. Na França o modelo de integração tendo em vista a

construção do estado nação, ancorou fortemente as representações e práticas da escola

pública republicana, particularmente no ensino elementar (DUBET e MARTUCELLI:

1996).

No Brasil, grande parte do significado simbólico atribuído à escolarização,

sobretudo aquele que nasce nas representações de populações não privilegiadas do ponto

de vista econômico e cultural, esteve ligado às possibilidades - efetivas ou apenas

imaginadas - de mobilidade social. O amplo movimento de expansão do ensino, observado

a partir dos anos 30, teve suas origens na pressão empreendida pela população para obter

melhores oportunidades de acesso ao sistema escolar público. Os movimentos de base

popular por educação não foram apenas expressão generalizada de anseios de segmentos

excluídos da cidadania em sociedades de extrema desigualdade, mas indicaram, também,

que os poucos e às vezes provisórios direitos existentes são produtos de difíceis e anônimas

conquistas.

As atuais possibilidades de ascensão social oferecidas pelo sistema de ensino

público são evidentemente mais reduzidas. Estudos recentes evidenciam que o aumento

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dos níveis de escolaridade da população não significa, de imediato, melhores condições de

absorção pelo mercado de trabalho que possui mecanismos próprios de produção da

desigualdade e da exclusão (MADEIRA:1997). Se esse conjunto de significados atribuídos

ao papel da escolaridade como um todo em nossa sociedade ainda não está esgotado,

certamente em algumas regiões como a Grande São Paulo - uma das que mais rapidamente

absorveu novos contingentes escolares sem que os problemas de emprego e de ascensão

profissional tenham sido equacionados - esta forte representação passa por processo de

erosão.

Há um profundo reconhecimento de que as trajetórias escolares são condições

necessárias de inserção e de sobrevivência no mercado de trabalho, mas não constituem

condições suficientes para ancorar todo o conjunto de expectativas anteriormente

atribuídas ao projeto escolar, aspirações ainda consolidadas nas representações das

famílias. Por essas razões grande parte dos estudos aponta a ambigüidade das relações

estabelecidas entre os alunos e a escola, caracterizadas não só pelos processos de exclusão,

mas pela intermitência, matrículas sucessivas, abandonos, interrupções (MADEIRA: 1986;

GOMES: 1997; FREITAS:1995; MARQUES: 1997). Jovens e adolescentes, na maioria

das vezes atores da violência escolar, não reconhecem outras alternativas a serem

atribuídas à importância da escola em suas vidas, além da corroída crença na ascensão,

representação herdada das gerações adultas.

A inexistência de referências capazes de estruturar novos sentidos para a busca da

educação sistemática se inscreve em situações paradoxais. A ausência de significados

positivos para a vida escolar caminha ao lado de novas exigências de domínio de

linguagens, informações, conhecimento, enfim de todo o campo da atividade simbólica

contemporânea que pressupõe o domínio de habilidades a serem adquiridas principalmente

na escola. A satisfação de necessidades, já reconhecidas socialmente, que permitam a

formação de sujeitos autônomos para a vida pública e privada exige, em parte, a

apropriação dos benefícios advindos da educação escolar. No entanto, essa importância,

sob o ângulo dos atores concretos aos quais se destinam os esforços dos educadores, não

articula práticas, não tem provocado adesões fortes à instituição escolar. Esta, por sua vez,

tem apresentado dificuldades para alterar procedimentos consagrados de exclusão e para

empreender novos caminhos.

As pesquisas revelam que a maior parte dos vínculos construídos no espaço da

escola decorre das formas de sociabilidade entre os pares e de algumas relações mais

significativas com alguns professores. Tais interações acontecem na escola, mas não são

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produto deliberado das orientações de professores e administradores. Ao que tudo indica

em escolas com índices reduzidos de violência ainda existiriam esses espaços

extremamente valorizados pelos alunos, particularmente quando um conjunto de condições

sociais adversas dificultam o desenvolvimento dessa sociabilidade em outros momentos de

sua vida.10

A violência seria apenas a conduta mais visível de recusa ao conjunto de valores

transmitidos pelo mundo adulto, representados simbólica e materialmente na instituição

escolar, que não mais respondem ao seu universo de necessidades. Outras modalidades de

resposta, talvez as mais freqüentes, se exprimem no retraimento e na indiferença: os

alunos estão na escola, mas pouco permeáveis à sua ação. Compreender as práticas de

agressão e superá-las demandam esforços de entendimento sobre os caminhos que

permitirão a ação socializadora da escola, ampliando com novas atribuições as

consolidadas representações do mundo adulto em torno da ascensão social.

Assim, o esgotamento do modelo de escolaridade voltado para a mobilidade social

convive com o enfraquecimento da capacidade socializadora da escola enquanto instituição

de formação de novas gerações. Por essas razões, um dos principais desafios é o exame de

alternativas que possibilitem à instituição a redefinição de sua presença no universo de

crianças, adolescentes e jovens de modo a alcançar algum significado efetivo no

desenvolvimento desses sujeitos. Os temas centrais contidos na idéia de democracia como

espaço público, direitos, tolerância e respeito às diferenças podem conter as pré-condições

para a busca de novas atribuições de sentido para a instituição escolar.

Trata-se de propiciar a possibilidade de outra convivência e de novos significados

para um presente democrático no interior da vida escolar capaz de sinalizar algum valor

positivo para crianças, adolescentes e jovens. Práticas pedagógicas que acenem apenas

com incertas possibilidades de melhoria para o futuro não são suficientes para construir

relações significativas com a instituição escolar. Na ausência de outras referências, a

indiferença e a violência serão respostas freqüentes e banalizadas, expressões parciais da

crise que atinge os sistemas escolares. Certamente outros processos caracterizam essa

crise, as reflexões aqui esboçadas tentaram examiná-la apenas sob ponto de vista da

violência.

NOTAS 1 Os trabalhos sobre violência escolar são os seguintes: Guimarães, Áurea, Escola e Violência: relações entre vigilância, punição e depredação escolar, Campinas (Mestrado em Educação), PUC, 1984; Guimarães, Áurea, A depredação escolar e a dinâmica da violência, Campinas (Doutorado em Educação) UNICAMP,

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1990; Guimarães, Maria Eloísa, Escola, galeras e narcotráfico, Rio de Janeiro, (Doutorado em Educação) PUC/RJ, 1995; Oliveira, Claudia Regina, O fenômeno da violência em duas escolas: estudo de caso, Porto Alegre (Mestrado em Educação) UFRGS, 1995. Além desses estudos Lia Fukui realizou pesquisa para a FDE/SEE entre 1990 e 1991, publicada sob a forma de relatório “Segurança nas Escolas Estaduais da Grande São Paulo - um estudo de caso". Uma versão resumida da investigação pode ser encontrada no artigo “Estudo de caso de segurança nas escolas públicas estaduais de São Paulo”, Cadernos de Pesquisa, FCC, número 79, 1991. 2 Em estudo desenvolvido na França, Peralva (1996) parte dessa definição operacional da violência, ou seja, a definição do ator torna-se o ponto de partida. Não examino, também, a controvertida questão da violência dos professores contra alunos, caracterizadas pelos tradicionais castigos físicos, ainda existentes no interior do sistema público de ensino. 3 O tema da violência escolar e classes médias é ainda menos investigado, envolvendo situações peculiares que precisam ser analisadas, sem recorrer a generalizações apressadas, evitando chaves homogêneas de compreensão para condições sociais e atores diversos. 4 Esse incêndio ocorreu na Escola Estadual de Primeiro Grau Campos Salles, no bairro da Liberdade. 5 Peralva (1995) estuda na cidade do Rio de Janeiro o tema da generalização da violência como modo de regulação das interações humanas. 6 Em 1991, faziam a Ronda Escolar na Grande São Paulo 114 carros, envolvendo cerca de 1,7 mil policiais para 4,6 mil escolas (2,3 mil estaduais, 1000 municipais e 1,3 particulares). Em 770 escolas estaduais consideradas de alto grau de “periculosidade” havia um policial fixo, no seu interior, durante o horário das aulas (Folha de S. Paulo: 14/09/1991). Os dados relativos a 1995 constam do projeto de lei 382 de 1997, encaminhado pelo deputado Hamilton Pereira à Assembléia Legislativa, instituindo o Programa Interdisciplinar e de Participação Comunitária para Prevenção e Combate à Violência nas escolas da rede pública de ensino no estado de São Paulo. 7 A pesquisa desenvolvida por Teise Guaranha Garcia (1995) sobre os processos de mobilização e de gestão coletiva de escola pública de Diadema, município da grande São Paulo, revelou alguns episódios de violência protagonizados por alunos do estabelecimento, embora a violência escolar não fosse o objeto principal de sua investigação. 8 O governo Quércia (1987-1990) além de criar a Ronda Escolar constituiu comissão mista com representantes da Secretaria de Educação e da Polícia Militar para propor iniciativas voltadas para melhoria da segurança nas escolas. A construção de zeladorias e a instalação de alarmes datam desse período. 9 Há, na verdade, uma situação paradoxal. São conhecidas as condições de exercício da segurança pública em nossa sociedade, marcadas pelo arbítrio, pelo uso da força, pela impunidade, pela negação de direitos, pela falta de confiança da população nas instituições policiais. Mas no gabinete do Secretário da Educação, o assessor da polícia militar, encarregado de supervisionar as ações em torno da segurança e da violência escolar, apontava claramente as dificuldades dos educadores de distinguir as questões de ordem educativa daquelas que seriam propícias à intervenção dos aparatos da repressão. 10 O enfraquecimento da capacidade socializadora da escola é analisado por Dubet (1996) após algumas pesquisas realizadas com estudantes dos vários níveis do sistema de ensino público na França.

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