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 3 7 OS PENTECO STA I S E A S RELIGI Õ ES A FRO-BRASILEIRAS  M a r c ia C o n tin s O obj eti vo de ste arti go é explorar a dim ensão rit ual e religio-  sa expr essa no discu rso dos pe nteco stais negro s no Brasil e  sua re laçã o com as religiõe s af ro-b ras ileiras. Por m eio do s test em unh os do s fiéis, dos serm ões de se us pa stores e de entre- vistas a respeito das experiências de conversão ao  pen tecostalism o, nossa pro po sta é perc ebe r de que forma os  pentecostais negro s pensa m sua conversão a essa deno m ina- ção religiosa e como eles se posicionam em relação a seus outros” , especialm ente as reli giões afro -brasilei ras. Palavras-chave: SAGRADO E PRO FANO, RELIGIÕ ES AFRO-BRASILEIRAS, PENTECOSTALISMO, RITUAL E SIMBOLISMO. nh ecidas, sim ples o u co m plex as , seg un - do Durkheim, supõem uma classifica- ção das coisas reais ou ideais em dois gêneros opostos :  p ro fan o e s ag rad o. Além das entidades propri am ente ditas, coisas como uma pedra ou uma árvore  po de m ser s ag radas . O círcu lo d e ob je- tos sagrados não po de s er deter m i nado,  po is s ua ex te ns ão é infi nita e va ri a de acordo com a religião.  Em primeiro lugar, as coisas sagra- das s ão con sideradas s uperi ores, em dig- nidade e em poder, às coisas profanas. E m s egun do l ugar, o s agrado e o p rof a- Crenças e ritos, o sagrado e profano: categorias fundamentais dos fenômenos religiosos Durk heim acreditava q ue os fenôme- nos religiosos se juntam naturalmente em duas categorias fundamentais: as cr enças e o s r i tos . As crenças cons i stem em repr esen tações, e os ri tos são m odos de ação determ inados. Entre eles há to da um a dif erença que separa o pensamento do m ovim ento. As crenças rel i giosas co- Textos Escolhid os de Cu ltura e A rte Populares , v ol.2. n. 2, 2005.

Martins - Os Pentecostais e as Religiões Afro-Brasileiras

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Martins - Os Pentecostais e as Religiões Afro-Brasileiras

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    OS PENTECOSTAIS E ASRELIGIES AFRO-BRASILEIRAS

    M a rcia Contins

    O objetivo deste artigo explorar a dimenso ritual e religio-sa expressa no discurso dos pentecostais negros no Brasil esua relao com as religies afro-brasileiras. Por meio dostestemunhos dos fiis, dos sermes de seus pastores e de entre-vistas a respeito das experincias de converso aopentecostalismo, nossa proposta perceber de que forma ospentecostais negros pensam sua converso a essa denomina-o religiosa e como eles se posicionam em relao a seusoutros, especialmente as religies afro-brasileiras.

    Palavras-chave: SAGRADO E PROFANO, RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS,PENTECOSTALISMO, RITUAL E SIMBOLISMO.

    nhecidas, simples ou complexas, segun-do Durkheim, supem uma classifica-o das coisas reais ou ideais em doisgneros opostos: profano e sagrado.Alm das entidades propriamente ditas,coisas como uma pedra ou uma rvorepodem ser sagradas. O crculo de obje-tos sagrados no pode ser determinado,pois sua extenso infinita e varia deacordo com a religio.

    Em primeiro lugar, as coisas sagra-das so consideradas superiores, em dig-nidade e em poder, s coisas profanas.Em segundo lugar, o sagrado e o profa-

    Crenas e ritos, o sagrado eprofano: categorias

    fundamentais dos fenmenosreligiosos

    Durkheim acreditava que os fenme-nos religiosos se juntam naturalmenteem duas categorias fundamentais: ascrenas e os ritos. As crenas consistemem representaes, e os ritos so modosde ao determinados. Entre eles h todauma diferena que separa o pensamentodo movimento. As crenas religiosas co-

    Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.2. n. 2, 2005.

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    no tm sido concebidos pelo espritohumano sempre e em todas as partescomo gneros separados, como doismundos entre os quais no h nada emcomum, entendidos como de naturezasopostas. A coisa sagrada , por exceln-cia, aquela que o profano no deve to-car. Os dois gneros no se podem apro-ximar e conservar ao mesmo tempo suaprpria natureza. Para Durkheim, a no-o de sagrado est no pensamento doshomens, sempre e em todas as partes,separada da noo de profano, porque aconcebemos numa espcie de vazio l-gico. As coisas sagradas so aquelas queas interdies protegem e isolam; as pro-fanas, aquelas a que se aplicam essas in-terdies e que devem manter-se dis-tncia das primeiras. Nesse sentido, ascrenas religiosas podem ser definidascomo representaes que expressam anatureza das coisas sagradas e as rela-es que elas mantm umas com as ou-tras ou com as coisas profanas. Os ritosso regras de conduta que prescrevemcomo o homem deve comportar-se emrelao s coisas sagradas. Quando umcerto nmero de coisas sagradas man-tm, entre si, relaes de coordenao ede subordinao, o conjunto das cren-as e de ritos correspondentes constituiuma religio. Um sistema religioso noreside necessariamente em uma s emesma idia, no se reduz a um princ-pio nico; um todo formado de partesdistintas e relativamente individualiza-das. Cada grupo de coisas sagradas ou,ainda, cada coisa sagrada de certa im-portncia constitui um centro organiza-do ao redor do qual gravita um grupo de

    crenas e ritos, um culto particular. Noh religio, por unitria que possa ser,que no reconhea uma pluralidade decoisas sagradas. Assim, uma religio nose reduz geralmente a um nico culto,mas consiste em um sistema de cultosdotados de certa autonomia varivel.

    Na apresentao que faz a Os ritosde passagem,2 de Arnold Van Gennep,DaMatta sugere que, referindo-se aoconceito de ritual, o autor trata a socie-dade como internamente dividida, nelaintroduzindo dinamismo:

    Vendo o mundo social como umaarte de deslocar-se no tempo e noespao, pois para Van Gennepestas passagens so equivalentes,ele chegou a uma posio muitoimportante, que na sociologia deDurkheim logo seria um proble-ma e um dilema para os crticose seguidores. Refiro-me divisoclssica entre sagrado e profano,sendo visto como cerne e raiz doprprio mundo social (...) Nestaperspectiva dualista do mundo,Durkheim freqentemente traba-lha com um jogo do sagrado aoprofano, do mecnico ao orgni-co, do semelhante ao diferente,do grupal ao individual, do cor-po alma, estudando a socieda-de em termos de um padro sim-plificado de movimentos lgicos(e tambm histricos) entredomnios fixos e mutuamenteexclusivos. (DaMatta, 1978: 17)

    Durkheim seria assim um socilogode seqncias duais e dos pontos pola-res, nunca das margens e das posiesmais confusas, quando a totalidade so-

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    cial no se encontra nem no sagrado,nem no profano. Para Van Gennep, o sa-grado e o profano so totalmente relati-vos, pois

    (...) sempre haver um lado maissagrado dentro da prpria esferatomada como sagrada, at queum novo contraste possa ser es-tabelecido e assim faa nasceralgo mais ou menos sagrado ain-da, num movimento complexo deinterdies. Do mesmo modo, epela mesma lgica, o eixo do pro-fano igualmente inesgotvel.Assim, em vez de tomar o sagra-do e o profano como plos est-ticos e nitidamente separados,Van Gennep os concebe como po-sies dinmicas, como valoresdados pela comparao, contras-te e contradio, termos que aju-dam a distinguir, separar e (...)estabelecer significado (...) Osentido no est, conforme reve-la Van Gennep, equacionado auma essncia do sagrado (ou doprofano), mas na sua posio re-lativa dentro de um dado contex-to de relaes. (Van Gennep,1978: 17)

    E.E. Evans-Pritchard sugere que(...) as definies de Durkheimno deixam muito espao para aflexibilidade de situao, comopor exemplo para o fato de que oque sagrado pode s-lo ape-nas em certos contextos e em cer-tas ocasies, e no em outras.(Evans-Pritchard, 1978: 93)

    Dando exemplo a partir de seu mate-rial de campo sobre os Azande, o autorafirma que

    o culto Zande dos ancestrais seorganiza em torno de santurioserigidos no meio dos ptios e asoferendas so postas neles duran-te cerimnias ou, s vezes, emoutras ocasies. Porm, quandono esto em uso ritual os Azandeutilizam os santurios como con-venientes escoras contra as quaisrepousam suas lanas; ou nolhes do a mnima ateno. Domesmo modo, a demarcao dosagrado por interdies deve serverdade para muitos povos, masno pode ser universalmente v-lida, como Durkheim sups...(Evans-Pritchard, 1978: 93)

    O sagrado e o profano naanlise ritual

    No sculo 19, Robertson Smith defi-nia as coisas sagradas como aquelas emque os interditos protegem e isolam ascoisas profanas, as primeiras devendoser mantidas separadas das segundas.Posteriormente, H. Hubert e MarcelMauss (Mauss, 1974), em um estudosobre magia, vm a definir o sagrado,assim com o totem australiano, a partirda idia de mana. O mana uma fora,uma experincia, e o sagrado, enquantomana, uma proteo. O sagrado entono pode ser considerado um conceitoanaltico do tipo estrutural, mas umarealidade transcendente que o homemexperimenta.

    Essa oposio ser mais tardereformulada por Victor Turner (1974),na anlise ritual, em termos de estru-tura e communitas. Para esse autor,

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    existem duas ordens: em primeiro lugar,a ordem estruturada com posies pol-ticas, jurdicas e econmicas estveis.Em segundo lugar, a sociedade no es-truturada, com perodos liminares, que o estado de communitas. A distinoentre estrutura e communitas no ape-nas entre profano e sagrado ou polticae religio, mas se caracteriza pelo fatode quem est no alto dever saber o que estar nas posies inferiores, ou seja, sempre um ato de complementaridade.A vida social , para Turner, um proces-so dialtico de experincias de alto e debaixo, de communitas e de estrutura, deigualdade e de desigualdade. A passa-gem de uma para outra faz-se pelo limboda ausncia de status. A diferena entreestrutura e communitas que a primei-ra est ligada lei e ordem; a segun-da, espontaneidade e bondade hu-mana. A liminaridade, a marginalidadee a inferioridade estrutural so condi-es em que so gerados os mitos, ossmbolos, os rituais, os sistemas filos-ficos e a arte. Para Turner, essas formasculturais permitem uma reclassificaoperidica da realidade e do relaciona-mento do homem com a natureza, coma sociedade e com a cultura. Os rituais,para esse autor, tm esse carter mode-lar de criar a sociedade. As noes deliminaridade e communitas permanecemdefinidas por oposio a uma estrutura.Dessa forma, o domnio do sagrado noaparece como um conceito terico, mascomo uma noo etnogrfica. Nesse sen-tido, no possvel associar, teoricamen-te, essa noo de sagrado com o social,como queria Durkheim.

    Para desenvolver esta discusso so-bre as categorias de sagrado e de profa-no, vou fazer uso dos dados de minhapesquisa sobre pentecostais negros noBrasil. (Contins, 1993)

    Convivendo com o inimigo:pentecostais, umbanda e

    candombl

    Para os pentecostais, a teologia e aexperincia religiosa uma s. Eles acre-ditam que a salvao s pode ser obtidapela f, apesar de alguns deles demons-trarem que esto salvos pelo comporta-mento guiado por uma moral estrita.Enfatizam o significado da experinciapessoal com Jesus e rejeitam a doutrinacatlica que por intermdio de sua hi-erarquia eclesial faz a mediao entre oindivduo e deus , bem como rejeitamidolatrias, imagens e lugares santos eimagens milagrosas. Rejeitam, no Bra-sil principalmente, as religies afro-bra-sileiras, como a umbanda e o candom-bl, sobretudo por considerar que essessistemas de crena lidam diretamentecom o diabo.

    Esses pentecostais so fundamenta-listas, ou seja, tomam a Bblia como apalavra literal de deus, que o nico serapropriado para gui-los. So tambmevanglicos, e acreditam que respon-sabilidade sua pregar a palavra de deuspara os no-convertidos. Do nfase aosdons do Esprito Santo, principalmen-te o falar em lnguas (glossolalia) etambm ao batismo no Esprito San-

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    to, como importante ritual de passagempara o pentecostalismo.

    O centro do processo de converso aopentecostalismo, de acordo com as trsdenominaes (Asssemblia de Deus;Igreja de Nova Vida e Metodista Reno-vada) observadas no Brasil e com osBible Way norte-americanos, est no fatode as pessoas se converterem duranteum perodo muito difcil de suas vidas.No entanto, cada denominaopentecostal, ou mesmo cada indivduo,tem sua noo de converso. So noesque integram suas narrativas sobre seusencontros com Jesus e sobre a trans-formao que se opera em suas vidasaps a converso. Algumas narrativasso mais dramticas do que outras, e osprprios pentecostais dizem que algu-mas so melhores do que outras com re-lao ao poder de deus. Pouco so osfiis que no experimentam nenhumacrise sria em suas vidas antes da con-verso e alegam ter estado bem, mesmoantes de conhecer Jesus. As narrativasdos convertidos so construesficcionais a partir das experincias decrise de vida que experimentaram noperodo imediatamente anterior con-verso.

    Do ponto de vista desses pentecostais,o mal est associado ao candombl e umbanda. Tudo que deriva desses cul-tos ligado figura do diabo. Boa partede nossos entrevistados, negros epentecostais, j havia participado doscultos afro-brasileiros e, hoje, afirma quefoi salva do mal pelo poder do EspritoSanto. Associam os males de suas vi-das passadas prtica anterior e, mes-

    mo encontrando-se hoje em dificulda-des, dizem-se felizes. A afirmao se-gundo a qual as religies afro-brasilei-ras so criaes do demnio foi encon-trada em todas as narrativas pentecostaisque pesquisamos. Eles no admitemnenhum atributo positivo associado aessas crenas. Esse fato torna as religi-es afro-brasileiras um dos principaisalvos dos discursos proselitistaspentecostais. Ao evangelizarem, ospentecostais ressaltam que esta a prin-cipal tarefa do crente: levar a palavrae exorcizar os principais demnios queesto incorporados nos umbandistas.Acreditam que a liberdade est na acei-tao de Jesus, e os que no crem pre-cisam de ajuda para encontrar a salva-o. considerada obrigao de todopentecostal a luta pela converso daque-les que vivem no mal. Ao assumirema Palavra de Deus, assumem tambmo combate ao demnio, que represen-tado pelas religies afro-brasileiras. Ooutro dos pentecostais brasileiros aumbanda, o candombl. Esse outrotem que ser expulso, para que se possaestar com Jesus. preciso expulsar odemnio para reconhecer deus, da mes-ma forma que um pentecostal s pentecostal porque expulsou oumbandista. Eis o depoimento de umpastor da Igreja da Graa:

    O povo umbandista, candomble-sista um povo que a Bblia dizque os braos de Deus no estoem posio de salv-los... No,aquele povo no est salvo. Sens, os cristos, no orarmos paraque Jesus liberte eles, para eles

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    virem fazer parte dessa famliade vencedores, no de famliasfracassadas, eles vo continuarsem esperanas. S o contato como sagrado, com o Esprito Santo,poderia salv-los. Quando eusoube da soluo que eu andavaprocurando, buscando. A manei-ra, a soluo de ter que sair daumbanda e largar o diabo paral. Era um domingo, sim, a euperguntei: quando que eu pos-so ir l naquela Igreja que vocvai que eu quero conhecer esseJesus, eu quero ver se realmenteele vai segurar a minha barra?.Na quarta-feira, de quarta paraquinta, eu sonhei que o pastor lda Igreja falava a respeito de umarevelao que tem uma pessoaque est sendo oprimida, que estsentindo uns arrepios muito for-tes na sua cabea, no seu corpotodo, e sente at um mal-estar.Mas voc no fica com medo no,levanta do seu lugar e vem aquique eu vou fazer uma orao porvoc, porque isso um espritode morte, o tal esprito exu-ca-veira que realmente era o espri-to que dominava l naquele ter-reiro onde que eu ia., que jestava mandando recado paramim, mas eu disse para o meuirmo: no precisa trazer maisrecado para mim que eu no pisomais naquele local, eu no querosaber de mais nada daquele lo-cal, no precisa trazer mais.Manda um recado para mim,voc diz: ele no quer mais sa-ber, e deixa o resto que eu resol-vo aqui. Tambm teve aquele

    problema, quando eu conhecimesmo eu disse: isso mesmo.Quando eu tive aquele sonho queo pastor me chamava l para orar,trazendo aquela revelao a res-peito da opresso daquele diaboe na quinta-feira quando eu esta-va bem l sentado assistindo oculto, assistindo o desenrolar doculto, o louvor, a depois veio apregao e depois aquele traba-lho l que o pastor fazia l e naterceira pessoa ele fala isso. Temuma pessoa que sente um arre-pio muito forte em seu corpo efica assim com um mal-estar, umsintoma de que vai passar mal,que vai cair, mas essa pessoa pre-cisa vir aqui que eu vou fazer umaorao por ela, que isso umamanifestao do diabo, do exu-caveira que est querendo te pe-gar, t querendo realmente aca-bar com a sua vida porque vocvirou as suas costas para ele. Aeu fui para l, ele fez uma oraopor mim e eu me senti bem. Efiquei olhando... Meu Deus,como que pode, ... eu tive essesonho, sonhei que estava aquineste local e o sonho realmenteaconteceu. Ento eu disse assim:Bom, o problema o seguinte,eu no quero mais voltar paraaquele caminho, t querendo teseguir, t querendo te servir, ago-ra eu s te peo que tenhas mise-ricrdia, no foi essa palavra queeu disse porque eu era muito in-fantil na f, mas eu clamei... OSenhor, Ele sonda. O Senhor son-da os nossos coraes, ele olhapara o nosso interior, porque o

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    teu corao fala toda a tua nsia.(Dicono Grson, Igreja de NovaVida, Botafogo)

    A proximidade das prticas religio-sas afro-brasileiras (o profano) com a ex-perincia da manifestao do EspritoSanto (o sagrado) evidencia-se nesta fra-se de um membro da Igreja MetodistaRenovada:

    A vinda do Esprito Santo ainda um mistrio para mim. Porquetudo um mistrio. Na hora queeu vejo falando em lnguas, eufico em dvida. No sei se por-que eu estive muito prximo docandombl e do espiritismo... Eutenho a sensao que parece que igual. Quando o Esprito Santocomea a falar parece que igual... No consigo entender.

    A relao vivida como muito prxi-ma entre as duas manifestaes, a doEsprito Santo (que representa o sagra-do para os pentecostais) e a dos orixs(que representam o profano para es-tes e o sagrado para os umbandistas),revela a existncia de dois cdigos reli-giosos distintos acionados para a iden-tificao da entidade da umbanda ou doEsprito Santo. No entanto, como algunspentecostais j participaram daumbanda, esses cdigos ficam muitasvezes entrecruzados. At dentro de umamesma religio, h tambm grande mo-bilidade, como, por exemplo, um mem-bro da Assemblia de Deus que sai paraa Igreja Metodista Renovada ou o inver-so. Existe alto grau de mobilidade de fi-is dentro do prprio grupo pentecostal.

    Em um dos casos citados, por exemplo,o fiel era da Assemblia de Deus e foipara a Igreja Metodista Renovada . Foinesta ltima, a partir de uma relaobem prxima com Deus, que ele se con-verteu. preciso estar sempre se dife-renciando, seja dentro da mesma con-gregao ou para fora, a fim de se colo-car enquanto crente e enquanto indiv-duo.

    Um dos pentecostais entrevistados,um dicono da Igreja de Nova Vida, fezum depoimento bastante interessante,mostrando exatamente esse contraste en-tre igrejas pentecostais e as religiesafro-brasileiras. Em primeiro lugar, ha preocupao com uma separao totalentre o que ele agora e o que foi antes,enquanto praticante de uma religioafro-brasileira:

    Eu no tinha envolvimento como candombl, no, e nem gosta-va de ir. Candombl o pior detodos esses que esto por a, stem efeminado l, tu entra de umjeito e sai de outro. E eu semprequis distncia do candombl.

    Geralmente, a partir das entrevistas,o que se evidencia que eles procura-ram a umbanda ou o candombl para re-solver crises familiares, pessoais, eco-nmicas, o mais depressa possvel.

    E ali eu tive os dissabores de sairem busca da soluo de um pro-blema que estava me envolven-do, que estava tirando a minhapaz, a minha tranqilidade. Eessa nsia de querer resolver esseproblema ... essa ansiedade esta-va ... porque eu fui vtima de um

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    trabalho de macumba, por partede uma das minhas amantes queeu tive, e ela trabalhando para meconseguir fez esse trabalho, n?E isso tirava muito a minha tran-qilidade, a minha paz, eu viviamuito agitado. Atravs desse so-frimento eu fui parar a nesse lo-cal, porm com o decorrer dotempo eu pude ver que no era averdade que eu esperava. Porquea prpria dona desse local, ouseja, a me-de-santo dali, ela es-tava tirando o trabalho que aque-la criatura fez para me pegar ecolocando um outro para ela que-rer me tomar, ou seja, me tirarde dentro da minha casa. Aquilome entristeceu muito, ento eu fi-quei clamando indiretamente aDeus, sem saber, porque eu que-ria sair dali e me afastar daquelelocal porque eu estava vendo queaquele no era um local decente,no era um local de bno, por-que eu tinha sido enganado.

    Como a crise no se resolvesse e atse tornasse mais complicada, ao envol-ver-se com uma mulher que est fazen-do um trabalho para ele no se afastardela, ele chama por deus e resolve con-verter-se:

    Ento, com o decorrer do tempo,apareceu uma pessoa de Jesus di-ante de mim e pregou para mima palavra do evangelho e eu acre-ditei e pude experimentar e es-tou h 10 anos.

    Esse mesmo dicono da Igreja deNova Vida comenta a relao de outramulher dentro da umbanda e como foienganada. Nesse momento aparece a fi-

    gura do diabo, quando fala do ponto devista de um pentecostal, revelando gran-de conhecimento dos cdigos afro-bra-sileiros:

    Ela foi ameaada pelo diabo, odiabo intimou ela a se curvar di-ante dele, tambm se aproveitan-do da necessidade dela, que erauma criatura muito humilde, tentendendo? Casada tambmcom um rapaz de pouco poderaquisitivo e ele, coitado, gostavada famlia e ela tambm gostavadele. Ento ela preservando isso,ela foi obrigada a se curvar, n?Diante daquela ameaa desatans, se voc no vier para cpara me servir eu vou tirar todasessas coisas de vocs, tudo quemdeu fui eu, esse terreno, essa casa,esse filho, eu vou tirar isso tudo.Essa ameaa assim que ele foipara cima dela. E ela ficou at-nita diante daquilo e teve queceder, tanto que ela botou a rou-pa, ela no queria botar, mas bo-tou, ela teve que botar a roupa,ela teve que ficar l seguindoaquilo l. Ela foi ameaada.

    interessante o que diz o diconosobre o que se passa quando algum fazum trabalho para o mal dentro daumbanda ou candombl:

    Essa me-de-santo, quando elaterminou l o envolvimento,digo, o trabalho todinho dela l,o negcio da ameaa l com amulher, quando aquele diabo iasaindo do corpo dela, ela saiunuma carreira, rapaz, gritando,t entendendo? E entrou por den-

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    tro de uma porta, que dentro da-quele quarto era onde a genteguardava nossos apetrechos, n?Aqueles cordes, colares, copos,aquelas coisas todinhas l, queusa dentro daquele terreiro, amulher caiu l dentro e eu ouviaquele barulho, brum! Essa mu-lher morreu, cara. Foi uma bati-da muito forte, ela saiu gritando.Parecendo que alguma coisa, elatava com medo de alguma coisa.Porque, sei l ... at eu fiquei es-pantado com aquilo, eu no en-tendi de ver aquela mulher sairda maneira que ela saiu, eu svim entender isso agora depoisque eu me converti. Eu comeceia entender alguma coisa, porquea palavra de Deus, ela diz que aidaqueles que tocar em um dosmeus pequeninos.

    Nessa parte do depoimento o entre-vistado desenvolve um argumento maisvoltado para uma explicao pentecostal,da Igreja Nova de Vida. Embora ele serefira a exu, a figura do diabo queele vai privilegiar:

    Aquela menina, aquela senhoraque estava sendo ameaada, elatinha um envolvimento cristo.Ela era batista, ela conhecia aPalavra de Deus, t entendendo?Mas ela era daquelas criaturasque talvez no estava muito en-raizada no evangelho, ento elase curvou diante daquela situa-o. Mas eu creio que a miseri-crdia de Deus estava sobre aque-la criatura naquele dia, ela esta-va sendo coagida, ela no estavasendo convidada no, ela estava

    sendo imposta naquela situao.O diabo faz isso mesmo, a Pala-vra de Deus diz que o diabo ...aquele que no entra pela porta salteador ... o diabo salteador.Ele pula muro, ele te invade, eleno pede licena para nada no,ele vai te invadindo, ele vai te ...tirando tua privacidade, t enten-dendo? Mesmo voc no queren-do o caso que ele fez com ela,ele coagiu aquela criatura, ele fezaquela imposio em cima dela,t entendendo? E ela com medo...e aquilo tambm at d medosim... voc l dentro daquele ne-gcio l, o diabo quando se ma-nifesta, esses demnios de meia-noite, tudo quanto exu, essestroos todos, eles quando baixaml, eles intimidam, se voc notiver um autodomnio sobre voc,voc fica intimidado mesmo. Por-que l eu via, era um movimentomuito grande que vinha para omeu lado. Essa minha amante,por exemplo, era tudo povo darua. Povo da rua que se chamaso os exus, t entendendo? Eaquilo tudo vinha para cima demim, e dizia que eu estava commovimento, com trabalho feitopor mulher.

    Nessa parte da entrevista, o diconoexpe sua vida de pecados, muito liga-da ao profano, que s terminou por-que se converteu ao pentecostalismo. Opentecostalismo, para esse entrevistado,d acesso a uma viso do passado comoalgo ruim e que precisa ser encerrado:

    Eu era mulherengo demais, euera um prostituto mesmo, de

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    marca maior. Eu saa por essemundo a, s tu vendo. Eu a notinha dvidas. Eu no tinha d-vidas porque s vivo na rua mes-mo. Baile, salo de baile,gafieira, escola de samba, seresta,todos esses envolvimentos, cara.Quem tu vai querer que vai estarali? S vai ter mesmo espritoimundo atuando ali naquelas vi-das, na vida de todo ser humano.

    Apesar de o dicono manter uma re-lao muito prxima com as religiesafro-brasileiras, ele no faz diferena en-tre macumba, umbanda ou candom-bl. Para ele, tudo ruim. Mas distin-gue as entidades, os santos, por sua pr-pria experincia. De um lado, sabe dis-tinguir o que cada entidade significa, poroutro d uma explicao nova, de den-tro de sua prpria crena:

    Na macumba tem um esprito quese chama malandrinho, aqueleesprito est ali. Chama-se ZPilintra, ele est ali no meio da-queles bailes, nas escolas de sam-ba, nas gafieiras, nas serestas,nessas orgias todas do mundo,nos botequins, nos bares, nessascasas noturnas, boites, ele estnesse meio.

    Junto com essa experincia dos cul-tos afro-brasileiros, est a questo danoo de corpo na umbanda e o corporenascido pelo pentecostalismo:

    E essa mulher era uma tremendaprostituta. De vez em quando eua via l na Praa Tiradentes. Eutrabalhei naquele meio l duran-te muitos anos. E a roupa delaera tpica de umbandista, de que

    o santo gosta. Como pombagira,principalmente pombagira quegosta de preto e vermelho. Eraaquela roupa, uma cala preta euma camisa vermelha. Era rou-pa realmente de povo de rua, deexus de rua. E naturalmente ela(a pombagira) deveria trabalharcom aquelas mulheres. Porquedepois eu conversando com umamigo meu, um colega meu as-sim de farra, n? Ele saiu comela e l no motel ela manifestoul o demnio, uma perturbaotremenda e o cara... ...foi a mai-or confuso o envolvimento comela. Ficou aquilo l perturbandoa noite inteira. A eu falei: doque eu me livrei ento. aquelenegcio, n? Se vai comigo a vaiacontecer naquele banz todocomigo l.

    A moralidade tematizada por meiodo corpo e desempenha um papel cen-tral no discurso do dicono enquanto umsinal diacrtico pelo qual ele se ope aosadeptos dessas religies:

    So mulheres que t l e t c, tentendendo? Tinha um rapaz nocandombl... era um rapaz casa-do, pai de famlia, a profissodele... ele era at engenheiro. Eusentia que ele no gostava de re-ceber aquele santo, tal da SantaBrbara, Ians, um negcio as-sim, s vezes eu via ele sentadocom uma toalha assim enroladanele, ele com a mo assim e tal,mas ficava encabulado com aqui-lo. Conversando com o meu ir-mo, que meu irmo de l, eu

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    falei: esse camarada a bicha?Ele disse: no, que isso, o carano bicha no. A eu disse:mas ele tem todo jeito de bi-cha. Sabe o que ?, que temuns santos a que efeminado, mulher. A eu digo: essa no.Ento eu tinha um medo danadodisso tambm, cara. J pensou seum santo desse resolve me pegara. Tem isso l. Tem um santo,esqueci de ver numa apostila queeu tenho l em casa sobre guerraespiritual, esqueci de ver, ...Ians e tal de exu... sei l, queseis meses homem e seis meses mulher. No tem esse negciode lsbica?, no tem esse neg-cio de lsbica a? , isso a, essediabo que pega essas mulheres,ela fica seis meses mulher e seismeses homem, t entendendo?Tem isso l. Saia... Porque tam-bm era demais, eu achava aqui-lo demais, botar saia em homem,p, j pensou cara? Eu achavaaquilo demais. Ento ele botavauma toalha assim em volta delee ele ficava rodando l com a monas cadeiras, aquele negciotodinho. A ele para no ficar emp l, ele sentava, mas sentavacom aquele jeito todinho demulher, ah! Que isso! O santoera Ians, tal de Santa Brbara.

    O processo de converso, que lentoe se faz repetidamente, comea pelo afas-tamento da religio anterior. Esse afas-tamento, no entanto, como a prpriaconverso, jamais se conclui, o outro seinsinua, acenando com possibilidadessempre presentes de retorno.

    Isso tudo foi me afastando daque-le ambiente. Eu j no estavamais querendo me envolver comaquilo porque aquilo ia me tra-zer problema. E depois eu j noestava mais vendo seriedade na-quilo l. Eu chamei a criatura efalei com ela... pxa, escuta aqui,eu t aqui, vim parar aqui porcausa de envolvimento com mu-lheres, e eu no estou querendomais isso, eu quero ficar com aminha famlia, eu quero ficarcom a minha mulher, t enten-dendo? Eu achava no principioque a umbanda ia ser a soluopara todos os meus problemas...Quando meu irmo chegou paramim e falou comigo que eu esta-va com um problema espiritual,que precisava ir l naquele ter-reiro para resolver aquele proble-ma, eu concordei com ele, por-que realmente eu no estava mesentindo bem.

    Um ponto que gostaria de destacar,para finalizar, o papel desempenhadopelo corpo enquanto instrumento sim-blico de construo e avaliao de umamoralidade assumida pelos pentecostais.O processo de converso realiza-se, isto, assume uma dimenso concreta, porintermdio do corpo, das atitudes evi-denciadas no sentido de maior ou me-nor controle sobre ele. Esse corpopentecostal, no entanto, na medida emque em seu interior convivem dimensesarticuladas pela inimizade e pela exclu-so, um corpo dividido contra si mes-mo. Ele se configura a partir de uma per-manente tenso, entre de um lado o sa-

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    grado (representado pela figura do Es-prito Santo) e de outro o profano (re-presentado pela figura do diabo) numpermamente esforo no sentido de ex-pulsar de seu interior aquilo que, para-doxalmente, alimenta sua identidade. Decerto modo, os pentecostais, a partir daconverso, caminham beira do preci-pcio. Qualquer deslize os jogar de voltanos braos do inimigo, ao profano. talvez essa conscincia que eles comba-tem por meio de uma moral rigorosa, deextremada valorizao do autocontrole,que alimente intelectual e existencial-mente seus dramas, e as solues, sem-pre precrias, que trazem para resolv-los. Ironicamente, esses homens e mu-lheres, que so vistos como exemplos dorigor moral e da intolerncia, parecemperceber, esquivamente, a precariedadedas respotas que oferecem a suas afli-es.

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    Marcia Contins doutora em Comunica-o e Cultura pela UFRJ, professora de An-tropologia do Departamento de Cincias So-ciais da Uerj e realiza atualmente uma pes-quisa sobre religio, cidade e subjetividadeno Rio de Janeiro.

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