MARX - O Mistério Da Construção Especulativa

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  • 7/25/2019 MARX - O Mistrio Da Construo Especulativa

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    O MISTRIO DA CONSTRUO ESPECULATIVA

    KARL MARXcaptulo V de A Sagrada Famlia, parte II

    Traduo de Marcelo Backes

    O mistrio da representao crtica dos "Mystres de Paris" o mistrio da construoespeculativa, da construo hegeliana. Depois de ter esclarecido o "selvagismo no seio da

    civilizao" e a ausncia de direitos no interior do Estado como "mistrios", quer dizer, depoisde t-Ias dissolvido na categoria "o mistrio", o senhor Szeliga faz com que "o mistrio" inicieseu ciclo vital especulativo. Poucas palavras havero de ser suficientes para caracterizar aconstruo especulativa de um modo geral. O tratamento dos "Mystres de Paris"encaminhado pelo senhor Szeliga mostrar a aplicao em detalhe.

    Quando, partindo das mas, das pras, dos morangos, das amndoas reais eu formo paramim mesmo a representao geral fruta, quando, seguindo adiante, imagino comigo mesmoque a minha representao abstrata a fruta, obtida das frutas reais, algo existente fora demim e inclusive o verdadeiro ser da pra, da ma etc., acabo esclarecendo em termosespeculativos "a fruta" como a substncia da pra, da ma, da amndoa, etc. Digo,

    portanto, que o essencial da pra no o ser da pra, nem o essencial da ma o ser dama. Que o essencial dessas coisas no sua existncia real, passvel de ser apreciadaatravs dos sentidos, mas sim o ser abstrado por mim delas e a elas atribudo, o ser da minharepresentao, ou seja, "a fruta" certo que meu entendimento finito, baseado nos sentidos,distingue uma ma de uma pra e uma pra de uma amndoa, contudo minha razoespeculativa considera esta diferena sensvel algo no essencial e indiferente. Ela v na mao mesmo que na pra e na pra o mesmo que na amndoa, ou seja "a fruta". As frutas reais eespecficas passam a valer apenas como frutas aparentes, cujo ser real a substncia, afruta".

    Por esse caminho no se chega a uma riqueza especial de determinaes. O mineralogista,

    cuja cincia inteira limita-se ao fato de que todos os minerais na verdade so o mineral, seriaum mineralogista... em sua imaginao. Pois bem, o mineralogista especulativo v "omineral"em qualquer mineral e sua cincia limita-se a repetir essa palavra tantas vezes quantas houverminerais reais.

    A especulao, que converte as diferentes frutas reais em uma "fruta" da abstrao, na"fruta", tem de, para poder chegar aparncia de um contedo real, necessariamente tentar e de qualquer maneira retornar da "fruta", da substncia, para os diferentes tipos de frutasreais e profanas, para a pra, a ma, a amndoa etc. E tudo que h de fcil no ato de chegar,partindo das frutas reais para chegar representao abstrata "a fruta", h de difcil no ato deengendrar, partindo da representao abstrata "a fruta", as frutas reais. Chega a ser

    impossvel, inclusive, chegar ao contrrio da abstrao ao se partir de uma abstrao, quandono desisto dessa abstrao.

    Por isso o filsofo especulativo desiste da abstrao da "fruta", porm desiste dela de ummodo especulativo, mstico, ou seja, mantm a aparncia de no desistir dela. Na realidade,portanto, ele apenas abandona a abstrao de maneira aparente. Ele raciocina a respeito dissomais ou menos conforme segue:

    Se a ma, a pra, a amndoa, o morango na verdade no so outra coisa que "asubstncia", "a fruta", cabe perguntar-se: como que "a fruta" por vezes se me apresenta nacondio de ma e por outras na condio de pra ou amndoa? De onde provm esta

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    aparncia de variedade, que contradiz de modo to sensvel a minha intuio especulativa daunidade, "da substncia", "da fruta"?

    Isso provm, responde o filsofo especulativo, do fato de que "a fruta" no um ser morto,indiferenciado, inerte, mas sim um ser vivo, diferenciado, dinmico. A diferena entre as frutasprofanas no importante apenas para o meu entendimento sensvel, mas o tambm para "aprpria fruta", para a razo especulativa. As diferentes frutas profanas so outras tantasmanifestaes de vida da "fruta una", cristalizaes plasmadas "pela prpria fruta", Na ma,por exemplo, "a fruta" adquire uma existncia manica, na pra uma existncia prica"1. No

    devemos mais dizer, portanto, como dizamos do ponto de vista da substncia, que a pra afruta", que a ma, ou a amndoa etc., "a fruta", mas sim que "a fruta" se apresenta nacondio de pra, na condio de ma ou amndoa, e as diferenas que separam entre si ama da amndoa ou da pra so, precisamente, distines entre "a prpria fruta", que fazemdos frutos especficos outras tantas fases distintas no processo de vida "da fruta" em si. Afruta" j no mais, portanto, uma unidade carente de contedo, indiferenciada, mas sim umaunidade na condio de "totalidade" das frutas, que acabam formando uma "srieorganicamente estruturada". Em cada fase dessa srie "a fruta" adquire uma existncia maisdesenvolvida e mais declarada, at que, ao fim, na condio de "sntese" de todas as frutas ,ao mesmo tempo, a unidade viva que contm, dissolvida em si, cada uma das frutas, ao

    mesmo tempo em que capaz de engendrar a cada uma delas, assim como, por exemplo,cada um dos membros do corpo se dissolve constantemente no sangue ao mesmo tempo emque constantemente engendrado por ele.

    V-se bem: se a religio crist apenas sabe de uma encarnao de Deus, a filosofiaespeculativa possui um nmero infinito de encarnaes, correspondente ao nmero de coisasexistentes, conforme revela o fato de que em cada fruta ela v uma encarnao da substncia,da fruta absoluta. O que interessa fundamentalmente filosofia especulativa , portanto, o atode engendrar a existncia dos frutos reais e profanos e o fato de dizer de um modo misteriosoque h mas, pras, amndoas e passas. Mas as mas, as pras, amndoas e passas quevoltamos a encontrar no mundo especulativo no so mais do que mas aparentes, prasaparentes, amndoas aparentes e passas aparentes, pois so momentos vitais "da fruta",desse ser intelectivo abstrato e, portanto, seres intelectivos abstratos elas mesmas. O quealegra na especulao , por conseguinte, voltar a encontrar todas as frutas reais, porm nacondio de frutas dotadas de uma significao mstica mais alta, frutas que brotam do ter deteu2 prprio crebro e no do solo material, que so encarnaes "da fruta", do sujeitoabsoluto. Portanto, quando retornas da abstrao, do ser intelectivo sobrenatural "a fruta" s frutas naturais, o que tu fazes, ao contrrio, atribuir tambm s frutas naturais umsignificado sobrenatural, transformando-as em puras abstraes. Teu interesse fundamental ,no final das contas, provar a unidade "da fruta" em todas essas suas manifestaes vitais, ama, a pra, a amndoa, quer dizer, a conexo mstica entre essas frutas e como em cadauma delas se realiza, gradual e necessariamente, "a fruta", como, por exemplo, a passaprogride de sua existncia de passa sua existncia de amndoa. O valor das frutas profanasno mais consiste, por isso, em suas caractersticas naturais, mas sim em sua caractersticaespeculativa, atravs da qual ela assume um lugar determinado no processo vital "da frutaabsoluta".

    1No original, Marx (autor deste capitulo inteiro) tambm utiliza neologismos, reforando o carter irnico de sua explicao e

    de sua brilhante retrica da repetio. (N.T.)

    2[Marx ironiza o estilo da Crtica crtica dos neo-hegelianos (representados aqui por Szeliga), alterando] o tratamento dapessoa repentinamente, invocando de maneira direta o leitor com o uso do tu , como se quisesse deixar claro que a Crtica

    vai envolvendo, e inclusive logra envolver, os leitores que ela invoca atravs de sua argumentao capciosa. (N.T.)

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    O homem comum no acredita estar dizendo nada de extraordinrio quando diz que hmas e h pras. Mas o filsofo, quando expressa a referida existncia de maneiraespeculativa, diz algo extraordinrio. Ele realizou um milagre, ele engendrou do seio do serintelectivo irreal "a fruta", os seres naturais reais ma, pra etc.; ou seja, ele criou essas frutasdo seio de seu prprio intelecto abstrato, que ele representa para si mesmo como um sujeitoabsoluto fora de si no caso concreto como "a fruta" e em cada existncia que expressa eleleva a cabo um ato de criao.

    Naturalmente resta dizer que o filsofo especulativo apenas leva a cabo essa contnua

    criao ao encaixar furtivamente, como se fossem determinaes inventadas por ele mesmo,propriedades da ma, da pra etc. que so conhecidas universalmente e apresentadas intuio real, atribuindo os nomes das coisas reais quilo que apenas o intelecto abstrato podecriar, ou seja, s frmulas abstratas do intelecto; declarando, enfim, sua prpria atividade,atravs da qual ele passa da representao ma representao pra, como a autoatividadedo sujeito absoluto, "da fruta".

    A essa operao d-se o nome, na terminologia especulativa, de conceber a substncia nacondio de sujeito, como processo interior, como pessoa absoluta, concepo que forma ocarter essencial do mtodo hegeliano.

    Era necessrio adiantar essa observao a fim de possibilitar a compreenso do senhor

    Szeliga. Se at agora o senhor Szeliga dissolvia relaes reais na categoria do mistrio, comopor exemplo o direito e a civilizao, transformando assim "o mistrio" em substncia, sagora que se eleva altura verdadeiramente especulativa altura hegeliana, convertendo"omistrio" em um sujeito independente, que se encarna nas situaes de pessoas reais, ecujas manifestaes de vida so condessas, marquesas, grisetes3, porteiros, notrios,charlates e intrigas amorosas, bailes, portas de madeira etc. Depois de engendrar a categoria"o mistrio" a partir do seio do mundo real, ele engendra o mundo real a partir dessa categoria.

    E os mistrios da construo especulativa se revelam de um modo tanto mais visvel naexposio do senhor Szeliga, quanto mais pelo fato de ele ter uma dupla vantagem sobreHegel. De um lado Hegel sabe representar o processo pelo qual o filsofo passa de um objeto

    a outro atravs da intuio sensvel e da representao, com maestria sofstica, como se fosseo processo do mesmo ser intelectivo imaginado, do sujeito absoluto. Mas depois disso Hegelcostuma oferecer, dentro da exposio especulativa, uma exposio real, atravs da qual possvel captar a prpria coisa. E esse desenvolvimento real dentro do desenvolvimentoespeculativo induz o leitor, equivocadamente, a tomar o desenvolvimento especulativo como sefosse real e o desenvolvimento real como se fosse especulativo.

    No senhor Szeliga ambas as dificuldades deixam de existir. Sua dialtica isenta dequalquer hipocrisia e tergiversao. Ele realiza sua pea artstica com uma honradez assazdigna de louvor e com a mais singela das retides bondosas. O que ocorre que nodesenvolve, em parte nenhuma, um contedo real, de modo que nele a construoespeculativa aparece sem nenhum adiamento estranho que a desequilibre, sem nenhumtapume de duplo sentido, brilhando ante os nossos olhos em toda sua beleza nua. No senhorSzeliga tambm se mostra de um modo brilhante como a especulao de um lado cria seuobjeto a priori, aparentemente livre e a partir de si mesma, mas de outro lado, precisamente aoquerer eliminar de maneira sofista a dependncia racional e natural que tem em relao aoobjeto, demonstra como a especulao cai na servido mais irracional e antinatural sob o jugodo objeto, cujas determinaes mais casuais e individuais ela obrigada a construir como sefossem absolutamente necessrias e gerais.

    3Moa que veste grise (tecido de l pardacento usado em certos hbitos monsticos); por extenso, empregada faceira. (N.T.)