McCALLUM Cecilia Espaço Pessoa Movimento

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    A terra est viva porque os yuxibuvivem nelaAgostinho Manduca (Inkamuru)3

    Perguntei quem o dono? durante uma das muitas conversas que tivecom Pancho, lder dos Huni Kuin de Cana Recreio, assentamento de150 pessoas localizado no rio Alto Purus, no estado do Acre, Brasil, onde

    vivi por mais de um ano, entre 1984 e 1985. Ns estvamos falandoda grande extenso da floresta e dos lagos situados na jusante da vila,numa rea pouco habitada do territrio indgena. Pancho respondeu queningum poderia possu-la, acrescentando, a ttulo de esclarecimento:Diusun[Deus] o dono desta floresta; no as pessoas. Esta sentenano cabia bem com o que eu sabia sobre a participao huni kuin na lutapoltica em prol da proteo das reas indgenas do estado do Acre. Emverdade, Pancho, assim como outros lderes, era um articulado defensordos direitos indgenas em relao aos seus territrios, na luta regionalcontra o processo de colonizao. As terras de Recreio e dos outros vila-

    rejos circunvizinhos recentemente tornaram-se pauta de processos legaisquanto demarcao de territrios indgenas () sob a jurisdio brasi-leira. Nos anos 1970 e 1980, ele desempenhou um papel fundamentalno estabelecimento do territrio indgena () Alto Rio Purus, situadona margem sul do rio. Logo, o que est por trs do seu comentrio sobrea no-posse da floresta e dos lagos em questo? O presente trabalhoexplora as camadas de significados contidos na sua resposta.

    Na poca de nossa conversa, em 1984, o sistema econmico estabe-lecido no Acre, baseado na extrao de seringa, estava em franca deca-dncia. A pecuria parecia destinada a substitu-lo. Investidores, especu-

    ladores e grileiros estavam interessados em reas acessveis via estradas,de onde eles tentaram expulsar os invasores (posseiros), geralmenteseringueiros que no tinham nenhum conhecimento sobre seus prpriosdireitos em relao s terras ocupadas. Mesmo quando no sujeitos

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    expulso violenta, colonos moradores de regies rurais de difcil acessomal conseguiam sobreviver e, por este motivo, milhares deles estavammigrando em direo s favelas urbanas. Ironicamente, nestas circuns-tncias, os povos indgenas da regio foram capazes de ocupar e consoli-dar seu domnio sobre grandes extenses territoriais tal como a AltoRio Purus, na margem sul do rio, doravante com relativo sucesso4.

    Eu sabia que restava apenas um assentamento Cari (no-indgena),composto por dois irmos e suas respectivas famlias, a residir na fozdo rio Chandless, situado dentro da extremidade jusante do territrio

    Alto Purus. Conforme o relato de um dos irmos, a partida futura delesestava condicionada ao recebimento de uma indenizao por parte daFunai. Todos os demais colonos haviam se retirado do local, a despeitodo no oferecimento de compensaes financeiras.

    Entretanto, alguns Cari, que residiam na vizinhana da situadana margem norte do rio, recusaram-se a respeitar os limites territoriaisrecm-criados. Pancho relatou, com um ar de satisfao, como ele e seus

    parentes haviam expulsado um grupo de pescadores, que haviam sidoflagrados apanhando uma grande quantidade de peixes de uma lagoa.Se eles apenas tivessem retirado a quantia suficiente para uma refeio,no teria havido problema algum. Mas eles planejavam comercializar opeixe. Em seguida, ele acrescentou: Essa terra nossa e os peixes sonossos tambm.

    Em uma entrevista realizada, transcrita e editada por Aquino e Igle-sias e publicada online, Pancho descreveu esses eventos como parte dasua bem sucedida contribuio para o assentamento do . Na seointitulada Tirando os brancos, Pancho detalha como conseguiram tirar

    os seringalistas e seringueiros, para os quais falaram ndio tem direitosim, ns somos donos da terra. Nota que quando ganhamos a terra, aFunai indenizou eles. Acabou o problema. E em seguida, conta:

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    Outros brancos moravam do outro lado do rio Purus. Vinham de l pra

    cortar seringa. Estragavam nossas seringueiras, derrubavam nossas madeiras

    pra fazer canoa. Pegavam nosso peixe. Por isso, briguei muito nesse tempo.

    Trouxe sessenta ndios e quebramos todas as canoas que estavam dentro

    do lago. Ento falei: Se vier, nos amarra no p de taxi. Bate em ns pra

    ver se homem!. Ficaram revoltados com a gente. Eu falei: Vai dar parte

    para ver quem tem mesmo direito!. No mexeram mais. [...] Hoje, somuitas aldeias novas. Era preciso nos dividir pra segurar nossa terra. Antes

    o branco invadia nossa terra, entrava em nossos lagos, pegava nosso peixe,

    botava canoa no lago para mariscar. Onde estou morando hoje, branco

    vem mariscar. Eu deixo, vizinho, pra criar filho deles, no pra ramo

    de vida, pra vender. (Kaxinaw, 2006).

    Ento, em que sentido, para um Huni Kuin, um territrio tanto podeser propriedade exclusiva de um grupo social como tambm algo a serexcludo da categoria de coisas ou pessoas que podem ter um dono (ibu)

    humano? Contextualizadas historicamente, as razes para se reivindicara titularidade de um territrio em contraposio aos interesses doscolonos e dos invasores predatrios so claras o bastante. Mas o que hnas afirmaes feitas por Pancho sobre ser Diusun(Deus) o nico apto apossuir toda a extenso de florestas, lagos e cursos dgua, extenso estareferida na lngua portuguesa como sendo um territrio?

    H mais em jogo do que uma troca de discursos por parte do meuinterlocutor. Claro, as pessoas indgenas podem se expressar em lnguasnacionais e adotar estrategicamente distintos discursos forjados dentrode estruturas de poder no-indgenas, bem como lidar criativamente

    com processos histricos que so produtos de regimes de verdade euro-peus (Albert, 2005; Brown, 1993). Esta empresa muito sria e a com-preenso de Pancho sobre a lngua portuguesa e a legislao brasileira evidente no extrato citado acima, que, mesmo sendo uma verso editada

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    pelos antroplogos que o entrevistaram, em muito parece fiel prpriamaneira de Pancho se expressar. Embora alfabetizado, ele no possuamais que poucos anos de escolarizao; porm, ele habilmente utilizavavocbulos tomados de emprstimo do portugus, bem como reinventavaideias importadas como parte das suas atividades polticas hodiernas(McCallum, 1990, 1996b)5. Ao lidar com os no Huni Kuin, ele po-

    deria falar dos direitos e do regime de propriedade, nos marcos dalei, lidando com estes Nawa (forasteiros) no que ele entendia ser os seusprprios termos. Desde a sua morte, o engajamento huni kuin com osdiscursos e epistemologias nacionais se intensificou. Durante a primeiradcada do milnio, o nmero de estudantes indgenas que buscam setornar especialistas em diferentes domnios do saber e da aprendizagemeuro-americana (tais como a Lingustica, o Direito ou a Medicina) temaumentado significantemente. Pode-se mesmo dizer que as geraesatuais dos Huni Kuin j no fazem mais um uso sobretudo pragmticoou estratgico de idiomas nacionais e de estilos de conhecimento; esto,

    isto sim, imersos em um contexto fenomenolgico que faz dos processosontogenticos uma espcie de engajamento poliontolgico6.

    Neste artigo, no me concentrarei no uso pragmtico e criativo dediscursos de origem no-indgenas pelos lderes indgenas ao procurarexplorar essa aparente contradio nas reivindicaes em torno da pro-priedade da terra. Os contextos onde se utiliza a linguagem discursivade origem brasileira ou transnacional distante dos mundos vividospela maioria dos parentes das lideranas: sobre esses mundos que oartigo se debrua. Adotarei uma perspectiva analtica que enfoca a vidacotidiana, destacando, pois, a relao huni kuin com o mundo circun-

    dante, incluindo os espaos fsicos que podem ser referidos pelo termoterritrio, mas no partindo dos pressupostos ligados ao conceito. Dessemodo, deixarei para outra ocasio a discusso dos importantes processosde territorializao, conforme definido na apresentao do presente

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    dossi, no rastro de Pacheco de Oliveira (1998), para me concentrarnos processos de vivncia a que os organizadores se referem por meio danoo de territorialidade.

    A territorialidade em destaque aqui, no entanto, aquela produzidanos pequenos atos e encontros do dia-a-dia, e no aquela que emergede eventualidades ou processos histricos. As territorialdades em foco

    so geradas mais pelos processos micro-histricos que pelas imposieshistricas de escala maior. O argumento que eu proponho o seguin-te: as atividades cotidianas e corriqueiras dos Huni Kuin constituem aposse da terra como algo contingente. Por sua vez, esta qualidade con-tingente um efeito da dependncia das prticas de seres humanos vivos(Huni Kuin) sobre os no-humanos, a saber, o envolvimento huni kuincom os seus semelhantes e com as entidades do mundo ao seu redor.Os processos pelos quais o gnero, a pessoa e a socialidade so criadosinformam o modo pelo qual a posse da terra constituda, na medidaem que arranjos particulares de parentesco emergem do engajamento

    entre, por um lado, as formas e expresses sempre mutveis e diversasdestes espaos, e, por outro, pessoas humanas e no-humanas. Assim,as pessoas, os corpos e o ambiente esto mutuamente imbricados, ouseja, as conexes entre eles so internalizveis e mutveis. O produtogeral destes processos, na forma de sedimentaes ao longo prazo dosefeitos corporais e materiais destas imbricaes, uma relao coletivaque pode ser utilmente justaposta com as relaes pressupostas peloconceito euro-americano de territrio. Porm, eles no se traduzemplenamente como tal.

    No Brasil, o regime ontolgico hegemnico, no mbito da esfera ju-

    rdica, trata a terra como algo objetivo, fixo e externo aos seres humanos uma coisa que pode ser alienvel, em se tratando de uma propriedadeprivada, ou inalienvel, como no caso das reas indgenas. Estes doisconjuntos de relacionamento entre humanos e espaos objetificados no

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    servem para expressar os tipos de relaes que a experincia huni kuinconceitualiza em suas atividades cotidianas. Em suma, o conceito brasi-leiro de territrio violenta as premissas sobre as quais a prtica huni kuinse assenta. Postulo, portanto, a titulo de hiptese, que quando Panchoafirmou ser Deus o nico dono da terra, ele tinha em mente o que evidente7para todos os Huni Kuin: o entendimento de que o ambiente

    terrestre, para a sua prpria existncia, est imbricado e dependenteda socialidade vivida. esta a proposta a ser explorada e fundamentadano corpo deste artigo8.

    Isto exige, como um passo preliminar, que deva ser dado a devidaimportncia ao modo de pensar e fazer huni kuin que, na mirada filo-sfica, pode ser denominado de uma fenomenologia prpria. Do pontode vista da vida cotidiana huni kuin, o relacionamento criado por meiodo engajamento com o mundo fenomenal ou seja, com objetos e seresque, para os Huni Kuin, so concomitantemente materiais e imateriais,visveis e invisveis; a forma e a aparncia dependem da condio corpo-

    ral (consciente, inconsciente) do observador. As relaes de proximidadenunca so dadas a priori, pois precisam ser construdas materialmente ereafirmadas sempre. A natureza constantemente emergente do parentesco tomada como uma caracterstica central da vida cotidiana. De fato, anecessidade de fabric-la motiva o trabalho a ser feito a cada dia, e nistoos Huni Kuin no so diferentes dos outros povos amaznicos. Muitotem sido publicado recentemente sobre a qualidade mutvel do paren-tesco na Amaznia indgena. Normalmente, os analistas se aproximamdeste fenmeno atravs do enfoque nos aspectos corporais e interpessoaisa ele correlacionados, seguindo o caminho estabelecido pelos estudos

    clssicos de parentesco, as releituras feministas e outras crticas, e na ricae crescente literatura etnogrfica sobre os povos amaznicos e outras po-pulaes amerndias. Sem dvida, o corpo, ou as rupturas e as conexesentre os corpos, um importante ponto de partida quando se procura

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    compreender os diversos modos de relacionamento nesse universo.O investimento recente nas perspectivas fornecidas pelos estudos donovo parentesco (Carsten, 2004) contribuiu para este desenvolvimentoe levou a uma amazonizao de conceitos e modelos retirados da literatu-ra melansia, tais como a fractalidade e a noo de divduo9. Estas novasabordagens tm sido associadas virada ontolgica no mago da teo-

    ria antropolgica10. Frequentemente, na robusta e florescente literaturaproduzida no Brasil, as ideias so retrabalhadas luz de um sofisticadointerrogatrio da etnografia, cuja fortuna analtica em muito se deve aotrabalho de Lvi-Strauss, especialmente as suas publicaes mais tardias.

    Nestes estudos, a preocupao com a forma (as estruturas dinmi-cas conceituais a dirigir a fabricao do parentesco) suplanta o que colocada por vezes como a equivocada nfase na substncia caracte-rstica de alguns projetos analticos concorrentes11. A insinuao queesta noo de substncia provm da tradio analtica euro-americana,e que seria repleta de conotaes subsidirias de um cartesianismo mal

    aplicado, oferecendo uma leitura demasiado simplista do entendimen-to indgena sobre os aspectos materiais da constituio da socialidade.No minha inteno discutir abordagens tericas distintas ou julgaros seus mritos ou falhas aqui. Procurarei realinhar os termos do debate luz da minha compreenso dos modos de pensar dos Huni Kuin emMcCallum (2013). No entanto, preciso notar que taxargrosso mododesubstantivistas as abordagens que focalizam a vivncia de relaesde parentesco ou as experincias de contatos com os seres e fenmenosdo mundo cotidiano perder de vista um aspecto central do pensamentoindgena. Colocado de outra forma, a preocupao para com a investiga-

    o da ontologia indgena, a partir de uma perspectiva ps-kantiana, temlevado a uma grande nfase nas formas lgicas de constituio do paren-tesco em nvel ontolgico, ao ponto de trat-lo como que distanciadoda prxis indgena e das compreenses sobre matrias etnograficamente

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    especficas. A rejeio s abordagens ditas substantivistas, em favor dasontolgicas, levou a uma negligncia quanto ao papel central desempe-nhado pela fenomenologia indgena no tocante constituio prtica doparentesco12. Entretanto, a epistemologia indgena insiste em proclamarque os sentidos constituem e do a conhecer a realidade vivida como umprocesso corporal, no qual vises, cheiros, palavras e sabores so integra-

    dos materialmente na carne e no osso da pessoa (Kensinger, 1995; Mc-Callum, 1996a; Lagrou, 1998, 2007; Viveiros de Castro, 1996, 1998)13.

    Atualmente, este insight, que foi bem articulado nos anos 1990, correo risco de se perder no meio do caminho, caso a trilha ontolgica sejaseguida com um excesso de entusiasmo e de maneira acrtica, deixandode lado o ponto de vista da fenomenologia indgena.

    Criando lugares

    De modo a apreciar a fenomenologia huni kuin, pode-se comear peloambiente por eles habitado e os conceitos que expressam algo de suasexperincias vividas. Na regio do Brasil atravessada pelo rio Purus, afloresta se espalha sobre a terra de barro ondulante, envolve lagos e ma-nanciais, e adapta-se aos pntanos e extenses de solo arenoso ou argilafrtil. O terreno plano e sem montanhas ou declives significativos paracanalizar e direcionar o fluxo dos rios, de forma que estes cursos de guase enrolam e se curvam sobre si mesmos sem parar medida que lenta-mente encontram o seu caminho em direo Amaznia. A formaogeolgica desta regio do Alto Purus praticamente desprovida de ro-

    chas; logo, as estaes do ano e a presena de chuvas torrenciais ou de solescaldante determinam a dureza ou suavidade da terra. A vegetao ras-teira densa, dificultando o avano sobre a floresta que grossa. O ar seespalha para alm do horizonte numa expanso horizontal ininterrupta.

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    Mas os Huni Kuin no a veem como deitada. Pelo contrrio, en-xergam-na a partir da sua verticalidade. Para eles, a floresta estende-separa cima, em direo ao cu, e esta a qualidade que ni, o termopara floresta, expressa. Nisignifica em p ou andar em sua formaverbal. Ento, em vez de nos referirmos a uma horizontalidade passiva,falemos da infinidade de rvores que parecem capturar a essncia de

    algo verticalmente mvel e personificado. E, de fato, rvores e outrasplantas tm em muitos casos agncia e antropomorfismo; algumasso classificadas comoyuxin(pessoas/espritos). As maiores rvoressoyuxibu(poderosos espritos monstros) e tambm habitaes para

    yuxin. Elas fornecem conexes com os nveis superiores do cosmoshabitados pelos mortos e outros espritos benevolentes. Estes yuxibuso os invisveis, mas imensamente poderosos ibuou guardies do nie de muitos outros seres no humanos14.

    No h um termo huni kuin capaz de traduzir adequadamente anoo de terra ou territrio. Ambos os verbetes, tanto na lngua por-

    tuguesa, quanto na inglesa, parecem evocar a qualidade de algo eterno,estacionrio, uma fixidez que contrasta com a transitoriedade da vidabiolgica que a Terra impassvel suporta. Em huni kuin, mai significaTerra, solo e barro; contudo, este termo no utilizado para sereferir a extenses de propriedade de terra. Diferentes lugares tm dis-tintos tipos de mai o tipo de maiencontrado em um bai kuin(roadoaberto em terra alta), por exemplo, difere daquele caracterstico dosroados plantadas nas reas ribeirinhas. Apesar de uma mae(aldeia) ad-quirir uma urea de permanncia aps alguns anos de habitao, a formaverbal deste termo significa mudar de casa. Aldeias no so proprie-

    dades dos lderes masculinos e femininos (xanen ibue ainbu xanen ibu,respectivamente), embora eles sejam responsveis conjuntamente pelaorganizao e manuteno do espao. As casas, bem como os roados,das terras elevadas ou ribeirinhas, possuem ibu, um termo que pode ser

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    glosado como dono, mas que implica um cuidador, uma pessoa comresponsabilidade por alguma coisa ou ente, que efetua uma criao doscorpos das plantas produzidas ou das habitaes. Ibutem fortes cono-taes de uma relao assimtrica de parentesco, pois significa me oupai, igualmente A noo de bairessoa com o conceito de criao; assim,ba- uma forma verbal que significa tanto procriar e cozinhar e est

    usada para referir a criatividade feminina que necessita ser desencadeada,possibilitada e estimulada nas relaes conjugais (McCallum, 2001).Somente as pessoas casadas podem ser ibude jardins e casas e, portanto,o termo implica a relao de gnero basal na constituio de socialidadevivida15. Os celibatrios colaboram com os casados, ajudando-os nosprocessos criativos, podendo, aps o casamento, se tornar ibude algumterreno para construir uma habitao, ou trecho de terra ou barranco derio para uma plantao, atravs do reconhecimento por parte dos aldees(algo acordado em reunies) do seu envolvimento fsico no trabalhosobre esses espaos. Tais direitos decorrem da organizao do trabalho,

    mas, a longo prazo, expiram uma vez que o jardim se exaure e a casa abandonada aps uma morte ou mudana por outro motivo e caia naruna (McCallum, 2001). Nestes casos, os espaos brevemente voltama ser floresta. Assim, mesmo que a terra firme que suporta as casas e asplantas cultivadas sejam uma espcie de propriedade ou seja, elastm um ibu, h um senso de fugacidade na permanncia das pessoasem um espao. De fato, em 1994, a maior parte dos 150 moradores doRecreio do Alto Rio Purus com quem eu morara em 1984 havia sadoe se estabelecido em novas aldeias acima ou abaixo do curso do rio. Emresumo, pode-se dizer que os espaos habitados no plano terrestre do

    cosmos so, ao contrrio de seus primos homnimos de tijolo e arga-massa, definidos por sua transitoriedade e maleabilidade.

    impossvel pensar na terra sem a referncia ao ni a floresta emp ou aos espaos aquosos que, por assim dizer, quebram a aderncia

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    montona da infinidade de rvores sobre a paisagem. Lagos so lugaresameaadores, ricos no somente em peixes, mas tambm em jacars,alguns dos quais atingem propores monstruosas. Como as maioresrvores da floresta e as gigantes anacondas que ocasionalmente se en-contram a nadar ou a tomar sol beira da gua, estes enormes animais,ou quaisquer outros de sua prole, so seres espirituais conhecidos como

    yuxibu. Eles so o ibudos reinos aquosos que habitam e vivem nas pro-fundezas dos lagos, ou nas piscinas de grande profundidade ao longo docurso de um rio, que ameaam tragar os passageiros de canoas viradasou os nadadores descuidados16. Eles representam a ameaa constantede descida vertical ao submundo, um lugar de gua corrente onde oshabitantes marinhos enxergam a si mesmos como humanos e comoafins em potencial dos Huni Kuin. Mas, se os lagos e os turbilhesrepresentam uma ameaa constante de uma descida vertical sem volta,ou seja, a passagem irreversvel da vida para a morte, os cursos de guaque cortam a floresta permitem uma transitoriedade reversvel. Rios e

    crregos facilitam tanto a separao entre distintos espaos humanos enawa(estrangeiros e inimigos) esculpidos entre grupamentos de rvoresverticalizadas, como tambm garantem a renovao das conexes entreos seres humanos vivos. Eles so caminhos lquidos ao lado ou por meiodos quais as pessoas podem caminhar, bem como podem transitar combarcos ou canoas a remo ou embarcaes motorizadas (quando a gasoli-na est disponvel). Rios so simplesmente referidos comojene(lquido);so, pois, caracterizados pelo fluxo constante de gua, os quais so trata-dos pelos Huni Kuin nos termos de uma analogia com os seus poderesde conectividade. Assim, o termo para correnteza de um rio bai

    o mesmo utilizado para caminho (bem como para jardim). Em suma,os rios so os meios como tambm so as metforas de movimentoe conexo.

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    Fazendo caminhos

    Alm da referncia correnteza do rio, o termo bai tambm expressa ostraos ou efeitos que os organismos ativos deixam sobre a terra. Fazer umaroa ou bairequer um trabalho extenso, coletivo e individual, envolvendoa colaborao macho-fmea, para transformar a floresta em trechos de

    plantas cultivadas. O processo tambm toma a forma de uma transfe-rncia de propriedade dos frutos da terra, dos espritos para os humanos.

    As entidades originais responsveis pelas rvores e plantas, o ni yuxinouoyuxibu, no caso de todas as grandes rvores que devem ser abatidas,devem ser separadas dos corpos das plantas e rvores. Os homens respon-sveis por destru-las tornam-se ibu(dono/responsvel) dos espaos por elequeimados. Contudo, a pessoa a quem a posse da bai definitivamenteatribuda a mulher que lavra a terra, aquela que dedicar vrios anos desua vida ao seu cultivo. Na medida em que os corpos das plantas cresceme se fortalecem, o seu status como ibu(dona/cuidadora) ganha fora.

    A transformao do niem bai kuin(roado verdadeiro) afeta, ento, asrelaes de transferncia entre as pessoas (os Huni Kuin descrevemyuxincomo gente, pessoa) e os corpos que so criados em espaos conhecidoscomo bai. Assim, dizer que uma pessoa a dona de uma roa significaafirmar que ela a sua criadora, assim como os pais so os fabricadoresdos seus filhos. Em outras palavras,yuxine seres humanos no so tantoibuno sentido de dono da terra, mas sim ibudos produtos das plantas ervores cujas razes esto fincadas na terra, ibuno sentido de cuidadoresde corpos vivos, sobre os quais tm uma medida de controle.

    Um homem comea a estabelecer suas trilhas de caa ao lado de cr-

    regos ou atravs de sendas deixadas por antas ao forarem seu caminhoatravs da floresta (Kensinger, 1995: 13)17. Com o passar do tempo, os ca-adores e seus companheiros ocasionais limpam estas trilhas de quaisquerobstculos, ampliando-as, construindo cabanas de caa perto de grandes

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    rvores frutferas, cortando troncos para fazer pontes sobre os crregos,retirando as tiras das suas cascas para fabricar alas de cabea, e assim pordiante, de modo que estas atividades fsicas definem os caminhos e osalteram. A rota do seringueiro tambm tem a sua existncia continuada eredefinida ao longo do tempo. Da mesma forma, o corpo de um homem em si continuamente alterado e formado por suas experincias ao longo

    desses caminhos e do trnsito pela floresta. Sua viso, audio, olfato etato lhe permitem agir de tal forma que geram efeitos sobre a floresta cir-cundante, mas, desde que esses sentidos estejam enraizados em diferentespartes do corpo, como os olhos, ouvidos e mos, eles prprios so altera-dos por suas experincias. Em particular, de acordo com os informantesde Kensinger, um caador adquire os conhecimentos e as habilidades queso inscritas na pele e da mo atravs da interao com a mirade de seres,plantas e rvores encontradas durante o processo de construo de rotas.

    A caa bem-sucedida requer um conhecimento considervel [...] das ca-

    ractersticas comportamentais dos animais caados com base na obser-vao. Este [...] o conhecimento da pele, bichi una, como todo o

    conhecimento do mundo natural. Quando perguntei porque isto no era

    o conhecimento do olho [...] eles me disseram que este era o conheci-

    mento sobre o esprito do corpo da selva, yudabake yushin (Kensinger,

    1995: 239-240)18.

    A ideia de que os caadores so os ibudessas trilhas e do territrio emtorno delas expressa a noo de que quando uma pessoa produz umefeito material acumulado sobre a matria tanto animada, quanto

    inanimada , ele ou ela est em um processo de constituio de umarelao ibu uma relao assimtrica que possui, concomitantemente,aspectos de posse e de parentesco. Isto replica de algumas maneiras orelacionamento entreyuxibu, os que so os invisveis ibudos dois planos

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    do cosmos, que so acessados e por onde trafegam os humanos (isto ,os planos do estado material ordinrio) os cursos de gua, os lagos e afloresta. Yuxibutambm so os guardies do terceiro plano cosmolgico,os cus, cujos habitantes avirios os seres humanos costumam caar.

    A predao um modo masculino (mas no necessariamente exclu-sivo aos homens) de interao com os seres nestas trs zonas. Quando

    os homens huni kuin de diferentes aldeias em criaram um novotipo de caminho, no final de 1980, uma trilha a cortar a floresta, demodo a demarcar as fronteiras do territrio indgena, eles viveram estaexperincia como uma grande expedio de caa. Resolvi perguntar aalguns dos participantes sobre suas experincias. Ao invs de falar sobreo rduo trabalho que, sem dvida, estava envolvido em toda empresa,eles entusiasticamente mencionaram os diferentes tipos de bichos vistose caados durante as semanas e meses do processo de demarcao. Damesma forma, nos desenhos por mim coletados em 1985, feitos porhomens huni kuin para ilustrar a demarcao do territrio do rio Jordo,

    as figuras sempre se referiam aos animais de caa consumidos, e nuncao grupo de trabalho ou a demarcao em si mesma.

    A caa sempre envolve a destruio e a transformao dos corposque esto atrelados a seus construtores e criadores (seus ibu)19. Matarsignifica se engajar em uma relao com esses donos mediada atra-vs dos corpos convertidos em carne para o consumo e dessa formaapropriados. Porm, a caa e a matana no acontecem em um espaoneutro. A floresta no uma parte da natureza, mas sim uma conste-lao de zonas de habitao e responsabilidade criadas e povoadas porseres, muitos dos quais os Huni Kuin julgam ser pessoas. Quando os

    humanos alteram o meio ambiente, criando trilhas e abrindo clareiras,logo eles investem na apropriao parcial destes lugares e na possibili-dade da transformao, revelao ou expulso destes seres. como seestivessem a deslocar os ibuoriginais juntamente com seus tutelados

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    e parentes, ou como se estivessem a tornar mais ntidas as distinese distncias entre os domnios visveis e invisveis dos regimes de con-trole, criatividade e responsabilidade.

    Est claro, portanto, que existe uma relao de constituio mtuaentre os caminhos e os corpos humanos em contextos como a caa. Umalgica semelhante opera no tocante visita a outras casas ou aldeias, ou

    nos trajetos de ida e volta aos roados. Os corpos humanos de homense mulheres produzem e mantm trilhas pela floresta (bai) enquanto cui-dam de sua rotina de trabalho cotidiano, vm e vo, no apenas de roas,mas tambm de expedies de pesca e de caa ou (no passado) de viagenspara a coleta do barro que era utilizado na cermica. A baiou correntezados rios, por outro lado, no deve sua existncia ao humana.

    At este ponto, a discusso sobre as vias terrestres ou lagos e cursosde gua concentrou-se nas formas que facilitaram as conexes e desco-nexes entre seres humanos e no-humanos (horizontal, no primeirocaso; vertical, no ltimo). Todavia, ambos so rotineiramente utilizados

    por pessoas para forjar conexes com outros seres humanos, um tematratado na prxima seo, que retoma o enfoque na socialidade vivida.

    Fazer visitas20

    Visitar significa conectar dois lugares e, portanto, dois corpos de paren-tes. A natureza corporal do parentesco capturada na expresso nukun

    yura, que se refere aos parentes homens e mulheres, em um sentido cole-tivo, significando literalmente nosso corpo. O vero a poca perfeita

    para visitar parentes distantes ou outro tipo deyura. O rio fica raso eas praias esticam-se ampla e firmemente, permitindo que os viajantescaminhem ao redor das curvas do rio, com uma ou duas mulheres oumesmo as meninas assumindo o comando da canoa. As turvas guas

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    amareladas do rio Purus fluem gentilmente, permitindo queles queempunham os remos ou paus utilizados para empurrar as canoas avanarsem muito esforo. A estao seca, entre meados de maio a setembro, omomento em que famlias inteiras tomam parte em expedies para en-contrar parentes distantes, viajando dias ou semanas para se juntar a elespara uma visita que pode durar vrios meses, ou mesmo para estadias

    mais prolongadas que possam resultar em mudana permanente e novoscasamentos. Este o perodo em que as mulheres realizam expediescoletivas curtas, que comeam no raiar do dia e terminam no comeoda noite, quando elas retornam s suas aldeias21.

    Quando as mulheres deixam suas casas para visitar a residncia de ou-tra mulher, dizem En bai kai, (Eu vou visitar). O principal objetivodessas visitas comer os alimentos produzidos por amigos e parentes,de modo que uma mulher pode comentar En baka pikai (Eu voucomer peixe), ou qualquer outro alimento que ela sabe que faz parte dadespensa dos seus anfitries. As pessoas costumam visitar outras famlias

    dentro de sua prpria maee embarcam em uma expedio para outraaldeia apenas ocasionalmente. No caso de visitas interaldeias, as mu-lheres vo no apenas para comer, mas tambm em busca de presentes,alimentos crus, especialmente para traz-los de volta para casa. As visitas,desta forma, possuem algo da natureza predatria, na medida em que osanfitries so obrigados a ser generosos, servindo refeies e concedendopresentes aos visitantes. Eles correm o risco de perder os frutos de suasrecentes atividades produtivas nos jardins, no rio e na floresta, se estesno forem suficientemente escondidos quando os forasteiros aportamem suas casas e sobem as escadas em direo aos compartimentos onde

    esto guardados os suprimentos. S no futuro, em uma visita de retorno,eles podero compensar essa perda. Assim, atravs do dar e da apropria-o dos frutos do seu prprio trabalho, as mulheres de diferentes aldeiascriam ou recriam laos sociais com os Huni Kuin que so seus outros.

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    As duas maiores aldeias do Purus em 1984-1985, Recreio e Frontei-ra, ficavam localizadas cerca de duas horas de intervalo uma da outra,quando a viagem era feita em canoas a motor. Os habitantes de cadaaldeia tinham histrias recentes distintas, mas uma origem comum deum grupo de populao que habitava a regio do rio Muru no incio dosculo . O povo de Recreio recentemente havia migrado rio abaixo em

    direo ao Brasil depois de dcadas residindo no Peru, nas margens dorio Curanja, uma das cabeceiras do Purus, enquanto o povo de Fronteirahavia chegado do rio Envira a partir do Ocidente, onde os homens ha-viam trabalhado como seringueiros, sempre endividados, para os patresbrasileiros. Contava-se em cada assentamento cerca de 100 pessoas (osndices populacionais sempre oscilavam para mais ou para menos, na me-dida em que visitantes migravam, novos aldees nasciam, outros tantosmorriam, e assim por diante). Aliados polticos na luta pela terra (ou reaIndgena, nos termos legais), os habitantes tinham ajudado uns aos ou-tros substancialmente nos ltimos anos, quando os dois vilarejos estavam

    sendo estabelecidos. Como reflexo de suas trajetrias histricas distintas,no entanto, estilos de interao diferem sutilmente entre eles, e h certasdiferenas lingusticas. Embora a lngua huni kuin seja falada nas duasaldeias, havia diferenas de sotaque e no uso de figuras de linguagem.Em geral, cada aldeia mantinha a si mesma. Uma corrente de hostilidadelatente parecia pairar sob a superfcie durante os encontros ocasionaisentre os moradores dessas duas aldeias, porm, ela foi substituda pelatica formal de interao e pela renovao peridica das relaes pacficas.

    Visitas envolvem uma mistura de festa e formalidade. Para visitarFronteira no vero, as moradoras de Recreio acordavam de madrugada,

    reuniam as crianas, chamavam o co favorito, pegavam os faces, carre-gavam cestos e trouxas de roupas limpas e, ao chamar suas companheiraspara a viagem de um dia, caminhavam at a entrada do vilarejo. A convi-te de uma das partes, por vezes, no final do vero, elas podiam fazer uma

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    pausa para quebrar o jejum em algum trecho de praia que houvessemplantado alguns meses antes, aps a diminuio da vazo da gua. Ali,onde a festa dos visitantes era regada por melancias levemente amadu-recidas e amendoins verdes frescos retirados do solo arenoso, o climafestivo prevalecia. Na medida em que uns remavam em seus principaisveculos, outros caminhavam pelas praias e pelos atalhos das florestas que

    atravessam as curvas generosas dos rios, se juntando canoa no cami-nho para algum lugar prximo jusante de Fronteira. Chegando a esteponto, elas obrigavam a canoa a subir o terreno ngreme rapidamente,de modo a percorrer o caminho pela floresta que leva diretamente aldeia. Caminhando rapidamente para um riacho, paravam para lavarseus corpos suados e vestiam novos vestidos, costurados em mquinasde costura compradas por maridos ou tios na cidade. Os cabelos longoseram penteados e ungidos com o leo perfumado comercializado porvendedores ocasionais que trafegavam pelo rio ou surgiam na cooperati-va da aldeia. Os bebs, por seu turno, voltavam a carregar as atiradeiras,

    partindo, pois, para a caminhada final em direo ao seu destino.Vamos imaginar uma visita. Chegando primeira casa, construda

    no estilo regional (com piso feito da madeira paxiba, muito utilizadaem palafitas), mas muito maior e mais aberta que as casas dos vizinhosseringueiros no-indgenas, as mulheres percebem que apenas um jovemest em casa, cuidando de seu irmo mais novo. Como eles ficam no pdo tronco entalhado, que serve como uma escada para subir para a casa,a criana recebe cada visitante, individualmente, uma pessoa de cadavez, formalmente: Min ma huai, Ewan? (Voc j chega, Me?), eladiz para a mulher que sua parente classificatria, ou Min ma ma huai,Yayan? Tsaben? (Voc j est vindo, minha Sogra? Minha Cunhada?),ao abordar seus outros parentes classificatrios. As mulheres que visitamrespondem sem subir para a sala aberta da grande casa. Em vez de para-rem por aqui, elas seguem o caminho que conduz casa de uma irm

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    do lder da expedio que, oportunamente, se encontra presente. Aqui, ogrupo se divide. O lder e algumas mulheres e crianas sobem para dentroda casa, enquanto os outros se movem para outro lugar. Os visitantes sesentam de pernas cruzadas sobre uma esteira em um canto da ampla reaaberta, enquanto o lder, como o hspede mais antigo e mais importante,aceita o convite de sua irm para se reclinar na rede. A anfitri estende

    a mesma saudao formal utilizada pela jovem garota para cada visitante.Onde as mulheres no esto relacionadas pelo casamento ou pela consan-guinidade, os termos que lhes so endereados correspondem aos relacio-namentos entre os seus kena kuin(nomes reais)22. Em resposta saudaoformal Voc est chegando?, cada visitante responde En huaii (Estouchegando). Em seguida, o anfitrio pergunta: Min piai hava? (Quevais comer?) A pergunta retrica. Todos sabem que a dona da casa vaiservir comida, mas no sabem o tipo ou a qualidade dela.

    As mulheres se sentam e esperam educadamente enquanto a anfi-tri preenche seu prato com mandioca cozida ou banana verde, talvez

    cozidos em molho de amendoim ou com nawanti, uma folha verdeencontrada na floresta, semelhante ao espinafre. Com uma certa forma-lidade, ela deposita o seu prato em frente aos visitantes. Eles, no entanto,continuam a esperar. O momento crtico chega. O que vem com o pratode vegetais? Felizmente, a dona de casa tem mabex, uma bebida feitade acordo com vrias receitas, de preferncia com o milho doce, peloqual os Huni Kuin so famosos. A bebida simboliza piti kuin(comidade verdade), a refeio adequada huni kuin, que o produto da coo-perao homem-mulher no ciclo econmico. Antes de beber mabex, asmulheres aguardam um prato de carne ou peixe ser servido para comer

    junto (nai-) com a mandioca ou banana. Muitas vezes, a anfitri pededesculpas ela no tem nada, s a mandioca, e traz um pouco de sal,talvez manteiga de amendoim ou amendoim torrado em suas conchaspara que as mulheres possam comer -nai. Em seguida, elas comem com

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    gosto, parando apenas para pedir notcias sobre os moradores e contaras suas prprias. O mabex servido em uma tigela funda; uma conchade alumnio fornecida, de modo que cada visitante, um de cada vez,possa recolher a sua parte da bebida.

    Se a dona de casa tem um pouco de carne ou peixe escondido nacozinha, ela pode servir generosamente ou pode simplesmente pedir

    desculpas, fingindo estar desprovida deste suprimento. No entanto, seh uma abundncia de caa ou de peixe em casa, improvvel que ela osretenha. visita especial de boas-vindas tambm ser dado uma porode carne ou peixe para levar como um presente. A distribuio entre osvisitantes nunca igual, seja de pratos cozinhados servidos para consumoimediato, ou de alimentos cozidos ou crus dados para uso posterior. Asnormas de hospitalidade exigem que pelo menos um prato esteja dispo-nvel para as mulheres poderem compartilh-lo. Quando a anfitri querreforar uma relao especfica, ela seleciona um determinado pedao,com mais carne e gordura sobre ele, e o entrega com suas prprias mos

    diretamente convidada escolhida. Este ato fortalece os laos entre asduas mulheres. Nestes casos, no h necessidade que a visitante com-partilhe com as suas companheiras. Se uma mulher acompanhadapor crianas pequenas, ela os alimenta separadamente com mandiocaou banana e um pedao de peixe ou um pedao de carne retirado dospratos comuns, ou, se for selecionada desta forma, a partir de sua parteparticular. Apenas as crianas mais velhas servem-se do prato comum,sob o olhar atento das mulheres adultas, que rapidamente sabem criticaras pores inapropriadamente grandes.

    Esta refeio servida aos visitantes similar, em alguns sentidos, s

    refeies dirias em casa. H sempre uma certa formalidade no ato deservir alimentos. Quando, por exemplo, os legumes so retirados daspanelas e, em seguida, organizados nas travessas, os movimentos adota-dos so extremamente estilizados, elegantes, poder-se-ia dizer, e algumas

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    mulheres se esmeram nesta arte. Algumas so conhecidas por serem boascozinheiras, preparando cada prato perfeio, nem cozidos demais, nemmuito crus, nem muito grossos e nem muito aguados. Estas cozinheirasfamosas so trabalhadoras caprichosas, nunca permitindo que faltem emsuas despensas os ingredientes bsicos da cozinha huni kuin, o que quasesempre as torna capazes de oferecer uma refeio completa de piti kuin

    (comida de verdade). Isto vital caso ela queira arrebatar o prmio ainbukuin(mulher de verdade). Se seus maridos e genros so igualmente ex-mios trabalhadores, caadores hbeis e, portanto, produtores, estas so,pois, as melhores mulheres para se visitar, pois elas esto mais propensasa serem capazes de servir bem e dar presentes generosos. Na verdade, acapacidade de tratar os hspedes generosamente em uma refeio com-pleta implica um reforo no seu status como uma ainbu kuin.

    Eu me debruo nestes detalhes, porque, do ponto de vista huni kuin,eles so importantes. Talvez, primeira vista, o ato de preparar e servircomida evoca conceitos como partilha simples, a reciprocidade gene-

    ralizada ou leva o observador a considera-los atos domsticos munda-nos sem importncia sociolgica. Entretanto, para os Huni Kuin, o atode preparar e servir alimentos (ou se recusar a faz-lo) parte de umalinguagem sofisticada sobre socialidade, e, como prxis, central a suaconstituio. A linguagem de acolhimento, como as palavras homilticasde um modo geral, opera materialmente, no corpo-mente, efetuandomudanas corporais nas pessoas envolvidas (McCallum, 1990, 1996a,1996b). A comida, uma vez ingerida, modifica e fortalece o corpo quese torna investido com uma relacionalidade renovada e aguada. Umaspecto fundamental dessa condio fsica a memria direcionada:

    aqueles que consomem sempre iro se lembrar de como foram feitoscomer (pima-), nutridos pelos alimentos especficos oferecidos por umadeterminada anfitri. Ao voltar para casa, eles sero capazes de dizer comdetalhes o que eles comeram, em que casa, e por quem foram servidos.

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    Alm disso, nestas trocas cada participante sabe que uma srie de inte-raes produtivas vinculadas com outras pessoas e com outras entidadesdo mundo circundante fez com que tal generosidade se tornasse possvel.

    Quando as visitantes esto satisfeitas, levantam-se. A anfitri d acada uma das mulheres alguma coisa para que levem consigo, geralmentecomida no cozida, como bananas ou mandioca. Assim, ela no s as

    alimenta, tornando-as mais parentes, menos estrangeiras, mas tambmfornece o material para que elas faam comer (pima-) outros parentesseus. Embora a conveno postule que, normalmente, h que se absterde fazer exigncias ultrajantes, as mulheres partem s visitas para trans-form-las explicitamente em um ato predatrio. As visitantes podemsolicitar objetos especficos ou alimentos: Ea inanve! (D-me!). Asanfitris normalmente no se atrevem a recusar, pois seria o cmulo dafalta de educao, ou pior, uma afirmao de hostilidade aberta.

    Essas demandas invertem o sentido mais usual de tais prestaes for-adas, que ocorrem quando as pessoas pedem s visitantes de primeira

    viagem ou parentes de longa ausncia, no momento da sua chegada, porum determinado objeto, como um colar, um relgio de pulso ou umpar de sapatos. s vezes, esses presentes so simplesmente apropriadosquando da confuso de vozes levantadas em saudao aos visitantes, ouda aglomerao de corpos, ou (no caso da longa ausncia dos parentes)dos abraos seguidos de lgrimas.

    As visitas comuns obedecem a uma dinmica muito mais contida. Nofinal do dia, os cestos das visitantes j so preenchidos com presentes.

    Algumas formas da refeio cerimonial acima descrita foram repetidasem at seis ou sete casas que visitei. Em algumas, elas podem ser acompa-

    nhadas por uma xcara de caf no estilo regional, ou um prato de farinhade mandioca seca. Se for sabido que a despensa est vazia, tais ofertas soaceitas de bom grado. Normalmente, as visitantes so bem informadassobre quem tem que tipo de caa ou peixe, e assim podem programar

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    suas visitas estrategicamente. Quando a anfitri tida como mesquinha,as visitantes insatisfeitas comentam em voz baixa quando saem: Cha-nichakayamaki. Haven yauxixuki namidan, nuku pimamakidan! (Elamentiu muito. Ela sovinou, escondendo a carne que no nos foi dadaa comer!). Dessa forma, elas sabem que a anfitri no as considera toperto, nem deseja torn-las assim.

    No entanto, todas reconhecem que toda mulher capaz de esconder co-midas da mesma maneira ao receber uma visita surpresa. Nenhuma mulher perfeita, generosa uma mulher real o tempo todo. Assim, h trocasque ameaam negar certas conexes, e tambm h atos que as reconsti-tuem. Ambos so fundamentais para os modos huni kuin de criar relacio-nalidade. Fazer as outras comerem pode ser considerado uma forma demodulao do fluxo de analogia (como Roy Wagner diria), isto porque astigelas e pratos colocados diante das visitantes falam de um certo grau deconexo que possvel ou intencionado23. Eles contm declaraes sobreas capacidades da anfitri e os seus desejos no que diz respeito ao relaciona-

    mento com os convidados. Eles tambm falam de suas relaes passadas efuturas para com os espaos de produo, quais sejam, os roados, a florestae os rios ou crregos. Falam, tambm, sobre suas relaes conjugais como homem que corresponsvel junto com a anfitri de cuidar e moldaros processos de criao de parentes, seja como ibude filhos prprios, sejacomoxanen ibu, homem liderana e assim exguo produtor. Mesmo serviros tipos mais pobres de alimento contribui para a criao ou manutenode uma relao e aponta para as relaes basais que permitiram tal ato. Doponto de vista do ciclo de produo, apropriao, compartilhamento econsumo, o ciclo momentaneamente completo. Ainda que as mulheres

    partam para os prximos eventos, os fluxos de conexo j esto habilitados,ativados, por assim dizer, de forma incorporada. Os corpos compostos soos corpos cumulativos dos participantes a conter as capacidades e motiva-es necessrias para a sua (re)criao futura24.

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    Concluso

    O trabalho explorou as prticas kaxinau que os constituem como PessoasReais (Huni Kuin) enquanto geram socialidade. Mostrou-se que tal au-topoiese coletiva ocorre em configuraes especficas de tempo e espao,e que o processo remete a uma teoria material da pessoa que informa as

    prticas e discursos mundanos, tais como aqueles que acontecem quandoum homem sai para caar, ou um grupo de mulheres sai em visita. A pr-tica material cria as pessoas, tanto as humanas, quanto as no-humanas,e ao mesmo tempo criam-se os contextos que habitam dentro e entreos diferentes nveis do cosmos. Os processos envolvidos forjam relaesibu, isto , as relaes metonmicas e assimtricas de apropriao, posse,controle e cuidado as quais no possuem inflexes de gnero. Homens emulheres podem igualmente ser donos,parents(do ingls) e cuidadores.O seu trabalho fsico ou atividades de predao geram objetos ou pessoasque so suas extenses, ou seja, tem ligaes com seus ibu. As ligaes

    entre o produto e o produtor tambm se estendem, em forma atenuada etemporria, para os lugares onde eles so produzidos, espaos que s vezesso traduzidos para os conceitos de territrio ou terra. Assim, os HuniKuin constituem historicamente a relacionalidade em um processo basea-do em seu prprio estilo de fenomenologia, que informa as relaes so-ciocosmolgicas ao longo do espectro que varia de predao procriao.

    Em vez de derivar a relacionalidade e a energia criativa humana, emprimeira instncia, de uma ontologia baseada em uma lgica recursivadualista, neste artigo descrevi como uma forma indgena de fenomenologia subjacente s relaes de posse e controle. Por trs deste argumento est o

    reconhecimento da centralidade da pessoa para a constituio da relaciona-lidade, que tem ampla aceitao nos debates da antropologia social sobre ospovos da Amaznia (Seeger et al., 1987). No entanto, o presente trabalhoprocura colocar uma nfase distinta na noo huni kuin de humanidade

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    como intrinsecamente ligada pessoalidade cumulativa (McCallum,2013). No referido artigo, mostro que a capacidade, o conhecimento e ovalor moral so tratados fenomenologicamente como emergindo e afetandoas propriedades que so materialmente incorporadas na pessoa ao longo dotempo e extrapoladas no pensamento intencional e na ao prtica. Estasemoes e aes so ao mesmo tempo epistemolgicas e corporais. E, em

    sendo eventos corporais, eles ligam a pessoa ao tempo e ao espao da suaprpria constituio. No presente artigo, eu sugeri que esse potencial hu-mano propositalmente forma os fluxos de trnsito pela floresta por meioda ao corporal intencional e destes fluxos emerge o mundo como criaohumana casas, vila, jardins, trilhas de caa, dentre outros espaos. Esteespao pode ser temporariamente possudo, na medida em que a aohumana continua incessantemente a constitu-la. Uma vez que a atividadepara por exemplo, atravs da morte da ibu(a cuidadora ou dona) umprocesso inverso comea, segundo o qual a posse recai novamente no mun-do invisvel dosyuxineyuxibu. Oyuxinda falecida talvez passe um tempo

    nesses espaos antes que a memria seja alienada e os vestgios do passadocriativo do indivduo retrocedam. Quando a floresta comea a ser erguerde novo no lugar que era o seu roado, seuyuxinj se desconectou.

    Portanto, territrio huni kuin, a partir deste ponto de vista, no algo fixo e imutvel, mas algo depende da sempre crescente e transforma-dora copresena da vida produtiva huni kuin. Mesmo que eles obtenhamo domnio, por assim dizer, de espaos especficos e recursos produtivos,por meio do engajamento nas relaes com os outros seres humanos eoutros tipos de corpos e de pessoas, este domnio s pode ser tempo-rrio, na medida em que ele no prescinde da presena e dos esforos

    fsicos. Por esta razo, pode-se dizer, no longo prazo, que os verdadeirosdonos da floresta, do cu e do rio so os seres invisveis desencarnadosque o conceito de Diusunevoca. Como Agostinho disse, na epgrafe desteensaio, a terra est viva por causa doyuxibuque nele vive.

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    Notas

    1 Baseado na comunicao apresentada noCongresso da Associao Portuguesa deAntropologia () realizado em Vila Real, Portugal, entre 9 e 13 setembro, 2013,no painel P47: Transformaes do espao amerndio nas antigas misses na Amricado Sul. Coordenao de Susana Viegas (Universidade de Lisboa) e Jos GlebsonVieira (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte). O trabalho tambmfoi apresentado na University of Kent, Canterbury, no Anthropology Seminar, em3 outubro de 2013. Agradeo Capes, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoalde Nvel Superior, Brasil, que financiou a visita a Portugal e Inglaterra. O artigo foitraduzido da sua verso original em ingls por Hildon Carade.

    2 Professora Adjunta, Departamento de Antropologia, . Honorary Fellow,University of Manchester.

    3 Citado em Lagrou (2007: 360; 1998).4 Aquino (1977), Bakx (1986), Aquino e Iglesias (1994, 1999).5 Cresce a documentao sobre esse processo lingustico e intelectual entre lideranas

    e indgenas cosmopolitas. Ver a obra-mestre de Kopenawa e Albert (2010) paraum mergulho no pensamento de Kopenawa, cujas razes so fincadas na tradio

    intelectual yanomami, e uma explorao prolongada nas notas de comentriossobre as nuances de significado do seu portugus.

    6 Este comentrio muito mais sugestivo e programtico que conclusivo. A utilidadepotencial da noo de poli-ontologia para a teoria antropolgica foi levantada emScott (2007, 2011), quem tambm lana mo da expresso ontopraxis, conceitomais apropriado no contexto dos argumentos desenvolvidos aqui. Agradeo a OlgaUlturgasheva por esta observao. Para uma discusso sobre o uso deste conceitono mbito da etnografia huni kuin, ver McCallum (2014).

    7 What goes without saying ver Bloch (1992).8 Uma palavra de cautela: o enfoque nos processos cotidianos que constituem o

    territrio como algo contingente no elimina a necessidade de se considerar modosparalelos de relacionamento com a terra, tais como aqueles sugeridos pelo uso deum discurso profundamente enraizado no regime ontolgico hegemnico, no con-texto das relaes intertnicas, uma vez que as questes referentes posse da terrano Brasil so determinadas nos termos do referido discurso. No perodo em queescrevo o artigo, entre 2013 e 2015, o governo brasileiro est empenhado em minaros direitos indgenas terra, muito embora estes direitos tenham sido consagrados

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    pela Constituio de 1988. Ademais, em nome do progresso e do desenvolvimento,apoios tm sido dados queles que procuram abolir instituies e garantias que, ori-ginalmente, deveriam proteger os povos indgenas. H uma extensa literatura sobreestes processos coloniais no Brasil. Ver Albert (2005) para uma reviso histrica.Para o caso huni kuin (kaxinau), ver, por exemplo, as obras citadas em N4.

    9 Viveiros de Castro (2001, 2002, 2009); Vilaa (2011); Kelly Luciani (2001). VerMcCallum (2013) para esta discusso. Fora do contexto amaznico, para uma

    discusso comparativa e reflexo terica, ver Sahlins (2011, 2012); Pina-Cabral(2012, s.d).

    10 Ver Costa e Fausto (2010) sobre a virada ontolgica nos estudos amerndios. Vivei-ros de Castro, tido como figura chave nesse movimento, d destaque aos processossciocosmolgicos na configurao de socialidades para essas populaes. Em muitostrabalhos, desenvolveu um modelo estruturalista para tratar do tema do que veio aser chamado, posteriormente, como relacionalidade. Mais recentemente, ao tratarespecificamente do parentesco vivido em vez de privilegiar os aspectos conceituais,ele escreveu: Amazonian consanguinity is experienced as constructed... more or lessalong the lines of the current understanding of kinship: in the phenomenal senseof being the outcome of meaningful inter-subjective practices (A consanguinidadeamaznica experienciada como construda... mais ou menos nos moldes do enten-dimento atual sobre parentesco: no sentido fenomenal de ser o resultado de prticasintersubjetivas significativas) (2009: 259). Mas, enquanto as relaes de consangui-nidade precisam ser fabricadas, argumenta ele, os povos amaznicos entendem queas relaes de afinidade expressam a presena a priorie potencial da alteridade. Assim,reitera um argumento anterior apresentado em Viveiros de Castro (2001, 2002).

    11 Tal como Overing e Passes (2000). Para uma discusso critica em torno do debatesobre as chamadas abordagens substantivistas nos estudos de socialidade na Ama-znia, ver McCallum (2013, s.d.).

    12 importante deixar claro que a expresso fenomenologia indgena, na medida emque conecta e compara as abordagens indgenas com a fenomenologia enquantoparte da filosofia europeia , destina-se a aludir s particularidades da prtica e do

    pensamento amaznico.13 Arrisco at a dizer que esta forma de tratar as coisas evocativa da sntese kantiana

    entre epistemologias empricas e racionais. Dizendo isso, estou ciente das crticasde Scott (2011) quanto ao perigo de se confundir o no-dualismo filosfico euro-americano com o no-dualismo indgena.

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    14 Ver Lagrou (2007).15 Evidentemente, iburemete categoria de dono-mestre discutido por Fausto (2008),

    referido por Viegas e outros (nesta coletnea) e discutido na apresentao do dossi.No entanto, a discusso peca por no contemplar a dimenso de gnero j amplamentedocumentada na literatura, no s sobre os termos que so traduzveis como dono e/ou me/pai entre os Huni Kuin, mas tambm no caso de outros povos mencionadospor Fausto, como otoem kalapalo (Basso, 1973). Esse vis de gnero e a nfase dada

    posse e ao controle ou maestria como paradigmaticamente masculina em Faustodesvia a ateno analtica da importncia das relaes conjugais na constituio dasocialidade e, consequentemente, nos processos histricos de criar territorialidades.

    16 Ver Lagrou (2007: 213-215).17 Kensinger (e mais tarde Deshayes, 1986) estudou a caa huni kuin e as relaes

    entre caadores, a floresta e os seus seres na regio de Curanja nas dcadas de 1960e 1970. As caractersticas geolgicas e ambientais dos territrios de caa so, semdvida, distintas em alguns aspectos significativos daquelas da rea Purus, nafronteira do territrio brasileiro, uma questo que exige maiores esclarecimentos.Entretanto, no h grandes discrepncias entre as informaes por mim coletadase as que estes autores levantaram, tampouco a caa o meu foco nesta pesquisa.

    18 Nossa traduo. No original, Successful hunting requires considerable knowledgeof the behavioral characteristics of the animals hunted based on observation. is[...] is skin knowledge bichi una, as is all knowledge of the natural world. WhenI questioned why it was not eye knowledge [...] they told me that it was knowledgeabout the jungles body spirit,yudabake yushin.

    19 No apenas os donos espirituais invisveis,yuxibu, mas tambm, de um ponto devista perspectivista, dos pais (ibu) das criaturas mortas. Muito tem sido escrito sobrea predao e no a minha inteno explorar essa literatura em profundidade aqui.

    20 A etnografia apresentada nessa seo foi publicada em verso anterior, como partede outro artigo (McCallum, 1998).

    21 Uma discusso anterior sobre a etnografia da visita das mulheres, o tpico destaseo, foi apresentada em McCallum (1998).

    22 Os Huni Kuin, assim como os Yaminau, usam um sistema de nomeao que lhespermite identificar a sua relao especifica de parentesco com qualquer pessoa quetenha um nome real. Relativo a nomeaes e relacionamentos, ver McCallum (2001).

    23 Sobre o parentesco como um fluxo de analogia, ver Wagner (1977).24 Sobre cumulative personhood e o corpo cumulativo, ver McCallum (2013 e s.d.).

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    Space, Personhood and Movement in Amerindian Sociality:

    on Huni Kuin Modes of Sociality

    ABSTRACT: e article explores Huni Kuin practices that simultaneouslyconstitute sociality, persons and their relationship with the environment.

    When creating themselves in a material and social sense in inter-subjectiveprocesses occurring in specific space-time configurations, they forge contin-

    gent connections of ownership between people and places, and create theconditions to open temporary clearings of human space in a world guardedand cared for by non-human entities. e article begins by recalling thecommitment of Huni Kuin leaders to defending their ownership rights andinsisting on the demarcation of indigenous lands, as specified by Brazilianlaw, for which they use a non-indigenous discursive language. e mainfocus of this essay, however, is on indigenous practices of everyday life. Itexplores the notion that, in an important sense, for this Amazonian people,territory is not fixed, but depends on the constant transformation of theco-presence of Huni Kuin who are involved in relationships with each otherand with other entities and persons from the surrounding world.

    KEYWORDS: Space, Sociality, Territory, Amazonian Socio-cosmology,Cashinahua.

    Recebido em outubro de 2014. Aceito em maro de 2015.