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METODOLOGIA E EPISTEMOLOGIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: UM PANORAMA DOS CLÁSSICOS

AO PÓS-COLONIAL

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Salvador2015

BRUNO ANDRADE DE S. NETO ▪ DANIELA FÉLIX C. MARTINS ▪ FÁBIO BALDAIA ▪ FERNANDO LARREA MALDONADO ▪

FLORENCIA CAMPANA ALTUNA ▪ ISRAEL ROCHA ▪ JOSÉ RAIMUNDO DE J. SANTOS ▪ LÍCIA MARIA SOUZA DOS SANTOS ▪

MARIA MEDRADO NASCIMENTO ▪ MARINA DA CRUZ SILVA ▪ PRISCILLA ANDREATA ▪ RAFAEL ARANTES

CLÓVIS ROBERTO ZIMMERMANN (ORG.)Possui graduação em Sociologia pela Universidade de Heidelberg na Alemanha, graduação em Teologia – Universidade de Heidelberg (Ruprecht-Karls) (1996) e doutorado em Sociologia – Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls) (2004).

Atualmente é professor adjunto de Sociologia da Universidade Federal da Bahia, onde coordena o Programa de Pòs-Graduação em Ciências Sociais (Mestrado e Doutorado).

JAIME BARREIROS NETO (ORG.)Doutorando em Ciências Sociais (UFBA), Mestre em Direito (UFBA), professor da

Universidade Federal da Bahia, Faculdade Baiana de Direito e Universidade Católica do Salvador. Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia.

METODOLOGIA E EPISTEMOLOGIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: UM PANORAMA DOS CLÁSSICOS

AO PÓS-COLONIAL

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Editoração eletrônica:Carol Barreto, Carla Piaggio | [email protected]

Capa:Amanda da Silva Gonçalves

Todos os direitos desta edição reservados à Faculdade Baiana de Direito.Copyright: Faculdade Baiana de Direito.É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e da Faculdade Baiana de Direito. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

Conselho Editorial:Fredie Didier Júnior, Gamil Föppel El Hireche, Valton Pessoa, Dirley da Cunha Júnior,

Rua Visconde de Itaborahy 989, Amaralina, Salvador – Bahia(71) 3205-7700 / Fax: (71) 3240-3552contato@faculdadebaianadedireito.com.brwww.faculdadebaianadedireito.com.br

Cristiano Chaves de Farias, Nestor Távora, Rodolfo Pamplona Filho, Maria Auxiliadora Minahim.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 9

CAPÍTULO 1ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A DIALÉTICA EM HEGEL E MARX: PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS E SUA INFLUÊNCIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS .........................................................................................................................13Rafael Arantes1. Introdução ................................................................................................................. 132. A dialética idealista de Hegel .................................................................................... 143. A dialética materialista de Karl Marx ....................................................................... 234. Considerações fi nais .................................................................................................. 325. Referências ................................................................................................................ 32

CAPÍTULO 2AS PROPOSTAS METODOLÓGICAS DE DURKEIM E WEBER: CONTRIBUIÇÕES PARA ANÁLISE DA REALIDADE SOCIAL ...............................35Marina da Cruz Silva1. Introdução..................................................................................................................352. Durkheim: concepção de ciência e propostas metodológicas ................................... 373. Weber: concepção de ciência e propostas metodológicas ......................................... 424. Considerações acerca das aproximações e distanciamentos metodológicos entre

Durkheim e Weber..................................................................................................... 485. Referências ................................................................................................................ 50

CAPÍTULO 3TABELAS POSSÍVEIS: ÉMILE DURKHEIM, A SOCIOLOGIADO ESPORTE E O FUTEBOL ................................................... 53Priscilla Andreata1. Introdução ................................................................................................................. 532. Émile Durkheim: algumas notas sobre sua vida e obra ............................................ 543. Durkheim, a sociologia do esporte e o futebol ......................................................... 604. Considerações fi nais .................................................................................................. 665. Referências bibliográfi cas ......................................................................................... 66

CAPÍTULO 4HABERMAS E OS DESAFIOS METODOLÓGICOS DA TEORIA CRÍTICA FRANKFURTIANA .......................................................... 69Bruno Andrade de S. Neto

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CAPÍTULO 5BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PENSAMENTO DE THOMAS KUHN ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS ................. 83Jaime Barreiros Neto1. Introdução ................................................................................................................. 832. A “ciência normal” e a lógica acumulativa do conhecimento: a formação de

paradigmas ................................................................................................................ 843. Crises, transição de paradigmas e as revoluções científi cas ..................................... 854. A questão da possibilidade de aplicação da concepção kuhniana às ciências

sociais ....................................................................................................................... 875. Referências ............................................................................................................... 89

CAPÍTULO 6O AGIR PRÁTICO: A EXPERIÊNCIA, O INTERESSE E O HABITUS COMO CAMINHO PARA O ENTENDIMENTO .................................................. 91José Raimundo de J. Santos1. Introdução ................................................................................................................. 912. A experiência como forma de saber .......................................................................... 923. A experiência como conhecimento para além da prática .......................................... 954. O interesse como forma de orientação do conhecimento ...................................... 1005. O habitus como manifestação do agir prático ......................................................... 1036. Referências ............................................................................................................. 105

CAPÍTULO 7O HABITUS EM BOURDIEU ................................................................................. 107Lícia Maria Souza dos Santos1. Estrutura e Ação ...................................................................................................... 1072. O habitus um conceito de mediação ....................................................................... 1113. Considerações Finais .............................................................................................. 1134. Referências bibliográfi cas ...................................................................................... 114

CAPÍTULO 8O QUE DIZER SOBRE EPISTEMOLOGIA COM BOURDIEU E LATOUR .. 117Israel Rocha1. Introdução ............................................................................................................... 1172. A diversidade epistemológica nas Ciências Sociais ................................................ 1173. Aspectos da epistemologia em Pierre Bourdieu e Bruno Latour ............................ 1204. Pierre Bourdieu ...................................................................................................... 1205. Bruno Latour ........................................................................................................... 1246. Conclusão ................................................................................................................ 1277.Referências .............................................................................................................. 127

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 9CLASSES SOCIAIS NO PAPEL, CLASSES MOBILIZADAS E LUTAS PELA CLASSIFICAÇÃO EM PIERRE BOURDIEU: UMA DISCUSSÃO EM DIÁLOGO COMO O FAZER-SE DA CLASSE DE E. P. THOMPSON ..... 129Fernando Larrea Maldonado1. Introdução ............................................................................................................... 1292. Espaço social e a construção de classes: as classes no papel .................................. 1303. As classes mobilizadas e as lutas de classifi cação: o fazer-se da classe ................. 1344. Comentário Final: os claros-escuros na perspectiva das classes de Bourdieu ....... 1395. Referências Bibliográfi cas ..................................................................................... 141

CAPÍTULO 10PARA ALÉM DA ANTINOMIAS CLÁSSICAS: AS TRILHAS PARA A TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA ...................... 143Daniela Félix C. Martins1. Introdução ............................................................................................................... 1432. Problemáticas construtivistas .................................................................................. 1473. Questionando o cotidiano: das estruturas sociais às interações .............................. 1494. O giro fenomenológico: das interações às estruturas ............................................. 1535. Considerações fi nais ............................................................................................... 1586. Referências ............................................................................................................. 159

CAPÍTULO 11DOS CLÁSSICOS AOS CONTEMPORÂNEOS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA ............................. 161Maria Medrado Nascimento1. Introdução ............................................................................................................... 1612. A fi losofi a clássica de Kant e Hegel: a crítica da razão pura e a dialética do co-

nhecimento .............................................................................................................. 1623. A teoria sociológica clássica: objetividade e subjetividade na construção do objeto ..1654. Positivismo e a crítica ao positivismo: reconstruindo o objeto .............................. 1705. Sociologia contemporânea e a desconstrução do objeto ........................................ 1726. Sobre uma outra perspectiva: o decolonialismo e as possibilidades de um giro

epistêmico ............................................................................................................... 1757. Considerações fi nais ................................................................................................ 1778. Referências bibliográfi cas ....................................................................................... 178

CAPÍTULO 12OBSERVAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E O CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS ............................................................... 181Fábio Baldaia

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1. Introdução ............................................................................................................... 1812. Sobre o conceito de campo científi co e as ciências sociais .................................... 1823. A redefi nição das regras do jogo: a crítica pós-colonial ......................................... 1854. Considerações fi nais ............................................................................................... 1915. Referências ............................................................................................................. 193

CAPÍTULO 13DESDE OS ESTUDOS CULTURAIS À DECOLONIALIDADE: UM PERCURSO AINDA NÃO ACABADO? ....................................................... 195Florencia Campana Altuna1. O grupo de Birmingham e os estudos culturais ...................................................... 1962. Desde os estudos culturais aos estudos subalternos ................................................ 1993. A emergência e os eixos do pensamento decolonial ............................................... 2054. Referências bibliográfi cas ....................................................................................... 210

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INTRODUÇÃO

O presente livro é fruto de uma refl exão coletiva dos estudantes de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia – UFBA e tem por objetivo realizar um debate sobre questões epistemoló-gicas e metodológicas das ciências sociais. Trata-se de uma refl exão de tendên-cias importantes das ciências sociais, sem ter a pretensão de esgotar o escopo de autores e de temas. Ao fi nal, esse livro aponta para tendências recentes no deba-te, destacando sobretudo refl exões que estão sendo feitas na América Latina. Nesse continente, assim como também na África e na Ásia, há uma gama de autores posicionando-se criticamente em relação ao que foi produzido cientifi ca-mente nos países do Norte, especialmente devido à importância subjacente do contexto na produção intelectual desses autores. Isso obviamente não implica em refutar os autores do Norte, mas apropriar-se de suas refl exões teórico metodoló-gicas de forma crítica, tendo sempre como pano de fundo um contexto marcado por diferenças tanto sociais como culturais.

O capítulo inicial de Rafael Arantes aborda a temática da dialética, traba-lhando perspectivas clássicas, o idealismo hegeliano e o materialismo marxiano. O autor não objetiva discutir a infl uência do pensamento de Hegel em Marx, mas identifi car as principais características e dimensões da dialética, que posterior-mente tiveram grande infl uência sobre as ciências sociais. Partindo de autores distintos, Marina da Cruz Silva aborda as principais contribuições metodológi-cas de Durkheim e Weber para a análise da realidade social, visando estabelecer os parâmetros de análise a partir das peculiaridades, pontos de convergência e divergência das propostas de cada autor na referida área. Assim sendo, verifi ca a concepção de ciência em Durkheim e Weber, objetivando analisar as principais contribuições desses sociólogos para a metodologia no campo das ciências so-ciais, assim como o “legado” metodológico de ambos os autores para a teoria do conhecimento. Já o artigo de Priscilla Andreata realiza uma exposição de alguns dos conceitos e do método de conhecimento de Durkheim, visando mapear sua infl uência na produção acadêmica contemporânea de autores que tem o esporte/futebol como objeto de pesquisa.

Por sua vez, Bruno Andrade Neto aborda o tema da ciência e da razão instru-mental em Habermas. O interessante nesse autor é sua perspectiva critica aos pro-cessos técnicos e produtivos, que escondem em si mesmo a dominação. A ciência e a técnica se valem dos mesmos princípios racionais da manipulação e da domi-nação, que tem a sua determinação primordial em interesses de classe de uma determinada conjuntura histórica. Jaime Barreiros Neto busca realizar uma breve

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CLÓVIS ROBERTO ZIMMERMANN E JAIME BARREIROS NETO (ORG.)

incursão no pensamento de Thomas Kuhn, de forma a traçar as linhas gerais da sua teoria acerca da estrutura das revoluções da ciência, para ao fi m serem feitas algu-mas considerações sobre a possibilidade de aplicação das suas ideias às ciências sociais, em vista da tendência proeminente de vinculação das referidas concepções às ciências da natureza, reveladas principalmente em decorrência da própria for-mação do referido pensador, um doutor em física pela Universidade de Havard.

No artigo seguinte, José Raimundo de J. Santos procura estabelecer as inter-conexões entre o que é experimentado e constituinte do habitus de Pierre Bour-dieu enquanto um agir prático regido por interesses associados à estrutura em que se encontra o indivíduo, como também ao processo de autoconservação pre-sente na tomada de posição e nas escolhas processadas, como constituinte da consciência acerca daquilo que se busca e se experimenta. Em tema similar, Lí-cia Maria Souza dos Santos aborda o tema do Habitus em Bourdieu, destacando como esse autor concebe a relação estrutura e ação, sujeito e objeto através de sua construção teórico metodológica. A autora enfatiza o conceito de habitus, como um modus operandi que contribui para uma leitura da realidade social. Por sua vez, Israel Rocha amplia o foco de seu estudo, comparando Bourdieu com Bruno Latour, explorarando algumas dimensões epistemológicas dos trabalhos dos autores, considerando como os elementos conceituais por eles construídos apontam para formas distintas de construir e conceber o mundo social e seus desdobramentos. No primeiro momento o autor procura situar o debate que en-volve as dicotomias já tradicionais nas ciências sociais e em seguida apresentar conceitos e aspectos chaves das teoria-ator-rede e a sociologia da práxis.

O artigo de Fernando Larrea Maldonado indaga em torno de algumas das aristas que a perspectiva de Bourdieu trabalha sobre as classes sociais em seu arcabouço teórico envolvendo os seus conceitos centrais sintetizados nas noções de espaço social, campo, habitus e tipos de capital. O autor desenvolve a discus-são sobre as perspectivas, potencialidades e limites de Bourdieu, colocando-a em diálogo com a visão sustentada por E. P. Thompson em seus estudos históricos e suas refl exões teóricas sobre as classes sociais, sendo que esse autor compartilha com Bourdieu uma abordagem construtivista crítica, mas que se mantêm dentro de uma perspectiva marxista.

O artigo de Daniela Félix C. Martins realiza uma exploração acerca dos aspec-tos fundamentais que possibilitaram a emergência de uma teoria sociológica con-temporânea, surgidos a partir do reconhecimento da existência de antinomias na teoria sociológica clássica e o empreendimento pouco consensual, para a supera-ção destas antinomias. Todavia este movimento antes de esfacelar as ciências so-ciais possibilitou novas imaginações sociológicas e a descoberta de novas ques-tões. O artigo conclui que o construtivismo interacional abriu toda uma possibilidade

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INTRODUÇÃO

de recuperarmos a integração dos níveis, a partir do reconhecimento da intensa atividade dos atores, cuja busca passa a ser pelas cadeias de associação entre micro e macroprocessos.

Maria Medrado Nascimento desenvolve algumas considerações sobre a rela-ção entre diferentes perspectivas teóricas e a construção do objeto de pesquisa, partindo das contribuições da fi losofi a de Kant e Hegel, passando pela sociologia clássica de Marx, Weber e Durkheim, pelo positivismo e a crítica ao positivismo discutido por Popper e Adorno, chegando à sociologia contemporânea europeia desenvolvida por Foucault, Habermas e Bourdieu e à sociologia pós-colonial e decolonial defendida por autores como Mignolo, Castro-Gomes e Maldonado--Torres. Por meio das refl exões propostas, a autora visa contribuir para o fortale-cimento da sociologia crítica e refl exiva, consciente das condições, possibilida-des e limitações teóricas e metodológicas que permeiam a fase de construção dos objetos a serem investigados.

Fábio Baldaia procura tematizar o forte infl uxo das teorias pós-coloniais so-bre as ciências sociais. Essa perspectiva buscou descentrar as narrativas ampara-das num olhar eurocêntrico sobre o mundo, atingindo com força um campo ins-tituído, desestabilizando posições e conferindo novos contornos aos objetos em disputa, o que abriu outras possibilidades no jogo. O acento ao caráter competi-tivo, em contrapartida, não visa desmerecer a contribuição pós-colonial, mas tão somente demonstrar que o engajamento dos pesquisadores justifi ca-se para além de uma distinção entre caracteres somente objetivos ou político-subjetivos.

Por último, Florencia Campana Altuna aborada o movimento teórico da América Latina exposto pelo grupo de intelectuais agrupados entorno ao Projeto Modernidade/Colonialidade. Sua proposta é de pensar a decolonialidade como ponto de chegada, depois de um longo trajeto, de refl exões que se iniciam em espaços acadêmicos norte-americanos onde se processa a perspectiva dos estu-dos culturais, para depois continuar no Grupo Latino-americano de Estudos Su-balternos, lugar de encontro de um conjunto de professores de origem principal-mente latino-americana inseridos nas universidades norte-americanas. A refl exão confl ui com perspectivas mais abarcantes como a teoria do sistema mundo e com elaborações de pensadores comprometidos com uma ética e uma política de transformação social que tinham muitos anos de trabalho nessa direção a partir da América Latina.

O conjunto de temas abordados visa propiciar um debate de distintas posições metodológicas e epistemológicas, não esgotando o amplo leque de debates nas ciências sociais. Isso implica em tematizar debates atuais existentes em torno das correntes chamadas de construtivistas na Europa, bem como das novas correntes

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CLÓVIS ROBERTO ZIMMERMANN E JAIME BARREIROS NETO (ORG.)

de debates em torno dos estudos críticos ao “eurocentrismo”, uma tendência re-cente nos estudos pós-coloniais de preponderância forte em autores ligados aos debates sobre os países do Sul.

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CAPÍTULO 1ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A DIALÉTICA EM HEGEL E MARX: PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

E SUA INFLUÊNCIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Rafael Arantes

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. A dialética idealista de Hegel — 3. A dialética materialista de Karl Marx — 4. Considerações Finais — 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo apresentar panoramicamente e de forma didá-tica as principais características, elementos e dimensões da dialética, nas suas principais interpretações, discutindo as suas infl uências teórico/metodológicas sobre as ciências sociais. Não se trata de uma discussão propriamente fi losófi ca, mas de uma análise sociológica sobre a dialética enquanto um “método” que se tornou clássico nas ciências sociais e que permanece vivo seja na sua utilização paradigmática ou nos questionamentos engendrados por outras análises que dia-logam com esta perspectiva nas suas considerações.

Este trabalho, portanto, se confi gura como um texto introdutório e discutirá de forma geral as perspectivas clássicas sobre a dialética, o idealismo hegeliano e o materialismo marxiano. O intuito não é discutir a infl uência do pensamento de Hegel em Marx, mas identifi car as principais características e dimensões da dialética que tiveram infl uência sobre as ciências sociais.

Segundo Konder (1984), em um texto introdutório sobre o tema, a dialética nasce na Grécia antiga entendida como a arte do diálogo, como um modo de desenvolver uma discussão pautada na argumentação clara de determinados conceitos. Em sua acepção moderna, no entanto, a dialética é compreendida como a fi losofi a que pensa a realidade como um permanente processo de trans-formação, eivado e fundamentado em contradições inerentes à realidade. É pos-sível dizer que, mais do que isso, seguindo e ampliando o que disse Lefebvre (2010) sobre o marxismo, a dialética pode ser compreendia como uma concep-ção de mundo, na medida em que inclui uma visão conjunta do homem, da na-tureza, do conhecimento e do ser, ou seja, uma compreensão sobre a natureza da realidade e a natureza do pensamento que compõem esta realidade. Ainda que

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RAFAEL ARANTES

possa ser interpretada de maneiras muito diferentes, conforme se verá ao longo deste trabalho, o que implica em diversas e profundas consequências, em algu-ma medida a dialética mantém determinadas dimensões teórico-metodológicas essenciais. Discutir essas dimensões e características de modo didático é, con-forme se viu, o principal objetivo desta refl exão.

2. A DIALÉTICA IDEALISTA DE HEGEL

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi o fi lósofo que de maneira mais profunda e concatenada resgatou, por assim dizer, a dialética do esqueci-mento imputado pela hegemonia da fi losofi a metafísica e do empirismo, colo-cando seus princípios no centro das suas refl exões sobre o mundo moderno, tem-po de revoluções (a francesa e a industrial) e de liberação das capacidades humanas propiciada pela razão (KONDER, 1984).

Segundo Sánchez Vásquez (1986), Hegel fez parte do que se convencionou chamar de fi losofi a idealista alemã, levando ao seu mais alto grau o idealismo. Em sua perspectiva, a fi losofi a idealista alemã é uma fi losofi a da atividade, en-tendida como uma atividade da consciência ou do espírito. O seu mais importan-te princípio é o de que a consciência humana é soberana, livre e autônoma. Em suma, se a consciência é o princípio motor do mundo, de onde surgem as mudan-ças e onde reside a realidade por excelência, é sobre ela que a fi losofi a deve se deter na sua compreensão do mundo.

Segundo Sánchez Vásquez (1986), Kant foi o fundador desse movimento teórico, quando funda sua teoria do conhecimento sobre o sujeito e não sobre o objeto. No entanto, seu esquema permite uma liberdade à consciência que não é plena, pois é limitada pelo reconhecimento de uma “coisa em si”, um objeto que escapa à consciência do sujeito. Ainda segundo o autor, Hegel reconhece o mé-rito de Kant ao perceber a fonte da atividade e da liberdade na consciência, mas o critica por ter introduzido uma dualidade na relação sujeito e objeto. Da mesma forma, Hegel considerou insufi cientes as teorias de outros fi lósofos idealistas, como Fitche (1762-1814) e Schelling (1775-1854), seja pelo subjetivismo do primeiro ou pela imprecisão do segundo em explicar o desenvolvimento do ab-soluto (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 1986). Nesse trajeto de críticas e reconstruções, Hegel desenvolve o que aquele denominou de “idealismo objetivo ou absoluto”, que mantém a atividade da consciência como motor central, concatena essa ati-vidade com o objeto, a realidade mundana, por assim dizer, e explicita os cami-nhos e condições de desenvolvimento do absoluto, da união entre sujeito e obje-to, da totalidade e universalidade.

Antes porém de perpassar os principais pontos da dialética idealista hegeliana, é importante considerar as condições de surgimento da fi losofi a idealista alemã.

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ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A DIALÉTICA EM HEGEL E MARX: PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS...

Sánchez Vásquez (1986), assim como Arantes (1974), observam que este tipo de fi losofi a surgiu na Alemanha porque, em contraposição à França, este país era pobre em termos de prática revolucionária. Enquanto a França aboliu a monar-quia absolutista, destruiu o feudalismo e estabeleceu o domínio burguês, a Ale-manha era um conjunto de territórios independentes, onde o governo central era extremamente frágil, o despotismo reinava, e o desenvolvimento econômico e das forças produtivas eram débeis quando comparados à França e à Inglaterra. No entanto, a Revolução Francesa liberava as potencialidades humanas, com seus ideais de liberdade, de modo que os alemães se entusiasmaram a fazer uma nova revolução, dentro dos seus limites objetivos. Dessa forma, segundo Sán-chez Vásquez (1986), enquanto na França a liberdade torna-se um assunto práti-co, na Alemanha ela era um assunto teórico. Para Arantes (1974, p. VI grifo original), “enquanto a Revolução Francesa começou por assegurar a realização da liberdade, à Alemanha coube apenas se ocupar com a ideia de liberdade”. Para o primeiro autor, os alemães se engajaram na construção de uma revolução teórica sobre a liberdade da vontade e da soberania da razão do homem, conside-rada como uma transformação de mesmo impacto e magnitude, uma vez que era direcionada às consciências e ao espírito humano.

Refl etindo sobre as potencialidades humanas e o processo da revolução fran-cesa, que modernizava a Europa em direção ao desenvolvimento de uma razão histórica universal, e sob o clima de ter visto pessoalmente o Imperador Napo-leão Bonaparte, ator principal desse processo de universalização da liberdade e da razão, quando da anexação da cidade de Iena onde era professor, Hegel publi-cou sua primeira obra de grande porte, A Fenomenologia do Espírito (1807). Ainda que tenham sido desenvolvidos de maneiras diferentes em obras posterio-res, este livro já contém os principais elementos da dialética idealista hegeliana.

A Fenomenologia do Espírito é uma obra extremamente complexa e perturba-dora, como defi niu Konder (1991), pois se trata de um trabalho onde Hegel pre-tendeu narrar historicamente e dialeticamente (a partir de sequências não necessa-riamente cronológicas) as fases de desenvolvimento da consciência humana, desde a sua forma mais simples, por assim dizer, até a forma mais desenvolvida e complexa, o saber absoluto ou a fi losofi a (VAZ, 1992). O primeiro título que He-gel deu ao seu livro foi “ciência da experiência da consciência” ou o “caminho da consciência para a ciência”, ou seja, uma “exposição que tem por objeto tão so-mente o saber como fenômeno” (HEGEL, 1974, p. 44): uma análise sobre os ca-minhos que a consciência humana passou e que ainda precisaria passar, em diálo-go com o objeto, a realidade objetiva, para que alcançasse a realidade de maneira plena, absoluta e universal, livre de amarras e limitações. Para tanto, Hegel des-creve e analisa diversas “fi guras fenomenológicas”, momentos do movimento da

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consciência, nas suas experiências em direção a outros estágios mais elevados de sua existência, ou seja “esse movimento dialético que a consciência realiza em si mesma, tanto no seu saber quanto no seu objeto, enquanto, a partir dele, o novo objeto verdadeiro surge para a consciência mesma [...]” (HEGEL, 1974, p. 49, grifos originais). O longo trajeto de desenvolvimento da consciência humana expresso na Fenomenologia do Espírito pode ser entendido de maneira didática da seguinte forma:

Nessa obra, a consciência, como se fosse a protagonista de um romance do século XIX, faz o duro aprendizado do mundo: vai se enriquecendo com as ilusões que perde e a repetição desses desenganos sucessivos cristaliza-se numa espécie de sabedoria fi nal a respeito da sociedade e da história. Nesse processo contí-nuo, a consciência se aliena, perdendo-se no mundo da cultura que ela própria vai moldando, sendo modifi cada e formada por ele. (ARANTES, 1974, p. XXII).

Ainda que não se trate exatamente da mesma questão, é possível identifi car a lógica desse mesmo processo de desenvolvimento nas palavras do próprio fi ló-sofo em livro posterior, A Enciclopédia das Ciências Filosófi cas (1817), refl etin-do sobre as consequências desse processo sobre a história, que caminha dos par-ticularismos de um povo à universalidade do espírito do mundo:

O espírito determinado de um povo, sendo real — e sendo a sua li-berdade como natureza —, tem sob este aspecto natural o momento da determinabilidade geográfi ca e climática. Aquele existe no tem-po; e, quanto ao seu conteúdo, tem essencialmente um seu princípio particular, e deve percorrer um desenvolvimento, determinado por este, da sua consciência e da sua realidade. Tem história, dentro de si. Como espírito limitado, a sua independência é algo de subordi-nado: passar a ser história universal, cujas vicissitudes são repre-sentadas pela dialética dos espíritos dos vários povos particulares, pelo juízo do mundo (HEGEL, 2001, p. 135, grifos originais).

Como o fi lósofo que elevou ao mais alto grau a fi losofi a idealista alemã, He-gel parte do princípio de que o movimento do mundo, mesmo aqueles de ordem material, cultural, social e institucional, tem origem nos movimentos da consci-ência, ou seja, nas suas experiências. Para Hegel, é o espírito que “se desdobra não só no mundo propriamente espiritual que culmina na arte, na religião e na fi losofi a, como também na natureza ou na história humana” (SÁNCHEZ VÁS-QUEZ, 1986, p. 61-62). Ele não separa espírito e mundo, sujeito e objeto, como fazia Kant, por exemplo, ao afi rmar a existência da “coisa em si”. Mas para alcan-çar a consciência de que essa dualidade não existe, ou seja, encontrar a totalidade da realidade — a compreensão de que todos os elementos da realidade estão vinculados uns aos outros, de modo que uma análise que se pretenda legítima

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deva considerar a realidade em sua visão de conjunto, como uma síntese de múl-tiplas determinações — a “identidade absoluta”, a consciência precisa passar por diversos momentos ou “fi guras” da sua existência. Hegel produz uma história do Espírito e, por conseguinte, uma história real dos homens que são seus portadores (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 1986, p. 62).

Em um texto introdutório sobre o pensamento de Hegel, Leandro Konder (1991), premido pela face perturbadora da leitura de A Fenomenologia do Espírito, busca sintetizar as principais características das sete fi guras fenomenológicas des-critas por Hegel. De maneira sucinta, é válido caminhar por elas através das sínte-ses deste autor para identifi car algumas características da dialética hegeliana.

A primeira fi gura é o “saber imediato” ou “certeza sensível”. É o conheci-mento mais pobre para Hegel, na medida em que está condicionado à experiên-cia da consciência que acaba de nascer e de se dar conta da sua existência no mundo. O conhecimento imediato tão caro ao empiricismo é, portanto, criticado por Hegel, ou melhor, é considerado limitado. Para ele, as primeiras impressões, a despeito de serem consideradas mais concretas, são no fundo mais abstratas, na medida em que não compreendem o objeto na sua totalidade, isto é, relacionan-do-o com outras características, sua história, seu movimento de criação, etc. As primeiras impressões e a análise de partes isoladas de um determinado fenômeno são para a dialética simples abstrações. Apenas as sínteses de múltiplas determi-nações, a união de diversas partes em um todo, permite o conhecimento do que é efetivamente concreto, uma vez que apenas esse conhecimento permite obser-var para além do que é imediato e alcançar também o mediato, o para além do observável, as conexões íntimas.

O conhecimento, portanto, não pode se resumir ao saber imediato, e assim o faz se desenvolvendo a partir de diversos outros. Da mesma forma, também não pode prescindir do imediato e empírico; precisa mantê-lo, superando-o.

Esse processo de passagem de um tipo de conhecimento, de uma fi gura feno-menológica à outra se dá, para Hegel, através de saltos ontológicos, isto é, do re-conhecimento das suas limitações, da sua contradição, e da superação do seu está-gio. Eis uma das características mais fundamentais da dialética, a ideia de que os movimentos da realidade (no caso hegeliano das formas de consciência) se desen-volvem através de saltos qualitativos engendrados pelas contradições. Para a dia-lética, todo ser carrega dentro de si a sua própria contradição, na medida em que a análise dialética se fundamenta na compreensão do todo, das relações que se esta-belecem entre diversos elementos, o que implica na compreensão de que determi-nados elementos só se defi nem em função do seu contrário, só existem devido ao seu oposto, aos seus limites. Todo ser é uma unidade de contrários que, quando se

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chocam, produzem transformações, movimentos, história. A essência da realida-de para a dialética não é imutável, ao contrário, está em processo contínuo de transformação, que se fundamenta nas fases da existência, negação e superação.

A mais alta dialética do conceito é produzir e conceber a determi-nação, não como oposição e limite simplesmente, mas compreen-der e produzir por si mesma o conteúdo e o resultado positivos, na medida em que, mediante esse processo, unicamente ela é desen-volvimento e progresso imanente. Essa dialética não é [...] senão a alma própria do conteúdo, que faz brotar organizadamente seus ramos e seus frutos. (HEGEL apud ARANTES, 1974, p. XVIII, grifos originais)

A segunda proposição [da dialética] estabelece que ‘o ser e o nada são uma só e mesma coisa’. De acordo com esse princípio, não há uma única coisa no mundo que não abrigue em si a co-pertinência do ser e do nada. Cada coisa só é na medida em que, a todo mo-mento do seu ser, algo que ainda não é vem a ser. Em outros ter-mos, essa segunda proposição da dialética põe à mostra o caráter ‘processual’ de toda realidade. (ARANTES, 1974, p. XVIII-XX, grifos originais).

O processo de transformação da realidade, no entanto, é extremamente com-plexo, uma vez que para Hegel sujeito e objeto não estão separados. A dialética deve, portanto, compreender os movimentos da realidade, os seus processos de superação, apreendendo assim a sua essência. Todavia, o conceito de superação dialética em Hegel é bastante preciso e sua tradução para o português pode ocul-tar o seu real signifi cado. KONDER (1991, p. 63, grifos originais) assim descre-ve a compreensão mais adequada do conceito que refl ete a ideia de movimento:

Para compreender a passagem do sujeito de um nível para o outro, não podemos deixar de recorrer a um conceito essencial da fi loso-fi a hegeliana: o conceito de superação dialética (“Aufhebung”)1. “Aufheben” — o verbo — signifi ca, na acepção que lhe dá o fi ló-sofo, ao mesmo tempo negar algo, aproveitar o conteúdo válido daquilo que está sendo negado e elevá-lo a um nível superior. Essa tríplice operação nos permite articular no desenvolvimento (no tornar-se) a continuidade e a ruptura, a inovação qualitativa radical e a persistência.

Cada fi gura fenomenológica só se transforma por se deparar com suas limi-tações, seu contrário, mas suas características são mantidas, agora numa outra

1 Alguns tradutores têm interpretado este verbo alemão para o português através do termo “suprassumir”, para garantir uma melhor compreensão de que o processo se dá não por uma simples superação, mas pela manutenção e elevação de características previamente existentes. Rosenfi eld (2005) traduz o termo alemão como “suspender” para manter as suas três acepções de “negar”, “conservar” e “elevar”.

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forma de consciência, de um nível superior. Isso se dá através do processo da alienação ou da autoalienação do espírito. Como sujeito e objeto não são entes separados e apenas “aparentam” ser partes diferentes, o objeto não mais é do que a objetivação da subjetividade do sujeito, da consciência, do espírito. O que, para a consciência, a princípio lhe parece alheio, fora de sua realidade, é oriundo dela mesma, essência criadora da realidade para Hegel. No entanto, por estar alienado, isto é, alheio, objetivado, parece-lhe como algo estranho. A consciência somente se supera quando consegue suspender, no sentido de Ro-senfi eld (2005), aquilo que lhe parecia externo e contrário, alcançando uma nova totalidade, de um outro nível, mais elevado. Nas palavras de Arantes (1974, p. XVIII):

[...] a legitimidade de um sistema fi losófi co só se instaura como tal desde que, nesse sistema, incluam-se o negativo e o positivo do ob-jeto, e na medida em que tal sistema reproduza o processo pelo qual o objeto se torna falso [alheio] para, em seguida, voltar à verdade.

Dessa forma, a “certeza sensível” se supera e se transforma na “percepção”, momento no qual a consciência escapa do simples imediato e reconhece algu-mas características determinadas do objeto. Essa forma de consciência reconhe-ce a diversidade qualitativa dos objetos, mas se defronta ao mesmo tempo com a sua unidade. A sua capacidade de dúvida, conquistada nessa nova fase, a leva a se rebelar contra as suas limitações, fazendo surgir a terceira fi gura, o “discer-nimento”. Nesse momento, a consciência continua no caminho de ir além do meramente sensível, em busca da razão e do conceito, que representam o trajeto para o estágio no qual a consciência apreende a totalidade do mundo, a sua es-sência, quando haveria identidade entre a racionalidade do mundo e a raciona-lidade da consciência. Mas o “discernimento”, na sua razão analítica, tenta su-perar as ilusões do saber imediato reduzindo as experiências com o mundo aos conhecimentos prévios. O que é anterior, por ser considerado conhecido, escapa ao sujeito, pois acaba não sendo efetivamente sabido. O conhecimento da reali-dade na dialética hegeliana, portanto, não pode se desenvolver levando em con-sideração somente conhecimentos prévios, reduzindo e ignorando as experiên-cias do mundo, as determinações mediatas e sua síntese numa totalidade. Ademais, segundo Konder (1991), o “discernimento” é uma fi gura da consciên-cia que apreende o mundo através de leis, que se acumulam conformando o que Hegel chamou de “má infi nitude”, de modo que o sujeito acumula informações de realidades isoladas, o que o faz desconhecer a realidade, porque desconhece sua unidade/totalidade.

Das limitações do reconhecimento da realidade que lhe escapa, nasce a quar-ta fi gura do espírito, a “autoconsciência” ou “consciência de si”, que descobre que

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só é possível apreender o mundo e se conhecer se houver outra consciência para se comparar. A liberdade da “autoconsciência” só pode ser afi rmada na sua rela-ção com outra “autoconsciência”, na busca de reconhecimento. Eis uma das mais importantes fi guras fenomenológicas, expressa por uma das passagens mais co-nhecidas e discutidas de Hegel, a dialética do senhor e do escravo. O sujeito ainda não é universal, assim como sua liberdade que, na sua particularidade, colide com a liberdade de outrem. Conforme assinala Vaz (1992, p. 17):

Com a passagem da dialética do desejo para a dialética do reconhe-cimento o movimento da Fenomenologia encontra defi nitivamente a direção do roteiro que Hegel traçara para essa sucessão de expe-riências que devem assinalar os passos do homem ocidental no seu caminho histórico e dialético para cumprir a injunção de pensar o seu tempo na hora pós-revolucionária, ou para justifi car o destino da sua civilização como civilização da Razão. Com efeito, o que aparece agora no horizonte do caminho para a ciência são as estru-turas da intersubjetividade ou é o próprio mundo humano como lugar privilegiado das experiências mais signifi cativas que assina-lam o itinerário da Fenomenologia. O caminho para a ciência deve penetrar na signifi cação das iniciativas de cultura que traçaram a fi gura do mundo histórico colocado sob o signo da própria ciência e que nela deve decifrar o seu destino.

A dialética do senhor e do escravo exprime a fi gura de um sujeito dividido, incapaz de uma liberdade real. O senhor é o dominante, aquele que é efetivamen-te livre, mas perde contato com a experiência humana mais material, o trabalho e a transformação que ele opera sobre a natureza. É limitado. O escravo, por sua vez, é colocado na mais bruta condição humana, transformador da natureza hu-mana, mas com uma consciência alienada no que tange à conquista de sua liber-dade. Segundo Konder (1991), neste momento Hegel analisa algumas concep-ções fi losófi cas ocidentais que se depararam com a cisão da autoconsciência. O estoicismo, concluindo que o mundo é um lócus de servidão generalizada, se refugia nas nuvens, enquanto a escravidão se mantém. O ceticismo, na crença de que não há nada a fazer, oscila ora em direção ao ponto de vista do senhor, ora em direção ao escravo. A consciência infeliz, de origem cristã, respeita o senhor e se solidariza com o escravo, sofrendo com ambos suas dores e limitações.

Na interpretação de Konder (1991), Hegel localizava a superação dessa contradição na superação das limitações dessas concepções e na efetivação de duas experiências decisivas: o enfrentamento do medo da morte pelo escravo e o reconhecimento das potencialidades do trabalho pelo senhor. Enfrentar a mor-te, o negativo por excelência, é para a autoconsciência se dar conta da sua fi ni-tude e, sem medo, abrir-se a novos círculos, caminhar em busca da universali-dade. A autoconsciência só avança, entretanto, quando supera a ótica puramente

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contemplativa das fi guras anteriores e reconhece a importância da práxis do trabalho, atividade a partir da qual os homens intervém sobre o mundo objetivo, colocando-o a seu serviço.

Para Sánchez Vásquez (1986), nesta dialética o senhor mantém sua superio-ridade espiritual e material, sendo reconhecido como consciência de si. Já o escravo, alcança a sua consciência de si como ser humano mediante o reconhe-cimento da sua essência no seu trabalho. O senhor, que não cria e não se trans-forma, não eleva; o escravo sim, se eleva, pois adquire consciência de sua liber-dade no trabalho. Em sua crítica materialista, no entanto, assinala que a liberdade do escravo descrita por Hegel se conforma apenas na consciência, não se reali-zando efetivamente.

A despeito desse caráter idealista, a fi losofi a de Hegel e a dialética têm aqui desenvolvida uma das suas mais importantes características: a consideração da importância da práxis e do trabalho na conformação do homem. Segundo Sán-chez Vásquez (1986), ainda que o trabalho apareça na fi losofi a de Hegel como uma atividade espiritual, parte do processo de evolução do espírito, ele é analisa-do como formador da essência humana. Mesmo antes da Fenomenologia do Es-pírito, Hegel, infl uenciado por suas leituras de Economia Política, reconhece o trabalho como uma relação entre os homens e a natureza, entre sujeitos e objetos, mediados por ferramentas. Além disso, observa como o homem se humaniza atra-vés do processo de autoprodução via trabalho, que passa a ter um caráter social, universal e abstrato, principalmente com a divisão do trabalho, que une os indi-víduos aos demais. Segundo Sánchez Vásquez (1986), mesmo com as abstrações idealistas, já há em Hegel uma compreensão do trabalho em uma acepção fi losó-fi ca e antropológica, para além do conteúdo meramente econômico.

Retornando às fi guras fenomenológicas, com a superação da dialética do se-nhor e do escravo emerge a quinta fi gura: a razão. Segundo Konder (1991, p. 32), esta fi gura já começa a se pensar como parte de uma realidade mais universal, antecipando o movimento de busca da totalidade e da essência: “suas paixões, seus interesses particulares, seus movimentos se inserem num todo mais amplo, no movimento mais geral da humanidade, naquilo que Hegel caracteriza como o processo do real (o processo de realização do espírito)”. Os indivíduos, no entan-to, se inserem num quadro institucional tumultuado. A ordem pública engendra-da não é universal, uma vez que as singularidades dos indivíduos e da consciên-cia permanecem se impondo; os homens ainda não haviam alcançado o juízo do mundo. Ademais, a razão, num empenho de precisão, aposta na observação, ten-dendo a repetir os equívocos classifi catórios do discernimento. Na sua autocríti-ca, a razão se eleva à sexta fi gura, o “espírito”.

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O “espírito” representa a suspensão/superação dialética de outras cinco fi gu-ras, de modo que carrega consigo as principais características, elevadas, das demais. Segundo Vaz (1992), o conceito de espírito é a pedra angular do edifício do sistema hegeliano, pois ela representa um ponto de infl exão. As demais fi gu-ras se orientavam para o mundo dos objetos suprassensíveis, para uma ciência abstrata da natureza. Agora o curso se volta para o mundo dos sujeitos, da uni-dade de “diversas consciência-de-si que são para-si” (HEGEL apud VAZ, 1992, p. 18). De acordo com Konder (1992), o espírito, impulsionado por uma nova e poderosa força, se realiza e alcança a sétima e última fi gura da fenomenologia, o “saber absoluto”.

Ainda segundo este comentador, Hegel fala sobre essa fi gura de modo obs-curo. Mas percebe-se que é nela que se resolve a “aparente” contradição inicial entre consciência e mundo, sujeito e objeto. No “saber absoluto”, ápice máximo do processo de superação da consciência, representada pela própria fi losofi a en-quanto forma mais elevada de conhecimento humano para o fi lósofo, a essência da realidade, a totalidade, é alcançada. A consciência se dá conta que não está apartada do mundo concreto e a sua autoalienação chega ao fi m. Chega-se ao conceito; não há mais uma “consciência do objeto” e o “objeto da consciência” como entes separados, vez que nessa fi gura a objetivação (alienação) é comple-tamente superada e a consciência se convence da natureza espiritual de todos os objetos. Segundo o próprio fi lósofo, na Enciclopédia das Ciências Filosófi cas:

Este movimento é a via para a libertação da substância espiritual, o fato mediante o qual o fi m absoluto do mundo se realiza no mundo; o espírito que antes é só em si alcança a consciência e a autocons-ciência, e deste modo a revelação e realidade da sua essência em si e para si, e se torna também externamente universal, torna-se o espírito do mundo. (HEGEL, 2001, p. 135)

As particularidades de cada etapa são suprassumidas e se alcança a universa-lidade. A consciência capta a racionalidade do mundo, que representa a raciona-lidade da própria consciência, seu agente criador. Agora, nas célebres e contro-vertidas palavras do fi lósofo, “o real é racional e o racional é real” ou, como prefere traduzir Rosenfi eld (2001), “o que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional”, o que signifi ca que o mundo tem sua própria racionalidade, na medida em que, para Hegel, só se torna real ganhos efetivos de racionalidade. Nesse mo-mento, há uma profunda relação entre o mundo objeto e as ideias, uma unidade entre ser e pensamento. Hegel pretendeu mostrar como a epopeia da Fenomeno-logia do Espírito representa a própria expressão do movimento do real.

A dialética idealista hegeliana, desenvolvida na Fenomenologia do Espírito e nas demais obras do fi lósofo, portanto, não se constitui apenas como um mé-todo, mas como uma compreensão do ser da realidade, e da sua relação com o

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conhecimento engendrado sobre ela. Ainda que de maneira bastante abstrata e complexa, na Fenomenologia do Espírito estão defi nidos os principais elemen-tos dessa “concepção de mundo”, conforme defi nido anteriormente, intrincados a uma sofi sticada compreensão e descrição da história humana que

[...] aparecerá, então, para Hegel, como o lugar do desenvolvimen-to da unidade entre o pensamento e o ser. Logo, devemos entender a história como o lugar de realização da ideia da liberdade, do vir--a-ser do conceito. Isto é, a história não pode ser considerada como mera sucessão de fatos, nem como se estes, por ocorrerem, se transformassem imediatamente em racionais. A história é conside-rada por Hegel como processo de realização de ideias, pensamen-tos, representações artísticas e representações religiosas, porém também de lutas, violências e embates pelo poder. Seu enfoque, no entanto, privilegia o modo como todos esses elementos e fatores constituem o que consideramos como a formação mesma da huma-nidade, o vir-a-ser do homem rumo à sua autonomia, à sua consci-ência de si como ser livre no pensamento e nas instituições éticas, coletivas, que lhe são correspondentes. A humanidade se forma pela sua história, se cultiva pelo seu processo de determinação de si. Tanto a consciência estóica, que se desprende do mundo, como a Revolução Francesa são etapas desse mesmo processo. A consci-ência imediata e sensível do mundo assim como o saber absoluto, isto é, a fi losofi a, são momentos, de natureza diferentes, do mesmo processo pelo qual o espírito vem a se conceber como mundo e conhecimento de si. (ROSENFIELD, 2001, p. 43)

3. A DIALÉTICA MATERIALISTA DE KARL MARX

Karl Marx (1818-1883) iniciou sua vida intelectual numa Alemanha onde o pensamento de Hegel tornara-se hegemônico, mesmo após sua morte em 1831. O obscurantismo da fi losofi a hegeliana e diversas passagens controversas e polêmi-cas, como a frase “o real é racional e o racional é real”, contribuíram para que o pensamento do fi lósofo tivesse se tornado uma ideologia ofi cial do regime despó-tico da Prússia. A compreensão de Hegel de que o Estado, a sociedade política, representa a superação dialética das contradições da sociedade civil (Bürgerliche Gessellschaft), terreno da produção econômica, da divisão do trabalho, das trocas e das corporações, ou seja, de interesses particulares, passou a ser interpretada como uma justifi cativa fi losófi co/histórica para o Estado Alemão autoritário. Para Hegel, o Estado superaria o egoísmo dos indivíduos, pois os transformaria em cidadãos. O Estado realizaria as características da família e da sociedade civil (momentos anteriores da sua existência), superando-as dialeticamente e se ele-vando, desenvolvendo a cidadania, a liberdade, alcançando o estágio da razão e da universalidade. Essa perspectiva sobre o Estado não se refere, no entanto, a um Estado empírico, mas ao conceito de Estado, às características fundamentais do que seria a realização promovida pelo Estado.

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De todo modo, o hegelianismo passara a ser uma ideologia ofi cial do regime prussiano, do Estado, da propriedade e da religião, encampada por uma corrente que fi cou conhecida como Direita Hegeliana. Ao mesmo tempo, conformou-se uma corrente composta por grupo de intelectuais que, ao mesmo tempo em que eram atraídos pela fi losofi a de Hegel, estavam em desacordo com diversas partes do seu sistema. Entre esses fi guravam David Strauss (1808-1874), Bruno Bauer (1809-1872), Max Stiner (1806-1856), Ludwig Feuerbach (1804-1872) e o pró-prio Karl Marx. O grupo de Berlim produziu inúmeros trabalhos, concentrando seus ataques ao aliado mais fraco do Estado, a Igreja e a religião. Segundo Gian-notti (1874), isso era feito no entanto ainda dentro do sistema hegeliano, numa tentativa de se separar o Hegel secreto (revolucionário) do Hegel manifesto, que legitimava o sistema reacionário.

Marx participou ativamente desse grupo, mas a sua trajetória o levaria a se distinguir da esquerda hegeliana e a construir seu próprio edifício fi losófi co. Por volta de 1841, impedido de seguir carreira universitária na Alemanha, Marx co-meça a colaborar sistematicamente com a Gazeta Renana, jornal liberal da cida-de de Colônia, quando começa a se ocupar com problemas propriamente políti-cos e sociais. Como ele mesmo assinalou mais adiante, no prefácio de Para a Crítica da Economia Política (1859), esse foi um momento de transição na sua trajetória, pois foi obrigado a tratar de questões “materiais”, mais especifi camen-te de uma querela entre os camponeses alemães em confronto com o novo regi-me de propriedade privada. Aos poucos, Marx passa a reclamar a necessidade de uma revolução social, produzindo críticas social-democratas que culminam com o fechamento do jornal e com o seu exílio na França (GIANNOTTI, 1974).

Marx e outros neo-hegelianos de esquerda emigram para a França, bastante infl uenciados pela crítica materialista da fi losofi a de Hegel produzida por Feuer-bach, no livro A Essência do Cristianismo (1841), onde o autor recoloca o pro-blema da alienação, desta vez a alienação do gênero humano, dotado de pulsões, sentimentos e limites naturais. Ainda infl uenciado por essa nova perspectiva, Marx e seus colegas fundam na França os Anais Franco-Alemães, que teve seu primeiro (e único) número publicado em 1844. Marx publicou nesse número os trabalhos Introdução a uma Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel e A Questão Judaica. Nesse mesmo número, publicou também um alemão, que depois de se formar em Berlim vivia em Manchester, Friedrich Engels (1820-1895). Vivendo na Inglaterra, Engels teve contato com a economia política de Adam Smith e David Ricardo e pôde observar a situação da classe trabalhadora. Dessa forma, contribui com os Anais Franco-Alemães com o texto Esboço de uma Crítica da Economia Política, que, segundo Giannotti (1974), representou uma virada no

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pensamento de Marx, pois colocava a economia política como a ciência da socie-dade civil, o local por excelência da alienação humana.

Gradativamente, Marx produziu suas críticas à fi losofi a de Hegel, à esquerda Hegeliana e ao próprio Feuerbach. Algumas obras são paradigmáticas nesse pro-cesso. Em um conjunto de manuscritos escritos ao longo desses anos em Paris, publicados apenas em 1932 com o título de Manuscritos Econômicos-Filosófi -cos, Marx começa a amadurecer sua crítica ao idealismo da fi losofi a alemã, suas refl exões sobre o gênero humano, a economia política e a alienação.

No texto Crítica da Dialética e da Filosofi a de Hegel, Marx critica a esquer-da hegeliana por se supor crítica, mas não discutir criticamente a sua fonte, a dialética da Hegel, com exceção de Feuerbach que, para Marx, é o único que produziu uma crítica à fi losofi a de Hegel e que consegui superá-la. Segundo Marx, Hegel não conseguiu compreender a “história real do homem enquanto sujeito pressuposto”, mas “apenas a expressão abstrata, lógica, especulativa do processo histórico”, ou seja, os princípios da alienação e das contradições (MARX, 2006, p. 174, grifos originais). Marx tece um conjunto de críticas ao movimento histórico exposto em A Fenomenologia do Espírito e em A Ciência da Lógica. Segundo ele, o saber absoluto, o espírito fi losófi co, é sobre-humano e abstrato; logo, o espírito é completamente indiferente a todo caráter real determi-nado, é pura abstração. O pensamento abstrato analisado por Hegel prescinde do homem e da natureza, porque esta é exterior a ele, é compreendida como a sua própria perda, ou seja, como pensamento abstrato alienado. A objetividade do mundo humano é para Hegel uma auto-alienação do espírito e voltar à essência humana, superando a alienação, é regressar à consciência, de modo que o ho-mem é interpretado como um ser não-objetivo, espiritualista. A alienação huma-na, portanto, é a alienação da autoconsciência, considerada essência do movi-mento criador. Nela está a sua origem e não no que seria a alienação real do homem para Marx. Quando concebe a riqueza, o poder do Estado, entre outros elementos do mundo humano, Hegel os compreende como entidades alienadas do ser humano, como pensamentos que são objetivações (alienação) do pensa-mento fi losófi co e abstrato. Na fi losofi a de Hegel, portanto,

Toda a história da alienação e toda a retração da alienação se reduz, portanto, à história da produção do pensamento abstrato, isto é, do pensamento absoluto, lógico, especulativo. A desapro-priação que forma o interesse real da alienação e a abolição da alienação é a oposição do em si e para si, da consciência e da autoconsciência, do objeto e do sujeito, isto é, a oposição do pen-samento abstrato e da realidade sensível ou da existência senso-rial real, no interior do próprio pensamento. Todas as outras con-tradições e movimentos constituem apenas a aparência, a capa, a

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forma esotérica destas duas posições, que são as únicas interes-santes e que constituem o signifi cado das outras, das contradições profanas. (MARX, 2006, p. 176-177)

O primeiro erro de Hegel, portanto, para Marx é que as faculdades objetiva-das e alienadas do homem são assim uma apropriação que ocorre na consciência, no pensamento puro. Os objetos são apreendidos como pensamentos e movi-mentos de pensamento. Por esse motivo, embora A Fenomenologia do Espírito tivesse uma aparência negativa e crítica, já se esboça nela, segundo Marx, “o positivismo acrítico e o idealismo acrítico das últimas obras de Hegel” (MARX, 2006, p. 177). Um segundo erro de Hegel para Marx decorre do primeiro, a ideia de que só o espírito constitui a autêntica essência humana. Desse modo, a aliena-ção poderia ser superada no âmbito da consciência, por uma crítica do pensa-mento. Para Marx, esse movimento elimina apenas uma entidade de pensamento e não a verdadeira alienação do homem, que está em outra esfera, no mundo objetivo e real, e não apenas na consciência.

O idealismo da fi losofi a de Hegel faz, para Marx, com que alienação do mun-do objetivo se mantenha, enquanto se acredita que ela foi superada. A fi losofi a de Hegel não alcança a realidade, pois a transformação da religião fi ca na fi losofi a da religião, da política na fi losofi a do direito, da natureza, na fi losofi a da nature-za, da arte na fi losofi a da arte, etc. Dessa forma, “porque a concepção é formal e abstrata, a eliminação da alienação torna-se uma confi rmação da alienação” (MARX, 2006, p. 188). Segundo Marx, quando Hegel narra em A Filosofi a do Direito os movimentos de superação/transformação que partem do direito priva-do, moral, família, sociedade civil, Estado e alcançam a história mundial, na prática se mantém o direito privado, a moral, a família, a sociedade civil e o Es-tado, uma vez que essas ditas superações se realizam apenas no pensamento puro e abstrato e não alcançam a realidade material.

Para Marx, a alienação fundamental do homem está no trabalho, nas suas re-lações de produção e de troca, conforme apresentado. Segundo Druck (2000), a alienação da sociedade capitalista para Marx se dá em três dimensões: um estra-nhamento originado pela apartação entre os homens e os meios de produção, uma vez que estes são de propriedade privada; a separação existente entre os homens e os produtos do seu trabalho, que não servem mais à satisfação das suas necessi-dades mas para venda no mercado; a apartação do homem do processo e do resul-tado do seu trabalho engendram uma alienação do homem em relação a si próprio, à sua essência, na medida em que o homem deposita (objetiva) no fruto do seu trabalho a sua própria essência, sua dimensão criativa, de modo que deixam de ser sujeitos e se tornam objetos, alheios à própria realidade social que constroem. Nesta interpretação materialista, permanece, conduto, a lógica da alienação como

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um estranhamento, como um objeto que, proveniente do sujeito, se encontrada objetivado e se coloca como alheio ao próprio sujeito (nesse caso, o trabalho).

Em resumo, na fi losofi a de Hegel, segundo Marx, os produtos do homem são interpretados como produtos do espírito abstrato, como fases do espírito, entida-des do pensamento, ou seja, “o homem real e a natureza tornam-se simples pre-dicado, símbolos deste homem irreal e desta natureza irreal encobertos” de modo que “a dialética do pensamento puro é o resultado” (MARX, 2006, p.179-189).

A despeito dessas profundas críticas, Marx assume que a fi losofi a de Hegel já “contêm veladamente todos os elementos da crítica e se encontram amiúde já preparados e elaborados de uma maneira que vai muito além do ponto de vista de Hegel” (MARX, 2006, p. 178). Por exemplo:

O grande mérito da Fenomenologia de Hegel e do seu resultado fi nal — a dialética da negatividade enquanto princípio motor e criador — reside, em primeiro lugar, no fato de Hegel conceber a autocriação do homem como processo, a objetivação como perda do objeto, como alienação e como abolição da alienação; e no fato de ainda apreender a natureza do trabalho e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque homem real), como resultado do seu próprio trabalho. A orientação real, ativa, do homem para si mes-mo enquanto ser genérico ou a fi xação por si próprio como ser genérico real, quer dizer, como ser humano, só é possível à medida que ele realiza todos os seus poderes específi cos — o que, por sua vez, só é possível através da ação coletiva dos homens e como re-sultado da história — e trata estes poderes como objetos. (MARX, 2006, p. 178, grifos originais).

Para Marx, portanto, tratava de reconstruir a dialética, colocando-a num novo patamar, considerando os “homens históricos reais” (MARX; ENGELS, 2009, p. 36), “os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida”. As principais dimensões da dialética hegeliana estavam corretas, o princí-pio das contradições, a alienação enquanto objetivação, a possibilidade de supe-ração da alienação, a sociabilidade humana (a ideia de que não se pode pensar o homem isoladamente, mas apenas enquanto ser social), a importância do traba-lho, a história como resultado da vida social, restando apenas a necessidade de deslocar o princípio criador da realidade do espírito para outro terreno, a socie-dade civil (Bürgerliche Gessellschaft). A inversão materialista da dialética Hege-liana é feita em parceria com Engels em A Ideologia Alemã, livro escrito por volta de 1846 (mas publicado apenas no século seguinte), onde os autores fazem um balanço da sua consciência fi losófi ca, passando a limpo a nova concepção que estavam criando, o materialismo histórico. Fazendo duras críticas aos neo--hegelianos, que pretendiam transformar o mundo a partir de livros e frases, e

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mesmo do “materialismo contemplativo e inconsequente de Feuerbach” (MARX; ENGELS, 2009, p. 36), que não analisa os homens em seu contexto social de produção da sociedade e da história a partir do trabalho, Marx e Engels recons-troem a relação entre “o ser social e consciência social” (ibidem, p. 30) discutin-do os pressupostos da história materialista.

Em primeiro lugar, dizem os pensadores:[...] temos de começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana, e, portanto, também de toda a história, [...] os homens têm de estar em condições de viver para fazer his-tória. [...] O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades [comer, beber, habita-ção, vestuário, etc.], a produção da própria vida material. (MARX; ENGELS, 2009, p. 40-41)

Para Marx e Engels, se a princípio é possível distinguir os homens dos ani-mais por sua consciência, estes se diferenciam de fato quando começam a produ-zir os meios de sua subsistência. Esse é um pressuposto que, na opinião dos auto-res, não é dogmático e nem arbitrário, mas real e empiricamente observável. A produção da vida material e a satisfação das necessidades ocorrem dia a dia, ano a ano, para manter os homens vivos. Essa é a base terrena da história, a sociedade civil (Bürgerliche Gessellschaft), a base material da sociedade, que articula os homens aos outros homens e à natureza mediante o trabalho, dimensão funda-mental da vida humana. O princípio motor desse ato histórico é dado pelo fato de que, uma vez satisfeitas as primeiras necessidades, logo outras são engendradas. Nesse processo cotidiano, ao reproduzirem as suas próprias vidas, os homens se reproduzem, criando famílias, a primeira relação social humana. Diferente de Hegel, quando a sociedade civil se formava pela superação das condições dadas pela família, em Marx, a própria família só é possível graças a existência “prévia” (por assim dizer, já que esses pressupostos não existem isolados na realidade so-cial, mas se constituem como “momentos” que existem simultaneamente) da base material, da sociedade civil. O aumento das necessidades engendra novas rela-ções sociais e os diversos indivíduos passam a cooperar, conformando um deter-minado modo de produção, um modo como os homens se relacionam com a na-tureza e entre si, dividindo o trabalho para produzir sua vida material.

Para Marx e Engels, os homens apresentam entre si uma conexão materialista, dada pelas necessidades e pelo modo de produção. Somente depois de considerar esses momentos é que, para os pensadores, é possível falar da “consciência” hu-mana e das suas diversas formas, a princípio a linguagem (“espírito” preso à ma-téria, às necessidades práticas de intercâmbio dos homens) e a religião natural (consciência do sensível e da natureza como poder alienado). Somente após o

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momento em que a ampliação das necessidades e da população permite existir uma divisão entre o trabalho material e o espiritual é que a “consciência pode realmente dar-se à fantasia de ser algo diferente da consciência da práxis existen-te [...] se emancipar do mundo e de passar à formação da teoria ‘pura’, da teolo-gia, da fi losofi a, da moral, etc., ‘puras’”. Para Marx e Engels (2009, p. 31), o equívoco de toda a fi losofi a alemã até aquele momento residia no fato de que “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”. No materialismo histórico,

Em completa oposição à fi losofi a alemã, a qual desce do céu à terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens real-mente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos refl exos e ecos ideológicos desse processo de vida. (MARX; ENGELS, 2009, p. 31)

Em oposição à Hegel, o materialismo histórico afi rma que somente é possí-vel analisar as formas de consciência na sua relação com a sociedade civil, uma vez que estas compõem o que Marx chamou mais adiante, no Prefácio de 1859 de Para a Crítica da Economia Política, de infraestrutura e superestrutura, par-tes de um mesmo todo. Dialeticamente, esses elementos não podem ser analisa-dos sem a consideração das suas relações, da sua composição enquanto uma to-talidade histórica e contraditória.

Nessa perspectiva, o fundamento da vida social está na sociedade civil, cuja anatomia só poderia ser desvendada pela economia política. Marx, então, dá con-tinuidade aos seus estudos da economia política, aplicando sua compreensão ma-terialista dialética à análise da estrutura econômica da sociedade. No livro Para a Crítica da Economia Política de 1859 expõe o método que considera adequado, desvelando algumas dimensões importantes da dialética. Segundo Corazza (1996), neste texto Marx faz uma refl exão sobre a teoria do conhecimento, a re-lação entre o sujeito cognoscitivo, o método e a realidade objeto da refl exão.

Conforme observado no item anterior, na fi losofi a idealista alemã, o peso des-sa relação era dada ao sujeito. Em Hegel, na sua dialética do saber absoluto, essa aparente contradição, ente sujeito e objeto, deveria ser suprassumida quando do reconhecimento da unidade do ser e do pensamento, da totalidade da razão. Para Marx (1978), a realidade não se mostra aos olhos de maneira direta, tampouco é um conjunto de fatos isolados cuja análise possa ser realizada a partir de simples abstrações. Assim como em Hegel, a dialética empregada por Marx reconhece as limitações do empirismo e do método dedutivo. Para ele, as categorias analíticas

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existem fora do cérebro do sujeito, na realidade efetiva, como “determinações de existência” (MARX, 1978, p. 121). A realidade não existe apenas a partir do mo-mento em que o sujeito se volta para o seu conhecimento. No entanto, o real só pode ser conhecido através de abstrações do próprio pensamento, não como o fi m do conhecimento, mas como seu meio:

[...] elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para repro-duzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto. [...] Por isso é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento. (MARX, 1978, p. 117, grifos originais)

Para Marx, o pensamento deve se apropriar do concreto, das determinações de existência, através do abstrato, alcançar o complexo a partir do simples. Não se deve começar estudando o concreto, a realidade visível, pois ela aparece como uma representação caótica do todo, ou seja, mais uma abstração que deixa de considerar elementos importantes. A abstração é o caminho inicial desse pro-cesso: o pensamento analisa a realidade sensível e a separa em diversos elemen-tos fundamentais, mais simples, mas também mais abstratos, uma vez que os elementos não existem isolados/simples, mas em conexão e relação. Uma vez defi nidos e compreendidos, os elementos abstratos devem ser reconectados, fa-zendo emergir uma totalidade concreta/complexa, que não é o real em si, mas um “concreto pensado”, que existe na mente em referência ao real. O conheci-mento adequado da realidade deve analisar os elementos a partir das suas cone-xões, analisando o todo complexo conformado por esta síntese de múltiplas determinações. Ainda assim, a totalidade conformada pelo pensamento não condiz com a realidade em si, com o absoluto, uma vez que a capacidade de apreensão do mundo é limitada e o objetivo do pensamento é determinar a partir das categorias de ser o que antes parecia indeterminado. A concreção das partes abstratas e simples representa a síntese, a realização/superação dialética, do processo do conhecimento.

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensa-mento como o processo da síntese, como resultado, não como pon-to de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação. [Neste método] [...] as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. (MARX, 1978, p. 116-117)

A importância da reconstrução da totalidade concreta a partir de categorias de existência está no cerne do materialismo histórico dialético. Em O Capital (1867), Marx constrói sua análise da sociabilidade capitalista partindo dos seus

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elementos mais simples até alcançar suas determinações mais complexas; da análise da mercadoria, a célula econômica da sociedade burguesa, às leis gerais da acumulação capitalista. Segundo Geras (2009) está presente nesta obra como fi o analítico, especialmente na análise da mercadoria, a relação entre essência e aparência, elementos fundamentais da dialética. Uma das teses que prevalece nesta obra é a de que a sociedade capitalista se constitui como um “hieróglifo” (MARX, 2008, p. 96), produzindo uma mistifi cação da realidade e engendrando uma forma de dominação dos seres humanos, especialmente a classe social ex-propriada no seu processo de acumulação.

Compreender o fetiche da sociedade capitalista não é tarefa fácil. Descorti-nar a aparência não é simplesmente achar a verdade por trás de uma ilusão, mas chegar à essência desnudando o conteúdo social, o segredo, das relações. Como argumenta Geras (2009):

Deve-se notar, além disso, que as aparência errôneas, a que dá origem à fetichização das formas, são apesar de tudo “outra coisa mais do que ilusões sem consistência”. Quero dizer com isso que não se pode atribuí-las simplesmente a uma falta de perspicácia dos agentes sociais, a algum mecanismo de “esquecimento”, cuja origem estaria em uma pura e simples defi ciência subjetiva. Cada vez que nos dá um exemplo de fetichização, Marx assume as maio-res difi culdades para descobrir na realidade as raízes de ser das ilusões que dela decorrem. (GERAS, 2009, p. 208).

Para Marx, portanto, somente a dialética seria capaz de analisar a realidade capitalista, pois é capaz de superar as aparências impostas, reconstruir a essên-cia, compreender a história e reconhecer a “negação e [a] necessária destruição [do existente] [...] o caráter transitório, [das] formas como se confi gura o devir [...]”. Por isso, a dialética em sua forma racional “é, na sua essência, crítica e revolucionária” (MARX, 2008, p. 29).

No prefácio da segunda edição de 1873 de O Capital, Marx analisa algumas críticas feitas ao livro e mais uma vez faz um balanço do seu juízo fi losófi co. Criticando “epígonos impertinentes, arrogantes e medíocres” dos meios cultos alemães que tratavam Hegel como um “cão morto”, se confessa discípulo “da-quele grande pensador”, afi rmando que:

A mistifi cação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de mo-vimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fi m de descobrir a substância racional dentro do invólucro místi-co (MARX, 2008, p. 28)

Na perspectiva de Marx, então, somente a dialética (materialista) seria capaz de produzir uma síntese da realidade concreta do capitalismo e da sociabilidade

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moderna, articulando as partes da realidade em uma totalidade, unindo os diver-sos níveis do real, compreendendo-os a partir de suas contradições como criação social e histórica.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme observado ao longo deste trabalho, a dialética como modo de compreender e analisar a realidade social, seja em sua versão idealista ou mate-rialista, analisa as relações sociais em sua totalidade, considerando as conexões, as relações mediatas, estabelecidas entre os homens, considerando o trabalho como um desses vínculos fundamentais, ainda que analisado de maneira bastante diferente por estas duas vertentes, por assim dizer. Não obstante, tanto a dialética idealista quanto a materialista compreendem a realidade social como processo de desenvolvimento de capacidades humanas que se realizam, se superando, negan-do, mantendo e elevando a realidade através de um contínuo processo histórico. Ademais, ao deslocar suas análises para além do imediato e do dedutivo, descor-tina contradições veladas, produzindo um conhecimento que busca ir além das aparências, reconstruindo totalidades essenciais.

Embora a dialética idealista tenha sido o berço fi losófi co do qual surgiu o materialismo histórico, foi esta compreensão da dialética que infl uenciou as ci-ências sociais de maneira mais efetiva, se constituindo como um dos “métodos” clássicos de análise da realidade social. Marx e Engels, em especial o primeiro, transformaram a dialética fi losófi ca em um modo de análise empírica, produzin-do inúmeros trabalhos sobre as relações sociais da modernidade capitalista.

Com o seu caminho de partir do abstrato e simples ao concreto e complexo, considerando as contradições da realidade, buscando descortinar suas aparências, especialmente as mistifi cações da sociedade capitalista, produziu uma “concepção de mundo” que infl uenciou o surgimento tanto de discípulos quanto de detratores, nos mais diversos campos da sociedade.

5. REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 2AS PROPOSTAS METODOLÓGICAS DE

DURKEIM E WEBER: CONTRIBUIÇÕES PARA ANÁLISE DA REALIDADE SOCIAL

Marina da Cruz Silva

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. Durkheim: concepção de ciência e propostas metodológicas 3. Weber: concepção de ciência e propostas metodológicas — 4. Considerações acerca das aproximações e distan-ciamentos metodológicos entre Durkheim e Weber — 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente escrito visa a analisar as principais contribuições metodológicas de Durkheim e Weber para a análise da realidade social. Com o intuito de estabelecer melhor os parâmetros de análise a partir das peculiaridades, pontos de convergên-cia e divergência das propostas de cada autor na referida área, serão perseguidos alguns questionamentos no decorrer deste ensaio, a saber: Qual a concepção de ciência em Durkheim e Weber? Em quais aspectos se aproximam, se distanciam ou se complementam? Quais as principais contribuições do sociólogo francês e do sociólogo alemão para a metodologia no campo das ciências sociais? Qual o “legado” metodológico de ambos os autores para a teoria do conhecimento?

Antes de percorrermos as questões supracitadas, faremos um breve relato acer-ca do contexto em que estavam inseridos os dois autores, para que possamos com-preender melhor quais as principais questões da época que os preocupavam e com os mesmos procuraram lidar com elas, através de seus escritos sociológicos, sobre-tudo aqueles mais relacionados com as questões do método das ciências sociais.

Conforme Tragtenberg (1997), os estudos científi cos dos “fatos humanos” constituíram-se somente a partir de meados do século XIX. Naquela época triun-favam os métodos das ciências naturais, concretizadas através de transformações ímpares na vida material do ser humano em decorrência da Revolução Industrial. Com a comprovação inquestionável da fecundidade do caminho metodológico, traçado por Galileu e outros cientistas daquela época, alguns pensadores do cam-po das chamadas ciências sociais procuravam conhecer cientifi camente os fatos humanos, abordando-os segundo os métodos das ciências naturais.

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Ao contrário da perspectiva supramencionada, do outro lado, havia pensado-res que reconheciam a peculiaridade do fato humano e a necessidade de uma metodologia própria para as ciências sociais. Tragtenberg (1997) argumenta que, os pensadores dessa linha defendiam que a metodologia das ciências sociais não poderia se valer dos mesmos procedimentos das ciências naturais, porque o que se procura conhecer é a própria experiência humana. Diante disso, é possível identifi car uma gama de contrastes metodológicos entre os dois referidos grupos de ciência, a saber: “As ciências exatas adotam como ponto de partida a obser-vação sensível e seriam experimentais, procurando obter dados mensuráveis e regularidades estatísticas que conduzissem à formulação de leis de caráter mate-mático” (idem, p.5). As ciências humanas, por sua vez, “seriam introspectivas, utilizando a intuição direta dos fatos, e procurariam atingir não generalidades de caráter matemático, mas descrições qualitativas fundamentais de tipos e formas fundamentais da vida do espírito”.

Em linhas gerais, aqueles pensadores que concebiam a identidade metodoló-gica entre ciências exatas e ciências humanas passaram a ser chamados de posi-tivistas. A origem dessa vertente remete à tradição empirista inglesa desde Bacon (1561-1626), ganhando maior notoriedade com David Hume (1711-1176), além dos utilitaristas do século XIX e outros teóricos. Augusto Comte (1798-1857) e Émile Durkheim (1858-1917) seguiram essa linha metodológica na abordagem dos fatos humanos. Entre os teóricos que não concebiam a identidade metodoló-gica entre ciências exatas e humanas, tendo sido os maiores representantes dessa orientação os neokantianos Wilhelm Dilthey (1833-1911), Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936). (BOUDON, 1989; TRAGTEN-BERG 1997; BÚRIGO & SILVA, 2003; SELL, 2009).

É bastante conhecida a pertinente distinção estabelecida por Dilthey entre explicação (Erklären) e compreensão (Vertehen). Para esse fi lósofo e historiador alemão, o modo explicativo seria peculiar às ciências sociais, as quais procuram o relacionamento causal entre os fenômenos. Já a compreensão seria o modo característico de proceder das ciências humanas, as quais apesar de não estudar fatos que possam ser explicados via experimentação, dedicam-se aos processos vivos da experiência humana e procuram extrair deles seus sentidos. O método da compreensão, proposto por Dilthey, Windelband e Rickert, ganhou destaque no estudo dos fatos humanos particulares, constituindo diversas disciplinas com-preensivas. No âmbito da sociologia, essa tarefa seria desempenha por Max We-ber (TRAGTENBERG 1997).

Feitas essas colocações, dedicar-nos-emos a examinar as questões norteado-ras deste ensaio, a fi m de compreender melhor as contribuições metodológicas

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de Durkheim e Weber, com vista a identifi car os caminhos percorridos por esses autores no que se refere ao compromisso e empenho deles em conferir à sociolo-gia o posto de ciência autônoma.

2. DURKHEIM: CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA E PROPOSTAS METODOLÓGICAS

Conforme Giddens (1998), as principais infl uências no que se refere à matu-ridade intelectual de Durkheim são provenientes, em especial das tradições inte-lectuais francesas2. Para o teórico inglês, as interpretações superpostas em parte, que Saint-Simon e Comte fi zeram acerca da decadência do feudalismo e do sur-gimento da sociedade moderna, constituem o fundamento central do conjunto dos escritos de Durkheim. Dessa forma, pode-se inferir que o tema central de sua obra relaciona-se, com a concepção “positiva” de Comte em relação à sociedade e com a explicação discrepante de Saint-Simon acerca das características do in-dustrialismo. Além de ter sido infl uenciado por Montesquieu e Rousseau, Durkheim sofreu infl uências de Renouvier, sendo perceptíveis também em seus escritos “os ecos” de um grupo de autores alemães contemporâneos, como Schäffl e e Lilienfeld.

Sell (2009) aponta que o principal objetivo da obra de Durkheim consiste em conferir à sociologia uma reputação científi ca. Ao retomar as intenções de Comte, pode-se afi rmar que o conjunto da obra do sociólogo francês estava vol-tado para dotar a sociologia de um método consistente e elaborado de análise sociológica. O empenho e esforço de Durkheim nesse sentido lhe confere uma importância singular para a história do pensamento sociológico. Ademais, Durkheim contribuiu para a sociologia com estudos pioneiros na área de socio-logia da religião e do conhecimento, além de estudos empíricos sobre o fenôme-no do suicídio.

Quanto à questão se o conjunto das obras do autor constitui ou não uma rup-tura, Sell (2009, p.79), aponta para duas perspectivas. A primeira parte do pres-suposto de que há importantes diferenças entre as obras escritas por Durkheim no período de Bordeaux e seu último grande texto: “As formas elementares da vida religiosa”. Nessa perspectiva encontram-se os autores Talcott Parsons e Ste-ven Lukes. Conforme essa tendência de interpretação, “o primeiro Durkheim” seria fortemente materialista ou positivista (valoriza mais o peso das estruturas sociais na explicação dos fenômenos sociais), enquanto o “segundo”, tomando com base o fenômeno religioso, seria idealista ou culturalista (valoriza o peso das representações simbólicas). Segundo os defensores dessa perspectiva, “a

2 Giddens não nega com essa afi rmação as infl uências alemãs e inglesas.

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visão fortemente positivista de Durkheim de ciência, presente no início de sua carreira, teria sido relativizada, incorporando mais sistematicamente premissas idealistas, derivadas da fi losofi a de Kant” (SELL, 2009,p.79).

A segunda perspectiva de análise — constituída por Robert Nisbet (1965) e Anthony Giddens (1998) “ não concorda com o pressuposto de uma ruptura de trajetória de Durkheim e argumentam que as concepções centrais — construídas por Durkheim no início de sua obra “ não foram abandonados ou modifi cados, continuando presentes em toda a sua trajetória teórica. Esse grupo, que considera a obra tardia de Durkheim como estática e anti-histórica, desconsidera a impor-tância do problema da evolução das sociedades tradicionais para a sociedade moderna, considerada o centro da sociologia do pensador francês (SELL, 2009).

Em consonância com a segunda perspectiva de análise, Aron (1993) argu-menta que, ao se analisar os temas e as ideias fundamentais dos três grandes li-vros de Durkheim: “A divisão social do trabalho”, “O Suicídio”, “As formas elementares da vida religiosa”, é notória a semelhança dos métodos utilizados e dos resultados obtidos. Segundo Aron (1993), o desenvolvimento do pensamen-to de Durkheim é o mesmo: no ponto de partida, uma defi nição do fenômeno; depois, numa segunda fase, a refutação das interpretações anteriores. Por último, no ponto de chegada, uma explicação propriamente sociológica do fenômeno considerado. Para ele, a semelhança é ainda maior, pois nos três livros mencio-nados, as interpretações, refutadas por Durkheim, “[...] têm a mesma caracterís-tica: são interpretações individualistas e racionalizantes, tais como as que encon-tramos na ciência econômica”(ARON, 1993, p.335).

Feitas essas colações preliminares, é importante recorrermos à concepção de ciência e de método em Durkheim. Para o sociólogo francês, a primeira tarefa para a constituição da sociologia enquanto ciência era determinar seu objeto (fato social) e seu método (método comparativo). Nesse sentido, Durkheim em-preendeu grandes esforços em fornecer a sociologia sólidas bases fi losófi cas e procedimentos metodológicos detalhados para a realização de pesquisas sociais. Portanto, pode-se afi rmar que sua obra representa uma constante tentativa de construção sistemática de uma teoria sociológica (SELL, 2009).

É na obra As regras do método sociológico (1895), que Durkheim (2001, p.29) demonstra grande preocupação com a questão do método em sociologia, diante da seguinte constatação:

Até o presente, os sociólogos pouco se preocuparam em caracteri-zar e defi nir o método que aplicam ao estudo dos fatos sociais. É assim que, em toda a obra de Spencer, o problema metodológico não ocupa nenhum lugar; pois a Introdução à Ciência Social, cujo título poderia dar essa ilusão, destina-se a demonstrar as difi culda-des e a possibilidade da sociologia, não a expor os procedimentos que ela deve utilizar.

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Em outros termos, Durkheim estava preocupado em demonstrar a especifi ci-dade do social, sendo fundamental emancipar a sociologia enquanto a ciência que estuda os fenômenos sociais, diferenciando-as das demais ciências do ho-mem, sobretudo da psicologia. Para ele, a sociologia fi gura como uma ciência independente das demais ciências, à medida que possui seu próprio objeto e método (RODRIGUES, 1998: p.18).

Partindo disso, Durkheim empreende esforços em sistematizar e aprofundar os principais instrumentos da pesquisa sociológica. Segundo ele, isso implica em considerar no mínimo quatro procedimentos, os quais dever ser perseguidos no decorrer da pesquisa: 1) objeto de estudo, 2) observação, 3) classifi cação, e 4) explicação dos fenômenos sociais.

Ao considerar que a sociedade possui procedência lógica sobre o indivíduo, Durkheim aponta o fato social como objeto de estudo da sociologia. Segundo o sociólogo francês, “não é possível defi nir o fato social pela sua generalidade no interior da sociedade”. (p.31). Para ele: “É fato social toda a maneira de agir, fi xa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma exis-tência própria, independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 1978, p. 93 apud SELL, 2009, p. 82). Através dessa conceituação é possível apreender que os fatos sociais possuem duas características essenciais, a saber: 1) são exteriores e 2) são coercitivos, pois “esses tipos de comportamento ou de pensamento são não só exteriores ao indivíduo, como dotados de um poder im-perativo e coercitivo em virtude do qual se lhe impõem, quer queira ou não” (DURKHEIM, 2001, p.32).

Quanto à primeira característica, Durkheim partia do pressuposto de que o comportamento social não advém do próprio indivíduo, mas de algo exterior a ele, isto é, da sociedade. Para tanto, argumenta o sociólogo francês: “estamos, pois em presença de modos de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notá-vel característica de existir fora das consciências individuais” (DURKHEIM, 1978, p. 88 apud SELL, 2009, p. 83).

No que se refere à segunda característica dos fatos sociais, isto é, são coerci-tivos, o próprio Durkheim afi rmava que “[...] a coerção é fácil de verifi car quando se traduz exteriormente por uma reação direta da sociedade, como no caso do di-reito, da moral, das crenças, dos usos, e até das modas. Porém, quando é só indi-reta, como a que exerce uma organização econômica, nem sempre é perceptível”. (DURKHEIM, 2001, p.38). Em outras palavras, por a coerção do fato social pode ser comprovada pelo fato de que quando os indivíduos não seguem as normas e regras sociais, vivencia a pressão da sociedade sobre si. Portanto, “[...] a presença desse poder se reconhece pela existência de uma sanção determinada ou pela

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resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violá-lo” (ibidem, p.37).

Em linhas gerais, nota-se que a defi nição de fato social de Durkheim é con-dizente com o pressuposto epistemológico de sua sociologia, ou seja, a socieda-de explica o indivíduo. Enquanto produtos da sociedade, os fatos sociais são, portanto, exteriores e coercitivos, cabendo a sociologia explicar a ação das estru-turas sociais sobre o comportamento dos sujeitos (SELL, 2009).

Ao considerar os fatos sociais como coisas, Durkheim formulou a primeira e mais fundamental regra da sociologia, ou seja, as realidades podem ser estudadas através da experimentação e da observação. Partindo desse pressuposto, é possí-vel perceber claramente a visão epistemológica positivista de que as ciências, no caso a sociologia, devem se valer dos mesmos métodos e procedimentos das ci-ências naturais. Segundo Aron (1993), Durkheim ao ressaltar que se deveria con-siderar os fatos sociais como coisas, chama à atenção quanto a importância em se desvencilhar das pré-noções e dos preconceitos que paralisam o pesquisador de conhecê-los cientifi camente. Portanto, o sociólogo deve olhar seu objeto de estudo com o mesmo espirito de exterioridade que os pesquisadores das ciências exatas, sendo necessário para tal “[...] considerar os fenômenos sociais em si mesmos, desligados dos sujeitos conscientes [...]” (DURKHEIM 1978, p. 100 apud SELL, p. 83).

Segundo Aron (1993), o objetivo de Durkheim, ao adotar essa postura, é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científi ca, confor-me o modelo das outras ciências, tendo por objeto o fato social. Assim, Durkheim postulava uma radical separação entre o senso comum e a investigação socioló-gica, não sendo admissível confundir as representações que os próprios indiví-duos realizam da vida social com a análise científi ca dos fatos. Com isso, Durkheim estava preocupado em eliminar completamente a infl uência de fatores subjetivos e individuais no decorrer da pesquisa, haja vista que para o sociólogo francês a objetividade fi gurava como uma espécie de carro-chefe para qualquer ciência e somente ela seria capaz de assegurar que a ciência fosse imparcial e neutra (SELL, 2009).

Outro aspecto relevante na condução da pesquisa pelo sociólogo à luz de Durkheim diz respeito à tarefa em classifi car os fatos sociais em normal versus patológico. Essa distinção foi um dos procedimentos metodológicos de Durkheim que mais sofreu críticas. Para Durkheim, o que distingue um fato social do outro é a sua regularidade. Para ele, um fato social seria normal quando encontrado na mé-dia das sociedades e patológico quando fosse extraordinário ou eventual. Conforme

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Sell (2009), essa tese provocou diversas polêmicas. Segundo esse autor, a correla-ção entre a generalidade de um comportamento e sua positividade e, principalmen-te, entre a particularidade de certas condutas e seus efeitos negativos sobre a ordem social, exporia a sociologia ao risco de discriminar grupos sociais com comporta-mentos diferenciados. A principal contradição desse par de conceitos, à luz de Sell (2009), é que ele teria confundido o nível empírico com o nível normativo.

Aron (1993) enfatiza que distinção entre normal e patológico constitui uma das bases do pensamento de Durkheim, embora não tenha empregado com muita frequência em seu último escrito. Para Aron, a importância dada por Durkheim a essa distinção tem a ver com as intenções de reforma do sociólogo francês, visto que “sua vontade se ser um cientista puro não o impedia de afi rmar que a socio-logia não valeria uma só ora de trabalho se não permitisse o aperfeiçoamento da sociedade”. (ARON, 1993, p.342). Aron frisa que a defi nição da normalidade não exclui a explicação da generalidade, isto é, é necessário fazer um esforço para descobrir a causa que determina a frequência do fenômeno considerado. No entanto, segue o autor, o primeiro sinal decisivo quanto à normalidade de um fato social é simplesmente sua frequência.

Aron constata que assim com a normalidade é defi nida pela generalidade, a explicação é defi nida pela causa. Portanto, explicar um fenômeno social, à luz de Durkheim, é procurar por sua causa efi ciente. Isso implica em identifi car o fenômeno antecedente que o produz. Em outros termos, ao se estabelecer a causa do fenômeno, deve-se procurar igualmente a função que exerce, isto é, sua utili-dade ou função social. Portanto, mais do que descrever e classifi car os fatos so-ciais, ressalta Sell (2009), constitui tarefa da sociologia, explicá-los, ou seja, procurar entender as causas e as razões que explicam a ocorrência do comporta-mento coletivo. Para Durkheim, não é possível determinar a função social ape-nas com base na utilidade que projetamos individualmente nos comportamentos coletivos. Exatamente para evitar essa visão psicologista que Durkheim propôs a distinção entre explicação causal e explicação funcional: “quando nos lançamos na explicação de um fato social, temos de investigar separadamente a causa efi -ciente que o produz e a função que ele desempenha” (DURKHEIM, 1978, p.135 apud SELL, 2009, p. 85).

Aron (1993) ressalta que as causas dos fenômenos, conforme Durkheim, de-vem ser procuradas no meio social, uma vez é na estrutura da sociedade que se encontra a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar. Essa forma de explicação opõe-se à explicação histórica, para a qual a causa de um fenômeno deveria ser procurada no passado, isto é, no estado anterior da sociedade. Para Durkheim, a explicação histórica não se constitui numa verdadeira explicação

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científi ca. Durkheim partia do princípio de que se o meio social não fosse capaz de explicar os fenômenos observados num determinado momento da história, seria impossível estabelecer uma relação de causalidade. Portanto, a explicação causal consiste em recorrer às origens dos fatos sociais, buscando entender como surgiram e se formaram (SELL, 2009).

A prova da explicação durkheimniana deveria ser obtida, conforme Aron (1993), à luz do método das variações concomitantes, o qual foi aplicado de um modo particularmente simples na obra “O Suicídio”. Neste clássico, Durkheim comparou as taxas de suicídio dentro de uma mesma sociedade ou dentro de sociedades muito próximas entre si. O objetivo desse tipo de método é acompa-nhar o desenvolvimento integral de um fenômeno, como a família ou a religião.

Em linhas gerais, para Durkheim, a sociologia é uma ciência que tem um objeto claramente defi nido (fato social) e um método específi co de estudo: a ob-servação e a experimentação indireta, ou seja, o método comparativo. Durkheim, ao defender que a sociedade constituía-se numa realidade sui generis, isto é, a sociedade é uma realidade de natureza diferente das realidades individuais; deve ser descrita e explicada como um domínio separado dos outros. Portanto, para Durkheim: “Todo fato social tem como causa um outro fato social, e nunca um fato da psicologia individual” (ARON, 1993, p.344). Em suma, o centro do pen-samento metodológico de Durkheim é que o “ato social e específi co, provocado pela associação dos indivíduos, e diferente, pela sua natureza, do que se passa no nível das consciências individuais”.

3. WEBER: CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA E PROPOSTAS METODOLÓGICAS

Assim como Durkheim, Weber empenhara esforços em construir uma socio-logia sistemática, envolvendo o esclarecimento dos conceitos, categorias, termos e defi nições com as quais a sociologia deveria se confrontar, sendo essas umas das principais preocupações metodológicas do autor (SELL, 2009). Giddens (1998) assinala que os antecedentes que envolvem os ensaios metodológicos weberianos são complexos e devem ser situados dentro do esquema da contro-vérsia em voga naquela época sobre a relação entre as ciências naturais e as ci-ências humanas. Segundo o sociólogo inglês, o primeiro ensaio metodológico de Weber é uma crítica a Roscher e Knies. Weber afi rma que a suposta distinção en-tre ciências naturais e sociais pode ser empregada para defender um “instituciona-lismo” ilegítimo. Para Weber, as ciências sociais se preocupam necessariamente com os fenômenos “espirituais” ou “ideais”, que são características propriamente humanas, as quais não existem no objeto considerado pelas ciências naturais. No

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entanto, essa diferença necessária entre sujeito e objeto não requer, nem deve implicar, o sacrifício da “objetividade” das ciências sociais, ressalta Weber.

Sell (2009), da mesma forma que Giddens (1998), frisa que a refl exão epis-temológica weberiana é fruto da sua participação na discussão sobre o método (Methodenstreit). Por ocasião dessa discussão, Weber assume uma posição inter-mediária e própria, integrando a contribuição das duas escolas, isto é, da posição da escola historicista e dos fi lósofos historicistas, Weber aceita o postulado de que as ciências sociais são essencialmente hermenêuticas e marcadas pela rela-ção com as ideias de valor. Nesse aspecto, discorda dos historicistas, ao conceber que as ciências sociais não estariam circunscritas radicalmente ao método idea-lizante. Da perspectiva positiva, Weber retira a contribuição acerca da causalida-de e dos procedimentos explicativos, os quais são também um recurso essencial para o entendimento dos fenômenos sociais (SELL, 2010, p.110).

Em síntese, para Weber, o sociólogo deve saber integrar os dois métodos supramencionados (individualizante/compreensivo e generalizante/explicativo) nas pesquisas. Ao adotar o método individualizante, o pesquisador deve selecio-nar os dados da realidade que deseja investigar, destacando a singularidade e os traços que defi nem o objeto. Ao utilizar o método generalizante, o cientista so-cial pode recorrer ao princípio da causalidade que busca estabelecer relações entre fenômenos, evidenciando que determinados eventos podem ser explica-dos a partir de determinadas causas que geram este mesmo fenômeno, isto é, a causa efi ciente.

Em seu clássico texto “Objetividade do conhecimento nas ciências sociais”, Weber (1904) expõe sistematicamente a defesa de uma teoria e de um método que sejam capazes de favorecer a “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. Nesse ensaio, o sociólogo alemão esclarece o conceito de objetividade e qual o lugar que deve ocupar na pesquisa. Para ele, a objetividade fi gura como uma espécie de pedra angular das ciências sociais, não tendo, pois, o mesmo sentido de neutralidade. Observe-se que durante todo o texto, o termo objetivida-de aparece sempre em aspas, e deve corresponder ao afastamento dos juízos de valor (Werturteil) da análise da vida social, expressando apenas a distinção entre a busca por objetividade e o sentido da “valoração” (opinião baseada em crenças, sentimentos, valores etc).

Para Weber, a consciência valorativa não deve guiar a investigação científi ca. “Ela é própria do homem da ação, ele pondera e escolhe, entre os valores em questão, aqueles que estão de acordo com sua própria consciência e sua cosmo-visão pessoal”. No decorrer do referido ensaio, Weber procura estabelecer clara-mente qual seria a principal distinção entre ciência da natureza e ciência do so-cial. Nas próprias palavras dele: “O traço distintivo das ciências do homem em

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relação às ciências da natureza é dela se confrontar a seres conscientes que agem em função de valores, de crenças, de representações, de cálculos e que não se limitam a reagir aos estímulos do meio ambiente” (WEBER, 1904).

Em linhas gerais, Weber enfatiza que o conhecimento valorativo não nos oferece um caminho metodológico seguro, sendo necessário estabelecer uma distinção entre juízo de valor (o que deve ser) x juízo de fato (que “é”). Portanto, para Weber, o saber objetivo deve adotar pressupostos que são reconhecidos por toda a comunidade acadêmica: “[ ] na esfera das ciências sociais uma demons-tração metodicamente correta, que pretende ter atingido seu objetivo, deve ser reconhecida como exata da mesma maneira por um chinês [...].” Não se trata de universalidade positiva, mas da apreensão das singularidades históricas. Assim, para manter uma afi rmação de caráter puramente científi co é preciso seguir 2 passos fundamentais: 1) Demonstrar quais são os procedimentos com os quais a realidade será investigada e com base em que perspectiva do julgamento de valor será analisada e 2) deixar claro para o leitor onde encerra o ponto de vista do pesquisador e onde começa a “vontade” do ser humano, isto é, separar o argu-mento racional daqueles baseados em sentimentos. Segundo Aron (2009), o jul-gamento de valor é uma afi rmação moral ou vital, sendo que a relação aos valo-res é um procedimento de seleção e de organização da ciência objetiva.

Weber (1904) parte do pressuposto de que não há uma única possibilidade de resposta para determinado fenômeno empírico, mas várias possibilidades de causas e consequências. Assim, é necessário analisar uma constelação de fato-res, uma confi guração de eventos para se obter uma explicação dos fenômenos sociais. Portanto, Weber é completamente contra explicações monocausais. Quando o pesquisador se põe em atitude refl exiva de busca, de apreensão de um objeto cognoscível, deve considerar-se diante da invasão da realidade infi nita. Além disso, Weber acredita que a “objetividade” é possível no âmbito das ciên-cias sociais, todavia, dependerá dos esforços do pesquisador em, de um lado, reconhecer a impossibilidade de afastamento completo dos valores, e, de outro, ter o esforço pessoal de reconhecer esses valores (conscientes e inconscientes) e procurar ver a realidade independentemente deles. Com isso, Weber assinala que o cientista social trabalhará, com padrões de regularidade (probabilidades) e não com leis.

Mas o que signifi ca, em Weber, a objetividade das ciências sociais? Quanto a isso, ele é enfático ao afi rmar que não existe uma total objetividade da vida cultural que possa ser empregada pela análise científi ca. Sempre há o elemento da parciali-dade presente nas análises sociais. Não há como eliminar alguns “pressupostos”:

Não existe uma análise científi ca totalmente “objetivada” da vida cultural [...], ou dos “fenômenos sociais”, que seja independente de

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determinadas perspectivas especiais e parciais, graças às quais estas manifestações possam ser, explicita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objeto de pesquisa (WEBER, 2001, p. 124).

Em linhas gerais, o fenômeno científi co e a intencionalidade da ciência não podem prescindir da orientação cultural, haja vista que a vida cultural é uma vida de valor. Com isso Weber deixa claro que as estruturas sociais não existem inde-pendentemente das ações dos indivíduos: “Acontece que, tão logo tentamos to-mar consciência do modo como se nos apresenta imediatamente a vida, verifi ca-mos que ela se nos manifesta “dentro” e “fora” de nós, sob uma quase infi nita diversidade de eventos que aparecem e desaparecem sucessiva e simultaneamen-te” (WEBER, 2001, p. 124).

É importante ainda frisar que para Weber, a história não está encadeada com um certo sentido, uma certa lógica, ao contrário, o desenvolvimento da socieda-de é caótico, não tendo sentido em si mesmo. Assim, quem imputa sentido a essa sucessão de eventos é o sujeito cognoscente. Trata-se de buscar entender entida-des coletivas que não se mostram diretamente, sendo importante nesse aspecto a ação dos indivíduos. Ora, se Max Weber, ressalta Sell (2009), já tinha uma posi-ção epistemológica diferente do positivismo no que concerne às ciências sociais e naturais, o mesmo ocorre no quesito da relação entre indivíduo e sociedade. Com isso fi ca claro, que para o pensamento weberiano, o ponto de partida da explicação sociológica reside no indivíduo.

Diante do exposto é possível afi rmar que as ciências sociais originaram-se da preocupação com os problemas práticos e foram estimuladas pelo interesse dos homens em realizar mudanças sociais. Diante disso, surgiram impulsos até o estabelecimento de disciplinas que procuraram formular juízos “objetivos” sobre a realidade social e cultural humana. Sem lugar a dúvidas, esse desenvolvimento não veio acompanhado de uma clara compreensão da importância da desconti-nuidade lógica entre os juízos analíticos e as proposições normativas. Para ele, é impossível que uma disciplina empírica estabeleça, cientifi camente, ideais que defi nam o que “deve ser”. Isso corresponde a uma premissa fundamental da epis-temologia neokantiana que Weber adota, constituindo-se numa posição que dá forma a todo o conjunto de sua obra. Todavia, se é verdade que os juízos de valor não podem ser validados por meio da análise científi ca, deve fi car claro que isto não quer dizer, de nenhum modo, que tais juízos devam ser subtraido do âmbito do estudo científi co (GIDDENS, 1998).

Diante do exposto, é importante fazer menção ao conceito de sociologia para Weber (2001, p. 314): uma ciência voltada para a compreensão interpretativa da ação social e, por essa via, para a explicação causal dela no seu transcurso e nos seus efeitos”. Por ação social, concebe-se a conduta à qual o próprio agente

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associa um sentido. É uma ação orientada signifi cativamente pelo agente confor-me a conduta de outros e que transcorre em consonância com a mesma. Weber (2001) parte do pressuposto de que o comportamento humano possui conexões e regularidades, as quais podem ser interpretadas pela compreensão (Verständnis).

Para Weber, a compreensão corresponde a “evidências qualitativas”, as quais não implicam per si numa validade (Geltung) empírica. Exatamente porque “um comportamento igual no seu decurso e nos seus resultados externos, pode se basear em constelações de motivos e naturezas muito diversas, dentro das quais os compreensíveis de maneira mais evidente, nem sempre e necessariamente foram os mais decisivos”. (WEBER, p.313-14). Diante disso, “[...] O “entender” (Verstehen) de determinadas conexões deve ser controlado, na medida do possí-vel, com os métodos usuais da imputação causal, antes que uma interpretação, mesmo que muito evidente, se transforme numa “explicação compreensiva” vá-lida” (WEBER, 2001, p.314).

Desse modo, constitui-se, à luz de Weber, como tarefa da sociologia procurar “apreender o absolutamente “compreensível” e, ao mesmo tempo, o “mais sim-ples”, na medida em que corresponde a um “tipo regular” (Richtigkeitstypus) (IDEM, p.314). Nas palavras do autor: “Não é preciso ser César para compreen-der César”. Com isso Weber argumenta que “as ciências compreensíveis tratam as regularidades comprovadas de tais processos psíquicos da mesma maneira como as regularidades da natureza física” (3.14). Seguindo essa linha de pensa-mento, Weber enfatiza que o comportamento interpretável racionalmente apre-senta-se como o “tipo ideal” mais apropriado, haja vista que “[...] tanto a sociolo-gia como a História fazem interpretações, sobretudo de caráter pragmático a partir das conexões racionalmente compreensíveis de uma ação” (WEBER, 315).

Portanto, o objeto da sociologia compreensiva “não é qualquer tipo de “esta-do interno” ou de comportamento externo, senão a ação”. (idem, p. 14). Por ação Weber (2001, p.14) compreende: “[...] um comportamento compreensível em relação a “objetos”, isto é, um comportamento especifi cado ou caracterizado por um sentido (subjetivo) “real” ou “mental”, mesmo que ele não seja percebido “(ibidem). Ressalte-se que Weber concebe o objetivo da sociologia como “a cap-tação da relação de sentido” da ação humana.

Dito de outra forma, conhecer um fenômeno social implicaria em extrair o conteúdo simbólico da ação ou ações que o confi guram. Como para Weber a sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social; nesse caso, a compreensão relaciona-se à percepção do sentido que o ator atribui à sua condu-ta. Logo, a preocupação de Weber é compreender o sentido que cada indivíduo dá a sua própria conduta (ARON, 1993).

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Em outros termos, temos que a sociologia compreensiva estabelece diferenças da ação, conforme referências típicas, providas de sentido. É importante frisar que a ação social é orientada por sentidos particulares, sendo o agente individual a entidade em que os sentidos particulares podem estar simultaneamente presentes e em contato, visto que as condutas sociais oferecem um imenso campo suscetível de compreensão. Assim, Weber concebe como sentido (Sinn) aquele subjetiva-mente visado pelo agente e não qualquer sentido objetivamente correto ou meta-fi sicamente, isto é, o sentido que se manifesta na ação concreta do agente como seu fundamento, isto é, o que envolve um motivo (WEBER, 2001).

Depois de estabelecer os fundamentos lógicos das ciências sociais, Weber empreende esforços em esclarecer “qual a função lógica e a estrutura dos concei-tos com os quais trabalha a nossa ciência, à semelhança de qualquer outra? (WE-BER, 1991 p. 100 apud SELL, 2009, p. 110). Ao fazer esse questionamento, Weber está preocupado em saber qual signifi cação da teoria e da formação teóri-ca dos conceitos para o conhecimento da realidade cultural. A resposta de Max Weber a essa questão fundamenta-se na construção do tipo ideal como recurso metodológico capaz de se esquivar das ciladas do juízo de valor e dos “pressu-postos” subjetivos na análise da vida socioeconômica. Em outros termos, o tipo ideal é o método para compreender e para organizar de maneira inteligível um acontecimento histórico ou um fenômeno social. Nas palavras do próprio Weber (2001, p. 137): “No que diz respeito à investigação, o conceito de tipo ideal propõe-se a formar o juízo de atribuição. Não é uma “hipótese”, mas pretende apontar o caminho para a formação de hipóteses. Embora não constitua uma exposição da realidade, pretende conferir a ela meios expressivos unívocos”.

Para Aron (1993, 482), o tipo ideal corresponde ao “centro da doutrina epis-temológica de Max Weber” (ARON, 482). Segundo Weber, os tipos ideais preci-sam revelar como os agentes entendem a ação. Ressalte-se que o tipo ideal é provisório, diferente dos tipos puros das ciências naturais. Segundo Aronovitch (2012), os tipos ideais constituem importantes instrumentos para ilustrar opções e também mostrar os limites do conhecimento especializado. Monteiro & Cardo-so (2002, p. 14) argumentam que o referido constructo tem por objetivo cumprir duas funções básicas, a saber:

1) fornecer um caso limitativo com o qual os fenômenos concretos podem ser contrastados; um conceito inequívoco que facilita a classifi cação e a comparação;

2) servir de esquema para generalizações de tipo [...] que, por sua vez, servem ao objetivo fi nal da análise do tipo ideal: a explicação causal dos acontecimentos históricos”

Weber enfatiza que os tipos ideais, num sentido puramente lógico, devem ser rigorosamente separados da noção do dever ser, do „exemplar‟, pois “trata-se da

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construção de relações que parecem sufi cientemente motivadas para a nossa imaginação e, consequentemente, „objetivamente possíveis‟, e que parecem adequadas ao nosso saber nomológico” (WEBER, 2004, p. 107). Quanto à ação social, objeto de análise da sociologia, Weber estabelece quatro tipos, a saber:

1. Ação Racional referente a fi ns (Zweckrational): corresponde à ação instrumental, voltada a um objetivo utilitário e que implica a adequação entre fi ns e meios.

2. Ação Racional referente a valores (Wertrational): é guiada por valores éticos, estéticos ou religiosos. Exemplo: A aristocracia que se bate pela sua honra, o cavalheiro que parte para cruzada ou o capitão que afunda com o seu navio. É importante frisar que são ações racionais.

3. Ação Tradicional: “É aquela ditada pelos hábitos, costumes e crenças, transformada numa segunda natureza” (ARON, p.465). A maioria das atividades quotidianas e familiares pertence a este tipo de ação. Ela obedece simplesmente a refl exos enraizados por longa prática.

4. Ação Afetiva: Ditada pelo estado de consciência ou humor do sujeito. É guiada pela paixão. Por exemplo: A bofetada dada im-pulsivamente. (ARON, 1993, 464).

Aron (1993) assinala que a classifi cação dos tipos de ação traz consigo, em certa medida, a interpretação weberiana da época contemporânea, tendo como traço característico a racionalização. Sem lugar a dúvidas, a ciência, para Weber, faz parte e é resultado do processo de racionalização. Portanto, “a ação do cien-tista é racional com referência a um objetivo. O cientista se propõe a enunciar proposições factuais, relações de causalidade e interpretações que sejam univer-salmente válidas” (ARON,1993, p.466).

Por fi m, gostaríamos de ressaltar, à luz de Cohn (2004), que o ponto de par-tida da análise sociológica weberiana só pode ser dado pela ação de indivíduos, sendo, pois, “individualista” quanto ao método. Essa postura metodológica é inteiramente coerente com a posição sempre sustentada por Weber, de que nos estudos dos fenômenos sociais não se pode presumir a existência já dada de es-truturas sociais dotadas de um sentido intrínseco, isto é, de um sentido indepen-dente daquele que os indivíduos imprimem às suas ações (COHN, 2004).

4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS METODOLÓGICOS ENTRE DURKHEIM E WEBER

Giddens (1998) assinala que enquanto Durkheim estava impregnado por uma tradição positivista que remontava a Comte, no pensamento social alemão da épo-ca não existia uma tradição que pudesse ser comparada àquela vertente. O prolixo

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e complicado debate, que surgira na Alemanha sobre o estatuto das ciências hu-manas, abriu caminho para temas que, em grande parte, já era algo impregnado na história e na fi losofi a social francesa. Desse modo, Weber, assim com a maioria de seus contemporâneos alemães, descartava as concepções comtianas de que as ci-ências estão ordenadas a partir de uma hierarquia lógica e empírica.

Embora não haja dúvida quanto à forte infl uência do positivismo na sociolo-gia de Durkheim, viu-se igualmente no decorrer deste ensaio, que Weber não descartou totalmente os postulados metodológicos positivistas, ocupando uma posição intermediária entre as proposições positivistas e historicistas. Löwy (1994) acredita que exista, diante disso, uma aproximação, entre Weber e Durkheim, perceptível no “postulado da neutralidade axiológica das ciências so-ciais”. A sociologia do conhecimento weberiana ressalva e atenta para a impor-tância quanto ao desprendimento do cientista dos juízos de valor, embora Weber não deixe de reconhecer que a investigação científi ca esteja totalmente isenta de valores. Mesmo que os valores determinem as questões da pesquisa, o conheci-mento desse processo deve estar sempre livre de qualquer pressuposto valorati-vo. Em suma, Weber reconhece que por mais que a pesquisa social sofra infl uên-cia valorativa, para ter validade, ela deve seguir uma série de regras. Somente adotando essa medida é que o conhecimento científi co pode ser reconhecido como conhecimento válido.

Em posição similar a Giddens (2009), Sell (2009) destaca que Weber, ao contrário de Comte e Durkheim orienta toda a sua produção sociológica com base no primado do sujeito. A concepção weberiana de que o ator social fi gura como elemento fundante na explicação da realidade social atravessa toda a pro-dução epistemológica e metodológica do autor, operando uma verdadeira revo-lução nas ciências sociais. Aqui reside uma das principais diferenças metodoló-gicas entre Durkheim e Weber. Conforme assinalado antes, em Durkheim impera o primado da sociedade, para o alemão, o do indivíduo.

A verdade é que as contribuições metodológicas, tanto de Durkheim como de Weber, constituíram-se num diferencial do trabalho desses dois sociólogos. Enquanto o primeiro estava preocupado em cria “leis” sociais, o segundo em-penhara-se em compreender as especifi cidades da vida social. Apesar disso, é possível assinalar que os dois sociólogos tinham uma concepção similar de ci-ência, na medida em que a concebiam como um conhecimento válido e preciso, o qual se apoiava na observação, nas regularidades, na experimentação e num método rigoroso.

Em linhas gerais, a metodologia funcionalista de Durkheim possui como ca-tegorias centrais os conceitos de “fato social” e “função social”. A partir desses conceitos, é possível perceber que Durkheim adota uma perspectiva estruturalista

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da sociedade, isto é, a sociedade determina o comportamento dos indivíduos. Para a perspectiva funcionalista, o mundo social é concebido como algo objetivo, que tem suas leis de funcionamento próprio. Assim, cabe ao método demostrar como a sociedade é uma realidade estruturada que molda a ação individual. Aqui impera a ênfase unilateral na ação da coletividade sobre os indivíduos (SELL, 2009).

Como vimos, as categorias centrais da metodologia weberiana são os concei-tos de “ação social” e de “compreensão”. Partindo desses conceitos, é possível afi rmar que a sociologia weberiana adota uma concepção individualista de socie-dade, não sendo a realidade social concebida como algo exterior aos indivíduos. Nesse sentido, impera uma ênfase também unilateral, só que, diferente das con-cepções de Durkheim, na ação dos indivíduos como determinantes das estruturas sociais, dos autores como construtores da coletividade (SELL, 2009).

Sem lugar a dúvidas, Durkheim fi gura como um dos principais fundadores do pensamento sociológico, tendo sido também responsável pela introdução dessa ciência no ensino universitário. É através desse teórico que a sociologia adentra no mundo acadêmico e se fi rma defi nitivamente como ciência, graças ao empe-nho do mesmo em fundar um grupo de pesquisadores e acadêmicos que consoli-daram essa ciência no cenário francês (SELL, 2009). Não restam dúvidas que as contribuições de Durkheim são de grande relevância para entender a realidade social, pois ele foi um dos primeiros, senão o primeiro sociólogo, que se empe-nhou em oferecer um método de investigação próprio para a sociologia, contri-buindo para que essa ciência adotasse um maior rigor científi co e metodológico.

Da mesma forma, Weber empreendeu grande esforço intelectual para criar uma ciência do social autônoma. No conjunto de sua obra Weber traz a preocu-pação com a análise teórica e empírica dos fatos econômicos, históricos e cultu-rais, revelando seu compromisso e preocupação em “fazer ciência”, através de procedimentos que fossem capazes de proporcionar caminhos para evitar as ar-madilhas dos pressupostos valorativos. Portanto, suas contribuições acerca do método foram fundamentais para o desenvolvimento das ciências sociais.

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CAPÍTULO 3TABELAS POSSÍVEIS: ÉMILE DURKHEIM, A SOCIOLOGIA DO ESPORTE E O FUTEBOL

Priscilla Andreata

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. Émile Durkheim: algumas notas sobre sua vida e obra — 3. Durkheim, a sociologia do esporte e o futebol — 4. Considerações fi nais— 5. Referências bibliográfi cas.

1. INTRODUÇÃO

A Sociologia, afi rma Otavio Ianni (1989, p.2) “é uma espécie de fruto muito peculiar” do mundo moderno ou da modernidade e, como tal, refl ete suas princi-pais transformações, compartilha de seus dilemas e preocupações, e é perpassada por seus impasses e perspectivas. Nesse sentido, o surgimento da disciplina em meados do século XIX não pode ser desvinculado das profundas mudanças ocor-ridas a partir da Revolução Industrial, do Iluminismo, da Revolução Francesa e da Revolução Científi ca — acontecimentos que desencadearam novas relações econômicas, novas formas de interação humana e de organização política, novas concepções e representações culturais, e que demandaram novas maneiras de pensar a realidade (SELL, 2009; IANNI, 1989).

Embora sob pontos de vista diferentes e problemáticas, conceitos e métodos distintos, muitos autores se dedicaram, então, a compreender o complexo mun-do em que viviam, buscaram discernir as diferenças fundamentais em relação ao período histórico anterior, tentaram analisar tanto os fatores que teriam de-sencadeado tal metamorfose social quanto os problemas advindos de todo esse processo (SELL, 2009). Dentre eles, o francês Emile Durkheim (1858-1917) destaca-se com particular importância por ser um dos principais artífi ces da sociologia acadêmica — ao lado de Max Weber-, além de ser o principal res-ponsável pela institucionalização da sociologia nas universidades francesas, o fundador de um método particular de estudo e pesquisa sociológicos que in-fl uenciou profundamente a sociologia americana e europeia durante o século XX, e uma referência obrigatória, até hoje, a que os estudantes de ciências so-ciais são apresentados no “arriar das malas”.

Tendo como ponto de partida uma breve apresentação da obra de Durkheim a partir da exposição de alguns dos conceitos e do método de conhecimento

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PRISCILLA ANDREATA

propostos pelo autor, este trabalho pretende mapear sua infl uência na produção acadêmica contemporânea de autores que tem o esporte/futebol como objeto de pesquisa.

2. ÉMILE DURKHEIM: ALGUMAS NOTAS SOBRE SUA VIDA E OBRA

Nascido em 15 de abril de 1858 em Épinal, França, numa família de origem judia, Durkheim iniciou sua formação num colégio de sua cidade natal e con-cluiu seus estudos em Paris, primeiro no Liceu Louis Le Grand e depois, enfi m, na École Normale Superiéure (1879 e 1882), de onde saiu formado em Filosofi a com o título de “Agregé de Philosophie”. Após o término dos estudos, começou a lecionar Filosofi a em alguns liceus do interior da França — como Sens, St. Quentin, Troyes — e passou a preparar suas aulas em forma de texto, criando uma rotina de estudos e de trabalho que contribuiu decisivamente para a constru-ção de seu pensamento social.

Durante os três anos de atuação como professor de Filosofi a, Durkheim co-meça a se interessar pela Sociologia de tal modo que decide tirar um ano de li-cença de suas atividades para viajar à Alemanha com o propósito de estagiar no laboratório de psicologia experimental coordenado por Wilhem Wundt (1832-1920), o fundador da Psicologia. Wundt oferecia à época um curso sobre moral, mas Durkheim também teve oportunidade de entrar em contato com as ideias de Simmel, Dilthey e Tönnies, se aproximando defi nitivamente dos pressupostos teóricos da teoria social alemã que seriam tão importantes para o seu cotejo com a sociologia francesa e a elaboração de sua própria teoria social.

A primazia do social sobre o indivíduo, por exemplo, ou a ideia de que a sociedade não pode ser tomada como a soma dos indivíduos, que são tão carac-terísticas da sociologia durkheimiana, resultam, conforme afi rma Sidnei Ferreira de Vares (2011) do contato do autor com a teoria social alemã a partir desta curta temporada de estudos. Segundo Giddens (2005) apud Vares (2011), entre 1885 e 1887 Durkheim chega a publicar alguns artigos tendo como objeto de análise o pensamento social alemão, especialmente as ideias de Richard Schäffl er, com quem concorda na tese de que o indivíduo isolado não pode prescindir da socie-dade sob pena de não se constituir um ser social.

Durkheim retornou à França em 1886 com a intenção de desenvolver a Socio-logia como uma ciência autônoma em seu país, e um ano depois, em 1887, já era nomeado Professor de Pedagogia e Ciência Social na Faculdade de Bordeaux, onde, aos 29 anos, oferece o primeiro curso de sociologia constituído numa uni-versidade. De acordo com Renato Ortiz (1989), os cursos ofertados em Bordeaux funcionaram como ensaios para as ideias que Durkheim viria a desenvolver em alguns anos e, portanto, já antecipam e explicitam o projeto teórico durkheimiano

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concretizado no período entre 1893-1912, quando publicou três de seus livros mais importantes.

A publicação de sua tese de doutorado em 1893, intitulada “A divisão do tra-balho social”, inaugura um intervalo de tempo de profunda fecundidade teórica na carreira de Durkheim, que inclui ainda a publicação de “As regras do método sociológico” (1895) e “O Suicídio” (1897), bem como a fundação da revista L’Anné Sociologique, em 1898 — que publicou a maior parte dos trabalhos ini-ciais da sociologia francesa da época. Um período que corresponde ao que os comentadores classifi cam como a primeira fase do autor, em que é possível obser-var, conforme Ortiz, “uma certa lógica sequencial nas primeiras publicações”, bem como identifi car o “projeto” de Durkheim, “no sentido sartriano”, de “funda-ção de um novo campo científi co”.

Segundo Ortiz (1989):A Divisão do Trabalho Social (1893) estabelece o objeto da socio-logia, As Regras do Método Sociológico (1895) lança as bases de uma metodologia específi ca da nova ciência; O Suicídio (1895) aplica o método a um terreno considerado até então como perten-cente à psicologia. Quando L’Année Sociologique é criada, em 1898, o pensamento durkheimiano encontra-se defi nido; trata-se agora de consolidar e expandir um conhecimento através de uma equipe de pesquisadores especializados no estudo de diferentes ra-mos da sociedade. (ORTIZ, 1989).

Na virada do século XIX para o século XX, e numa época em que o prestígio intelectual era uma consequência da experiência dos mais velhos, Durkheim já havia conquistado notoriedade e respeito para com e entre seus pares quando, em 1902, foi convidado para ser suplente na cadeira de Ciência da Educação na Universidade de Sorbonne, em Paris, da qual, em quatro anos, seria o Professor titular. Dez anos após chegar à Sorbonne, Durkheim publica o que viria a ser sua última grande obra, “As formas elementares da vida religiosa” (1912), conside-rada por seus comentadores como a mais importante da sua segunda fase teórica, já que morreria em 1917 com apenas 59 anos e bastante abatido pela perda de seu fi lho durante a 1a Guerra Mundial.

Nota-se, por sua biografi a, que o indivíduo Émile Durkheim foi contemporâ-neo das consequências da consolidação do capitalismo e do urbanismo, do clima cultural da Belle Époque, da ideia de progresso e do surgimento de inovações tecnológicas como a eletricidade e o cinema. Internamente, Durkheim habitou uma França que se deparava, ainda, com as consequências da derrota na guerra franco-prussiana e das três crises econômicas de 1900-01, 1907, 1912-13, que contribuíram para o recrudescimento do desemprego, do pauperismo e dos fl uxos

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migratórios das vilas e comunidades tradicionais para as cidades, além das dispu-tas e confl itos resultantes da oposição entre capital e trabalho.

Não por acaso, portanto, suas obras refl etem alguns dos dilemas e problemas específi cos da sociedade em que vivia. Em “A divisão do trabalho social” (1893), por exemplo, Durkheim buscou compreender a função da divisão do trabalho nas sociedades sob o pano de fundo das inúmeras transformações estruturais ocorri-das com o advento da sociedade moderna. Nesse sentido, preocupado com a desagregação social que identifi cava ao seu redor, o autor procurou analisar as relações entre indivíduo e sociedade na transição da ordem social tradicional para a nova ordem urbana e industrial, assim como buscou explicar os mecanis-mos que garantiam, nos dois períodos históricos, a unidade, a estabilidade e a continuidade da sociedade.

Se a ordem social tradicional havia entrado em colapso, conforme supunha Durkheim, a sociedade moderna precisava criar seus próprios mecanismos para não perecer. Partindo da caracterização dos dois momentos que considerava representativos da evolução da sociedade, Durkheim buscou, então, analisar as relações entre indivíduo e sociedade na ordem social tradicional e na ordem social moderna, com o intuito de compreender ao mesmo tempo como os indi-víduos interagiam entre si e como a sociedade se mantinha coesa nos dois mo-mentos históricos.

Tendo em vista que a divisão do trabalho e a especialização das funções im-plicaram em novas formas de sociabilidade e interação entre os indivíduos, inte-ressava a Durkheim entender, então, o que constituía a sociedade moderna, que laços se formavam entre os indivíduos numa sociedade de mudanças tão céleres, o que mantinha a ordem, a moral e a coesão social naquela sociedade moderna capitalista. Se nas sociedades tribais e feudais anteriores ao capitalismo, nas quais a divisão do trabalho era pouco desenvolvida e havia menos especialização das funções, a coesão social era garantida por um conjunto de crenças, normas e costumes comuns partilhados por indivíduos similares a que Durkheim denomi-nou de ‘consciência coletiva’, quais mecanismos seriam responsáveis por garan-tir a ordem e a coesão sociais na sociedade moderna?

No esquema proposto pelo autor as sociedades tradicionais se caracterizam por laços de solidariedade mecânica e se mantém coesas pela correspondência de valores partilhados entre indivíduos pouco diferentes entre si; à medida que a divisão do trabalho se desenvolve, no entanto, a estrutura social se diferencia, as funções sociais se diversifi cam, os indivíduos se tornam menos semelhantes e a consciência coletiva se enfraquece. Nesse sentido, a diferenciação para Durkheim é a chave para compreender o processo de evolução social que está implícito na transformação das sociedades simples, pré-capitalistas, numa forma de socieda-de mais complexa, a capitalista.

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Na sociedade moderna capitalista, portanto, os indivíduos são mais interde-pendentes e menos semelhantes que nas sociedades tradicionais, também com-partilham menos os valores e as crenças sociais e a integração social se dá menos pela consciência coletiva do que pela diferenciação entre os indivíduos e grupos no interior da sociedade. É exatamente esta diferenciação que cria um outro tipo de organização social, que Durkheim denomina de solidariedade orgânica, onde a coesão e a ordem sociais são garantidas por regras e códigos de conduta que estabelecem direitos e deveres e que são expressos, notadamente, a partir de normas jurídicas.

A solidariedade social, portanto, afi rma Durkheim, não apenas decorre da divisão do trabalho, mas contribui para a “interação geral da sociedade”; ou dito de outra forma, a divisão do trabalho tem uma função social que a legitima como um importante fato social deste período da industrialização capitalista. Desse modo, além do conceito de fato social, Durkheim antecipa alguns dos procedi-mentos do método que apresentaria dois anos depois, com a publicação de “As Regras do Método Sociológico” (1895), a comparação e a classifi cação.

O livro “As Regras do Método Sociológico” (1990) constitui a primeira obra exclusivamente metodológica escrita por um sociólogo, situação que o autor res-salta ao afi rmar que poucos sociólogos até então se mostraram preocupados em caracterizar ou defi nir o método que utilizavam. E desde a sua introdução, Durkheim já chamava atenção para a necessidade de se criar um método de ob-servação com procedimentos de verifi cação que conferisse à Sociologia a capa-cidade de estudar os acontecimentos sociais, assim como acontecia então à ou-tras ciências no estudo de seus objetos como, por exemplo, a Biologia e os fenômeno naturais.

Segundo Durkheim, “os grandes sociólogos” Spencer, Stuart Mill e Auguste Comte, não se ocuparam do problema metodológico da Sociologia, não resisti-ram às “generalidades sobre a natureza das sociedades”, embora Comte tenha refl etido sobre esta questão num capítulo do seu Curso de Filosofi a Positiva, que Durkheim considerou “o único estudo original e importante que temos sobre o assunto”. Por isso, ainda permaneciam indefi nidas, a seu ver:

...as precauções a tomar com a observação dos fatos, a maneira pela qual os principais problemas devem ser colocados, o sentido em que se deve nortear as pesquisas, as práticas especiais que cos-tumam lhes permitir chegar ao fi m e as regras que devem presidir à administração das provas. (DURKHEIM, 1990, pg. XXXVI)

O esforço de Durkheim, portanto, afi rma Florestan Fernandes (1974, p.78) é por elaborar “uma teoria da investigação sociológica”; seu objetivo consistia em

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demonstrar a especifi cidade do social e assim emancipar a sociologia como ciên-cia estabelecendo uma separação objetiva em relação à outras ciências do homem como a Filosofi a, a Psicologia e a própria Biologia. A Sociologia só se constituiria uma ciência independente das demais à medida que construísse seu próprio objeto e seu método de investigação particular.

Na busca pela defi nição do objeto e do método particulares da Sociologia, Durkheim terminou por evidenciar mais nitidamente a infl uência do evolucionis-mo de Herbert Spencer e do positivismo de August Comte em suas formulações. Apropriando-se da epistemologia positivista, Durkheim encontra na biologia os fundamentos para propor sua concepção da sociedade como um organismo vivo que possui órgãos interdependentes trabalhando em conjunto para o seu funcio-namento harmônico. Nesse sentido, a sociedade moderna, como qualquer orga-nismo vivo, se defi nia como um organismo social com uma lógica organizativa própria que deveria ser explicada a partir das relações de causalidade e funciona-lidade que lhes são inerentes.

Durkheim, então, defi ne a Sociologia como a ciência dos fenômenos sociais, uma espécie nova de fenômenos que difere dos orgânicos e psíquicos por ter a sociedade como base, cuja explicação deve ser buscada na própria estrutura so-cial identifi cando separadamente a causa efi ciente que tal fenômeno produz e a função social que cumpre (Aron, 1990, p. 342). Os fenômenos do “domínio da Sociologia”, portanto, são chamados por Durkheim de fatos sociais e são defi ni-dos por ele como

toda maneira de agir, fi xa ou não, suscetível de exercer sobre o in-dividuo uma coerção exterior; ou então, ainda, que é geral na ex-tensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência pró-pria, independente de suas manifestações individuais que possa ter. (DURKHEIM, 1990, p.11)

Com a defi nição dos fatos sociais como objeto de estudo da pesquisa socio-lógica, Durkheim estabelece as características a serem observadas na identifi ca-ção dos mesmos: o fato social é reconhecível por seu caráter exterior às consci-ências individuais, pela força coercitiva que impõe aos indivíduos e por sua generalidade como fenômeno coletivo. Tendo defi nido o objeto da Sociologia e enumerado suas características, Durkheim estabelece, então, os procedimentos metodológicos necessários à pesquisa e ao estudo dos fatos sociais.

A primeira regra proposta por Durkheim diz respeito à observação dos fatos sociais e postula que os mesmos devem ser tratados como “coisas”. Tratar os fenô-menos sociais como “coisas” signifi ca entender que tais modos de ser, pensar e agir ultrapassam a vontade e o entendimento intuitivo dos indivíduos e constituem uma realidade objetiva que se impõe à observação. Nesse sentido, os fatos sociais

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devem ser reconhecidos “em si mesmos, destacados das consciências individuais”, precisam ser estudados “de fora, como coisas exteriores”, requerem ser analisados “na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência”.

Para estudar o fato social, entretanto, é preciso ainda que o sociólogo guarde algumas regras de conduta, seguindo uma disciplina de tal modo rigorosa que desfaça todas as pré-noções do pesquisador em relação ao objeto. Esta é, inclu-sive, a base de todo o seu método científi co, a análise dos fatos sociais exige ao mesmo tempo uma refl exão prévia e o abandono de ideias pré-concebidas; nesse sentido, afi rma Durkheim, para construir uma análise científi ca o observador deve se ater à observação, à descrição e à comparação dos fenômenos sociais de forma neutra e objetiva, livre de julgamentos de valor e de pré-noções.

Às regras relativas à observação dos fatos sociais seguem, superpostas em capítulos, as regras relativas à distinção entre os fatos sociais normais e patoló-gicos, as regras relativas à constituição dos tipos sociais, as regras atinentes à explicação dos fatos sociais e as regras relativas à administração da prova, onde o próprio autor sintetiza seu método em três pontos básicos: a) é independente de toda fi losofi a, não possui vinculação com qualquer visão fi losófi ca ou ideológica do mundo; b) é objetivo, inteiramente dominado pela ideia de que os fatos so-ciais são coisas e como tais devem ser tratados; c) é exclusivamente sociológico, ou seja, não deriva da forma da fi losofi a tratar a sociedade, tampouco da psico-logia ou das ciências naturais, uma vez que afi rma que a sociedade tem uma na-tureza própria, que não é derivada nem da natureza humana, nem das consciên-cias individuais, nem das constituições orgânicas dos indivíduos.

A obra de Durkheim viria a ser profundamente relevante para o desenvolvi-mento do pensamento social e sua infl uência se expandiu para diversos países durante todo o século XX, assim como sua teoria funcionalista se consolidaria como uma das mais importantes perspectivas teórico-metodológicas da Sociolo-gia, embora tenha sido reinterpretada e desenvolvida ao longo do tempo, rece-bendo outras denominações como “neofuncionalismo”, “estrutural-funcionalis-mo” e “teoria dos sistemas”. Conforme afi rma Carlos Eduardo Sell (2009),

Suas teses sobre o “holismo metodológico” (nível epistêmico) e sua “análise funcionalista” (nível metodológico) foram retomadas e ampliadas na antropologia por Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Radcliffe-Brown (1881-1955). Na sociologia, sua infl uên-cia se estende por nomes como Talcott Parsons (1902-1979), Ro-bert Merton (1910-2003)... e a autores contemporâneos como Jeffrey Alexander, James Coleman e Richard Münch, por exem-plo. (SELL, 2009, p. 86-87)

Enfatizando o consenso, a coesão e a ordem social existentes na sociedade viabilizados por costumes e valores públicos compartilhados, Durkheim abordou,

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em sua obra, alguns temas como a divisão do trabalho, a solidariedade social, a moral, o direito, a educação, o suicídio e a religião; mas a infl uência da sua pers-pectiva funcionalista se estendeu também, ao longo do século passado, para ou-tros campos de estudos como, por exemplo, a Sociologia do Esporte.

3. DURKHEIM, A SOCIOLOGIA DO ESPORTE E O FUTEBOL

À rigor, o campo da sociologia do esporte começa a se legitimar a partir dos anos 1960, mais exatamente em 1965, com a fundação do Comitê Internacional de Sociologia do Esporte (à época ICSS e ISSA desde 1998), na cidade de Var-sóvia, Polônia — para a qual contribuíram estudiosos da área da Educação Física e da Sociologia — que viria a criar, por sua vez, ainda em 1965, a Revista Inter-nacional de Sociologia do Esporte (IRSS), além da organização de congressos e simpósios. No entanto, os primeiros estudos sobre esta temática remontam à passagem do século XVIII para o século XIX, quando foram produzidos, à reve-lia das instituições acadêmicas, estudos como o de Peter Beckford, publicado em 1796, sobre a caça à raposa na Inglaterra de então; e os trabalhos de Montagu Shearman publicados em 1887 e 1889, sobre a história e o desenvolvimento do futebol, do rúgbi e do atletismo na Inglaterra da época (DUNNING, 2004, apud SOUZA & MARCHI JR, 2010).

No texto “Por uma gênese do Campo da Sociologia do esporte: cenários e perspectivas” (2010), Juliano de Souza e Wanderley Marchi Júnior apresentam um panorama histórico-sociológico do desenvolvimento deste campo de estu-dos, recuperando cronologicamente alguns dos autores e textos que se constituí-ram referências fundamentais para os estudiosos desta temática. Nesse sentido, os autores demonstram um cenário já bastante diferente na transição do século XIX para o século XX, quando o esporte chegou às universidades a partir do trabalho de autores clássicos como Thorstein Veblen — que se refere ao esporte como uma das atividades passíveis de distinguir as classes sociais, em sua obra “A teoria da classe ociosa”, publicada em 1899 —, Marcel Mauss — que em seu texto “As técnicas do corpo”, publicado em 1902, enumera a corrida, o nado, a escalada e a dança dentre as diferentes maneiras que os indivíduos se utilizam de seus corpos em sociedades distintas — e Max Weber — que analisa a posição do puritanismo inglês em relação às atividades esportivas e de lazer em “A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicada em 1904.

Conforme afi rmam Souza & Marchi Jr (2010), a estas primeiras contribuições para um campo que só se estruturaria sistematicamente durante os anos 60, perí-odo em que a própria Sociologia também se reformulava e se institucionalizava, se somam o texto de Heinz Hisse de 1921, sob a orientação de Alfred Weber, o primeiro estudo sociológico que tratou a temática do esporte mais amplamente,

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relacionando o esporte competitivo à sociedade industrial da época; o trabalho de Joah Huizinga, “Homo Ludens” (1938), que propõe o jogo como um componente inerente à cultura; os escritos de Adorno e Horkheimer em “Dialética do Esclare-cimento” (1947), em que os autores abordaram as atividades de lazer à luz da ideia da indústria cultural.

Já na segunda metade do século XX, destacam-se as dissertações de mestra-do de Anthony Giddens, defendida em 1961 na London School of Economics, onde o autor abordou a questão do esporte na sociedade inglesa contemporânea; e de Eric Dunning, também defendida em 1961, na qual o autor trabalhou sobre o desenvolvimento histórico-sociológico do futebol sob a orientação de Norbert Elias na Universidade de Leicester, utilizando como referencial teórico-metodo-lógico a sociologia fi guracional e a teoria do processo civilizatório formulados por seu orientador.

Se os anos 1970 trazem alguns dos primeiros textos publicados com um cará-ter mais didático no campo específi co da Sociologia do Esporte, como “Sport, culture and Society” e “The Sociology of sport: a selection of readings”, ambos de John W. Loy e Gerard S. Kenyon — publicados, respectivamente em 1969 nos Estados Unidos e em 1971, na Inglaterra —, os anos 80/90 assistem à uma difu-são da produção deste campo em escala mundial e nas mais diversas perspectivas teóricas como, por exemplo, o marxismo, o funcionalismo, o interacionismo sim-bólico, a sociologia fi guracional, o pós-estruturalismo e os estudos culturais.

Um balanço do desenvolvimento do campo da sociologia do esporte e da di-versidade teórico-metodológica de seus estudos pode ser encontrado na obra “Handbook of Sport Studies” (2004), editada por Jay Coakley e Eric Dunning, uma vasta compilação de artigos dividida em quatro grandes partes temáticas que trazem um mapeamento dos usos das diversas perspectivas sociológicas, das dife-renças e semelhanças das apropriações desta temática feitas pelas diversas disci-plinas das ciências humanas, dos tópicos-chave estudados pelos autores contem-porâneos como a globalização, o nacionalismo, o controle social, a violência etc., e das pesquisas realizadas à época por estudiosos de vários lugares do mundo.

As contribuições da obra de Durkheim e do funcionalismo para o campo da sociologia do esporte constituem o assunto do primeiro capítulo da obra de Coakley & Dunning (2004), intitulado “Functionalism, sport and society” e escrito por John W. Loy and Douglas Booth. Nele, os autores recuperam a origem desta importante corrente teórica, citando seus principais autores, pres-supostos teóricos e críticas recebidas, com o intuito de apresentar sua infl uên-cia nas obras produzidas sob este referencial dentro do campo específi co da Sociologia do Esporte.

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De acordo com Loy & Booth (2004), a abordagem funcionalista auxiliou os sociólogos do esporte a pensá-lo como uma instituição social e a considerá-lo como um refl exo da sociedade a que faz parte, em meio às complexas relações que envolvem também a interação com outras instituições. Nesse sentido, dentre as análises mais explicitamente funcionalistas no campo da sociologia do espor-te, os autores destacam os trabalhos de Harry Edwards — autor do primeiro livro sobre a Sociologia do Esporte nos Estados Unidos, intitulado “Sociology of Sport” e publicado em 1973, que traz um capítulo inteiro dedicado à descrição das funções do esporte como uma instituição social —, e de Gunther Luschen, sociólogo alemão residente nos Estados Unidos, que foi o autor que mais promo-veu o quadro instrumental funcionalista neste campo em sua época (Loy & Boo-th apud Coakley & Dunning (2004, p.15).

Em seu artigo mais famoso, intitulado “The interdependence of sport and culture” e publicado na IRSS em 1967, Luschen discute as funções e disfunções do esporte no âmbito da cultura e da sociedade, e sua relação com a evolução social. Retomando a oposição teórica entre a sociedade primitiva e a moderna proposta no esquema durkheimiano, Luschen conclui em seu estudo que, nas “sociedades pré-alfabetizadas”, a função do esporte é universal, frequentemente religiosa e orientada coletivamente, não raro associada às habilidades de guerra; enquanto que na sociedade moderna, sua função se relaciona muito mais à ma-nutenção de padrões e da integração social.

Na transição dos anos 1960-70 destaca-se o trabalho de Christopher Steven-son e John Nixon, no qual os autores identifi cam cinco funções sociais básicas do esporte: 1) a função sócio-emocional — onde o esporte contribuiria para a manutenção da estabilidade sócio-psicológica da sociedade; 2) a função de so-cialização, em que o esporte contribuiria para a afi rmação de crenças culturais e costumes; 3) a função de integração, que contribuiria para a integração harmôni-ca das disparidades de grupos e indivíduos; 4) a função política, quando o espor-te é utilizado com propósitos ideológicos; e 5) a função de mobilidade social, na qual o esporte representa uma fonte de mobilidade ascendente.

Além dos trabalhos escritos em língua inglesa, Loy & Booth, 2000 ressaltam também as perspectivas funcionalistas de Kalevi Heinila — que em artigo publi-cado na IRSS de 1961 e intitulado “Notes on the Inter-group Confl icts on Inter-national Sport” propôs analisar a função da ideologia do esporte —, e Hideo Tatano — cuja análise mais funcional do esporte na Inglaterra foi publicada na IRSS em 1981 com o título de “A Model-Construction of Sport as Culture: a working paper toward a systematic analysis of sport” — menos conhecidas à época por serem escritas na língua nativa dos autores, fi nlandês e japonês.

Em seu artigo, Tatano (1981) apud Loy & Booth (2000) se propõe investigar a importância dos símbolos esportivos a partir do referencial teórico-metodológico

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TABELAS POSSÍVEIS: ÉMILE DURKHEIM, A SOCIOLOGIA DO ESPORTE E O FUTEBOL

de Talcott Parsons, relacionando-os aos sistemas esportivos a que faziam parte. O autor constrói uma análise que une os níveis macro e micro do fenômeno esporti-vo, ressaltando a possibilidade de estudá-lo empiricamente em toda sua complexi-dade e em relação a outros sistemas sociais sob o prisma de sua função estrutural. Dentre outros exemplos de análises que priorizaram a perspectiva micro e macro, Loy & Booth (2000) apontam os trabalhos de Luschen (1969) e Loy (1969), que oferecem modelos funcionalistas para análises de dinâmicas de grupos entre equi-pes esportivas. Enquanto Luschen enfatizava em seu artigo a análise de grupos esportivos em níveis estruturais, problemas funcionais e sub-sistemas de ação, Loy buscava entender a diferenciação do papel do líder numa equipe esportiva.

Na fronteira entre a micro e a macro análise sociológica, há referência tam-bém ao trabalho de Norbert Elias e Eric Dunning, que teriam produzido “a mais detalhada análise teórica sobre o confl ito e a tensão no esporte”, embora ambos se considerassem e sejam até hoje considerados sociólogos mais fi guracionais que funcionalistas. De acordo com Loy & Booth (2004), são evidentes as infl uências funcionalistas em pelo menos dois trabalhos de Elias & Dunning — “Structural--Functional Properties of Folk-Games and Modern Sports: a Sociological Analy-sis” de 1973 e “Dynamics of sport groups with special reference to football”, de 1996 —, nos quais teriam construído uma “análise sobre as estruturas e processos de manutenção de equilíbrio de tensões para jogadores e expectadores”.

Os estudos sobre religião de Émile Durkheim também tem sido utilizados pelos sociólogos do esporte, notadamente, com o objetivo de analisar os elemen-tos rituais e religiosos dos jogos esportivos. É o caso por exemplo, do estudo de C. Bromberger, intitulado “Football as a world-view and as a ritual”, e publicado pela primeira vez em 1995 na revista especializada French Cultural Studies, em que o autor identifi ca sete correspondências entre cerimônias religiosas e rituais de jogos de futebol.

Conforme afi rma Richard Giulianotti (2005) em outra obra contemporânea relevante para o campo da Sociologia do Esporte — “Sport: a critical sociology” — os eventos esportivos são uma alternativa ritual para a coesão social dentro dos termos propostos por Durkheim sobre a religião e a manutenção da ordem na solidariedade social moderna. Como acontece durante os rituais religiosos, as competições e jogos esportivos possuem seus próprios rituais, que ocorrem du-rante um espaço de tempo específi co, no qual o clã se permite celebrar a si mes-mo adorando seus objetos sagrados — como o campo de jogo, a sala de troféus e o estádio —, seus objetos totêmicos — que podem derivar do mundo natural ou da identidade emblemática de um clube, como o urubu para o Clube de Regatas do Flamengo —, ou as qualidades dos seus heróis esportivos, sacralizados pelo status de representantes da comunidade.

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No entanto, conforme aponta Llobera apud Giulianotti (2004), o pensamen-to durkheimiano tem sido subutilizado quando a questão é pensar o esporte em relação a tipos modernos de coesão social como, por exemplo, o nacionalismo, entendido pelo autor como a incorporação institucional do Estado-nação. Nesse sentido, concordam os autores, pesquisadores contemporâneos deixam de per-ceber como o esporte e o nacionalismo constituem atualmente forças mutua-mente complementares que podem fortalecer a solidariedade orgânica; e dei-xam de observar como eventos como os jogos olímpicos e a copa do mundo de futebol terminam por reforçar a integração coletiva com seus rituais de repre-sentação da nação como um elemento sagrado, ratifi cados pela atuação do meios de comunicação na reiteração das características e símbolos nacionais historicamente construídos.

Uma crítica imediata que se pode fazer só pela observação do sumário de “Handbook of Sports Studies” e “Sport: a critical Sociology”, é à predominân-cia de autores de língua nativa inglesa e poucas referências a trabalhos produzi-dos por pesquisadores sul-americanos, e menos ainda aos representantes da so-ciologia do esporte brasileira. Este traço é ressaltado também por Souza & Marchi Jr (2010) a respeito de “Handbook of Social Science of Sport”, editado por Günther Lüschen e George H. Sage em 1981, e de “Handbook of Sport and Society” de Jay Coakley e Eric Dunning, publicado em 2000, outros dois impor-tantes compêndios deste campo. Refl etindo sobre a ausência de nomes represen-tativos da sociologia do esporte sul-americana no cenário internacional, Souza & Marchi Jr (2010) apresentam a seguinte provocação:

Será que a sociologia do esporte é uma área de investigação que tem sido negligenciada na América Latina ou então os trabalhos sociológicos do esporte desenvolvidos nesse continente é que não são levados em conta pelos agentes e instituições em condição de defi nirem e imporem uma visão do que seria primeiramente Socio-logia e, em seguida, Sociologia do Esporte?

Vale ressaltar, nesse sentido, que o campo da Sociologia do Esporte no Bra-sil está consolidado há pelo menos 30 anos, e tem como marco inaugural o livro “Universo do futebol”, organizado pelo antropólogo Roberto DaMatta e publi-cado em 1982. Nesta obra é possível observar a infl uência de Durkheim de modo implícito, sem citações ao sociólogo francês no texto de Luiz Felipe Baêta Ne-ves Flores intitulado “A Zona do Agrião. Sobre algumas mensagens ideológicas do futebol”, no qual o autor distingue grupos de enunciados ideológicos que corroboram representações sociais então vigentes na sociedade brasileira e que “buscam interpretar e justifi car a manutenção (reprodução) dessa sociedade” (Flores, 1982, p.46).

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Nesse sentido, Flores (1982) disseca a representação social da nação pelo futebol à época, que postulava um “esforço comum entre pessoas iguais”, de-mandava uma “coesão e espírito de equipe” e projetava a possibilidade de su-cesso pessoal em harmonia com o sucesso da coletividade. Ao mesmo tempo, o autor disserta sobre o espaço, o tempo, a duração do jogo, os símbolos criados pela torcida e a fi gura do juiz como marco da simbologia do poder sem, no entanto, jamais se referir aos escritos de Durkheim sobre a religião — lembran-do a analogia entre as cerimônias religiosas e as competições esportivas que Richard Giulianotti construiria em livro publicado em 2005, com explícita re-ferência a Durkheim.

Mais recentemente, em 2003, Klarissa Almeida Silva se dedicou a refl etir sobre a existência de pontos confl uentes entre os aspectos lúdicos do futebol e os aspectos religiosos inerentes à sociedade brasileira, utilizando explicitamente as ideias de Durkheim em texto intitulado “Futebol e Religião: uma análise comparativa”. No texto, a autora afi rma que o futebol mistura características singulares e específi cas da sociedade brasileira — como o caráter festivo e reli-gioso da nossa cultura — tornando-se um dos maiores símbolos da identidade nacional brasileira.

Desde a publicação da obra Universo do futebol (1982), portanto, o campo da Sociologia do Esporte, especialmente no que se refere ao futebol, se desenvol-veu e produziu uma vasta e diversa bibliografi a, sob o recorte dos mais distintos referenciais teóricos, em que se destacam estudos sobre a inserção/participação dos negros no futebol brasileiro; as discussões sobre estilos e escolas de futebol; a circulação de jogadores brasileiros no mercado internacional de futebol; as relações entre futebol, identidade, violência e torcidas organizadas. Mas, dife-rente de outros países, não há, no Brasil, grandes compêndios organizados sobre a história da literatura da sociologia do esporte no país, que possibilitariam me-lhor visualizar quem foram e quem são, atualmente, os seus autores, a que pers-pectivas teóricas se fi liam e com quais temáticas desenvolvem seus trabalhos.

Nesse sentido, um levantamento bibliográfi co mais detalhado dos estudos produzidos no Brasil dentro do campo da Sociologia do Esporte e estritamente sob o referencial teórico-metodológico de Emile Durkheim exigiria um esforço que extrapola os limites deste trabalho. No entanto, inspirado pela ideia de Ri-chard Giulianotti (2004) acerca da importância do retorno aos clássicos com o intuito de melhor entender “por que fazemos o que fazemos e por que acredita-mos no que acreditamos”, este artigo pretendeu ser ao mesmo tempo um exercí-cio de sistematização da importância das ideias de Emile Durkheim e de sumari-zação da infl uência de suas ideias no campo da Sociologia do Esporte.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese seu caráter exploratório e o estágio inicial da pesquisa de dou-torado à que faz parte, este trabalho é parte também de um projeto de estudos que pretende retomar outros autores clássicos a partir de suas obras e principais conceitos e mapear suas utilizações no campo da Sociologia do Esporte. Preten-de-se assim, situá-los numa espécie de linha do tempo e entre os acontecimen-tos históricos da época em que viveram de modo a poder construir um mapa teórico-metodológico dos clássicos e de sua infl uência na produção contempo-rânea do campo da Sociologia do Esporte, identifi cando alguns de seus princi-pais autores e temas.

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CAPÍTULO 4HABERMAS E OS DESAFIOS METODOLÓGICOS

DA TEORIA CRÍTICA FRANKFURTIANA

Bruno Andrade de S. Neto

Em meados da década de 1920, certo grupo de pensadores alemães funda um centro de pesquisas que fi cou conhecido como Escola de Frankfurt. Inicialmente o principal objetivo desses estudiosos era tentar diminuir o hiato que se criou ao longo da história entre a fi losofi a e a pesquisa empírica. Neste aspecto a obra de Hegel terminou servindo como grande inspiração para a construção de um mo-delo teórico que conseguisse adequar esses dois momentos da fi losofi a da histó-ria, fazendo com que o próprio exame empírico da realidade pudesse estar de acordo com uma compreensão fi losófi co-histórica sobre a razão. A idéia central consiste em saber que tomados de maneira separada as duas perspectivas perdem a categoria de mediação: o positivismo científi co se limita àquilo que elege como dado objetivo, enquanto o pensamento fi losófi co faz o caminho oposto e dissol-ve-se em pura especulação sobre a essência.

Ao tentar suprimir esta separação artifi cial, a teoria crítica proposta pela Escola de Frankfurt pretendeu recuperar para essas formas de conhecimento de-terminadas características que foram relegadas ao esquecimento e sem as quais jamais poderiam estar completas. Para que isso ocorresse o método utilizado deveria ser interdisciplinar. Com a intenção de remodelar o pensamento marxista de maneira coerente e fecunda (levando sempre em consideração o movimento dialético teorizado por Hegel), Max Horkheimer e seus colegas se apropriaram dos avanços obtidos por disciplinas distintas, mas não excludentes — como a economia e a psicologia — para construir um arcabouço teórico que pudesse dar conta das novas formas de sociabilidade criadas pelo capitalismo em amplo de-senvolvimento. Deste modo manteve-se a intenção de realizar uma abordagem de teor materialista sobre a realidade social.

Superar a distância criada entre o cientifi cismo e o pensamento fi losófi co foi, durante anos, o grande desafi o dos teóricos da Escola de Frankfurt. Horkheimer acreditava que neste panorama não havia espaço para uma concepção transcen-dente de razão, como pode ser encontrada na fi losofi a clássica, e que era extre-mamente necessária para que os objetivos da escola pudessem ser alcançados. O que explica o imperativo de desempenhar uma crítica ferrenha à metodologia

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positivista. Desde o início a teoria crítica fi cou conhecida pela sua atitude con-testadora em relação às infl uências negativas da razão instrumental, especial-mente no âmbito das sociedades capitalistas ocidentais. Porém é preciso lembrar que neste período específi co ela ainda carecia de um amadurecimento, o que é totalmente compreensível — tal maturidade só veio acontecer nos anos posterio-res a segunda grande guerra.

De qualquer maneira alguns importantes objetivos destes pesquisadores pa-recem não terem se modifi cado no contexto do pós-guerra, muito pelo contrário, eles fortaleceram-se enormemente. Sabe-se, por exemplo, que Horkheimer des-de muito cedo se preocupou em compreender a maneira com a qual “ocorrem os mecanismos mentais em virtude dos quais é possível que as tensões entre as classes sociais, que se sentem impelidas para o confl ito por causa da situação econômica, passam a permanecer latentes” (2007, p.136). A economia política seria, portanto, a disciplina que melhor se adequaria à função de ponte entre as chamadas ciências especializadas (como a sociologia) e uma fi losofi a da história, pois ela possui a rara capacidade de apreender empiricamente os movimentos particulares do sistema capitalista, sem perder de vista a sua dimensão mais am-pla, que diz respeito ao seu contexto fi losófi co e histórico.

Para conseguir perceber os motivos que levam milhões de indivíduos a, em determinadas situações, sujeitarem-se sem resistência a um sistema de domina-ção perverso (contradizendo a famosa teoria marxista da revolução proletária), foi preciso arriscar-se também no campo da psicologia. Baseando esta etapa do estudo no trabalho de Sigmund Freud, Horkheimer pretendia revelar as estrutu-ras subjetivas que impedem o homem moderno de visualizar com clareza a sua real situação, sem perder de vista os imperativos sociais que agem neste sentido. Como um comportamento conformista não é algo que venha surgir nas consci-ências individuais de maneira simplesmente espontânea, pois ela é sempre cultu-ralmente refl etida, se fez necessário esboçar também uma teoria da cultura que analisasse “as condições culturais sob as quais ocorre a socialização individual no capitalismo adiantado” (2006, p.512).

Em linhas gerais estes seriam os pilares da chamada teoria crítica desenvol-vida pelos integrantes da Escola de Frankfurt ainda nas primeiras décadas do sé-culo passado. O interessante é observar como após a segunda guerra mundial al-gumas características da perspectiva defendida pelo Instituto sofreram modifi cações signifi cativas. Se antes o que chamava mais atenção era a preocupa-ção constante com a dimensão do trabalho produtivo, e em como a sua reestrutu-ração seria determinante para a construção de um futuro mais justo, a partir da década de 1940 (mesmo não abandonando o ponto de vista materialista) as recém comprovadas potencialidades destrutivas da razão passaram a ter um papel

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preponderante nas inquietações desses fi lósofos. Com a eminência de um confl ito nuclear entre EUA e URSS, que ameaçava a existência da humanidade, a noção de progresso passou a ser encarada de maneira muito mais cética.

Uma das críticas mais comuns direcionada à teoria crítica frankfurtiana seria o suposto reducionismo funcionalista da perspectiva histórico-fi losófi ca herdado do pensamento de Marx. No texto Teoria Crítica Axel Honneth acusa os teóricos de Frankfurt de manterem a escola fechada a uma alternativa de interpretação dos processos históricos que não estivessem necessariamente relacionadas à investi-gação do trabalho social. Assim a teoria crítica fi cou presa num ciclo vicioso que reduz a vida social a três elementos: o controle cultural, formas centralizadas de dominação e o conformismo do sujeito histórico. Ao compreender a razão como a capacidade da consciência em exercer um domínio instrumental sobre a nature-za, esta corrente teórica não conseguiu se livrar das amarras daquela “tradição conceitual da fi losofi a da consciência que explica a racionalidade humana se-gundo o modelo de relação cognitiva de um sujeito com o objeto” (1999, p.517).

Sob este prisma a teoria crítica deixaria de contemplar a própria vivência cotidiana dos indivíduos, na qual as ações são tomadas não como um simples cumprimento de determinadas normas funcionalistas impostas de cima, mas sim pelo jogo social em que “sujeitos socializados geram e desenvolvem criativa-mente orientações de ações comuns de um todo comunicativo” (1999, p.518). Segundo Honneth se os teóricos da escola de Frankfurt tivessem levado a esfera comunicativa em consideração, muitos equívocos poderiam ter sido evitados. Com o fi m do pós-guerra o instituto de pesquisa social parece ter perdido a linha que ligava a pesquisa empírica ao pensamento fi losófi co. O principal ponto de referência que perpassava todos os projetos de pesquisa da escola passou a ser a noção de mundo administrado.

É justamente neste momento que o nome de Jürgen Habermas começa a ob-ter destaque em meio à produção acadêmica vinculada ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt. Comprometido com as problemáticas ori-ginais da teoria crítica, Habermas dá voz à insatisfação anti-funcionalista que já havia se manifestado em outras ocasiões como, por exemplo, nas obras de Walter Benjamin. A grande contribuição deste fi lósofo foi atentar para a importância da apreensão intersubjetiva da linguagem no exercício de interpretação da ação so-cial. Para tanto ele se valeu dos seus conhecimentos em hermenêutica e nos es-tudos que realizou sobre Wittgenstein. Desta forma Habermas levou a teoria crí-tica para o terreno da “reviravolta lingüística”, como se convencionou chamar este momento que para alguns representa uma signifi cativa mudança paradigmá-tica nas ciências sociais.

Honneth acredita que se considerarmos como característica fundamental do ser humano a sua capacidade de comunicação numa determinada estrutura

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lingüística, devemos admitir que “para a reprodução da vida social, a busca da compreensão mútua graças à língua representa um pressuposto fundamen-tal, o mais importante mesmo” (1999, p.538). Uma das principais discordân-cias de Habermas em relação ao marxismo, diz respeito aos diferentes concei-tos de história utilizados pelos autores: enquanto Marx enxergava como motor da história humana o desenvolvimento das forças produtivas, o pensador frankfurtiano está preocupado com algo mais próximo a uma teoria da ação. Nesta perspectiva a interação lingüística entre os homens passa a ter um lugar de destaque na interpretação histórica: “a reprodução social não pode ser re-duzida à dimensão única do trabalho” (1999, p.539), afi rma Honneth.

A reformulação da teoria crítica empreendida por Habermas consistiu em atribuir racionalidades diferentes às categorias do “trabalho” e da “interação”. Deste modo o autor conseguiu incorporar a uma teoria geral da racionalização social, com bases em Weber, uma diferenciação bastante fecunda entre dois ti-pos de ação. Já que reconhecemos racionalidade nas atividades técnicas de do-mínio da natureza, não há porque não admiti-la também nas práticas comunica-tivas do homem. À ação comunicativa se atribui um tipo de racionalidade específi ca que Habermas vai chamar de racionalidade comunicativa. Este con-ceito passa a ter, na obra deste autor, a mesma importância que possuía antes a noção de racionalidade instrumental na construção da Dialética do Esclareci-mento de Adorno e Horkheimer.

Para Habermas as ações dos indivíduos são coordenadas, sobretudo, pelo que ele chama de “atos de fala comunicativos”. Enquanto a razão instrumental pressupõe uma certa organização de estratégias para que determinados fi ns pos-sam ser alcançados, a razão comunicativa visa, por intermédio da língua, realizar um acordo a respeito de algum ponto da interação social que por alguma ventura tenha se tornado problemático. Segundo afi rma o fi lósofo Jose Bolzan no livro Habermas: Razão e Racionalização, a racionalidade instrumental pode se mani-festar tendo como base o sucesso do empreendimento visado. Já a razão comu-nicativa “se manifesta por meio da competência realizativa das pretensões de validez relativas aos seus respectivos mundos de referência” (2005, p.85).

Ao formular o conceito deste novo entendimento sobre a racionalidade, Haber-mas tem a intensão de destruir a concepção instrumental dominante que enxerga o mundo de maneira unilateral, na medida em que dá uma ênfase maior à consciên-cia do sujeito, agindo como se esta pudesse existir em estado puro. Ao admitir a realidade social como um todo compartilhado intersubjetivamente, o pensador ale-mão coloca o sujeito também como um agente que interage e atua através da ação e da fala, preservando e aperfeiçoando a própria identidade, enquanto participa da

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inevitável renovação das tradições nas quais se vê inserido. O objetivo deste tipo de razão é justamente promover o entendimento entre as pessoas ao mesmo tempo em que consegue preservar as diferenças individuais.

Este conceito de racionalidade comunicativa leva consigo conota-ções que em última instância remontam a experiência central da capacidade de reunir sem o uso da força e de fundar consenso me-diante um discurso argumentativo em que diferentes participantes superam a subjetividade inicial de suas concepções e perante a co-munidade de convicções racionalmente motivadas se asseguram simultaneamente da unidade mundo objetivo e da intersubjetivida-de do plexo da vida social em que se movem (1997, p.507).

Com isso Habermas procura verifi car quais são os mecanismos que levam as ações sociais a se transformarem “em sistemas racionais e intencionalmente or-ganizados” (1999, p.541). Foi dentro desta perspectiva dualista da racionalidade que este pensador promoveu o seu diagnóstico à cerca das sociedades modernas. Para ele a crise do mundo contemporâneo se deve não somente à existência de formas de poder organizadas racional e intencionalmente, como pensavam Ador-no e Horkheimer, mas principalmente por conta da penetração destas “formas sistêmicas de controle nos domínios até o momento intactos da prática comunica-tiva diária” (1999, p.543). Esta conclusão só foi possível graças à separação ob-servada por Habermas entre mundo existencial e sistema nas sociedades atuais.

Na perspectiva apresentada pela ação comunicativa o sujeito jamais aparece de maneira isolada, tendo em vista que é um pressuposto deste tipo de compre-ensão a existência de pelo menos duas pessoas capacitadas para utilizar a lingua-gem e realizar ações. Deste modo o conceito fundamental para o devido entendi-mento da ação comunicativa é o de interpretação, que deve se referir, antes de tudo, à dimensão dialógica da linguagem, esfera na qual ocorre a negociação necessária para que um consenso possa ser socialmente construído. Ao agir inte-rativamente na busca de comunicação, Habermas acredita que o ator social faz referência a três tipos de mundo, aqui entendidos como pressupostos ontológi-cos, a saber: o mundo objetivo, o mundo social e o mundo subjetivo — lembran-do sempre que na nossa experiência cotidiana nós não lidamos com esses mun-dos de maneira separada.

O mundo objetivo apresenta-se na forma de uma totalidade comum no senti-do de “entidades existentes sobre as quais são possíveis enunciados verdadei-ros” (1997, p.171). A dimensão social se refere àquelas relações reguladas legi-timamente que travamos contato no transcorrer do convívio cotidiano. Já o mundo subjetivo diz respeito à “totalidade das próprias vivências as quais cada qual tem um acesso privilegiado” (idem). É partindo deste sistema de referências que construímos nosso arcabouço conceitual sobre o mundo da vida como um

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todo. Conseqüentemente cada um de nós reivindica ao mesmo tempo um conte-údo de verdade à cerca da existência, além de uma correção no que se refere às regras sociais vigentes e fi nalmente uma autenticidade em relação às manifesta-ções da vivência subjetiva.

A razão comunicativa, portanto, participa ativamente deste jogo de referên-cias, na mesma medida que colabora no desenvolvimento das identidades indivi-duais. Ela busca a renovação da cultura e é a principal ferramenta para a criação de um consenso sobre a realidade objetiva. Um pressuposto fundamental para a realização da ação comunicativa é justamente esta capacidade de articulação do tempo e do espaço no contexto da vida cotidiana. A cultura enquanto uma orga-nização da linguagem e fontes de signifi cação fornece o pano de fundo para a realização dos processos de entendimento; ela perpassa “todas as situações, re-lações e realizações, mas como elementos autônomos não possuem referencial mundano, permanecem sempre às nossas costas como fantasmas” (2005, p.102).

A virada lingüística possibilitou o deslocamento da noção de razão para o horizonte da linguagem. Habermas acredita que este novo ponto de vista ajudará a reajustar os rumos da razão subjetiva iluminista com a qual o homem consoli-dou o seu domínio sobre a natureza. Tal modifi cação libertou o conceito de razão das amarras instrumentais do método, dando-lhe uma conotação muito mais pro-cessual e interativa, ao contrário daquela signifi cação que lhe foi dada durante séculos, que tinha por base o controle do sujeito sobre o objeto. Somente través deste novo horizonte teórico é que podemos analisar criticamente a própria ciên-cia, além de avaliar de maneira mais contundente os problemas da racionalização do mundo moderno. Esta contribuição de Habermas teria poupado a teoria crítica da falta de dinamismo contida na análise das sociedades modernas realizadas por Horkheimer, Adorno e Marcuse.

A mudança paradigmática traz consigo uma promessa de renovação do saber científi co que tenha como resultado numa formação mais equilibrada do homem, capacitando-o para a crítica da realidade social, e para que possa exercer de ma-neira mais plena a sua cidadania. A razão comunicativa é a prova de que raciona-lidade humana não pode ser simplesmente reduzida à sua realidade instrumental, mas que ela deve ser encarada no âmbito da interação; retirando-a, desta forma, do círculo fechado da subjetividade instaurado pelo iluminismo. Motivo pelo qual ela se torna uma ferramenta importantíssima para o processo de validação do conhecimento. Podemos notar, portanto, que Habermas compartilha com ou-tros teóricos da Escola de Frankfurt, uma crítica ferrenha à noção de teoria pura, típica do pensamento positivista.

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No primeiro capítulo do livro A Lógica das Ciências Sociais Habermas vai concordar com Adorno ao afi rmar que a noção de totalidade da vida social não pode ser encarada como se possuísse uma existência autônoma em relação às suas particularidades. Para ele esta totalidade é constituída somente por intermé-dio da ação de seus movimentos singulares. Novamente o pressuposto teórico que perpassa essa perspectiva tem raízes no pensamento hegeliano e estabelece que a totalidade não existe de maneira independente da vida cotidiana e das suas contradições, ao mesmo tempo em que não há como buscar uma compreensão aprofundada dos imperativos de tais particularidades sem considerar devidamen-te o todo da vida social, cuja substância consiste precisamente no movimento do particular. Ou seja, “sistema y particularidad son recíprocos y solo pueden co-nocerse en su reciprocidad” (2001, p. 11).

Habermas não tem dúvidas de que o pensamento dialético ultrapassa os limi-tes lógicos da ciência positivista. Para ele o esforço empreendido pela dialética evita as prerrogativas superfi ciais desta escola por considerar que “el proceso de investigación organizado por sujetos pertenece, a través de los actos de conoci-miento, al contexto objetivo que se busca conocer” (2001, p. 22). Princípio que possui duas implicações fundamentais: primeiro a de um conceito de mundo social tomado enquanto uma totalidade, que não se resume à simples soma das suas partes; e segundo da existência de estudiosos e pesquisadores capazes de refl etir criticamente sobre o contexto histórico em que estão inseridos. Mesmo que o pensamento positivista também possua como característica a utilização de um conceito de totalidade, o todo para eles surge apenas enquanto um conjunto de sistemas funcionais que procura excluir as contradições inerentes às particu-laridades do mundo empírico.

A diferenciação entre o uso simplesmente operacional do conceito de siste-ma realizado pela ciência empírica e a totalidade em termos dialéticos é uma das principais preocupações de Habermas na referida obra. Para ele a maior difi cul-dade da realização desta tarefa consiste no fato de que nos termos da linguagem formal — com a qual lidamos na construção do conhecimento — as diferenças entre ambas são amplamente dissolvidas. Porém se nos aprofundarmos nessa investigação podemos perceber como o conceito de sistema utilizado pelo posi-tivismo se mantém exterior ao campo da experiência que pretende abordar. Se-gundo Habermas os princípios metodológicos contidos no processo empírico--analítico possuem somente a preocupação de estabelecer um cálculo que tenha alguma utilidade para o desenvolvimento da ciência experimental. Suas exigên-cias invariavelmente giram em torno da eleição de pressupostos que possibilitem a construção de hipóteses passíveis de comprovação empírica.

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Na realidade o experimento científi co tradicional condiciona o objeto estuda-do ao crivo de uma metodologia geral pré-estabelecida, condenando à irrelevân-cia os domínios pertencentes à teoria. Contudo Habermas enfatiza que as conse-qüências deste comportamento são sentidas com uma força muito maior no âmbito das ciências sociais, já que “en el âmbito de la naturaleza la trivialidad de ciertos conocimientos verdaderos no llega a cobrar ningún peso” (2001, p. 23). O objeto das ciências sociais (ou seja, os homens e as suas relações) não se deixa apreender com muita facilidade quando acontece de o estudioso encontrar--se restringido pelas determinações do próprio contexto que procura conhecer. Para superar esta situação seria necessário admitir efetivamente a idéia de totali-dade social, que, como tal, também é responsável pela construção dos princípios que regem a própria investigação empreendida.

En lugar de una correspondência biunívoca de símbolos y signifi -cados, aquí hemos de partir de categorias inicialmente preentendi-das de forma confusa que van cobrando progresivamente determi-nacíon según el puesto que lleguen a ocupar em el desarrollo del todo. Los conceptos de tipo relacional quedan sustitidos por con-ceptos capaces de expresar juntamente sustancia y funcíon. Estas teorias de tipo más ágil asumen de forma refl exiva, incluso em la organización subjetiva del aparato científi co, ser ellas mismas mo-mentos del plexo objetivo que someten a anális (2001, p. 24).

O procedimento dialético não opera no sentido de restringir a experiência aos limites da razão instrumental, e por isso a sua investigação não é forçada a eliminar toda e qualquer espécie de perspectiva discordante que fuja das suas predeterminações básicas. Na dialética defendida por Habermas deve existir o que ele chama de uma “antecipação hermenêutica da totalidade3” (2001, p.25) responsável por adequar os instrumentos de análise utilizados na pesquisa às estruturas sociais ali estudadas. É importante ressaltar que um dos objetivos da dialética seria ultrapassar os sentidos que os sujeitos ordinariamente atribuem aos fatos. Para Habermas as interpretações feitas pelos indivíduos estão direta-mente relacionadas com os interesses provenientes de um contexto objetivo de reprodução social. Assim o autor evita o subjetivismo empurrando a compreen-são hermenêutica de sentido para o campo da objetividade.

Por outro lado, diferente do objetivismo mais rasteiro que acompanhou as ciências sociais durante grande parte da sua história, a dialética não coisifi ca as relações sociais nem os indivíduos nelas implicados. Uma grande vantagem deste tipo de conhecimento é compreender que a utilização da hermenêutica deve levar em conta os processos ideológicos — provenientes da estrutura social objetiva

3 Em tradução livre do espanhol.

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— em que a produção relacional do sentido está inserida. “La teoría ha de captar ese sentido subjetivo pero sólo para pasar por detrás de los sujetos e instituciones y medirlos por aquello que realmente son” (2001, p. 28). Habermas acredita que essa é a única maneira de ter acesso à totalidade histórica produzida pela interação humana. O antagonismo protagonizado por este autor em relação ao pensamento positivista de uma maneira geral permeia toda a sua obra, e isso se manifesta com intensidade na crítica à chamada teoria pura.

Na famosa obra Conhecimento e Interesse Habermas contrapõe a noção de teoria pura, mostrando como o interesse é na realidade inerente à técnica — de onde surge o conhecimento. Mais uma vez a discussão de Habermas remete à fi losofi a hegeliana. Relembremos que para Hegel o pensamento humano cami-nhou para uma separação cada vez mais acentuada entre a teoria e a prática, algo que se refl ete no próprio embate entre metafísica e ciência empírica. Como já foi observado anteriormente, esta separação fez com que ambas as partes perdessem qualquer pretensão efetiva de totalidade, na medida em que a metafísica usual-mente ignora o particular em benefício do universal e a ciência empírica perde de vista a universalidade evidenciando o particular. Assim as duas formas de conhecimento permanecem incompletas.

Seria interessante, portanto, utilizarmos este entendimento para interpretar a citação de Schelling feita por Habermas no texto em questão, em que o fi lósofo alemão afi rma que “a difi culdade na transição do teórico ao prático deforma igualmente conhecimento e ação” (1987, p. 71). Segundo o pensador de Frank-furt a formação de uma cultura científi ca se deve muito menos ao conteúdo in-formativo que podemos encontrar no âmbito da teoria, do que à formação de um comportamento de cunho mais refl exivo entre os teóricos. Na sua opinião se to-marmos o exemplo da história de uma ciência natural como a Física, podemos perceber facilmente a maneira com a qual a teoria foi gradativamente perdendo importância no desenvolvimento da disciplina em favor de uma postura empíri-co-analítica, que — apesar das evidentes conquistas — permanece limitada a apenas uma dimensão do fenômeno.

O positivismo não se aplica ao estudo da metafísica; ele simples-mente lhe subtrai o terreno; ele constata a carência de sentido nas proposições metafísicas e abandona, por assim dizer, os teoremas remanescentes a um “desuso-que-se-vai-impondo” automaticamen-te. Mesmo assim o positivismo só pode exprimir-se em termos com-preensíveis através de conceituações metafísicas. Ao desfazer-se delas sem as refl etir, tais conceituações mantém sua têmpera subs-tancial também contra o adversário. (...) Conhecimento torna-se, enquanto tal, idêntico a conhecimento científi co. A ciência fi ca, antes de mais nada, delimitada à esfera de seus objetos e está, as-sim, separada de outras realizações cognitivas (1987, p. 100).

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Antes de qualquer coisa a teoria crítica antagoniza com a teoria pura por propor um pensamento que possui consciência da sua própria condição históri-ca, e é partindo desta consciência que será possível identifi car a separação entre teoria e prática como um dos grandes problemas da modernidade ocidental. A análise de Habermas em relação ao positivismo observa que este tipo de pensa-mento propõe um nível de abstração que esteja livre dos interesses da vida prática. Ao buscar compreender como as coisas são verdadeiramente, o positi-vismo admite um universo ordenado e sujeito a leis imutáveis. E é justamente essa pretensão de uma autonomia frente aos juízos de valor que, na visão de Habermas, irá promover epistemologicamente a divisão entre conhecimento e interesse. Curiosamente a crítica realizada por este autor à fenomenologia de Husserl se orienta neste mesmo sentido.

Para Habermas o trabalho de Husserl procurou uma renovação da teoria pura. Ao propor uma compreensão no nível transcendental (que seria a própria descrição fenomenóloga) Husserl acreditava alcançar de fato uma teoria pura. Segundo este autor o pesquisador que opera tal mudança de atitude pode afi rmar--se livre dos interesses condicionantes da vida prática, o que terminaria transfor-mando a teoria em uma “não-prática”. Husserl promove uma crítica ao objetivis-mo da ciência na medida em que esta admite um em-si factual estruturado conforme leis e independente da consciência. Desta maneira a teoria clássica si-tuava-se acima da vida buscando uma conexão ideal do universo, um protótipo de ordem no mundo humano antes de qualquer coisa. Habermas acredita que assumindo essa perspectiva a fenomenologia renega a teoria a um nível simples-mente abstrato, privando-a do seu conteúdo cosmológico.

Por isso Habermas acredita que mesmo renegando o objetivismo da ciência moderna, Husserl terminaria sendo vítima de outro tipo de objetivismo. O pen-sador frankfurtiano defende a idéia de que desvincular o conhecimento do inte-resse de maneira alguma confi rma a teoria do subjetivismo, na realidade este procedimento reduz o sujeito a um processo de purifi cação das suas paixões. Para ele a relação entre conhecimento e interesse não é admitida por conta da ciência estar presa ao conceito clássico de teoria. A separação só ocorre mediante uma ação racional que tem como objetivo a previsão de conseqüências, o que nada mais é do que a imposição de um interesse intelectual nos recursos técnicos que atuam sobre os processos objetivados. A hermenêutica por sua vez se encon-tra em um quadro metodológico diferente.

Enquanto na ciência empírico-analítica temos acesso aos fatos através da observação, na hermenêutica isso só é possível através da compreensão do sen-tido. Se o método positivista exclui a compreensão inicial do intérprete, o saber hermenêutico se coloca enquanto uma mediação para a análise dessa compreen-são. Somente quando o intérprete problematiza o seu próprio universo o mundo

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do sentido se torna algo aberto. Em outras palavras, o ponto de partida da her-menêutica para a análise dos dados da realidade é a manutenção e extensão da intersubjetividade de uma intenção possível como núcleo orientador da ação. Apenas na concepção de uma crítica à idéia da teoria pura é que, segundo Ha-bermas podemos efetivamente combater o objetivismo da ciência positivista; que ao deformar a relação entre conhecimento e interesse se transforma numa barreira para a emancipação do pensamento humano.

Na avaliação desse complexo processo, Habermas observa que no plano in-dividual nomearemos este fenômeno como racionalização, mas se o tomarmos no nível do coletivo o que estará em questão é a própria noção de ideologia. Está em questão aqui uma idéia central nesse trabalho de Habermas que é a noção de que na construção do conhecimento existe um interesse inato que uma consciência aparentemente autônoma não consegue enxergar criticamente. Para ele se assim o fi zesse a consciência perceberia que a própria mediação entre sujeito e objeto se constitui por ação e obra do interesse. Se a refl exão não possui consciência desta base natural, é por que a força do próprio interesse penetra no núcleo lógico da pesquisa. Antes de tudo o conhecimento origina-se como um instrumento da autoconservação humana, apesar de não se ater inteiramente a este fator.

Portanto em sua própria gênese ele já é interessado. É o interesse que guia o conhecimento, pois ele se forma por mediação do trabalho, da linguagem e do poder. A teoria pura julga derivar o real de si mesma, mas na verdade ela já está vinculada ao exterior e transformada em ideologia. Somente tomando consciên-cia deste mecanismo é que o progresso humano pode realmente caminhar em direção da emancipação. A ciência cria métodos preventivos para que o conheci-mento não seja “contaminado” pelos interesses. Ela cultiva a ignorância metodo-lógica com base num alto nível de certeza referente ao seu processo, e por isso opera num quadro não problematizado. Esta falsa consciência cumpre a função de proteção, e é justamente essa armadilha que a teoria crítica procura evitar. Para Habermas a hermenêutica e o positivismo concordam na orientação objeti-vista de que a teoria é uma mera reprodutora dos fatos.

À medida, porém, que o positivismo dogmatiza a fé das ciências nelas mesmas, ele assume a função proibitiva de blindar a pesquisa contra uma auto-refl exão em termos de teoria do conhecimento. O único traço fi losófi co do positivismo é a necessidade de imunizar as ciências contra a fi losofi a. (...) Uma teoria do conhecimento que transcenda a moldura metodológica enquanto tal fraqueja, ela pró-pria, frente ao veredicto do hiperbolismo e da obscuridade, vere-dicto esse que a teoria do conhecimento já proferia um dia sobre a metafísica (1987, p.90).

O pensamento científi co demonstrou ao longo da história estar aprisionado a uma lógica de cunho tão somente instrumental. Na visão de Habermas superar

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este impasse signifi ca admitir a conexão entre conhecimento e interesse. É neste sentido que no texto Técnica e Ciência Enquanto Ideologia, o autor introduz a discussão de Marcuse sobre a racionalidade instrumental nas sociedades moder-nas. Para este último o processo de racionalização observado por Weber não é o de uma racionalidade pura, mas o de uma racionalidade determinada por um tipo não admitido de dominação política. Ele defende a idéia de que não é apenas de maneira externa que o interesse infl uencia no campo do conhecimento, na verda-de Marcuse estava convencido de que o próprio conceito de técnica seria uma expressão do interesse ideológico.

A racionalização da vida segundo os padrões da racionalidade instrumental signifi ca o mesmo que a institucionalização de uma dominação difícil de identi-fi car enquanto política. Por conseqüência a ação racional com relação a fi ns, como analisada por Weber, é fundamentalmente um agir político. No contexto proposto por Marcuse, e com o qual Habermas está de acordo, a própria noção de crescimento das forças produtivas ligadas ao progresso técnico-científi co se torna a legitimação do sistema. Talvez não seja exagero afi rmar que grande parte do debate frankfurtiano à cerca dos problemas das sociedades capitalistas mo-dernas tenha como cerne a noção de que a humanidade já chegou a tal nível de potencialidade técnica em que as privações pelas quais passam milhões de pes-soas em todo mundo poderiam ser evitadas; e é justamente daí que provém o seu conteúdo irracional intrínseco.

O que Habermas está chamando atenção é que esta situação já nasce na fun-damentação da razão instrumental na medida em que esta aparenta ser o princi-pal responsável pelo desenvolvimento técnico das sociedades burguesas. A ino-vação dos processos técnicos e produtivos esconde em si mesmo a dominação que está contida em todo o processo. A ciência e a técnica se valem dos mesmos princípios racionais da manipulação e da dominação, que tem a sua determina-ção primordial em interesses de classe de uma determinada conjuntura histórica. Em virtude do seu próprio método a ciência estabeleceu um vinculo entre a do-minação da natureza e a dominação dos homens, fato que trouxe conseqüências desastrosas ao nosso convívio social. Por isso o objetivo de emancipação da humanidade só se torna realmente viável com uma revolução efetiva no âmbito da ciência e da técnica.

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CAPÍTULO 5BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE

A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PENSAMENTO DE THOMAS KUHN ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS

Jaime Barreiros Neto

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. A “ciência normal” e a lógica acumulativa do conhecimento: a formação de paradigmas — 3. Crises, transição de paradigmas e as revoluções científi cas — 4. A questão da possi-bilidade de aplicação da concepção kuhniana às ciências sociais — 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Como se desenvolve o progresso da ciência? Existe uma rota normal e inevi-tável deste progresso, baseada em uma acumulação constante de conhecimento? Ou será que rupturas e mudanças de paradigmas, das quais seriam permitidas verdadeiras revoluções, encontram-se na essência do pensamento científi co? As presentes questões, de grandes desdobramentos para a análise das condições epistemológicas das ciências da natureza e também das chamadas “ciências do espírito”, podem ser observadas no cerne das refl exões desenvolvidas por Tho-mas S. Kuhn, pensador contemporâneo nascido em 18 de julho de 1922 em Cin-cinnati, nos Estados Unidos, e falecido em 1996.

Doutor em física pela Universidade de Havard, em 1949, Thomas Kuhn foi professor na Califórnia, Berkeley, Princeton e Havard, tendo se notabilizado ao escrever, em 1962, a obra “A Estrutura das Revoluções Científi cas”, onde busca desmistifi car a ideia segundo a qual a ciência se desenvolve por acumulação e de forma contínua, muito presente no pensamento positivista. Neste sentido, afi rma Kuhn a existência de dois caminhos para o desenvolvimento das ciências: o ca-minho da “ciência normal”, fundado na perspectiva do progresso do conheci-mento a partir do acréscimo de informações, e o caminho da revolução científi ca, no qual verifi ca-se a incomensurabilidade das teorias pretéritas com as atuais, patrocinada pela mudança do paradigma compartilhado por uma dada comunida-de em um determinado momento.

Neste ensaio, buscar-se-á realizar uma breve incursão no pensamento kuh-niano, de forma a traçar as linhas gerais da sua teoria acerca da estrutura das revoluções da ciência, para o ao fi m serem feitas algumas considerações sobre

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a possibilidade de aplicação das suas ideias às ciências sociais, em vista da ten-dência proeminente de vinculação das referidas concepções às ciências da natu-reza, reveladas principalmente em decorrência da própria formação do referido pensador, doutor em física formado pela Universidade de Havard.

2. A “CIÊNCIA NORMAL” E A LÓGICA ACUMULATIVA DO CONHE-CIMENTO: A FORMAÇÃO DE PARADIGMAS

De que forma ocorre o avanço das ciências? O presente questionamento, como já afi rmado, encontra posição central na obra de Thomas Kuhn, para quem, ao contrário do afi rmado pelas concepções positivistas de ciência, existiriam dois caminhos para o desenvolvimento científi co: o da acumulação, compartilha-do por tais concepções e fundado na lógica do constante acréscimo de informa-ções ao conhecimento científi co como elemento propulsor do seu desenvolvi-mento, e um outro, vislumbrado pelo referido autor, segundo o qual nem sempre o conhecimento científi co se constrói por acumulação, sendo possível a reunião em uma mesma ciência, ao longo da sua história, de conhecimentos incompatí-veis entre si, os quais promovem verdadeiras “revoluções científi cas”, a partir da substituição dos chamados “paradigmas”, considerados como consensos que re-fl etem a teoria aceita e exposta em manuais, por novos padrões da mesma espé-cie, construídos a partir de tais revoluções.

No cerne do caminho acumulativo do conhecimento científi co encontra-se a “ciência normal”, expressão utilizada por Kuhn para designar “a pesquisa fi rme-mente baseada em uma ou mais realizações científi cas passadas (...) reconheci-das durante algum tempo por alguma comunidade científi ca específi ca como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior”. Tais realizações científi cas, assim, constituem os paradigmas formadores de padrões e consensos estabilizados que embasam as pesquisas científi cas, reduzindo o interesse na produção de grandes novidades científi cas. Durante o período de vigência da chamada “ciência normal”, prevalece a construção de um conhecimento científi -co fundado em uma metodologia assemelhada a um jogo de quebra-cabeça, no qual se impõe a necessidade de certeza de respostas e a rejeição a problemas de difícil solução. Como bem destaca Kuhn:

Um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à forma de que-bra-cabeça, pois não podem ser enunciados nos termos compatíveis com os instrumentos e conceitos proporcionados pelo paradigma.

No decorrer da “ciência normal”, eventuais teorias novas são descobertas de forma lenta e gradual, a partir da verifi cação de eventuais anomalias no paradigma

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dominante. Assim, segundo demonstra Kuhn, a descoberta começa com a consci-ência da anomalia, seguida de uma exploração da área em que ocorreu a mesma, até que um novo paradigma venha a se tornar algo normal. Antes disso, tal paradig-ma não será considerado totalmente científi co.

Como consequência de tal fato, observa-se uma grande difi culdade de preci-sar o momento de uma descoberta científi ca, a partir dos métodos da ciência normal. Como afi rmar, por exemplo, o momento preciso da descoberta do oxigê-nio? Além disso, leciona Kuhn, toda novidade, no âmbito da ciência normal, emerge com difi culdade e resistência. Afi nal, “ao assegurar que o paradigma não será facilmente abandonado, a resistência garante que os cientistas não serão perturbados sem razão”.

É no curso da “ciência normal”, portanto, segundo Kuhn, que a ideia do pro-gresso a partir da acumulação atinge o seu apogeu. A própria concepção da ano-malia como elemento inovador do paradigma denota a relevância do conheci-mento por acumulação como o elemento norteador da evolução científi ca, na ótica da “ciência normal”.

3. CRISES, TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS E AS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

Não obstante destacar, portanto, a existência do caminho da acumulação como possibilidade teórica para o desenvolvimento das ciências, conforme ob-servado no tópico anterior, Thomas Kuhn aponta um segundo caminho, deno-minado de “revolução científi ca”, a partir do qual é possível a consolidação de novos paradigmas. Para Kuhn, revoluções científi cas são “aqueles episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior”. O termo revolução, muito comum no âmbito da política, denota uma ideia de ruptura, em que, segundo Kuhn, “as diferenças entre paradigmas sucessivos são ao mesmo tempo necessárias e irreconciliáveis”. O alvorecer de uma revo-lução científi ca, na visão de Kuhn, produz impactos muitas vezes imensuráveis no comportamento não só dos cientistas como, muitas vezes, de toda a socieda-de, suscitando e/ou reposicionando problemas, novos comportamentos e ques-tões a serem investigadas.

Como exemplo de revolução científi ca ocorrida na história, Thomas Kuhn aponta a revolução copernicana ocorrida no século XVI no âmbito da astronomia, quando o paradigma geocêntrico, formulado por Ptolomeu na antiguidade clássica, segundo o qual o Sol e os planetas girariam em torno da Terra, foi superada pela teoria heliocêntrica, sistematizada por Copérnico, a partir da qual se consagrou o

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paradigma inverso, segundo o qual é a Terra que gira em torno do chamado “Astro--Rei”. Sem dúvidas, tal revolução científi ca impôs impactos incalculáveis na his-tória da humanidade, servindo de trampolim para profundas mudanças nos méto-dos das ciências da natureza ou mesmo no âmbito do comportamento social, com grandes repercussões nas questões religiosas.

Para que ocorra, entretanto, uma “revolução científi ca”, é necessário que se desenvolva uma crise do paradigma dominante, que se apresente como algo mais do que uma simples anomalia. Afi nal, “uma teoria científi ca, após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando existe uma alterna-tiva disponível para substituí-la”. Neste sentido, destaca Kuhn que:

a emergência de novas teorias é geralmente precedida por um perí-odo de insegurança profi ssional pronunciada, pois exige a destrui-ção em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos proble-mas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras.

No exemplo da Revolução Copernicana, citado, o aumento da complexidade da astronomia, aliada à pressão social por um novo calendário, atuaram como forças motrizes, segundo Kuhn, para o abandono do paradigma até então domi-nante, desenvolvido por Ptolomeu. O mais curioso entretanto, neste exemplo, é o fato de Aristario, na Grécia do século III a.C., já ter antecipado as descobertas de Copérnico, difundidas quase dois mil anos após, sem que tal fato encontrasse ressonância na sociedade sufi ciente para a defl agração de uma revolução cientí-fi ca. Tal acontecimento revela, de acordo com Kuhn, que períodos em que a ci-ência não está em crise podem esconder o surgimento de novos paradigmas.

Diante de uma crise, nem sempre ocorre, no entanto, uma revolução científi ca. Segundo Kuhn, três seriam as maneiras de terminar uma crise: a) a ciência normal se mostra capaz de tratar o problema que trata a crise; b) o problema resiste e é posto de lado para ser resolvido por uma futura geração que disponha de instru-mentos mais elaborados; ou c) a crise pode terminar com a emergência de um novo candidato a paradigma e com uma subsequente batalha por sua aceitação.

Uma vez consolidada a terceira das três opções citadas no parágrafo anterior, com a emergência de um novo paradigma, verifi ca-se, segundo Kuhn, a revolu-ção científi ca, apresentada como “um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas veem o mundo”. Opera-se, portanto, uma ruptura, fato que, de acordo com a concepção kuhniana de desenvolvimento científi co, comprova que o progresso da ciência não é, necessariamente, um processo de evolução em direção a algo, construído de forma cumulativa, conforme estabelece o senso

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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PENSAMENTO DE THOMAS KUHN...

comum segundo o qual há uma tendência de acreditarmos que é científi ca a área que apresenta um progresso marcante.

4. A QUESTÃO DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA CONCEPÇÃO KUHNIANA ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS

Feitas as devidas considerações acerca da concepção kuhniana de “revolução científi ca”, é cabível, neste último tópico, uma breve discussão relativa à possi-bilidade de aplicação do referido pensamento às ciências sociais. Afi nal, existe nas ciências sociais espaço para a promoção de “revoluções científi cas” que acarretem rupturas abruptas de paradigmas ou tal possibilidade seria restrita às chamadas “ciências da natureza”?

Como já destacado alhures, Thomas S. Kuhn construiu a sua carreira acadêmi-ca e de pesquisador a partir da sua graduação e posterior doutoramento em física. Desde a sua produção acadêmica inicial, intitulada “A Revolução Copernicana”, publicada no ano de 1957, contudo, Kuhn se destaca como historiador e fi lósofo da ciência, fi liando-se a uma corrente da historiografi a mais preocupada em con-textualizar historicamente concepções científi cas e menos voltada para comprovar uma linha acumulativa do conhecimento científi co. Dessa forma, desenvolveu Kuhn a concepção de “revolução científi ca” exposta neste ensaio, voltada a prin-cípio, no entanto, para o estudo do desenvolvimento das ciências naturais.

Segundo afi rma Boaventura de Sousa Santos, analisando a teoria das revoluções científi cas de Thomas Kuhn, as ciências sociais teriam sérias difi cul-dades, pelas suas características, em formar paradigmas, fato que seria impediti-vo à ocorrência de revoluções científi cas tal como preconizado por Kuhn. Assim, segundo o sociólogo português:

Na teoria das revoluções científi cas de Thomas Kuhn, o atraso das ciências sociais é dado pelo caráter pré-paradigmático destas ciên-cias, ao contrário das ciências naturais, essas sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências naturais, o desenvolvimento do conheci-mento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discus-são por toda a comunidade científi ca, conjunto esse que designa por paradigma, nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente toda a espessura do conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso acarreta é simultaneamente causa e efeito das ciências sociais.

É de se ressaltar, para uma melhor compreensão da análise de Boaventura de Sousa Santos destacada que, de acordo com a teoria de Thomas Kuhn, toda revolução científi ca é precedida por uma fase pré-paradigmática, quando o pa-radigma dominante é fortemente questionado, fazendo com que os cientistas

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discordem quanto a categorias consideradas fundamentais para tal paradigma, revelando anomalias, difi cultando a realização do jogo de quebra-cabeças que caracteriza a prática da “ciência normal” e estabelecendo, muitas vezes, uma crise, a qual poderá servir de estopim para o advento de um paradigma emer-gente. A grande questão colocada por Boaventura diz respeito ao caráter emi-nentemente confl itivo, e portanto pré-paradigmático, das ciências sociais, as quais, dessa forma, estariam em xeque quanto às condições de fi rmar, efetiva-mente, paradigmas viabilizadores da prática de uma ciência normal, nos mol-des das ciências naturais.

Sobre o referido caráter eminentemente confl itivo das ciências sociais, desta-cado por Boaventura de Sousa Santos, válido também é destacar a seguinte aná-lise de Jeffrey C. Alexander, em artigo intitulado “A importância dos clássicos”:

(...) em sua aplicação social, a ciência provoca muito mais discor-dância. Uma vez que há ampla e persistente discordância, os pos-tulados básicos mais gerais, que permanecem implícitos e relativa-mente invisíveis na ciência natural, entram aqui ostensivamente em cena. As condições que Kuhn defi ne para a crise paradigmática nas ciências naturais são rotineiras nas ciências sociais. (...) as con-dições da ciência social tornam altamente improvável o consenso sobre a natureza exata do conhecimento empírico — para não falar do consenso sobre leis explicativas. Em ciência social, portanto, os argumentos a respeito da verdade científi ca não se referem apenas ao nível empírico; eles atravessam o leque total de empreendimen-tos não-empíricos que amparam pontos de vista concorrentes.

Como visto, existe uma diferença marcante entre as ciências da natureza e as ciências sociais que, aparentemente, poderia inviabilizar a aplicação a estas da concepção kuhniana de “revolução científi ca”: enquanto nas ciências naturais há uma tendência de maior estabilidade paradigmática, campo fértil para o desen-volvimento da “ciência normal”, nas ciências sociais as crises paradigmáticas são rotineiras, parte da essência de tal forma de conhecimento. Tal fato, no entan-to, não seria determinante, conforme se afere do pensamento de Alexander, para excluir a possibilidade de estabelecimento de um padrão de “ciência normal” no âmbito das ciências sociais, envolto, especialmente, na relação existente entre os cientistas sociais e os autores clássicos, os quais cumpririam os papéis de redu-ção da complexidade da ciência e formação de consensos. Sendo assim, admitin-do-se a viabilidade de manutenção de um padrão de normalidade nas ciências sociais, não seria possível afi rmar-se que no âmbito de tais ciências existem tam-bém paradigmas passíveis de sofrer revoluções científi cas?

No âmbito do Direito, por exemplo, diversos têm sido os pesquisadores da sua metodologia que têm sustentado a possibilidade de aplicação da concepção

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kuhniana. Exemplos como o da virada hermenêutica ocorrida no âmbito do di-reito de família após a promulgação da Constituição de 1988, a partir da qual o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ocupar posição central na so-ciedade em detrimento da perspectiva privatista pautada na proteção do patrimô-nio que prevaleceu durante todo o século passado são sempre vislumbrados como fundamentadores da possibilidade de admissão de “revoluções científi cas” no âmbito social e jurídico, as quais terminam por acarretar verdadeiras rupturas com antigos paradigmas.

É evidente, conforme demonstrado ao longo deste ensaio, que no âmbito das ciências naturais existe uma maior possibilidade de fi xação de paradigmas está-veis, norteadores da prática de uma “ciência normal”, do que nas ciências sociais, marcadas, como argumenta o próprio Thomas Kuhn, por uma presença constante de “crises” e persistentes discordâncias. Tal fato, contudo, não inviabiliza o reco-nhecimento da existência de tais paradigmas também nas chamadas “ciências do espírito”, reveladas, por exemplo, na constante recorrência aos autores clássicos na teoria social, na economia ou no direito. Rupturas, tais como as preconizadas no âmbito das ciências da natureza por Thomas Kuhn, portanto, não estão livres de ocorrer também nas ciências sociais, muito embora seja mais presente, no âmbito destas ciências, a possibilidade de fundamentação do discurso da acumu-lação do conhecimento, tal como revelado no âmbito do positivismo, a partir da verifi cação de anomalias suscitadoras de mudanças científi cas mais lentas e gra-duais, desvinculadas de um processo radical de superação de paradigma, tal qual o afi rmado pela concepção kuhniana de “revolução científi ca”.

5. REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Jeffrey C., A importância dos clássicos, In: GIDDENS, Anthony; TUR-NER, Jonathan. Teoria Social Hoje. p. 23-90, São Paulo: Unesp, 1999.

GASPAR, Danilo Gaspar; BARREIROS, Lorena Miranda Santos; SAMPAIO, Marcos, A metodologia da pesquisa no direito e Thomas Kuhn, In: PAMPLONA FILHO, Rodolfo; CERQUEIRA, Nelson, Metodologia da Pesquisa em Direito e a Filosofi a. p. 111-126, São Paulo: Saraiva, 2011.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científi cas, 10. ed. São Paulo: Perspec-tiva, 2011.

PRADO, Daniel Nicory do, Temas de Metodologia da Pesquisa em Direito. Salvador: Juspodivm, 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cor-tez, 2008.

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CAPÍTULO 6O AGIR PRÁTICO: A EXPERIÊNCIA,

O INTERESSE E O HABITUS COMO CAMINHOS PARA O ENTENDIMENTO

José Raimundo de J. Santos

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. A experiência como forma de saber — 3. A experiência como conheci-mento para além da prática — 4. O interesse como forma de orientação do conhecimento — 5. O habitus como manifestação do agir prático — 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO

A experiência como produto no processo de autoconservação do ser humano perante a natureza é cumulativa e parte constituinte do conhecimento do indivíduo. Esta razão orientada pela preservação e continuidade do ser e do fazer humano, se manifesta de diversas formas e: está presente nas artes, na culinária, nos mitos e lendas, como também, no desenvolvimento de técnicas e formas de agir como expressão objetivada da relação do homem com a natureza e, consigo mesmo.

Os instrumentos, que facilitam esta relação do homem com a natureza e con-sigo mesmo, são produtos desta experiência cotidiana do ser humano e, ao tempo em que operam no agir prático, também atuam na consciência do indivíduo, fa-vorecendo o acúmulo de saberes e a transmissão destes. Assim, podemos com-preender que a experiência e os saberes operam tal qual um artesão atua com seus discípulos, ao transmitir a técnica de manuseio de instrumentos e da matéria prima que darão origem a um produto. A transmissão da experiência e dos sabe-res para o domínio da técnica e do ofício, estabelece as funções que orientam as intenções e condutas para o aprendizado, constituindo a partir do acúmulo de experiências de cada grupo ou indivíduo, os interesses para a efetiva utilização deste ou daquele saber.

Este princípio de autoconservação que o indivíduo reivindica para si como necessário para a manutenção da vida em sociedade, não implica apenas em preservação da espécie, tal qual a natureza animal estabelece, situa-se também como parte constituinte da consciência de si como parte de um mundo social. Pois, estabelece as normas de conduta e as formas de associação e dissociação

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que estão diretamente relacionadas à consciência do indivíduo acerca do seu papel dentro desta ou daquela estrutura social. Neste sentido, o ato de experi-mentar é regido por um conjunto de interesses que estão presentes: nas formas e estratégias de preservação ou manutenção de uma posição dentro de uma estru-tura social; no desejo de emancipação e ou mobilidade nesta estrutura, ou; até mesmo, a uma refl exão sobre o sentido que a experiência tem para a autoconser-vação do mundo vivido e das relações sociais ali estabelecidas.

Logo, a experiência constitui-se como um saber primeiro que produziu olha-res e interpretações sobre as necessidades e os interesses dos indivíduos no pro-cesso de autoconservação e de representação da sua existência no mundo vivido. Está associada e, de certa forma, limitada, ao conjunto de interesses coletivos e individuais que circunscrevem aquilo que se deve experimentar.

Por ser esta o ato primeiro de construção do conhecimento, o produto da experiência é o lastro necessário para a refl exão sobre a condição e a própria existência do indivíduo na estrutura social do mundo vivido, ela compartilha e estimula a construção de novos saberes, como formas de adequação e superação desta mesma experiência como disposição durável e, como aquilo que é estrutu-rante — e diz respeito a constituição do sujeito — e aquilo que é estruturado — e diz respeito ao produto da experiência humana —, Bourdieu designou isto como sendo o habitus.

E é, neste sentido, que se buscará neste artigo, estabelecer as interconexões entre o que é experimentado e constituinte do habitus enquanto um agir prático regido por interesses associados à estrutura em que se encontra o indivíduo, como também ao processo de autoconservação presente na tomada de posição e nas escolhas processadas, como constituinte da consciência acerca daquilo que se busca e se experimenta.

2. A EXPERIÊNCIA COMO FORMA DE SABER

Dentre as formas de conhecimento que regem o indivíduo, há aquela que se expressa no processo contínuo de existir e coexistir dos sujeitos, principalmente, quando estes se relacionam ou quando, em virtude das necessidade de sobrevi-vência, buscam transformar as coisas da natureza adequando-as à vida na forma de um agir prático. Esta forma de agir, que se dá inicialmente pela percepção e pela necessidade do indivíduo, pode ser compreendida como o produto da acu-mulação dos saberes e fazeres, elas orientam as pessoas e estão diretamente rela-cionadas ao fazer e ao viver prático, real e concreto.

Se pensarmos que o mundo vivido, contém elementos que regem e orientam os indivíduos em sua atuação para dentro e para fora das sociedades em que

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vivem, logo percebemos que, as relações sociais que estão pautadas nesta forma de agir aproximam ou distanciam os sujeitos, pois aí, desvelam-se as diferenças sociais e individuais existentes, expressas nas distintas formas de classifi cações, sejam estas de gênero, geração, raça, orientação sexual e/ou religiosidade, den-tre tantas outras.

... os indivíduos ou os grupos são objetivamente defi nidos não so-mente pelo o que são, mas também pelo que supostamente são, por um ser percebido que, embora dependa estreitamente de seu ser, não é jamais totalmente redutível a esse ser, a ciência social deve levar em conta as duas espécies de propriedades que lhe estão ob-jetivamente vinculadas: por um lado, as propriedades materiais que, começando pelo corpo, se deixam enumerar e medir como qualquer coisa do mundo físico, e, do outro, propriedades simbóli-cas que não são mais do que propriedades materiais quando são percebidas e apreciadas em suas relações mútuas, isto é, como pro-priedades distintivas. (BOURDIEU, 2009:226)

E, é nesta forma de agir — onde o sentido e o interesse atribuído às ações são materializados nas estratégias e disposições práticas dos indivíduos — que as múltiplas visões e/ou apreensões sobre o mundo se manifestam, estabelecen-do nas relações sociais, mecanismos de coação e formas de constrangimento como normas de conduta e/ou modelos de percepção das orientações para o trânsito dos indivíduos na sociedade. Portanto, apreender o porquê que um indi-víduo utilizou-se de determinada estratégia ou teve tal tomada de posição, im-plica em desvendar os interesses presentes na ação como categorias produtoras do ser individual e, da posição que este ocupa na estrutura social, contribuindo para assim, perceber o sentido desta mesma ação como manifestação concreta e de apreensão das experiências e percepções pelos próprios indivíduos e pelos coletivos aos quais se associa.

Não se trata de se afi rmar aqui, que existe uma sobredeterminação de uma consciência coletiva sobre a individual como observou Durkheim, mas, de uma refl exão sobre este processo confl itivo entre os interesses — que mesmo indivi-duais estão em harmonia com normas de constrangimento que limitam a esco-lha acerca de determinada ação ou não — e os sentidos, enquanto manifestações concretas dos limites sociais para o interagir e transitar com desenvoltura no mundo social expressos na dinâmica das sociabilidades no mundo da vida e, que extrapolam ao indivíduo e à própria sociedade. Perceber como esta razão prática, produto da experiência enquanto processo histórico, que de forma con-tínua se modifi ca e modifi ca o indivíduo na sua relação com o outro, age no indivíduo, implica em estabelecer um fazer arqueológico acerca da gênese dos confl itos e das formas de agir que hierarquizam e classifi cam os indivíduos e suas formas de conhecimento.

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A experiência enquanto processo sincrônico e diacrônico, portanto, processo contínuo e de transformação do indivíduo, não opera só no que tange a razão prá-tica, mas confi gura a formação da consciência sobre si e sobre os fenômenos no mundo da vida.

Daí tem-se que a forma de experienciar algo, não é homogênea e não implica na absorção plena por parte de todos aqueles inseridos no mesmo grupo. Pois, os processos de formação e apreensão dos indivíduos são complexos e trazem em si experiências que trazem consigo os interesses e que orientam o sentido de suas ações atribuindo-lhes valor e intensidade, portanto, se manifestam como vetores que desempenham uma função dentro do grupo, parametrizando todos aqueles que, naquele mesmo espaço, compartilham da mesma experiência.

O ponto de vista que orienta o sujeito da experiência está relacionado ao quantum de capital cultural que o indivíduo absorveu das experiências vividas no grupo, portanto trata-se do conhecimento acumulado acerca daquilo que é experimentado pelo grupo e, em certa medida, compartilhado ou não com o in-divíduo. Assim sendo, ainda que a experiência vivida tenha algo mais a ser per-cebido, o conhecimento que foi disposto ao indivíduo não lhe oferece as condi-ções para transcender àquilo que de fato experimenta, daí a conclusão que a mesma experiência ensina, orienta e constrange de forma distinta. A experiência ou esta razão prática que fundamenta a técnica é a manifestação primeira de uso racional pelo indivíduo.

Ao se apreender a experiência como forma de saber, tem-se que, se de um lado o fazer das coisas práticas resulta num conhecimento ou numa técnica, do outro lado as experiências como formas de interagir com o outro e de confl ito de interesses, entre os próprios indivíduos, entre indivíduos e grupos e entre grupos distintos, geram saberes imateriais que compõem a cultura e que implicam em valores e códigos de conduta que servem como parâmetros de coação e de cons-trangimento dos sujeitos nos processos interativos cotidianos. Durkheim já argu-mentou sobre a forma coercitiva com que o fato social age sobre os indivíduos, contudo vale salientar que cada indivíduo dentro das suas limitações e da posição que ocupa dentro da estrutura, reúne de forma distinta as condições para apreen-são ou não de determinados valores ou códigos, logo, ainda que esta norma este-ja presente naquela sociedade, ela atingirá aos indivíduos de distintas formas. Esta razão prática produto da experiência sensível do indivíduo é geradora de formas de poder atreladas ao conhecimento e, desta forma, posiciona o detentor deste saber em determinada posição dentro da sociedade e do grupo que atua.

Ao se observar como este conhecimento prático foi se transformando na socie-dade e adequando-se aos padrões de desenvolvimento da ciência, tem-se que: ao

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mesmo tempo em que ocorreu uma desvalorização da experiência prática como forma de saber, ocorre a valorização de padrões de racionalidade orientados por uma consequente ruptura epistemológica — principalmente, com relação à lingua-gem —, como produto que a ciência estabeleceu para se diferenciar e se legitimar.

Os saberes ancestrais, transmitidos geração após geração, perdem a notorie-dade para o saber experimentado e sistematicamente orientado por conceitos e procedimentos metodológicos. Assim, a experiência sensível gera saber, mas o mesmo precisa ser reformulado e reorientado por padrões cognitivos que expres-sem o uso pleno da razão como forma de obtenção de um texto que seja legiti-mado e reconhecido cientifi camente. A linguagem estabelece a ruptura com este mundo sensível e constitui regras de forma e sintaxe que atribuem o sentido para os seus leitores. O dito para ser escrito tem de adequar-se ao regimentado pela norma culta e compartilhada. Assim, a experiência em si, como acúmulo sensível de um agir, precisa ser reescrita como conhecimento ou técnica, para então, ser reconhecida como uma manifestação racional e sistematizada produto da ação humana. Mas, quais são as linguagens que possibilitam a transmissão de conhe-cimento e propagação de saberes? Dentre tantas formas de linguagens que nos permitem aprender e apreender, existem aquelas que no interior do ethos cientí-fi co, serão subjugadas e ou receberão um tratamento diferenciado. Estas mani-festações serão fi xadas enquanto expressões artístico-cultural, orientadas por simbologias e signifi cados que pertencem ao imaginário de um povo ou coletivo e, que revelam as particularidades destes.

3. A EXPERIÊNCIA COMO CONHECIMENTO PARA ALÉM DA PRÁTICA

Ao discorrer sobre a razão prática, Bourdieu (2009) alerta sobre a construção do conhecimento nas Ciências Sociais, principalmente da forma como buscamos compreender a experiência no mundo social, quer seja, objetivando as condições reais e concretas que possibilitaram a experiência, ou buscando apreender os sig-nos e símbolos que demarcam a percepção ou a representação do sujeito acerca desta mesma experiência. Isto quer dizer que, seja de forma objetiva ou subjetiva tem-se que o conhecimento do mundo social não se restringe às formas delimita-doras que estas correntes do conhecimento impuseram. É preciso perceber que este modelo de divisão traz danos profundos para a compreensão do mundo so-cial e, para superar esse dano, devemos compreender o mundo social como um mundo vivido, mundo da prática e da subjetivação sobre a prática, mundo da re-fl exão e da objetivação da refl exão, portanto uma experiência que esteja no limiar entre a concretude da prática e a interpretação e signifi cação atribuída a ela. É a estrutura se impondo ao indivíduo sem deixar de lado a consciência individual

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que circunscreve os interesses e atribui o sentido ao agir. Logo, Bourdieu observa que o conhecimento,

(...) não pode se reduzir nem a uma fenomenologia nem a uma fí-sica social. Para superar o antagonismo que opõe esses dois modos de conhecimento conservando, porém, as aquisições de cada um deles (...), é preciso explicitar os pressupostos que eles têm em comum como modos de conhecimentos eruditos, igualmente opos-tos ao modo de conhecimento prático que se encontra no princípio da experiência ordinária do mundo social. Isto supõe que se sub-meta a uma objetivação crítica as condições epistemológicas e so-ciais que tornam possíveis tanto o retorno refl exivo sobre a experi-ência subjetiva do mundo social quanto a objetivação das condições objetivas dessa experiência. (2009:43)

Bourdieu, ao discorrer sobre o subjetivismo, observa que o conhecimento fenomenológico refl ete sobre uma experiência que se situa no campo de familia-ridade do indivíduo e, neste sentido, busca “revelar a verdade dessa experiência que, por mais ilusória que possa parecer do ponto de vista ‘objetivo’, permanece perfeitamente certa como experiência”. Desta forma, este tipo de conhecimento, apenas descreve aquilo que se evidencia como próprio a experiência do mundo da vida, apresentando o que lhe é evidente e excluindo as condições de possibi-lidade para a própria experiência.

Por outro lado, o objetivismo rompe com esta consciência individual e busca estabelecer a regularidade das estruturas como forma de fi xar leis, regras e sis-temas relacionais que se impõem aos indivíduos. Esta forma de conhecimento recusa a identifi cação da ciência social a uma “descrição científi ca da experiên-cia pré-científi ca desse mundo”. Ou ainda, conforme dito pelo autor, o objetivis-mo recusa-se a

(...) reduzir a ciência social, como Schutz e a fenomenologia, a “construções do segundo grau, isto é, a construções das constru-ções produzidas pelos atores no palco social” ou, como Garfi nkel e a etnometodologia, a “relatórios dos relatórios (accounts) produzi-dos pelos agentes”. Ele faz surgir, pelo menos objetivamente, a questão esquecida das condições particulares que tornam possível a experiência dóxica do mundo social. (...) a compreensão imediata só é possível se e somente se os agentes estão objetivamente afi na-dos de modo que associem ao mesmo sentido o mesmo signo, pa-lavra, prática ou obra, e o mesmo signo ao mesmo sentido ou, em outros termos, de modo que refi ram, em suas operações de cifração e decifração, a um único e mesmo sistema de relações constantes, independentes das consciências e das vontades individuais e irre-dutíveis à sua execução nas práticas ou nas obras (a língua como código ou cifra), a semiologia saussuriana (ou seus derivados, como o estruturalismo antropológico) não contradiz, propriamente

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O AGIR PRÁTICO. A EXPERIÊNCIA, O INTERESSE E O HABITUS COMO CAMINHOS PARA O ENTENDIMENTO

falando, a análise fenomenológica da experiência primeira do mundo social como compreensão imediata; defi ne somente seus limites de validade ao estabelecer as condições particulares nas quais ela é possível (isto é, a coincidência perfeita das cifras em-pregadas na codifi cação e decodifi cação) e que a análise fenome-nológica ignora”. (2009:45)

Ao ignorar o sentido vivido da experiência, objeto da fenomenologia, e o sentido objetivo que circunscreve a física social, o objetivismo “não se permite analisar as condições da produção e do funcionamento do sentido do jogo social que permite viver como evidente o sentido objetivado nas instituições” (2009:46). A relação das ciências sociais com o mundo vivido deve ser pautada no reconhe-cer das relações entre o prático e o teórico, como formas de conhecimento, que têm de ser partilhados e aceitos, reconhecidos por todos. Portanto, a relação com a experiência deve implicar em compreender as condições e as operações neces-sárias à própria objetivação das condições objetivas da experiência. Assim,

A ciência social não deve somente, como quer o objetivismo, rom-per com a experiência nativa e a representação nativa dessa expe-riência; ainda lhe é necessário, mediante uma segunda ruptura, questionar os pressupostos inerentes à posição de observador “ob-jetivo” que, dedicado a “interpretar” as práticas, tende a importar para o objeto os princípios de sua relação com o objeto, como ates-ta por exemplo, o privilégio que concede às funções de comunica-ção e de conhecimento e que o leva a reduzir as interações a puras trocas simbólicas. (ibidem: 48)

A lente que orienta o olhar do observador sobre o objeto não é sufi ciente para descrever a experiência, uma vez que esse ponto de vista está situado num campo de objetivações e refl exões possíveis no qual o observador se situa, logo a posi-ção que o observador ocupa dentro do espaço social possibilita-o a olhar a expe-riência no mundo vivido de forma panorâmica, isto é, a experiência como uma representação do mundo vivido. Este olhar não desvela a experiência prática em sua complexidade, pois se dá a partir de um referencial que privilegia a experi-ência no seu sentido subjetivo ou objetivo, deixando de lado as relações de inter-dependências que se estabelecem entre os interesses — individuais e/ou coleti-vos — e os sentidos atribuídos ao agir prático e refl exivo no mundo social.

As experiências só ocorrem mediante um jogo de interesses, elas operam como demarcadoras de uma posição na estrutura da sociedade e de sinalizadoras de um dado capital cultural específi co que diferencia o indivíduo ou grupo, asso-ciando-os a um espaço social. Tem-se que a experiência em si não ocorre exclu-sivamente no indivíduo, mas, é o produto das necessidades coletivas e individu-ais operando em confl ito com os interesses das pessoas. Ou seja, experimenta-se aquilo que motiva, que ativa a curiosidade, que cria implicações associadas à

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existência do si e do grupo, que possibilita dentre as opções disponibilizadas pelo ethos cultural e pelo mundo da vida, escolhas orientadas e orquestradas em sintonia com as expectativas e perspectivas pessoais e/ou coletivas.

Esta relação de aprender fazendo é constituinte e estruturante do indiví-duo, expressa a necessidade contínua de inserção deste como parte de um grupo e de um determinado lugar, dando a entender que o ato de conhecer e reconhecer o mundo vivido como espaço das relações sociais que se orienta por códigos de conduta, servem como parâmetros para as tomadas de decisões e para a própria escolha racional que os sujeitos demandam no empreendimen-to das suas ações cotidianas.

O que motiva o indivíduo na tomada de decisão e/ou no reconhecimento de uma ou outra experiência como necessária na constituição de sua conduta e dos seus valores é, de fato, o interesse e a perspectiva que este tem com relação à posição que ocupa no espaço social e no grupo ao qual se afi lia ou pretende fi liar-se. E, neste sentido, está diretamente relacionado, ao capital cultural her-dado e adquirido.

Nesta perspectiva, a posição do ser social na estrutura social apresenta-se de forma reguladora, pois os indivíduos ainda que motivados por interesses especí-fi cos e, estes só existem enquanto opções circunscritas à sociedade da qual faz parte, orienta-se pela experiência compartilhada e pela autorrefl exão acerca das disposições que pretende empreender.

Os saberes que orientam o artesão prático na confecção de um bem estão associados ao conhecimento que este tem acerca da matéria prima e da técnica que dispõe para execução da tarefa. A transformação da matéria prima observada só ocorre mediante o acúmulo da experiência, ou seja, pelo conjunto de saberes que o possibilita executar ou não, o pensado e o planejado. Isto porque, a técnica não existe apenas no indivíduo, ela é compartilhada com todos aqueles detento-res do mesmo ofício, seus argumentos devem estar suscetíveis à crítica dos seus pares e sua técnica deve ser percebida como válida por todos eles e, deve, acima de tudo, demonstrar o desempenho proposto.

Assim, tanto a experiência compartilhada a priori, como aquela que se per-cebe pela refl exão acerca do fenômeno ou problema são categorias estrutura-das e estruturantes das ações dos indivíduos, pois, desta experiência deman-dam procedimentos e orientações que se tornam normativas na reprodução destes saberes e da técnica de manuseio de um objeto e/ou de interpretação de um dado fenômeno.

Mas, a experiência como forma de incorporação de condutas e práticas serve também como orientadora para a apreensão de conhecimentos? Thompson (1981:16)

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observa que a experiência integra o ser social, mas não surge sem o pensamento, isto por que as pessoas são seres racionais e refl etem sobre o que acontece consigo e com o mundo da vida. Afi rma; “não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente dos seus conceitos e expectativas organizadoras, nem podia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento”. Logo, a experiência é parte constitutiva do discurso que visa a demonstração dos argumen-tos e, neste sentido, também faz parte do discurso que emerge da ciência.

Esta relação que estabelece a experiência como categoria estruturante, a torna constituinte do conhecimento, na medida em que, o interesse motivador para a execução da ação não está em contraposição ao conteúdo normativo do grupo social ao qual o indivíduo vincula-se. A disposição estratégica colocada em práti-ca, necessita da legitimação do grupo para existir como forma de conhecimento.

Na ciência a operação não se distingue do mundo prático, tendo em vista, a forma de apresentação dos argumentos que é regida por uma metodologia siste-mática e concisa, capaz de assegurar ao objeto de pesquisa a falibilidade e a concisão necessária para o reconhecimento pelos pares.

O saber cientifi camente concebido deve estruturar-se por uma linguagem es-pecífi ca e, deve apresentar um lastro conceitual que justifi que seu status de ciên-cia. Neste sentido, tem-se que a linguagem como mecanismo estrutural de distin-ção dos saberes é a forma primeira de ruptura entre a concepção prática de um saber e a refl exão científi ca acerca deste mesmo saber. A ciência carece de con-ceitos que sejam percebidos e circunscritos em sistemas teóricos próprios e, por-tanto, devem ser expressos numa linguagem que demonstre a sua singularidade para apreensão do conhecimento.

E, ao questionarmos se existem a partir da experiência adquirida, formulações conceituais que expressam os saberes constituídos e legitimados no interior do campo científi co, podemos argumentar que sim, pois as normas e procedimentos operacionais que orientam o fazer prático são objeto do rigor sistemático da ciên-cia, que busca compreender o fenômeno e, a partir de então, operacionalizar con-ceitos que orientem a reprodução técnica deste saber, atribuindo-lhe uma lingua-gem que é reconhecida e aceita por aqueles fazem parte deste campo científi co.

O problema, objeto da ciência, em si não existe, ele é produto da refl exão em cada campo científi co e, por muitas vezes, os detentores do saber prático não formulam suas experiências com base nesta problematização que orienta o fazer da pesquisa e a construção do conhecimento científi co. O mundo sensível como uma expressão inicial de apreensão da realidade alimenta e se retroalimenta com o que é produzido pela ciência.

É notório que o advento do capitalismo e a modernidade industrial trouxe-ram a técnica como a operacionalização racional para a produção industrial, ou

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seja, conceberam uma forma racional de uso dos saberes que fosse capaz de se diferenciar da atividade artesanal e que, portanto, fosse produto de um capital cultural legitimado pela certifi cação escolar. E é também importante ressaltar que as classes sociais que emergem desta racionalização do mundo da vida pas-sam a ser reprodutoras deste saber cientifi camente reconhecido, sem, contudo, disporem da linguagem e dos argumentos conceituais para operarem no interior dos campos científi cos.

Portanto, esse saber científi co precisa ser reconhecido pelo mundo prático, como alternativa aos saberes e disposições empreendidas pelo indivíduo no seu cotidiano, ou seja, não é sufi ciente ao mundo prático a legitimação de um saber ou de uma técnica pela ciência, se esta se coloca em oposição à experiência ad-quirida, ao capital cultural herdado e compartilhado com os pares de um deter-minado grupo. Neste sentido, as Ciências Sociais e, em particular a Sociologia, têm o papel de desmistifi cação da ciência perante a sociedade, aproximando a realidade vivida do saber concebido por esta, de uma forma que o sujeito opera-dor se sinta parte estruturante do saber cognoscível.

Estas e tantas outras questões que orientam as refl exões sobre a experiência, os saberes e os interesses enquanto categorias estruturantes na construção do conhecimento científi co, revelam ainda que de forma latente a necessidade de aprofundamento destes entrecruzamentos para compreensão da relação entre os saberes adquiridos — conteúdos práticos e pertencentes ao mundo vivido e apre-endido pelo sensível — e os saberes constituídos — legitimados por um capital cultural constituído e reconhecido pela sociedade.

4. O INTERESSE COMO FORMA DE ORIENTAÇÃO DO CONHECIMENTO

O conceito de experiência revela o primeiro caráter empírico que os saberes demandam e, portanto, estrutura-se no campo de atuação e referência do indiví-duo, ou seja, esta forma de saber orienta-se a priori pela interação cotidiana com o mundo vivido e pela assunção de práticas e valores compartilhados a partir de uma referência estabelecida e legitimada pelo grupo ou sociedade a qual o indi-víduo vincula-se. Logo, a experiência, ainda que se manifeste na esfera individu-al, é uma representação coletiva e compartilhada. Portanto, trata-se de um con-junto de valores e normas apreendidas como “verdades” que estabelecem a unidade de pensar e agir de um indivíduo e de um grupo.

A compreensão da experiência, no âmbito do indivíduo, é um exercício de re-fl exão e autorrefl exão, pois ao tempo em que objetiva desvelar as formas de mani-festação das “verdades” compartilhadas, ter-se-ia que se observar a participação destas mesmas “verdades” na compreensão de si e da própria coletividade.

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Dois movimentos se encontram aí; o primeiro está situado no campo da re-fl exão, concebido como exercício necessário para apreensão dos saberes e, da forma como estes saberes são legitimados em cada tempo e cada sociedade — por ser um exercício individual, implica no estabelecer de procedimentos que possibilitem a crítica e a análise de cada fenômeno apresentado, desvelando o que é estruturante e estruturado na construção do conhecimento e suas implica-ções para o indivíduo e/ou grupo — o segundo, diz respeito ao exercício dialéti-co que interpõe consciência e autoconsciência, interesses e críticas, como formas emancipatórias de inscrição do indivíduo no grupo e no mundo vivido.

Daí a ideia de um saber sensível e outro denominado de perceptível como formas de representação de uma mesma experiência. O primeiro está associado à observação do mundo e da cultura do lugar e, ocorre quando a incorporação desses saberes se dão como conteúdos interpretativos acerca dos fenômenos da natureza e da sociedade, neste caso, o indivíduo tende a absorver estratégias que servem como orientações para tomadas de decisões do grupo e das pessoas. Por outro lado, o saber que é perceptível é aquele que está relacionado ao interesse que o indivíduo ou grupo desenvolve e, se expressa pela refl exão acerca de um fenômeno ou pro-blema e, que por si só, é o produto de uma necessidade do indivíduo e/ou do grupo. A percepção, neste empreendimento, é um exercício refl exivo e objetivado que é orientado pelos valores e pela cultura de cada sujeito e de cada lugar.

Logo, o interesse é essa representação manifesta do perceptível, mas não como um mero exercício de autorrefl exão do indivíduo intermediado por suas necessidades mais subjetivas, mas sim como um produto da negociação do indi-víduo com o grupo. Ele refere-se ao consensualmente aceito pelo grupo e pelo indivíduo que, em última instância, é ele mesmo — indivíduo —, o avaliador deste interesse em relação aos demais membros do grupo. Neste sentido, o inte-resse que é individual, é factível à crítica dos demais membros, que de forma in-terdependente, julga, orientado pela interpretação consensual da coletividade acerca do fenômeno. Para tanto, os argumentos acerca dos interesses dos indiví-duos devem estar acessível a todos os membros do grupo e sujeitos às críticas.

Assim, os interesses que guiam o conhecimento aderem às funções de um eu que, nos processos de aprendizagem, se adapta às suas condições externas de vida; que se exercita, mediante processos formativos, no nexo de comunicação de um modo social da vida; e que constrói uma identidade no confl ito entre as pretensões dos impulsos e as coações sociais. Estas realizações incidem, por seu turno, nas forças produtivas que uma sociedade acumula; na tradi-ção cultural, a partir da qual uma sociedade se interpreta; e nas le-gitimações que uma sociedade aceita ou pratica. Portanto, (...) os interesses que guiam o conhecimento constituem-se no meio do trabalho, da linguagem e da dominação. (HABERMAS, 2009:143)

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Desta forma, todas e quaisquer tomada de decisão no mundo da vida não são simplesmente condicionadas pelo capital cultural herdado, elas são também o refl exo das disposições práticas acumuladas enquanto escolhas racionais orien-tadas por interesses. Tais disposições são nada mais nada menos, do que as apre-ensões sensíveis do mundo e as percepções refl exivas do fazer-se no mundo. Elas são categorias refl exivas que servem como propulsoras de outras formas de sa-beres, legitimados e registrados como constituintes da ciência e/ou da fi losofi a.

Mas, como compreender o papel do interesse na constituição dos saberes e do conhecimento científi co? De fato, isto implica em pensarmos a lógica de construção do objeto científi co e a importância desta relação entre conhecimento e interesse para o desenvolvimento da ciência. Habermas observa que,

No conceito de interesse como guia do conhecimento já se encon-tram recolhidos os dois momentos cuja relação se deve agora elu-cidar; conhecimento e interesse. A partir das experiências do dia-a--dia, sabemos que as ideias servem muitas vezes bastante bem para mascarar com pretextos legitimadores os motivos reais das nossas ações. O que a este nível se chama de racionalização chamamos-lhe, no plano das ações coletivas, ideologia. Em ambos os casos, o con-teúdo manifesto de enunciados é falseado pela irrefl ectida vincula-ção a interesses por parte de uma consciência só na aparência autô-noma. É com razão, pois, que a disciplina do pensamento educado visa à eliminação de tais interesses. Em todas as ciências se cons-tituíram rotinas que impedem a subjetividade da opinião; e contra a infl uência incontrolada de interesses profundamente arraigados, que dependem menos do indivíduo do que da situação objetiva de grupos sociais, (...) Mas isto é apenas um lado da questão. Porque deve, em primeiro lugar, obter a objetividade dos seus enunciados contra a pressão e a sedução de interesses particulares, a ciência ilude-se, por outro lado, quanto aos interesses fundamentais aos quais deve não só o seu impulso, mas também as condições de possível objectividade. (2009:140)

Logo, o interesse presente no agir prático constitui-se como estruturante das disposições que fazem o sujeito atuar, representa a ideia propulsora do conheci-mento e do sentido da ação, pois ao orientar o indivíduo em sua atuação discri-mina as experiências que o sujeito busca vivenciar. Objetivamente representa o uso de uma rotina prática do experimentar, presente no mundo vivido de forma latente ao indivíduo; associa a estratégia a perspectiva e, com isto, objetiva a relação subjetiva expressa no sentido da ação, pois; estabelece, para além da ra-zão científi ca prevalecente, um conhecimento prático que é a relação objetiva do interesse com o conhecimento.

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5. O HABITUS COMO MANIFESTAÇÃO DO AGIR PRÁTICO

O olhar sobre o mundo social tal qual o objetivismo estabelece, a partir do ponto de vista do observador, transforma-o em um espetáculo no qual as intera-ções, com este mundo observado, são interpretadas como meras trocas simbóli-cas. Nesta perspectiva os indivíduos apenas desenvolvem seus papeis orientados por uma estrutura, que preliminarmente já o enquadrou. Assim,

A teoria da prática como prática evoca, contra o materialismo po-sitivista, que os objetos de conhecimento são construídos, e não passivamente registrados e, contra o idealismo intelectualista, que o princípio dessa construção é o sistema das disposições estrutura-das e estruturantes que se constitui na prática e que é sempre orien-tado para funções práticas. (...) basta para isso se situar na “ativida-de real como tal”, ou seja, na relação prática com o mundo, essa presença pré-ocupada e ativa no mundo pela qual o mundo impõe a sua presença, com suas urgências, suas coisas por fazer ou por dizer, suas coisas feitas para serem ditas, que comandam direta-mente os gestos ou as palavras sem jamais se revelar como espetá-culo. (BOURDIEU, 2009:86)

Para que esta teoria da prática se efetive é necessário romper com esta pers-pectiva do mundo vivido como um espetáculo, portanto, evoca-se aí uma ruptura primeira com a experiência inicial, propulsora do habitus, como também com o “realismo da estrutura” e da consequente construção das relações objetivadas que o objetivismo tende a considerar como “realidades já constituídas e fora da história do indivíduo e do grupo, sem recair, no entanto, no subjetivismo, total-mente incapaz de dar conta da necessidade do mundo social, para isto é preciso retornar à prática, lugar da dialética do opus operatum e do modus operandi, dos produtos objetivados e dos produtos incorporados da prática histórica, das estru-turas e dos habitus” (BOURDIEU, 2009:86-7).

Trata-se de verifi car a extensão da experiência primeira como estrutura estru-turada, normatizadora e orientadora do fazer, isto é, pertencente ao grupo e ao indivíduo enquanto disposição incorporada e, de um modo de se fazer, que deli-mita o indivíduo nas suas escolhas. Mas, para além desta disposição de coação e constrangimento presente no mundo vivido, cabe ao indivíduo a seleção do que experimentar e da forma como essa experimentação será disposta nas suas rela-ções interpessoais e nas suas relações com o mundo vivido. Este movimento dialético no sentido da prática do que se experimenta e como que o sentido da experimentação é apreendido, demonstra que o habitus como disposição prática que orienta as escolhas dos indivíduos pode ser acrescido do interesse para o desenvolvimento do agir prático.

Compreendendo o habitus como um movimento desta dialética, percebe-se que, as disposições incorporadas e objetivadas no agir prático possibilitam ao

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indivíduo acrescer a este mesmo habitus novas disposições e incorporações que se relacionam com o que está disponível para ser objetivado, constituindo, um novo agir adequado à estrutura do mundo vivido, sem, contudo, dissociar das razões individuais para empreender este ou aquele experimento.

Em outras palavras, não se trata de um habitus modifi cado em si mesmo, mas de um novo habitus pautado na experiência passada e incorporada, mas que se torna produto de uma nova refl exão pactuada com o mundo vivido e com os in-teresses que se originam das inúmeras formas distintivas e classifi catórias que demarcam o indivíduo na sociedade.

Para Bourdieu, “o habitus torna possível a produção livre de todos os pensa-mentos, de todas as percepções e de todas as ações inscritas nos limites inerentes às condições particulares de sua produção, e somente daquelas”. Daí que a infi -nitude de engendrar novas formas de pensar, de fato revela-se fi nita e controlada, pela própria gênese do habitus, que é historicamente delimitado e condicionado na sua capacidade de criação de algo novo. Mas, ele se redefi ne dialeticamente na intenção de objetivação e na intenção objetivada; “é porque o habitus como toda arte de inventar é o que permite produzir práticas em número infi nito, e re-lativamente imprevisíveis (como as situações correspondentes), mas, limitadas, todavia, em sua diversidade” (BOURDIEU, 2009:92)

Continua Bourdieu,Ou seja, sendo o produto de uma classe determinada de regularida-des objetivas, o habitus tende a engendrar todas as condutas “razo-áveis”, do “senso comum”, que são possíveis nos limites dessas regularidades, e apenas dessas, e que têm todas as possibilidades de ser positivamente sancionadas porque são objetivamente ajusta-das à lógica característica de um campo determinado, do qual an-tecipam o porvir objetivo; ele tende consequentemente a excluir “sem violência, sem arte, sem argumento”, todas as “loucuras” (isso não é para nós), ou seja, todas as condutas destinadas a ser negativamente sancionadas porque incompatíveis com as condi-ções objetivas. (...) as práticas não se deixam deduzir nem das con-dições presentes que podem parecer tê-las suscitado nem das con-dições passadas que produziram o habitus, princípio durável de sua produção. Só se pode explicá-las, portanto, com a condição de relacionar as condições sociais nas quais se constituiu o habitus que as engendrou e as condições sociais nas quais ele é posto em ação, ou seja, com a condição de operar pelo trabalho científi co a relação desses dois estados do mundo social que o habitus efetua, ao ocultá-lo, na e pela prática”.

Assim sendo, operar o presente sem descolar-se do passado parece ser o sen-tido dialético que Bourdieu propõe para que possamos apreender o habitus, ainda

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que limitado em sua diversidade, neste aspecto, tem-se de se buscar apreender as disposições práticas na sua relação sincrônica e diacrônica, portanto na história e na contemporaneidade. Contudo, este movimento, arqueológico, de apreensão do habitus não estabelece a relação instrumental que o indivíduo opera no agir, quando ao dispor das escolhas para o agir, empreende interesses e motivações que podem ser apreendidos no contato com outros grupos ou espaços sociais.

De fato, o habitus é esse estado incorporado e objetivado do agir prático, re-presenta a melodia de uma orquestra sem maestro, mas que segue uma escrita musical, ainda que liberado para as improvisações. Consequentemente, as impro-visações ainda que estejam circunscrita ao conhecimento e a experiência indivi-dual de quem a executa, não pode dissociar-se do conjunto harmônico em execu-ção, mesmo que, o proposto seja uma releitura da experiência compartilhada para execução da peça musical. Daí a necessidade de buscar-se entender de que forma neste movimento arqueológico de obtenção do conhecimento pelas experiências, produto do agir prático, ocorre a dissociação dos interesses instrumentais que operam na razão individual. Pois, quando das escolhas e seleção dos modos de agir, os indivíduos não dispõem apenas do habitus, eles negociam consigo mes-mo e com o mundo vivido o que é permissível e o que é esperado como produto da ação, que, consequentemente, gera formas de conhecimento que passam a operar não mais como um habitus modifi cado, mas como uma nova razão prática que estabelece novos habitus apreendidos e incorporados como estruturas estru-turadas passíveis de transforma-se em estruturas estruturantes, porém, alocados em determinada posição, dentro do espaço social do mundo vivido.

A estrutura que engendrou as disposições historicamente experimentadas, no ato do agir prático, é aquela que estabelece o possível e o impossível de ser apre-endido — isto é para nós, ou, isto não é para nós. E, neste sentido, a teoria da prática deve se projetar para além do objetivado e incorporado como disposições duráveis, deve apreender o sentido do agir e o caráter emancipatório deste, na constituição do indivíduo no mundo vivido. Isto é, apreender o que é estrutural e o que é estruturante, mas também, aquilo que opera no agir. Pois, como Giddens observa; é sabido que compreender a razão pela qual o indivíduo atuou desta ou daquela forma é imprescindível para apreensão do conhecimento gerado na ação.

6. REFERÊNCIASBOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica social do julgamento. Trad.: Daniela Kern;

Guilherme J. F. Teixeira. 2 ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2011.

______. Livro 1. Crítica da Razão Teórica. In: O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreria e Odaci Coradini. Petrópolis: Vozes, 2009.

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______. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Col. Memória e Sociedade. Rio de Janeiro: DIFEL/Bertrand Brasil, 1989.

GIDDENS, Anthony. As novas regras do método sociológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

_______. As conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. In: Técnica e Ciência como “Ideologia”. Trad.: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2009.

MARX, Karl. A Ideologia Alemã. Trad.: Frank Muller. São Paulo: Martin Claret, 2007.

THOMPSON, E P. O termo ausente: Experiência. In: A Miséria da Teoria ou um plane-tário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Trad.: Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.

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CAPÍTULO 7O HABITUS EM BOURDIEU

Lícia Maria Souza dos Santos

SUMÁRIO: 1. Estrutura e Ação — 2. O habitus um conceito de mediação — 3. Considerações Finais — 4. Referências bibliográfi cas.

A proposta neste trabalho é de compreender o como Bourdieu concebe a re-lação estrutura e ação, sujeito e objeto através de sua construção teórico metodo-lógica, não obstante a pretensão não é de abarcar toda sua teoria e com algumas limitações espaço-tempo será dada uma ênfase ao conceito de habitus, como um modus operandi que contribui para uma leitura da realidade social.

1. ESTRUTURA E AÇÃO

A abordagem da relação indivíduo e sociedade, estrutura e ação se faz pre-sente desde o nascimento da sociologia e tem se colocado como uma questão basilar na construção teórico-sociológica. Sociólogos com um arsenal de con-ceitos, métodos, procedimentos de verifi cação procuram compreender o mundo social, numa ação que não consegue ser neutra e tem uma função, portanto é uma atividade que cria divisão, diferenças entre correntes teórico metodológicas estas que são construídas a partir da concepção que cada teórico tem da relação indivíduo e sociedade.

Durkheim com a preocupação em validar a sociologia enquanto ciência, se inspira no método das ciências naturais a qual já tinha um método cientifi co reco-nhecido e concebe a sociedade como uma realidade em si mesma, algo que se sobrepõe ao indivíduo, elaborando um método para estudar o fenômeno social como algo exterior ao indivíduo e nenhuma análise que parta do indivíduo poderá apreender as propriedades específi cas dos fenômenos sociais. Não obstante, não podemos esquecer que sua preocupação era com o caráter científi co da sociolo-gia. Por outro lado, Weber procura valorizar o sujeito ao propor uma sociologia que compreenda a ação social, a partir de fenômenos singulares; a ação social é dotada de sentido para o ator e o sentido da ação é o motivo que conduz a ação.

Com a denominada crise de paradigmas em voga também nas ciências so-ciais, todos os pilares são postos em questão. E neste métier alguns se propõem a desmistifi car a relação indivíduo e sociedade, a fazer síntese, alguns conseguem

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outros não, uns são felizes, outros nem tanto. E Bourdieu como observa Ortiz é um exemplo deste tipo de autor difícil de ser situado em relação a uma “escola”, pois que se apresenta como um pensador profundamente original (ORTIZ,1983).

Bourdieu tem como problemática teórica em seus escritos a procura de uma mediação entre o agente social e a sociedade. Estabelece um debate entre o ob-jetivismo e subjetivisomo, ele agrupa culturalismo, estruturalismo, marxismo estrutural na categoria objetivismo e etnometodologia, interacionismo simbólico enquanto epistemologias subjetivistas. Percebe-se que Bourdieu utiliza a refe-rência dos clássicos, Durkheim, Max Weber e Karl Marx, e assim faz uma crítica a defesa de uma única teoria para explicar a realidade social e numa perspectiva epistemológica parte dos três e cria um novo paradigma.

O objetivismo estruturalista considera os sistemas de representação como estrutura dada onde o ator social é apenas executor de algo que se encontra pro-gramado e que lhe é exterior. Ao lançar essa crítica ao objetivismo Bourdieu se depara com a dimensão subjetiva da análise weberiana da ação social, esta que procura preencher o espaço recusado pelo estruturalismo e defi ne a realidade social a partir da conduta dos indivíduos, na fenomenologia o indivíduo é apre-sentado a partir de sua intersubjetividade. E Bourdieu na tentativa de ultrapassar esses limites, empreende um esforço no sentido da superação dessa dicotomia subjetividade e objetividade.

Ele propõe uma teoria da prática, a partir de um esforço para integrar num siste-ma conceitual abordagens teóricas que foram separadas arbitrariamente, ele compre-ende que só pode haver um avanço da ciência se teorias opostas se comunicarem.

Na maioria das vezes, o obstáculo que impede a comunicação entre os conceitos, os métodos ou as técnicas não é lógico, mas socioló-gico. Os que se identifi cam com Marx (ou com Weber) não podem se apropriar daquilo que parece ser sua própria negação, sem ter a impressão de se negar, de se renegar (BOURDIEU,1983).

Bourdieu ressalta também que seus conceitos são construídos a partir do embate entre a teoria e a empiria, e que assim deve ser na sociologia, sempre tentando colocar em ação a teoria investindo em pesquisas novas. A proposta é de tratar a teoria como um modus operandi que orienta a prática científi ca, rom-pendo com um certo fetiche que ronda a teoria. (BOURDIEU, 1989: 60)

Essa relação empiria/teoria se desenvolve em Bourdieu a partir de seus estu-dos na etnologia, que tem início com o trabalho de campo na sociedade Cabila, onde ele compreende que os primeiros indígenas estudados “não tinham” muito a oferecer a erudição fi losófi ca dos seus contemporâneos dos anos 1960, pois estes infl uenciados sob a linha radicalmente objetivista do estruturalismo, onde

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qualquer interesse pela experiência dos agentes era suspeito de nostalgia huma-nista, neste contexto é que Bourdieu ao valorizar as experiências dos agentes rompe com a oposição objetivismo e subjetivismo. Migrando da fi losofi a para às ciências sociais, Bourdieu se contrapunha ao repudio as opiniões do senso co-mum que demarca o status do fi lósofo, que se expressava num pensador enun-ciando a verdade do mundo social. Segundo Louis Pinto, aqueles que participa-vam do debate teórico não encontravam em Bourdieu resposta as suas expectativas, pois até a antropologia em princípio com infl uências da linguística estrutural, tratava seu objeto com um certo distanciamento. (PINTO, 2000:34)

Retomemos a contribuição do método estrutural na obra de alguns autores da escola francesa como Durkheim, Mauss e Claude Lévi-Strauss infl uenciado a construção teórica de Bourdieu.

Durkheim, considera os fenômenos sociais separados do sujeito conscientes que eles representam. E para se compreender o fato social deve-se procurar a causa do fato em um fato antecedente. Ele toma os sistemas simbólicos como estruturas estruturantes, como elementos que organizam o conhecimento ou mais amplamente a percepção que os indivíduos têm da realidade.

Mauss, no entanto acredita que embora o todo seja ainda mais real que suas partes ele dá voz ao nativo e assim como Bourdieu também defende que é na relação observador e observado que se dá a construção de conceitos científi cos. Mauss sugere esta relação entre o social e o fi siológico na interpretação da rela-ção entre indivíduo e o grupo, portanto é considerado o fundador da Antropologia Moderna. A partir dele na antropologia estruturalista se abre um espaço para o sujeito, desde o método onde ele ao tentar construir uma teoria da reciprocidade considera o caráter voluntário da troca expresso na voz do nativo. Mauss termina por se deixar sucumbir pelo nativo quando em o Ensaio sobre a Dadiva procura compreender a lógica da reciprocidade e pergunta ao nativo: que força há na coi-sa dada que faz com que aquele que receba queira reciprocar ? E toma a resposta do nativo como o motivo da troca. Pois apesar de perceber a troca como um fato social total — ainda que esse conceito dele seja mais semiológico que instrumen-tal — ele não questiona outros nativos, não relaciona com outras ações, fatores que podem gerar a troca, como por exemplo a necessidade de obter “coisas” só naquele episódio ou a troca como uma economia de bens simbólicos.

Para compreender o mundo da reciprocidade Mauss se apoia sobre a virtude obscura que pesa sobre o dom, tomando como ponto de partida o que é dito do hau. O hau não é a razão última da troca, mas a forma consciente que os nativos apresentam o ato de reciprocar. Mauss parece que interpreta como o indivíduo pensa o mito e não como os mitos existem nos indivíduos. (MAUSS,1974)

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Lévi-Strauss está preocupado com o espaço do indivíduo no sistema social. Ao chamar atenção para se estudar a vida social como um vasto simbolismo, um sistema de representação no qual o sujeito é fundado. Na introdução a obra de Marcel Mauss, percebemos como ele compreende essa relação entre o indivíduo e o grupo quando coloca:

... o fato social total apresenta-se, pois, com um caráter tridimen-sional. Deve fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão histórica, ou diacrônica; e fi nalmente, a dimensão físico-psicológica. Ora, é só nos indivíduos que esta tríplice abordagem pode ser feita... (LÉVI--STRAUSS, 1974:14).

Bourdieu tem também esta preocupação com o indivíduo como parte do todo e avança quando quer compreender o indivíduo como agente, que vive numa estrutura estruturante e não uma estrutura estruturada, em que a ação não é uma simples execução de uma regra. A Escola Francesa de base estruturalista contribui no sentido de mostrar o como a estrutura existe como um sistema de relação entre o todo e suas partes; e também já com uma primeira percepção de que o indivíduo existe como sujeito.

(...) Na linha de Durkheim e de Mauss, Claude Lévi-Strauss con-tribuíra para modifi car o ponto de vista do observador mostrando as vantagens de procurar-se a inteligibilidade não no átomo indivi-sível da consciência individual, mas em sistemas organizados cuja unidade, puramente ideal, é, para retomar a terminologia saussu-riana, a “diferença “(...). (PINTO, 2000:43)

Não obstante, Bourdieu procura ultrapassar o estruturalismo, que ao enge-nhar uma compreensão da maneira de viver de um grupo e ou uma sociedade humana, com interesse no estudo do indivíduo como parte do todo, termina por enquadrar o indivíduo num modelo; há um diálogo também com o estruturalismo de Althusser que com uma análise “hard” da estrutura social separa as condições objetivas exteriores e as subjetivas, ainda que tenha considerado que o econômi-co determina em última instância. No entanto Mauss e Lévi Strauss já compreen-dem o ato social inspirado por um sentido, ao apreender o social através de uma experiência concreta, no indivíduo e não apenas na sociedade; o investigador tenta captar o fato social na consciência do indivíduo. Em Lévi Strauss o incons-ciente é visto como campo de conciliação entre o eu e o outro, não obstante em Bourdieu tem-se relações exteriores que independem das vontades individuais, este procura o agente como sujeito que age, sujeito da prática, a representação tem uma existência material e em geral traduzem-se em atos e práticas.

Bourdieu ao romper com o estruturalismo, ou melhor, ao tentar ultrapassar os limites do objetivismo estruturalista que reduz o agente ao papel de suporte da

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estrutura, procura reintroduzir o agente social negligenciado pelo objetivismo, contudo não reproduz os argumentos da escola da ação — traduzida na fenomeno-logia — ele propõe uma teoria da prática na qual as ações sociais são concreta-mente realizadas pelos indivíduos, os quais ocupam um espaço social. Para a fe-nomenologia os agentes não vivem outra coisa a não ser suas próprias representações, e a partir daí deriva a posição destes no mundo social. Para Bour-dieu deve-se atribuir, conceder um grau mínimo de consciência e domínio prático que lhes permita ao menos executar atos e ritual cujo sentido completo lhes esca-pa. O agente tem um domínio prático de suas ações, mas não é apenas aquilo que representa, ele faz parte de uma realidade objetiva.

2. O HABITUS UM CONCEITO DA MEDIAÇÃO

Como afi rma Bourdieu a noção de habitus, um conceito que ele repensou completamente, como uma maneira de escapar dessa alternativa do estruturalis-mo sem sujeito e da fi losofi a do sujeito (BOURDIEU, 1990: 22). Surge a partir do seu esforço em construir uma teoria a partir da empiria.

Retoma a idéia escolástica do habitus que enfatiza a dimensão de um apren-dizado passado e reinterpreta no interior do embate objetivismo/fenomenologia, para defi nir como: “sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas pre-dispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente regula-das sem que por isso sejam o produto de obediência de regras...”com o conceito de habitus, Bourdieu quer adequar as ações do sujeito a realidade objetiva.(BOURDIEU, 1989)

O habitus se sustenta por esquemas gerais que antecedem, orientam a ação e que estão na origem de outros esquemas gerais que antecedam outra ação. O habitus se diferencia do hábitos, por que não é uma mera apreensão, mas uma reelaboração, e assim não anula a posição do agente que re-interpreta a partir do seu capital social, o agente encontra uma realidade que lhe é dada mas ele age dentro dessa realidade a partir da sua consciência que é formada pela estrutura e pelo seu eu socializado.

A análise de Bourdieu tende a enfatizar a importância de se estudar o modo de estruturação do habitus através das instituições de socialização. Uma vez que no processo de socialização são desenvolvidos habitus distintos.

Na sociologia da prática de Bourdieu, o mundo social permite ao agente se adaptar as situações mediante uma aprendizagem que lhe poupe uma refl exão constante, ou seja, que ele não precise questionar-se a cumprir ou não uma regra, a estratégia sucede a regra. (PINTO, 2000: 47). Neste momento se expressa a luta

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de Bourdieu contra o objetivismo estruturalista, procurando valorizar a experiên-cia do agente, este que tem sua prática resultando de sua posição no espaço social, a qual é perceptível por mecanismos bastante objetivos, como renda, escolaridade, moradia, entre outros; e não de um projeto individual, assim é através do habitus que o agente interioriza as determinações e percebe os limites de suas ações. “O habitus exprime a contribuição que cada prática (cultural, econômica, doméstica, etc.), em universos aparentemente separados, presta à produção e a reprodução da identidade social do agente.” (PINTO, 2000: 50)

Quando o agente insere-se em outro campo ele precisa re-elaborar suas práticas e é neste momento que se conhece o habitus como sistema de disposições duráveis desenvolvido em determinado espaço/tempo, manifesto pelo desajustamento.

A noção de habitus permite uma historicização do sujeito, ao desmontar o sistema socialmente constituído de esquemas incorporados que comanda suas estratégias. Segundo Bourdieu a prática não decorre da intenção do agente, mas do encontro mais ou menos bem sucedido entre posições e disposições. (WAC-QUANT, 1997: 36).

Como já foi dito por muitos A Distinção, é a obra de Bourdieu que representa um marco na sua carreira do ponto de vista teórico, epistemológico e metodoló-gico; sua preocupação central é discutir a classe social, o como o habitus da classe é estruturado, portanto vamos utilizá-la para refl etir sobre o habitus. Edi-tada pela primeira vez na década de setenta, fala do gosto, como um sentido de distinção por excelência, permitindo separar e unir pessoas e conseqüentemente forjar solidariedades ou constituir divisões grupais de forma universal (tudo é gosto) e invisível, aqui ” gosto se discute”.

Na Distinção, o conceito de habitus é retomado para analisar o quanto que as preferências estão relacionadas com as condições objetivas, cumprindo seu pa-pel de conceito de mediação, ele apresenta o gosto, como uma distinção constru-ída numa perspectiva relacional, num certo espaço social, considerando os dife-rentes capitais, o cultural, o social e o econômico. Analisa a socialização na família e na escola, como espaços que se constituem as competências julgadas necessárias em determinado momento, e então mostra como o capital incorpora-do de maneira legítima, inculcado quase inconscientemente através da família representa um aprendizado caracterizado pelo seu desprendimento, garante ao seu portador um desembaraço na apreciação cultural. E aquele aprendizado es-colar mais metódico, sistemático e consciente, garante ao seu portador uma fa-miliaridade tardia com a produção cultural. (BOURDIEU, 2008: 82)

Ao se referir ao gosto como uma disposição que orienta as práticas dos agen-tes, podemos acompanhar a aplicabilidade do conceito de habitus. O gosto por alguma receita desenvolvida e passada de geração em geração, ou mesmo, o

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modo de vestir são habitus, práticas socialmente percebidas, classifi cáveis e re-produzidas, são refl exo do capital social herdado dos pais e da família unidos na relação estreita com o capital escolar.

Os estilos de vida, são assim, os produtos sistemáticos dos habitus, que percebidos em suas relações mútuas sendo os esquemas do habitus, tornam-se sistemas de sinais socialmente qualifi cados — como distintos, vulgares, etc. A dialética das condições e dos habi-tus é o fundamento da alquimia que transforma a distribuição do capital, balanço de uma relação de forças, em sistema de diferen-ças percebidas, de propriedades distintivas, ou seja, em distribui-ção de capital simbólico, capital, legítimo, irreconhecível em sua verdade objetiva. (BOURDIEU, 2008: 164)

A disposição estética como aptidão para perceber e decifrar certar obras de arte, é uma disposição que pode ser um controle prático, adquirida por uma apren-dizagem explícita ou pela simples freqüência a exposições artísticas, ou seja, é fazer parte de um campo, de um determinado sistema de classifi cação que permite essa construção da disposição para apreciação, identifi cação do especialista.

Os conceitos de habitus e campos permite pensar a relação entre os condicio-namentos sociais exteriores e a subjetividade dos agentes. Na Distinção, Bour-dieu explora criativamente a hipótese de que o “gosto” é um marcador de classe e que o consumo de bens culturais, consciente ou inconsciente preenche uma função social de legitimar diferenças sociais. A distinção social baseada no gosto abrange todas as dimensões da vida humana que implica alguma escolha; vestuá-rio, comida, formas de lazer, opções de consumo, etc., onde o gosto funciona como um sentido de distinção por excelência, permitindo separar e unir pessoas.

O habitus produzindo uma regularidade de comportamento a partir de dois aspectos, um objetivo (estrutura) e outro subjetivo (percepção), pode-se dizer que ele não só interioriza o exterior, mas também exterioriza o interior.” Ora, esse sistema de disposições, pelo fato de ser engendrado em condições determi-nadas, é inegavelmente ajustado a outras condições. E é pelo desajustamento que ele se torna manifesto” (PINTO, 2000: 39). O habitus que a criança apreende na família pode ser cultivado na escola, enquanto o habitus transformado pela ação escolar está no princípio das experiências posteriores.

Como observa Sérgio Miceli “...o habitus seria um conjunto de esquemas implantados desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos re--atualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível...”. (MICELI, 1987)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Bourdieu, apresenta uma contribuição signifi cativa e original na dis-cussão estrutura e ação, sujeito e objeto, não obstante suscita reações diversifi cadas.

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Diante disso, dentro do escopo deste trabalho primeiro realizamos uma pequena leitura da infl uência de outros autores clássicos na sua construção teórica, ressaltan-do as contribuições do método estrutural e o como Bourdieu vai dialogando as li-mitações desta abordagem e percebemos o como ele buscava compreender a socio-logia como uma ciência que se renova a partir de diferentes contribuições; e em seguida ensejamos uma abordagem sobre o conceito de habitus, passando pela dis-cussão que ele faz sobre o gosto, enquanto um caráter distintivo.

Como já foi ressaltado, Bourdieu consegue com seus conceitos um arsenal te-órico metodológico que permite a ciência social um caminho para ultrapassar esse dualismo entre subjetivismo/objetivismo. Ao compor sua teoria com contribuições dos clássicos ele crítica a defesa de uma teoria una, como já colocamos aqui.

Com a noção de habitus, o princípio da continuidade e da regularidade do mundo social é o sistema de disposições passado que persiste no atual e que ten-de a perpetuar-se no futuro, atualizando-se nas práticas estruturadas segundo seus princípios. Ao mesmo tempo o sistema de disposições é o princípio das transformações e das revoluções regradas. (BOURDIEU, 1983)

Consideramos importante assinalar que uma das principais contribuições de Bourdieu é com esse contexto paradigmático que se instalou nas ciências sociais, essa relação estrutura e ação, que na verdade está presente desde os clássicos. E como outros autores, ele propõe uma teoria que em alguns momentos, alguns contextos empíricos é insufi ciente para dar conta do realismo da estrutura, mas em outros nos mostra com uma certa profundidade o quanto estrutura e ação estão imbricadas.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBOURDIEU, Pierre. Uma ciência que Perturba. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de

Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

_______. A Distinção. Critica social do julgamento. Trad.: Daniela Kern; Guilherme F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.

_______. A gênese dos conceitos de habitus e de campo; Espaço social e gênese das classes. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 322p.

_______. Fieldwork in Philosofy. In: Coisas Ditas. 1990.

_______. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad.: Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996.

MICELI, Sérgio (org.). Introdução: A Força do Sentido. In: BOURDIEU, Pierre. Econo-mia das Trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

ORTIZ, Renato. A Procura de uma Sociologia da Prática. In: ORTIZ, Renato (org). Pier-re Bourdieu sociologia.. São Paulo: Ática,1983.

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O HABITUS EM BOURDIEU

PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. São Paulo: FGV, 2000.

SANTOS, Lícia Maria. S. Espaços de (Re)socialização de Meninos e Meninas em Situ-ação de Pobreza, 1999. Monografi a de Bacharelado. Graduação em Ciências So-ciais. Universidade Federal da Bahia.

WACQUANT, L.J.D. Durkheim e Bourdieu: a base comum e suas fi ssuras. Novos estu-dos CEBRAP, n. 48, jul. 1997.

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CAPÍTULO 8O QUE DIZER SOBRE EPISTEMOLOGIA

COM BOURDIEU E LATOUR4

Israel Rocha

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. A diversidade epistemológica nas Ciências Sociais — 3. Aspectos da epistemologia em Pierre Bourdieu e Bruno Latour — 4. Pierre Bourdieu — 5. Bruno Latour — 6. Con-clusão — 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Que tipo de questões Bruno Latour e Pierre Bourdieu endereçam à epistemo-logia? E como poderíamos compará-los à luz desse endereço? Neste artigo pro-curo explorar algumas dimensões epistemológicas dos trabalhos dos autores, considerando como os elementos conceituais por eles construídos apontam para formas distintas de construir e conceber o mundo social e seus desdobramentos. Se a epistemologia opera a partir da possibilidade da revelação das formas de conhecer, precisamos, então, compreender o modo como desdobram dimensões distintas sobre a própria epistemologia e como pensá-la nos esforços teóricos das ciências sociais. No primeiro momento, procura-se situar o debate que envolve as dicotomias já tradicionais nas Ciências Sociais e em seguida apresentar con-ceitos e aspectos chaves das teoria-ator-rede e a sociologia da práxis.

2. A DIVERSIDADE EPISTEMOLÓGICA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

As tradições sociológicas que ampliaram o escopo de atuação dos sociólogos no período posterior à segunda guerra mundial carregam um traço marcadamen-te típico das Ciências Humanas, em particular as Ciências Sociais. Desde sua origem, remontada aos clássicos como August Comte, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber (entre outros que ampliam mais a tradição como: V. Pareto, Georg Simmel e Gabriel de Tarde), as epistemologias e visões de mundo que os orientaram já destacavam as possibilidades de caminhos diferentes que refl eti-riam diretamente nos trabalhos dos sociólogos das gerações futuras. A extensão

4 Artigo produzido como parte das refl exões da disciplina Seminários Avançados do Programa de Pós-gra-duação em Ciências Sociais.

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ISRAEL ROCHA

e a fragmentação da Sociologia que se seguiu à essa primeira fase dos anos ini-ciais do século 20 acentuou características de uma disciplina que já não estava confi nada no continente europeu e o crescente aumento de sociólogos profi ssio-nais que ampliaram as áreas de especialização e sustentaram visões de mundo e perspectivas teórico-metodológicas distantes (LALLEMENT, 2004).

O resultado desse movimento são as diversas abordagens que privilegiam de um lado a ação social (seguindo uma tradição trilhada através de Max Weber) e, de outro, aquelas que consideram alinhamentos estrutural-funcionalistas da tra-dição sociológica francesa e, em alguma medida, americana. Além dos caminhos trilhados a partir dos próprios horizontes das tradições, há os trabalhos que sus-tentam a possibilidade de articulação entre as abordagens, um característica mui-to presente nos sociólogos que tiveram seus primeiros trabalhos desenvolvidos na década de 60 e 70. Anthony Giddens (teoria da estruturação) e Pierre Bour-dieu (ver livro) desenvolveram pesquisas que adotavam premissas alinhadas ao estruturalismo e as correntes interacionistas.

Além desse esforço de construção de pontos ligando aspectos estruturais aos que envolvem as práticas situadas, as ciências sociais viram emergir alternativas que negavam a possibilidade da construção de tais pontes. Este período foi mar-cado pela crítica às respostas oferecidas pelo estrutural-funcionalismo (em espe-cial a obra de Talcott Parsons) e marcado por trabalhos de orientação pragmática, sobretudo desenvolvidos pelos sociólogos americanos. Ao mesmo tempo o po-lissêmico e polêmico pós-moderno fi gura como chave interpretativa para os eventos que aconteciam no cenário político e cultural do mesmo período.

Se por um lado observamos um crescimento limitado da sociologia europeia no entre guerras, seja pela redução nos processos de institucionalização da disci-plina no continente, seja pela migração de sociólogos, especialmente para os Es-tados Unidos, podemos observar uma pluralidade de pontos de partida e visões de mundo que marcam os trabalhos dos sociólogos desse continente. No entre guer-ras surge na Europa diversos institutos de pesquisa que vão de alguma maneira nortear as pesquisas neste continente. Marcada por um período de reconstrução depois da primeira guerra, a sociologia servirá como elemento planejador com o objetivo de orientar o Estado na empreitada de reconstruir os estragos deixados pelo confl ito entre as nações. Na França de tradição durkheimiana, as oscilações das principais revistas acadêmicas e a diversidade teórica que marca os sociólo-gos posteriores à Durkheim dão a tônica do cenário sociológico do período. Na Alemanha, apesar da criação da Escola de Frankfurt e um vigor institucional neste período, os debates foram marcados pela crítica à gênese dos fatos políticos, so-ciais e culturais que marcam a ascensão do regime totalitário ao poder. Seus temas circulam entre a sociologia da cultura, os meios de comunicação de massa e a

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O QUE DIZER SOBRE EPISTEMOLOGIA COM BOURDIEU E LATOUR

indústria cultural, destaque para os trabalhos de M. Horkheimer, T. Adorno e W. Benjamim, e aos trabalhos de K. Mannheim e A. Schütz, estes últimos não direta-mente ligados à Escola de Frankfurt.

No pós-segunda guerra há o esforço para se retomar os institutos e as pesqui-sas nas nações envolvidas nos confl itos. Novas abordagens e esforços teórico--metodológicos são empregados, principalmente por aqueles que voltaram do contato com a sociologia americana. Já se buscava uma Sociologia com acentu-ada característica de pesquisa de campo. A partir da década de 50 os fundamen-tos de uma sociologia funcional começaram a declinar na Europa, abrindo espa-ço para as sociologias de fundamentação interacionista e etnometodológica, e os novos trabalhos procuraram alinhar as duas perspectivas: tanto o ponto de vista estrutural como o da ação.

A crítica dessas abordagens que buscaram articular as perspectivas sustenta que para compreender aspectos estruturais que produzem e reproduzem a socie-dade é preciso incorporar elementos da ação, estes não detalhados pelas análises macrossociais. Ao mesmo tempo outros autores, como J. Habermas, procuram em certa medida adotar posições similares, mas destacando a centralidade da dominação e do poder na cultura, sobretudo mediante a técnica. Herdeiro da tradição frankfurtiana, há uma relevante consideração sobre a ideologia da técni-ca e os interesses na sociedade capitalista burguesa (FREITAG, 1974). Do mes-mo ponto, mas com algumas diferenças, podemos partir quando tratamos dos trabalhos de Foucault, centrados na ideia de poder e nos discursos que orientam uma determinada época. Com os mesmos esforços outros autores formulam ar-gumentos que constroem pontes entre a ação e a estrutura, pensando o modo como ambas se retroalimentam e reconfi guram mutuamente.

Ao mesmo tempo que há um vigor na sociologia em redefi nir seus problemas à luz de novas formas de articulação entre a ação e a estrutura, outros importan-tes trabalhos que surgiram em subcampos de pesquisa começam a formular ques-tões sobre o a natureza das relações sociais e o modo como as conhecemos. Al-guns desses aspectos formulados por estes trabalhos, sobretudo aqueles relacionados aos estudos de ciência, consideram o esforço para construir tais pontes insufi ciente para oferecer melhores descrições sobre o social. E é a partir da discussão entre dois pontos de vista, um que articula a partir das pontes, e outro que toma como ponto de partida as associações, que consideraremos os dois autores e suas perspectivas epistemológicas a seguir.

A partir disso, destaca-se aqui que ao produzirmos refl exões que é mais mos-trar como alguns temas marcaram o debate entre os autores que tiveram seu ama-durecimento intelectual nas décadas que marcaram o revigoramento intelectual

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da sociologia, incorporando vigorosas e renovadas abordagens surgidas no inte-rior das tradições em declínio, como o funcionalismo Parsoniano e o estruturalis-mo francês.

3. ASPECTOS DA EPISTEMOLOGIA EM PIERRE BOURDIEU E BRUNO LATOUR

Nesta seção optei por dois autores que são destaques nas análises sociológicas atuais. A escolha do primeiro, Pierre Bourdieu (que em alguma medida não requer grandes apresentações), se deu por seu vigoroso trabalho de articulação de diver-sas tradições fi losófi cas e sociológicas, e pelo relativo sucesso nesta empreitada. Na sua tentativa de articular um ponto de vista estrutural a uma abordagem do indivíduo Bourdieu correu o risco natural de tal tentativa, mas alcançou insights que impulsionaram novas abordagens, mais complexas, das relações sociais.

O outro autor escolhido é um dos sociólogos que tem desenvolvido uma das mais atuais teorias nas ciências sociais, revisitando métodos e pontos de vista sobre o trabalho da sociologia e o modo como podemos pensar a ciência. Bruno Latour é fi losofo de formação e destacou-se por seus trabalhos antropológicos sobre a ciência e a tecnologia. Ajudou a revigorar um campo de estudos na so-ciologia chamado de Estudos Sociais sobre a ciência e Tecnologia, que tem suas origens ligadas aos trabalhos de sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e Robert K. Merton. Atualmente dedica-se aos trabalhos de elaboração de teoria social inspirados nos pressupostos e achados do campo da sociologia da ciência e dois livros são instrutivos neste debate: Jamais fomos modernos (1991, edição em português de 1994) e Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator--rede, de 2005, traduzido e publicado para o português em 2012.

Apresentado brevemente os autores, o objetivo neste ponto é o de apresentar os conceitos-chave que ajudaram os autores a consolidar diversos trabalhos na sociologia, bem como os fundamentos que os sustentam numa perspectiva mais ampla de seus trabalhos, centrando nos aspectos epistemológicos.

Inicialmente explorarei as noções de Bourdieu e em seguida alguns limites aos seus trabalhos, notadamente a maneira como o autor resolve a dicotomia entre ação e estrutura a partir dos conceitos de campus e habitus. O mesmo farei com Bruno Latour, destacando o modo como sua perspectiva sobre a sociologia produz deslocamentos sobre a questão epistemológica que a envolve. Ao fi nal tentarei articular algumas divergências entre as abordagens e possibilidades de diálogo entre elas.

4. PIERRE BOURDIEU

Os primeiros trabalhos de Bourdieu são acentuadamente marcados por carac-terísticas estruturalistas que perpassam uma determinada época. Muito na moda

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em seu período como estudante e pesquisador iniciante, o Estruturalismo forne-ceu elementos básicos para Bourdieu compor seus instrumentos de coleta e aná-lise de dados para os seus trabalhos posteriores. Mesmo recusando o rótulo de estruturalista (ver em Coisas Ditas alguns comentários sobre a questão do estru-turalismo) Bourdieu afi rma que incorporou em seus trabalhos pressupostos bási-cos desta corrente de pensamento.

A ideia segundo a qual o mundo social pode ser pensado como espaço de relações objetivas que transcendem as relações entre os seus agentes e são irre-dutíveis às interações entre os indivíduos é uma marca acentuada da presença do estruturalismo nas obras de Bourdieu. Sua inquietação em relação ao estrutura-lismo de Levi-Strauss estava em saber qual o lugar que os agentes ocupavam nesta abordagem. Algo que se considerava apenas como um epifenômeno da estrutura. Sua tentativa de inserir o agente partiu da necessidade de percebê-los que não eram meros seguidores de regras regulados por leis mecânicas, e que tratava-se de entender como os mesmos empregavam e se enredavam nas tramas sociais como as trocas matrimoniais, entre outras. Bourdieu revisou a noção de habitus desde o seu uso pelos gregos e começou a empregá-la para demonstrar esse sentido do jogo que os agentes dispõem e que são adquiridos pela experiên-cia. Procurou assim demonstrar que nenhuma regra, por mais complexa que su-gira, consegue prever resoluções para situações cotidianas.

Ao mesmo tempo em que tenta fugir do enclausuramento proporcionado pela ideia de estrutura propondo a noção de habitus, Bourdieu demonstra que não torna os agentes nem por isso em puros calculadores da vida social, pois, afi rma, que nem sempre as condutas podem ser orientadas em relação a determinados fi ns sem ser conscientemente dirigidas a esses fi ns (BOURDIEU, 1990. p.22).

As críticas direcionadas à maneira como Bourdieu emprega a noção de habi-tus o colocou numa situação de demonstrar os processos de incorporação dessas disposições. Com partida nas duas direções, tanto do ponto de vista estrutural, como baseado no ponto de vista dos sujeitos sociais, o uso da noção foi muitas vezes alinhada a um trabalho de retorno ao espontaneísmo e à fi losofi a do sujeito, crítica Straussiana e, do outro lado, um trabalho que no fi nal ainda permanecia nos limites da abordagem estruturalista, crítica do individualismo metodológico.

No mesmo caminho do conceito de habitus é a noção de Campo. O primeiro uso dessa noção aparece nos textos de Bourdieu sobre o campo científi co, no qual já empregava a noção aliada à ideia de um habitus. O campo, como estrutu-ra de relações objetivas, é a noção que fornece uma explicação lógica adequada à compreensão do que seja habitus. Bourdieu explica que o campo precisa ser percebido não como um espaço de relações visíveis, pois as mesmas escondem

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um jogo de relações objetivas entre as posições ocupadas pelos agentes e que determinam as formas como as interações ocorrem (BOURDIEU, 2007).

Como o mesmo afi rma, Compreender a génese social de um campo, e aquilo que faz a ne-cessidade específi ca da crença que o sustenta, do jogo de lingua-gem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrá-rio e do não-motivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir. (BOURDIEU, 2007)

O Campo, neste sentido, é o espaço que fornece o jogo para as interações entre os agentes. É o que sustenta tais relações e afi rma o jogo das posições dos agentes, quem possui e quem não possui, os menos favorecidos e as possibilida-des de mudança e ascensão no mesmo campo. Ao que sugere, esta noção utiliza-da por Bourdieu é a que apresenta as maiores características do estruturalismo, já que no sentido utilizado pelo autor o campo é o que fornece as posições e as disposições para que os agentes ajam em seu interior. No entanto, Bourdieu rela-ciona diretamente à noção de campo a ideia de espaço social, no qual há uma relação entre as posições sociais (conceito relacional) e as disposições (o habi-tus) e as posições que os agentes tomam dentro de um determinado campo (BOURDIEU, 1996). Este espaço social é construído com base em dois princí-pios de diferenciação que são os capitais econômico e cultural5.

A noção que permite uma articulação entre os dois conceitos trabalhados acima é a ideia de Illusio, ou o sentido do jogo. Noção pouco trabalhada em re-lação aos dois outros conceitos, porém chave da compreensão que envolve a ar-ticulação entre os conceitos. Por Illusio se entende as relações estabelecidas en-tre os agentes no campo. É o conhecimento prático que ao mesmo tempo amplia o sentido do jogo para o agente, mas também oculta os interesses envolvidos em tais relações. Este aspecto da teoria de Bourdieu levanta diversas considerações sobre a maneira como o autor trata os agentes sociais, que em certa medida ainda o aproxima da tradição estruturalista e sugere aspectos do modo como a episte-mologia se apresenta no trabalho do autor

Ao passo que tratamos de três conceitos6 elementares para compreendermos o trabalho de Bourdieu, e, sobretudo, a maneira como o autor os emprega em suas pesquisas, cabe agora apontar algumas dimensões e limites de tais conceitos.

5 Não discutirei aqui as noções de capital econômico, simbólico e cultural. A ideia aqui é apenas levantar os conceitos que são centrais para entendermos os aspectos teórico-metodológicos do autor.

6 Bourdieu sempre tratou de deixar explicito que o uso de tais conceitos é operacional e não os aprisionariam à escolástica que marcou a academia francesa, deixando claro o seu esforço de uma teoria sempre no limite de sua refutação pelos dados empíricos. (Ver o Poder Simbólico e Razões Práticas)

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Muitas críticas direcionadas ao conceito de habitus o situam num nível para o qual as explicações dadas a posteriori ainda não esclareciam certos aspectos. Os agentes situados num campo de relações estão muito pouco propensos a as-cenderem em suas posições, o que revela um limite e uma certa determinação por parte do campo. Neste sentido, as regras do jogo pouco permitiriam aos seus jogadores fl exibilidade para se situarem em posições diferentes no campo. A partir dessa crítica sugere-se outra relacionada à criatividade dos agentes sociais, em que haveria pouco espaço diante das disposições incorporadas a partir das relações estabelecidas no campo. Portanto, neste aspecto, no conceito de habitus haveria pouco espaço para a criatividade já que os agentes agem de acordo com disposições predeterminadas dentro do campo. O que parece ter uma certa lógica quando observamos as análises de Bourdieu sobre o campo científi co, por exem-plo, em que o mesmo parece apenas dispor a ciência em sua dinâmica das rela-ções de poder que a envolvem. Este ponto foi amplamente discutido por Bruno Latour em sua primeira etnografi a sobre a produção dos fatos científi cos (LA-TOUR; WOOLGAR, 1997), na qual o autor propunha uma perspectiva prática sobre o trabalho dos cientistas em laboratório, não apenas considerando relações de poder e posições estabelecidas no campo.

O mesmo parece acontecer com o conceito de campo. Ao querer distanciar-se da tradição estruturalista Bourdieu parece muito preso aos seus pressupostos. Mas é preciso entender que o conceito está situado em nível teórico e em muitas situações os dados são removidos dos momentos interacionais e da organização social localmente situada (GIDDENS, 1999). Sugere então que com este concei-to Bourdieu ainda mantem a ideia segundo a qual as relações sociais transcen-dem e não são redutíveis às ações dos sujeitos.

A ideia de Illusio contribui no processo de distanciamento, por parte dos agentes, das regras que orientam o jogo. Ao internalizar as regras (Bourdieu aos poucos deixa de usar o termo inculcação para usar os termos incorporação, reve-lando uma proximidade ainda maior com as perspectivas fenomenológicas) os agentes vivem a “ilusão de jogar o jogo” sem o conhecimento de suas regras. Há neste sentido pouco espaço para ação e a criatividade dos agentes, revelando uma inclinação para uma perspectiva estrutural do autor.

Os dois aspectos conceituais que envolvem o trabalho de Bourdieu, o habitus e campo, bem com a ideia de um sentido do jogo incorporado nas práticas, apon-tam para uma crítica de Bourdieu à epistemologia, sobretudo no que diz respeito à tradicional maneira como a questão representacional está envolvida.

Se por um lado a epistemologia de Bourdieu considera que o conhecimento produzido pela sociologia está relacionado com a possibilidade de o sociólogo perceber o que está além das relações imediatas dos agentes envolvidos em suas

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práticas, não podemos desprezar a dimensão do corpo, ou o aprendizado a partir dele, que o autor considera. Perceber além das práticas imediatas dos atores é envolver o esforço realizado no campo para manutenção das posições estabele-cidas em seu interior e no jogo de sua reprodução.

Neste sentido, a epistemologia de Bourdieu considera antes o movimento no qual o implica a objetivação dos sujeitos objetivantes e o modo de se colocar além dos rígidos modelos de explicação do social. Ao mesmo tempo que nega a foram como a objetivação surge nas ciências sociais, parece propor um modelo no qual os próprios campos sociais parecem reter lógicas semelhantes entre eles, revelando uma dimensão fi xa do próprio movimento de pesquisa do autor.

5. BRUNO LATOUR7

Os trabalhos de Latour remontam às suas refl exões no campo dos estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia. Seu primeiro trabalho considerado antro-pológico, escrito em parceria com um sociólogo inglês, Steve Woolgar, procurou fazer uma descrição do cotidiano dos cientistas de um prestigiado laboratório de endocrinologia americano. Em algumas notas dispersas neste livro o autor afi rma seu interesse pelo tema quando realizou pesquisas com antropólogos franceses na África do Sul com o objetivo de entender por que os nativos não conseguiam adaptar-se aos postos administrativos quando as bases coloniais francesas os dei-xavam sob seu controle. Latour inverte a questão procurando entender como tão certa era as convicções que os antropólogos tinham de suas análises sobre tais questões. Decide então fazer então uma antropologia do que ele considera como “centro”, uma referencia aos trabalhos dos cientistas em nossa sociedade.

Diferente de Bourdieu, Bruno Latour não diversifi cou suas análises aplican-do as suas elaborações teóricas a diversos campos, usando aqui a terminologia do primeiro. Seus trabalhos centraram em análises do fazer cientifi co em varia-das situações, desde os hormônios do Instituto Salk (laboratório referido acima) até as relações entre fl oresta e savana em Boa Vista, capital de Roraima, quando realizou um trabalho fotoetnográfi co junto com pesquisadores brasileiros e franceses. Atualmente Latour dedica-se aos trabalhos de Teoria Social com des-taque para um livro publicado recentemente em português: Reagregando o so-cial: introdução à teoria do ator rede, do qual será extraído alguns conceitos e refl exões presentes aqui.

A primeira ideia que precisamos reter dos trabalhos de Latour é uma certa ne-gação da relação, ou mesmo primazia, entre atores (seria os agentes de Bourdieu)

7 Para uma excelente introdução ao pensamento de Bruno Latour considerar o livro escrito por Graham Harman, um dos mais destacados comentadores da obra do autor. Ver referências.

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e estrutura. Para Latour a questão de estar de um lado ou de outro depende intima-mente da maneira como o pesquisador constrói sua abordagem. Para ele, o erro de muitos sociólogos (aqui ele se refere a Durkheim especifi camente por ter sido o institucionalizador da disciplina) foi o de atribuir uma essência ao social, reservan-do a este tudo o que não era econômico, político, químico, biológico. O problema que ele levanta é que quando isso foi realizado por Durkheim, essa tentativa aca-bou encerrando o social, criando uma substância, reifi cando-o. Tudo passou a ser tratado como social, quando não se tratava de outros campos de conhecimento.

Este encerramento engendrou possibilidades limitadas para se compreender como os humanos e os não-humanos interagiam, por exemplo, no momento de explicar questões da ciência e da tecnologia sem privilegiar a dimensão humana. Aqui reside outra dimensão importante dos trabalhos de Latour. Do ponto de vista ontológico sabemos que há muitas diferenças entre humanos e os não-hu-manos. A primeira que poderíamos destacar é a intencionalidade dos atos huma-nos, sua capacidade de agir com objetivos e fi ns e etc. No entanto, quando se trata de explicar as relações entre humanos e não-humanos, e principalmente se perguntar o que dá estabilidade ao mundo dos humanos, é preciso revisar a ideia de agência como usualmente empregada pelas Ciências Sociais.

Em termos gerais, a ideia de agência nas ciências humanas é marcada pelos atos intencionais dos humanos. Agimos de uma certa forma porque procuramos obter determinados resultados com a ação. Do ponto de vista de Latour, a agên-cia é nada mais do que a capacidade que um ator (seja ele humano ou não-huma-no) tem de mudar o curso de ação do outro. Isso revela que não há privilégios em termos de abordagem sobre o curso da ação. Numa análise de um fenômeno o ponto de partida por ser, neste sentido, a ação de um não-humano. A ideia central no argumento é que atores não-humanos contribuem signifi cativamente para es-tabilização (mesmo que precária) das relações entre os humanos.

A partir disso, outra dimensão dos trabalhos do autor emerge: a ideia segun-do a qual a própria defi nição da disciplina remonta a noção de associação. Ao remontar a etimologia da palavra social Latour relaciona a palavra a ideia de associação e que, dessa forma, não se teria uma primazia para a sociologia tratar apenas das relações entre humanos, mas também das relações desses com os não-humanos. Consequência disso é que em seus trabalhos Latour sempre faz referência ao termo Coletivo, em substituição ao termo sociedade, a fi m de incor-porar essa dimensão das relações simétricas entre humanos e não-humanos.

Voltando para o eixo central de nosso tema, é preciso perceber que estas sepa-rações entre estrutura e atores sociais sempre foi criticada pelo autor, gerando uma percepção diferente do modo como se deve conceber uma orientação sociológica.

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Não por reconhecer e transitar entre elas, mesclando para superar, como o faz Bourdieu, mas reconhecendo que há aí uma continuação do social como algo rei-fi cado. Mesmo criticando é possível perceber que o ponto de partida dos trabalhos de Latour são as práticas contextuais dos atores em seu cotidiano, revelando a inspiração etnometodológica que orienta, sobretudo, os seus primeiros trabalhos. Latour revela que os próprios trabalhos estatísticos, muito usados para sustentar as análises sociológicas estruturais, são fundamentadas em princípios e lógicas con-textuais que em algum momento se tornaram uma black box8.

Por fi m destaca-se que para Latour, em termos metodológicos, pouco ganha-mos quando nos lançamos ao campo com defi nições previamente estabelecidas. É preciso ver como tais conceitos e formulações são elaboradas pelos atores en-gajados em suas práticas. Isso revela que o nosso ponto de partida não está na dimensão conceitual, algo que muitas vezes enclausura o trabalho de pesquisa e limita o pesquisador, mas na tentativa de percebê-los a partir do esforço dos ato-res em estabilizar suas precárias realidades.

Algumas críticas9 foram direcionadas aos trabalhos de Latour, inclusive pelo próprio Bourdieu, em Razões Práticas e no Para uma Sociologia da Ciência. As mais contundentes ao trabalho daquele autor referem-se à sua postura construti-vista radical em relação aos fenômenos sociais, ao considerar que os fatos são construídos. Entretanto, o próprio Latour recoloca a questão apontando para a dimensão esquecida, nas análises sociais, sobre o lugar do social como associa-ções que precisam de esforços de seus atores em sua manutenção.

Outra crítica é a primazia por estudos de caso por parte do autor. Segundo este ponto de vista, os estudos de caso revelam diversos aspectos que uma abor-dagem mais macrossociológica não revela. No entanto, tal maneira de abordar os fenômenos sociais pouco diz de seus aspectos processuais e históricos, suas mudanças com o tempo. Algo que só é revelado quando abordamos diacronica-mente tais fenômenos.

Por fi m surge a maneira como o autor utiliza a noção de agência, elevando o estatuto dos não humanos em relação aos humanos. Para alguns autores este tipo de abordagem cai numa espécie de fetichismo e não revela as relações assimétri-cas entre os humanos e os não humanos. Uma rápida observação a partir dos au-tores que usam como suporte de pesquisa a teoria do ator-rede revela que a agên-cia dos não-humanos não eleva o estatuto destes, apenas o consideram quando se

8 Referência ao trabalho de naturalização de um conhecimento científi co. Trabalho de tornar algo inquestio-nável. Tornar algo um fato, sem refutações e sem resíduos de seu contexto local. O que acontece com o trabalho da ciência. Tornar algo local e contingente fatos deslocados de seu contexto de produção.

9 As respostas a essas críticas estão em sua maioria agrupadas no livro acima citado.

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trata de explicar as relações sociais, sobretudo aquelas com desdobramentos de longa duração. Cabe perguntar como desigualdades são conservadas e sustenta-das por longos períodos sem levarmos em conta o trabalho de humanos e não--humanos neste processo?

Estes aspectos da obra de Latour sugerem uma perspectiva epistemológica deslocada em relação aos trabalhos de Pierre Bourdieu. Em seus trabalhos Bruno Latour não considera os esforços na produção do conhecimento como algo que circula no âmbito das representações. Há um deslocamento do modo como se considera o trabalho da ciência, sobretudo levando em consideração as inúmeras e sucessivas cadeias de mediações que produzem os achados científi cos. Neste sentido, a dimensão prática da produção do conhecimento deve ser o aspecto relevante, sobretudo quando tratamos de objetos com a própria ciência. A própria epistemologia, como tradicionalmente a conhecemos, pouco tem a considerar sobre a prática, levando em termos apenas os aspectos que asseguram os critérios de validade para a ciência.

6. CONCLUSÃO

A ideia deste texto foi explorar o modo como dois autores contemporâneos resolvem problemas relacionados à questão epistemológica, a partir de alguns de seus conceitos chave. Em Pierre Bourdieu, apesar de demonstrar diversas ruptu-ras com o pensamento estrutural, alguns pressupostos são mantidos em seus tra-balhos. O mesmo acontece com os pressupostos da fenomenologia, incorporados em seus conceitos de habitus e illusio. O que é preciso destacar, neste sentido, foi a brilhante capacidade que Bourdieu teve de transportar tais pressupostos da fi -losofi a e empregá-los com sucesso nas ciências sociais. Ao incorporar tais pres-supostos da fenomenologia em seus trabalhos ele mostrou como tais conceitos podem ser profícuos para as análises sociais.

No segundo autor, a questão envolvendo aspectos como estrutura, ação e as dicotomias daí derivadas não parece ser relevante diante do seu ponto de partida. O que parece revelador em sua abordagem é a maneira como o social é tratado, sem estar situado numa região específi ca, aquela dos fenômenos sociais. Um problema é que ao passo que pouco se discute a relação entre estrutura e ação o autor em boa parte de seus trabalhos sugere análises de estudos contextualmente situados, locais, que em certo sentido privilegiam a dimensão do ator.

7. REFERÊNCIASBOURDIEU, Pierre. Razoes práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

______. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

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______. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e a produção da cultura. In: GI-DDENS, A.; TURNER, J. (org). Teoria Social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.

LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator rede. Salvador: Edufba, 2012.

LATOUR, B; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científi cos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

HARMAN, Graham. Prince of networks: Bruno Latour and metaphysics. Melbourne: Re.press, 2009.

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CAPÍTULO 9CLASSES SOCIAIS NO PAPEL, CLASSES

MOBILIZADAS E LUTAS PELA CLASSIFICAÇÃO EM PIERRE BOURDIEU: UMA DISCUSSÃO EM DIÁLOGO COM O FAZER-SE DA CLASSE DE E. P. THOMPSON

Fernando Larrea Maldonado

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. Espaço social e a construção de classes: as classes no papel — 3. As clas-ses mobilizadas e as lutas de classifi cações: o fazer-se da classe — 4. Comentário Final: os claro-escuros na perspectiva das classes de Bourdieu — 5. Referências Bibliográfi cas.

“Pois a classe não é nem constatada, nem decretada; assim como o fatum do aparelho capitalista, assim como a revolução, antes

de ser pensada ela é vivida a título de presença obcecante, de possibilidade, de enigma e de mito.”

(Maurice Merleau-Ponty)

1. INTRODUÇÃO

Em vários de seus trabalhos Pierre Bourdieu aborda e desenvolve a discus-são sobre as classes sociais e sua defi nição. Em certo sentido esta discussão ul-trapassa todo o prolífi co itinerário da produção intelectual de Bourdieu desde seus primeiros trabalhos sobre Argélia no fi nal dos anos 50 e inícios dos 60 do século passado, continuando com A Distinção que se situa no centro de sua pro-dução, até suas últimas pesquisas e estudos desenvolvidos na França nos anos 90, momento particularmente relevante para um Bourdieu engajado politicamen-te que acompanha as lutas de sindicatos e movimentos sociais contra o neolibe-ralismo. Bourdieu questiona uma compreensão meramente econômica das clas-ses sociais ao mesmo tempo em que rejeita uma visão substancialista ou essencialista em sua defi nição; assim, coloca a discussão dentro de seu próprio arcabouço teórico, isto é em uma perspectiva relacional e vinculada estreitamen-te as noções de espaço social, campo, capital e habitus. A conceição das classes em Bourdieu desenvolve-se consequentemente nessa fi na e instável faixa em que decorre sua teoria da prática na qual busca conciliar ou superar a antinomia entre objetivismo e subjetivismo, entre estrutura e ação. Pode se dizer que em sua compreensão das classes sociais põe-se em tensão todo seu arcabouço teórico

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metodológico, mostrando algumas de suas potencialidades e possibilidades para a análise concreta de distintas realidades empíricas, como também expressando seus limites e fi ssuras.

O presente artigo indaga em torno de algumas das aristas e dos claro-escuros que a perspectiva de Bourdieu sobre as classes sociais traz, dentro de sua abor-dagem teórica com seus conceitos centrais sintetizados nas noções de espaço social, campo, habitus e tipos de capital. Após uma apresentação dos elementos centrais da conceição bourdieusiana das classes sociais e de suas críticas e rup-turas com uma tradição marxista mais ortodoxa, desenvolve-se a discussão sobre as perspectivas que abre, suas potencialidades e limites, colocando-a em diálogo com a visão sustentada por E. P. Thompson em seus estudos históricos e suas refl exões teóricas sobre as classes sociais; este último autor partilha com Bour-dieu uma abordagem construtivista crítica mas que se mantêm dentro de uma perspectiva marxista.

Esta discussão apoia-se também em uma série de refl exões e contribuições de distintos autores sobre o pensamento de Bourdieu, entre os que se destacam aqueles que se inserem dentro do que Braga defi ne como um “marxismo aberto”, isto é um tipo de marxismo que se caracteriza por: a) uma compreensão da his-tória como um processo “aberto” (afastando-se de uma visão teleológica); e b) que entende que a obra de Marx representa um projeto intelectual “aberto” à permanente atualização e fundamentalmente crítico (BRAGA, 2011: 62). Estes autores têm atualizado os últimos anos o diálogo entre Marx, os marxismos e as propostas teórico-metodológicas de Bourdieu, destacando espaços de confl uên-cia e de diferenciação.

2. ESPAÇO SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DE CLASSES: AS CLASSES NO PAPEL

Para Bourdieu, o mundo social pode ser representado desde uma perspectiva sociológica como um espaço multidimensional, construído empiricamente sobre a base de um conjunto de fatores ou propriedades que sustentam as diferenças observadas em um universo social determinado. Estas propriedades são as dis-tintas “formas de capital” que estão ativas nesse universo e que são capazes de conferir poder ou força aos agentes que as possuem (BOURDIEU, 2001: 105). Tomando como referência concreta à sociedade francesa contemporânea, Bour-dieu distingue quatro formas de capital como as fundamentais: o capital econô-mico em suas distintas espécies; o capital cultural também em seus diversos ti-pos; e duas formas de capital adicionais fortemente relacionadas com as duas primeiras, o capital social baseado em conexões e pertença grupal; e o capital

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simbólico que é a forma adotada por os outros tipos de capital, uma vez percebi-dos e reconhecidos como legítimos (2001: 106). Consequentemente, os agentes se distribuem no espaço social ocupando distintas posições segundo estes princí-pios de diferenciação, isto é segundo a distribuição destas formas de capital.

Bourdieu salienta que a noção de espaço “contém em si o principio de apreen-são relacional do mundo social” pelo qual contribui para romper com a tendência da sociologia de pensar o mundo social de maneira substancialista. A realidade que a ideia de espaço social designa reside na “exterioridade mutua dos elementos que a compõem” e os agentes diretamente visíveis nesse espaço, sejam eles indi-víduos ou grupos, “existem e subsistem na e pela diferença”, ao ocupar “posições relativas em um espaço de relações que, ainda que invisível e sempre difícil de expressar empiricamente, é a realidade mais real (...) e o princípio real dos com-portamentos dos indivíduos e dos grupos” (BOURDIEU, 2008b: 48-49).

Nesta direção é que Baranger (2012: 121) destaca que a preeminência da noção de espaço social no pensamento de Bourdieu se afi rma em um sentido ontológico (o espaço social é real), epistemológico (é possível conhecer este es-paço) e metodológico (o primeiro é construir o espaço). Consequentemente para Bourdieu dado que todas as sociedades se apresentam como espaços sociais, como “estruturas de diferenças”, o papel da ciência social é precisamente “cons-truir e descobrir o princípio de diferenciação que permite reengendrar teorica-mente o espaço social empiricamente observado” isto é o princípio da estrutura de distribuição dos tipos de capital efi cientes no universo social considerado, que variam de acordo aos lugares e momentos (2008b: 49-50).

Utilizando uma variedade de métodos qualitativos e quantitativos é em A Distinção (2008a) onde Bourdieu desenvolve e põe à prova esta conceição do espaço social em “uma pesquisa inseparavelmente teórica e empírica” referida à sociedade francesa nos anos 70 (BOURDIEU, 2008b: 14). Nesta pesquisa os agentes são distribuídos na totalidade do espaço social em torno de três dimen-sões: na primeira dimensão segundo o volume global do capital (capital econô-mico, capital cultural e capital social) que possuem; na segunda dimensão, em função da estrutura do seu capital (peso relativo dos diversos tipos de capital no volume global); e na terceira dimensão segundo sua trajetória, isto é sua evolu-ção no tempo (trajetória passada e seu potencial no espaço social) do volume e composição do seu capital (BOURDIEU, 2008a).

A partir desta distribuição dos agentes no conjunto do espaço assim construí-do é possível realizar recortes em áreas especifi cas deste espaço onde se agrupam os agentes que partilham posições próximas entre si. Estes recortes representam

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então “classes lógicas”, ou “classes no papel” construídas analiticamente desde uma perspectiva sociológica, nas quais os indivíduos agrupados em uma mesma classe caracterizam-se por manter a maior semelhança possível no maior número de aspectos. Ao partilhar condições objetivas parecidas estes agentes estão sujei-tos aos mesmos fatores condicionantes, consequentemente têm todas as possibi-lidades de ter disposições e interesses similares e de produzirem práticas, repre-sentações e tomadas de posição do mesmo tipo, isto é de ter os mesmos habitus (BOURDIEU, 2001).

A noção de habitus é central no arcabouço teórico de Bourdieu porque permi-te a conexão entre as estruturas objetivas do espaço social ― as condições con-cretas de existência dos indivíduos ― e a ação e práticas concretas dos agentes no mundo social. Produto, ele mesmo, da interiorização das estruturas, de sua inscri-ção nos corpos, o habitus é o princípio gerador e organizador das práticas indivi-duais e coletivas, confi gurando o conjunto de respostas possíveis e adequadas dos agentes em situações muito diversas: “...sendo o produto de uma classe deter-minada de regularidades objetivas, o habitus tende a engendrar todas as condutas ‘razoáveis’, do ‘senso comum’, que são possíveis nos limites dessas regularida-des”, condutas que podem ser sancionadas positivamente porque estão objetiva-mente ajustadas à lógica de um campo social dado; ao mesmo tempo, tende a “excluir ‘sem violência, sem arte, sem argumento’ todas ‘as loucuras’ (‘isso não é para nós’)”, todas as condutas que podem ser negativamente sancionadas por ser incompatíveis com as condições objetivas (BOURDIEU, 2009: 92).

Mas ao mesmo tempo em que os habitus organizam as práticas e sua percep-ção, as práticas resultantes apresentam-se como “confi gurações sistemáticas de propriedades” que exprimem as diferenças objetivamente existentes e as “distân-cias” entre as classes no espaço social e que ao serem percebidas pelos agentes dotados dos princípios de percepção e apreciação necessários para identifi cá-las e interpretá-las, funcionam como estilos de vida (BOURDIEU, 2008a: 164), consti-tuindo assim diferenças simbólicas e signos distintivos. Como salienta Bourdieu:

Assim como as posições das quais são o produto, os habitus são diferenciados, mas são também diferenciadores, Distintos, distin-guidos, eles são também operadores de distinções (...).

Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distinti-vas — o que o operário come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário in-dustrial; mas são também esquemas classifi catórios, princípios de classifi cação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes (BOURDIEU, 2008b: 22).

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Bourdieu enfatiza na importância dos processos de classifi cação (classe-ments) que acontecem na existência corrente no dia a dia e que realizam os pró-prios agentes no universo social. Os habitus constituem os princípios desde os quais se produzem permanentemente na prática estas classifi cações, a partir das posições ocupadas pelos agentes no espaço social (posições segundo as quais eles são classifi cados e desde as quais eles classifi cam aos outros), como parte das estratégias postas em jogo por eles para mantê-las ou modifi cá-las, pois estas posições para Bourdieu são “inseparavelmente localizações estratégicas, lugares a defender e conquistar em um campo de lutas” (2008a: 229).

Para Bourdieu o espaço social global pode ser concebido ao mesmo tempo como um campo de forças cuja necessidade impõe-se aos agentes nele envolvi-dos e como um campo de lutas no qual os agentes se enfrentam desde suas con-dições, contribuindo para a conservação ou para a transformação de sua estrutura (BOURDIEU, 2008b: 50). Aqui, evidencia-se no pensamento de Bourdieu a conceição agonística do mundo social, isto é como produto permanente das lutas que nele operam. Ao mesmo tempo aqui se fecha e concilia o circuito entre es-trutura e ação, ao colocar em relação no seu sistema teórico “as posições sociais (conceito relacional), as disposições (habitus) e as tomadas de posição, as esco-lhas que os agentes fazem nos domínios mais diferentes da prática” (2008b: 18).

O espaço social nas sociedades altamente diferenciadas, além de constituir ele mesmo um macro campo de forças e de lutas, está conformado por sua vez de uma pluralidade de campos sociais mais específi cos, os quais constituem tam-bém “microcosmos sociais” relativamente autónomos (tais como o campo artís-tico, o campo científi co, religioso, político, jurídico, econômico, etc.), dotados de uma lógica própria e que igualmente funcionam como espaços de posições sociais e estratégias dos agentes. Um campo social se caracteriza por ser por um lado um sistema de forças que se impõe ao conjunto de agentes envolvidos nele, independentemente da posição que ocupem e da percepção que tenham ou não das mesmas, mas por outro lado é também a arena de lutas destinadas a modifi car ou conservar o estado das relações de força e a distribuição do capital específi co sobre o qual este estado se baseia (WACQUANT, 2001). Bourdieu utiliza a me-táfora de um jogo para ilustrar esta noção de campo social, isto é “o espaço de jogo, as regras de jogo, o que está em jogo”, com a diferença que no caso dos campos sociais, ao ser resultado de um longo processo de autonomização, “não se entra no jogo mediante um ato de consciência, se nasce no jogo, com o jogo, e a relação de crença, de illusio, de investimento é tanto mais total, incondicio-nal, quanto ela se ignora como tal” (BOURDIEU, 2009: 109).

Com o conjunto de elementos descritos neste rápido percurso pelos aspectos centrais do arcabouço teórico de Bourdieu podemos resumir seus argumentos em torno das “classes teóricas” ou “classes no papel”, derivadas de sua concepção do

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espaço social. Como foi dito, as classes construídas analiticamente baseadas no conhecimento das posições e de seu recorte no espaço social, podem ser caracte-rizadas como o conjunto agregado de agentes que, pelo fato de ocupar posições similares no espaço social (isto é na distribuição de poderes ou tipos de capital) estão sujeitos a similares condições de existência e fatores condicionantes e, como resultado, estão dotados de disposições similares que os levam a desenvolver prá-ticas e tomadas de posição semelhantes. (BOURDIEU, 2010: 136).

Estas “classes no papel” para Bourdieu têm existência teórica mas não de-vem ser confundidas com as classes reais, com as classes atuantes e mobilizadas para a luta. Mesmo que estejam bem fundamentadas e que possam proporcionar explicações mais completas da realidade social, estas “classes lógicas” devem ser consideradas apenas como “classes prováveis” cujos componentes podem se aproximar, mobilizar e constituírem grupos, sobre a base de suas semelhan-ças de interesses e disposições, mas não estão realmente mobilizados (BOUR-DIEU, 2001: 112).

3. AS CLASSES MOBILIZADAS E AS LUTAS DE CLASSIFICAÇÕES: O FAZER-SE DA CLASSE

Para Bourdieu, a tradição marxista comete a falácia teórica de equiparar as “classes construídas” que existem somente no papel com as classes reais, moti-vadas pela consciência da identidade de sua condição e interesses, mas também constituídas em forma de grupos mobilizados, confundindo assim “as coisas da lógica com a lógica das coisas” (2001: 111). Bourdieu levanta esta crítica à con-cepção marxista das classes por considerar que ela conduz seja à transposição mecânica sem mediar processo nenhum entre o grupo teórico derivado analitica-mente da estrutura e o grupo prático, seja a estabelecer a passagem desde a “clas-se-em-si” defi nida desde um conjunto de fatores objetivos, para a “classe-para--si” fundada em fatores subjetivos; passagem “celebrada como uma verdadeira promoção ontológica” decorrente da “tomada de consciência” como o efeito da realização da verdade objetiva sob a “direção esclarecida do partido” (BOUR-DIEU, 2010: 138). O alvo central desta crítica de Bourdieu concentra-se na subs-tancialização ou teleologização da classe assim como na “misteriosa” passagem de um momento para o outro, atribuídas a “uma tradição marxista indetermina-da” (BRAGA, 2011).

Bourdieu considera que a construção de “uma classe sobre o papel”, mesmo que esteja bem fundamentada na realidade e apoiada nos princípios subjacentes das práticas em um universo social determinado, não se impõe de forma evidente para os agentes atuantes no mundo social, nem prevalece automaticamente nas suas percepções do mesmo. As representações individuais e coletivas que os agentes fazem do mundo social em suas práticas cotidianas podem estar referidas

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a outros princípios de classifi cação ou categorias totalmente diferentes de aquelas segundo as quais são construídas as classes teóricas, como por exemplo, critérios étnicos, raciais, nacionais, religiosos ou estabelecidos em função de divisões ocupacionais, locais ou comunais (BOURDIEU, 2001: 112-113). Assim, ao equi-parar as classes construídas desde uma perspectiva analítica com os grupos reais, por uma parte prescinde-se do processo e trabalho político necessário para impor um princípio de visão e divisão do mundo social, e, por outro, desconsidera-se as classifi cações continuamente produzidas pelos agentes na sua existência corrente como parte das lutas simbólicas para manter ou modifi car sua posição objetiva no espaço social (BOURDIEU, 2010). Como acrescenta Bourdieu:

Não se passa da classe-no-papel à classe “real” a não ser por um trabalho político de mobilização: a classe “real”, se é que ela algu-ma vez existiu “realmente”, é apenas a classe realizada, isto é, mo-bilizada, resultado da luta de classifi cações como luta propriamen-te simbólica (e política) para impor uma visão do mundo social, ou, melhor, uma maneira de construí-la, na percepção e na realida-de, e de construir as classes segundo as quais ele pode ser recorta-do (BOURDIEU, 2008b: 26).

Nesta direção, Bourdieu destaca a importância das lutas de classifi cações na defi nição mesma das classes e suas fronteiras, lutas simbólicas que constituem “uma dimensão esquecida da luta de classes” (BOURDIEU, 2008a: 447). O au-tor relembra que a própria existência ou inexistência de classes é uma das mais importantes apostas na batalha política e que o processo de produção real de classes, isto é, constituídas e expressadas politicamente por órgãos de represen-tação, por símbolos, acrônimos e demarcações, obedece a uma lógica específi ca de produção simbólica (BOURDIEU, 2001: 114-116), lógica por meio da qual é possível tornarem público, fazerem existir em estado explícito, visível, dizível e até mesmo ofi cial a constituição de grupos (BOURDIEU, 2010: 142).

Além do processo de produção simbólica das classes, Bourdieu também enfa-tiza o papel da representação no processo de produção política da classe, isto é a presença e a atuação de porta-vozes autorizados para falar em nome da classe e para representá-la em distintos espaços públicos. Nessa direção, para este autor uma classe (social, sexual, étnica) só existe realmente quando há agentes autori-zados para falar e atuar ofi cialmente em seu lugar e em seu nome, exercendo um poder sobre aqueles que reconhecendo neles o poder de falar e atuar em seu nome reconhecem-se ao mesmo tempo como membros de essa classe (BOURDIEU, 2001). Estes porta-vozes autorizados ao falar em lugar de um grupo, põem sub--repticiamente a existência do grupo, instituem o grupo em questão, “pela opera-ção de magia que é inerente a todo o ato de nomeação” (BOURDIEU, 2010: 159).

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Em suma, para Bourdieu a existência de uma classe real, uma classe mobili-zada, só acontece quando têm se produzido estes processos coletivos de constru-ção simbólica e produção política da classe que por sua vez implicam que ela tenha se dotado de representantes ou porta-vozes, de um aparelho institucional (sindicato, partido, etc.), de visões comuns do mundo social e consequentemente de discursos que as expressem.

Nesta linha de pensamento, ao destacar que a constituição dos grupos ou das classes na realidade social obedece sempre a um complexo trabalho histórico de construção, Bourdieu assume um enfoque construtivista próximo ao de Edward P. Thompson. De fato Bourdieu sublinha que o título do famoso trabalho de Thomp-son, The Making of the English Working Class, deveria ser tomado de forma bas-tante literal em relação à classe trabalhadora e ao processo político de construção, de fabricação desta classe como a conhecemos hoje (BOURDIEU, 2001: 114). Corcuff destaca que a abordagem construtivista sobre as classes sociais de Bour-dieu benefi ciou-se dos trabalhos de Thompson que ele conhecia bem e da pesqui-sa de Boltanski (colaborador de Bourdieu na época) sobre Les Cadres (engenhei-ros e executivos da classe dirigente), para ampliar os elementos de sociologia construtivista dos grupos sociais em uma perspectiva “post-marxista”, distinta à perspectiva de Thompson (CORCUFF, 2009). Neste sentido é que uma leitura dos elementos comuns e das diferenças entre estes dois autores é relevante.

Igual a Bourdieu, Thompson rejeitou uma posição meramente objetivista o substancialista da classe. Em suas pesquisas e trabalhos históricos confrontou diretamente diversas tradições intelectuais e políticas que concebem a classe como uma noção estática, seja na sociologia positivista, seja em aquelas tendên-cias do pensamento marxista que derivam as classes de um modelo estático de relações de produção no capitalismo (THOMPSON, 2012), deslocando para um segundo plano a atuação humana e o papel da classe trabalhadora na construção da história. Contrariamente a estas posições, Thompson considera a classe en-quanto “categoria histórica” que se “deriva de processos sociais através do tem-po” (THOMPSON, 2012: 270). Neste sentido, sua abordagem não procede de um dualismo teórico que opõe a estrutura à história e pelo contrário, considera a formação das classes como processos históricos concretos modelados pela lógi-ca das determinações materiais (MEIKSINS WOOD, 1983). Em este aspecto também coincide com o posicionamento de Bourdieu na sua tentativa de sair da antinomia comum nas ciências sociais entre o objetivismo e o subjetivismo.

Assim, quando Thompson fala do fazer-se da classe refere-se a “um proces-so ativo que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos” ou de-terminações objetivas. Na sua pesquisa histórica sobre o processo de formação

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da classe operária inglesa entre 1780 e 1832 recupera concretamente o papel dos sujeitos como fazedores da história. Enfatiza a noção de classe como uma rela-ção histórica que “escapa à análise” quando se tenta “imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura” e que “precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais”. Para Thompson “a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sen-tem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus” (THOMPSON, 2011: 9-10). Como se pode observar, esta noção da classe em termos relacionais e do fazer-se da classe como um processo político, simbólico e cultural ativo, encarnado e diretamente vinculado com os protagonistas das lutas sociais, e que consequentemente não se deriva automaticamente de uma estrutura, tem ele-mentos comuns com a visão da “classe mobilizada” de Bourdieu.

Embora Thompson tenha sido acusado de subjetivismo ou voluntarismo por sua ênfase nos processos históricos concretos de formação da classe em lugar de derivá-la mecanicamente de uma estrutura, ele não desconhece o peso que as determinações objetivas, concretizadas em uma dada inserção nas relações de produção, exercem sobre as pessoas; mas sua postura focaliza-se nas formas concretas como estas relações são experimentadas e vivenciadas. Em palavras do autor: “A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determina-das, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expec-tativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas ex-periências em nível cultural” (THOMPSON, 2012: 277).

A dimensão de antagonismo também é um elemento chave na concepção da classe de Thompson. Assim, este autor sublinha “o fato de a classe no seu sentido heurístico ser inseparável da noção de ‘luta de classes’” e considera que foi dada uma excessiva atenção, muitas vezes de maneira anti-histórica, à “classe” e mui-to pouca, pelo contrário, à “luta de classes” (THOMPSON, 2012: 274). Neste sentido, como destaca Meiksins Wood (1983), o princípio que sustenta o traba-lho histórico de Thompson é que as classes são feitas e se formam nos processos de luta e confl ito, nos quais se identifi cam interesses divergentes e se estabele-cem antagonistas. Como acrescenta Thompson: “as classes surgem porque ho-mens e mulheres, em relações produtivas determinadas identifi cam seus interes-ses antagônicos e passam a lutar, a pensar e a valorar em termos de classe: assim o processo de formação da classe é um processo de autoconfecção embora sob condições que são ‘dadas’” (THOMPSON, 1981: 121).

Em termos gerais é possível observar alguma coincidência desta dimensão com o agonismo presente na noção de campo social de Bourdieu e na sua visão

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das lutas de classifi cações como parte dos processos permanentes de disputa simbólica que contribuem para a defi nição das classes e suas fronteiras na socie-dade. Mesmo assim, é preciso ter alguma cautela pois na concepção bourdesiana das classes, os agentes que ocupam posições dominadas ou dominantes ao inte-rior do conjunto aberto de campos relativamente autônomos e que lutam cons-tantemente por melhorar ou manter sua posição, não necessariamente consti-tuem-se em grupos antagonistas.

Para fi nalizar esta parte, é importante ressaltar a centralidade que o conceito de “experiência” tem na visão de Thompson sobre os processos concretos do fazer-se da classe. A “experiência” é concebida por Thompson como o “termo médio necessário entre o ser social e a consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que da cor à cultura, aos valores e ao pensamento” (THOMPSON, 1981: 112). Enquanto mediação entre as determinações e rela-ções objetivas dadas e a forma como estas relações são processadas concreta-mente pelos agentes, a noção de experiência permite a transmutação da estrutura em processo, a recuperação do substrato histórico no presente e a reinserção dos sujeitos na história:

Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, (...) não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determina-das como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida, ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, a través de estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON, 1981: 182).

Além de algumas diferenças evidentes, enquanto conceitos com um papel de mediação teórica é possível identifi car algumas similaridades entre a noção de “experiência” de Thompson e de “habitus” em Bourdieu, a primeira atuando como mediação entre o ser social e a consciência social, entre as determinações estruturais e a ação dos sujeitos na história e o segundo como mediação entre estrutura e ação, entre o campo social e as práticas concretas dos agentes. Mesmo assim, e sendo os dois conceitos bastante abertos no que diz respeito a suas pro-priedades e conteúdos específi cos que puderem assumir em função de distintas realidades empíricas concretas a serem analisadas, a noção de experiência de Thompson pareceria permitir uma consideração mais adequada das contingên-cias da história e a compreensão do papel dos sujeitos nas lutas e transformações sociais e culturais em processos históricos de maior alcance, enquanto que o conceito de habitus cobra força para compreender as relações de poder em um campo determinado e as diversas práticas e estratégias postas em jogo pelos agentes que derivam em diferenças simbólicas.

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4. COMENTÁRIO FINAL: OS CLARO-ESCUROS NA PERSPECTIVA DAS CLASSES DE BOURDIEU

Após este percurso em torno à conceição das classes no papel, as lutas de clas-sifi cações e as classes mobilizadas em Bourdieu, passando pelo fazer-se da classe de E. P. Thompson, a modo de conclusão gostaria de apontar algumas das contri-buições e potencialidades da conceição das classes de Bourdieu assim como vá-rios elementos críticos e limites para a análise de diversas realidades empíricas.

Evidentemente, uma das contribuições mais signifi cativas da conceição das classes em Bourdieu é sua recusa a qualquer visão que essencialize as classes, desafi ando-nos permanentemente para pensá-las e concebê-las em termos rela-cionais, seja desde uma perspectiva analítica ou teórica, seja em termos descriti-vos dos processos concretos que decorrem numa realidade determinada. Vincu-lada a esta visão relacional das classes sociais, sua alerta no que diz respeito a evitar considerar como classes reais às classes resultantes das análises que os estudiosos fazem das estruturas objetivas presentes na sociedade num momento determinado, sem considerar os processos de produção simbólica e de constru-ção política dos grupos, promove desde a perspectiva de um construtivismo crí-tico, uma compreensão mais processual e dinâmica das práticas sociais relativas à formação das classes.

Um segundo aspecto no qual as contribuições da conceição das classes de Bourdieu são fundamentais refere-se ao tratamento integrado das distintas di-mensões econômicas, sociais, políticas, culturais e simbólicas que confi guram as relações de poder presentes em distintos campos sociais e que marcam a produ-ção de diferenças sociais. Na conceição Bourdieusiana das classes os elementos simbólicos não são um mero refl exo das diferenças econômicas na posição dos agentes, mas eles mesmos são ao mesmo tempo produtores e afi rmadores das diferenças. A ênfase no trançado teórico de Bourdieu nas lutas de classifi cações que fazem parte das lutas simbólicas que acontecem continuamente na socieda-de, abre uma interessante trilha de pesquisa teórica e empírica sobre os critérios de diferenciação operados pelos agentes, as linhas de classifi cação e divisão do mundo social e o papel de determinados marcadores simbólicos que confi guram as diferenças e as relações de poder, orientando as práticas concretas dos agen-tes. Nesta direção é possível compreender, por exemplo, como se produz em termos concretos o entrelaçamento de critérios de diferenciação simbólica base-ados em divisões sociais, étnicas, raciais ou de gênero que determinam formas de exclusão ou de discriminação nas relações cotidianas de poder, decorrentes das relações de força entre distintos setores sociais. Ao mesmo tempo também abre outro campo de visibilidade relacionado com o papel do Estado e das instituições nas lutas de classifi cação na defi nição mesma de critérios classifi catórios ou na legitimação de aqueles colocados por determinados grupos.

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Corcuff (2009) ressalta outra contribuição da perspectiva analítica de Bour-dieu que tem sido pouco debatida. Trata-se da forma como por meio do conceito de habitus se considera a singularidade individual constituída nas relações so-ciais (que vai além da visão do individualismo liberal), a partir da relação entre o habitus de classe e o habitus individual. Para Corcuff, esta relação entre as disposições coletivas decorrentes das experiências comuns que têm as pessoas de uma classe como consequência de ter vivenciado condicionamentos seme-lhantes (habitus de classe), e os habitus individuais, cujo principio de diferencia-ção dos primeiros radica na “singularidade das trajetórias sociais”, abre a possi-bilidade e o desafi o de pensar ao mesmo tempo o coletivo e o singular, isto é o coletivo dentro do singular, onde cada pessoa exprimiria uma singularidade feita do coletivo e o habitus seria uma individuação irredutível de princípios e expe-riências coletivas, cuja combinação faze-nos únicos (CORCUFF, 2009: 22). Nesta direção, a sociologia disposicional de Bourdieu contribuiria para uma lei-tura pluridimensional da individualidade.

Na mesma linha, no que diz respeito à perspectiva dos campos sociais de-senvolvida por Bourdieu enquanto esferas autônomas e diferenciadas da vida social nas quais se diversifi cam e tornam mais complexas as relações de poder e dominação entre os agentes que agem neles, Corcuff (2009) considera que as noções de totalidade social e de “sistema” tendem a se diluir no pensamento de Bourdieu, diante a pluralidade dos campos com sua heterogeneidade e tempora-lidade próprias. Isso abriria outras formas de generalizar sem deixar de lado a pluralidade, desde uma ideia de globalidade plural mais afi nada ao procedimento empírico-teórico das ciências sociais. Como acrescenta Braga (2011) também contribuiria a pensar a pluralidade dos modos concretos como se exerce a domi-nação no capitalismo.

Mesmo assim, a perspectiva dos campos autônomos em relação à caracteriza-ção das classes sociais no pensamento de Bourdieu não deixa de ter algumas aris-tas problemáticas. Uma delas refere-se às escassas referências às conexões entre os distintos campos e sub-campos, reconhecendo apenas uma subordinação quanto a seu funcionamento e às suas transformações ao campo de produção econômica (BOURDIEU, 2010), mas sem especifi car como opera esta subordinação. Tam-bém não se estabelece com clareza a infl uencia recíproca que diversos campos podem exercer sobre os habitus de agentes que por diversas circunstancias devem interagir ao mesmo tempo ou em sua trajetória de vida em distintos campos.

De outro lado, no pensamento de Bourdieu, na defi nição da estrutura dos dis-tintos campos sociais que determina as posições que ocupam os agentes, tem cen-tralidade a distribuição dos distintos tipos de capital ou de poder. Como aponta

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Burawoy (2010), chama à atenção a supressão da categoria de exploração na ca-racterização das relações entre as classes nas sociedades capitalistas. Junto com esta ausência, também não se aborda os aspectos relativos á produção (processo de trabalho, divisão do trabalho, relações produtivas) inclusive na análise que Bour-dieu faz das estruturas de produção e consumo no mercado imobiliário.

Outro elemento crítico resultante do arcabouço teórico de Bourdieu decorre da tendência dos habitus de interiorizar e de ajustarem-se á estrutura objetiva de relações de dominação e poder presentes nos campos, igual que a tendência à naturalização e legitimação destas relações nas categorias de percepção do mundo social dos agentes, tornando aos dominados em cúmplices de sua própria domina-ção. Esta visão que contribui a compreender as dimensões simbólicas da domina-ção e seus mecanismos de legitimação traz difi culdades para explicar os proces-sos de mudança social. Ao mesmo tempo deixa pouco espaço para compreender os processos de resistência à dominação presentes nas práticas e na cultura dos dominados. Como aponta Corcuff (2009), tende a encerrar as práticas populares e as práticas dos dominados dentro do olhar dos dominantes, por exemplo perce-bendo somente carências na cultura popular em relação à cultura legítima.

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CAPÍTULO 10PARA ALÉM DAS ANTINOMIAS CLÁSSICAS: AS TRILHAS PARA

A TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA

Daniela Félix C. Martins

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. Problemáticas construtivistas — 3. Questionando o cotidiano: das estru-turas sociais às interações — 4. O giro fenomenológico: das interações às estruturas — 5. Considerações fi nais — 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Voltar-se para uma tradição é reinventá-la, é reconhecer processos e contradi-ções que durante seu curso permaneceram opacas. Apenas num olhar retrospecti-vo é que somos capazes de reconhecer criativamente seus objetivos e afi rmações de modo a concebê-los em conjunto. Assim, a tradição é retomada e recriada en-quanto abertura e possibilidade para novas miradas; foi um olhar recriado de uma geração de cientistas sociais sobre outra geração antecedente que se estabeleceu de um lado uma teoria social clássica e de outro a teoria social contemporânea. Nosso objetivo não é desenhar fronteiras entre essas instâncias, mas sim compre-ender que o que comumente concebemos como teoria social contemporânea se realizou através da interpretação de uma geração sobre outra, de modo a conce-ber uma série de formulações que lhes servem como ponto de partida.

A nossa questão difere de Alexander (1999). Não objetivamos analisar a va-lidade dos clássicos na teoria social, mas reconhecer o modo como autores con-temporâneos interpretaram a tradição da teoria social e através desse esforço fi -zeram surgir uma constelação de perspectivas teóricas. Cabe então perguntar: qual aspecto fundamental caracteriza essa interpretação? O reconhecimento de antinomias. Entre os autores contemporâneos parece haver um consenso: a tradi-ção clássica do pensamento social se circunscreve em uma série de pares concei-tuais que por sua vez estão em relação de oposição. São eles: material/ideal, objetivo/subjetivo, coletivo/individual. Contra estas oposições, que para esses autores produziram uma perspectiva estéril, uma nova arquitetura foi pouco a pouco sendo construída, novas questões e problemas passaram a surgir, este mo-vimento vem sendo chamado de construtivismo social.

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Para os contemporâneos essas antinomias tendem a nos fazer ver o mundo social de modo dicotômico. Os pesquisadores são mobilizados a escolher seu campo em relação de exclusão, ou seja, o coletivo em detrimento do individual, o subjetivo contra o objetivo. Assim, essa geração se lançou à empresa de ultra-passar estas oposições a fi m de pensar esses aspectos, apreendidos classicamente como antagônicos, enquanto complementares.

Algumas dessas oposições foram tomadas de empréstimo das tradições fi lo-sófi cas, denunciando a conservação de alguns traços dessa tradição na sociolo-gia, em particular, as oposições ideal/material, sujeito/objeto. Retomando a tra-dição fi losófi ca o idealismo pode ser sumariamente defi nido enquanto a doutrina que compreende que toda existência se origina do pensamento. O materialismo, por sua vez, é a doutrina segundo a qual não existe outra substância além da matéria. Karl Marx, entre os sociólogos é aquele que mais expressamente reto-mou essa antinomia no domínio da análise histórica, produzindo uma forma de materialismo, como é possível observar em uma passagem do prefácio da Crítica da Economia Política:

Na produção social de sua existência, os homens estabeleceram relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto des-tas relações de produção constitui a estrutura econômica da socie-dade, a base concreta sobe a qual se eleva uma superestrutura jurí-dica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condicio-na o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral (...). (MARX,1989, p. 28-29)

Desse modo, para Marx, teríamos por um lado uma superestrutura, em que se localizaria a consciência social, por outro a infraestrutura, a estrutura econô-mica, o modo de produção, em que a primeira, superestrutura, estaria subordina-da a segunda. A infraestrutura seria o aspecto concreto do real, a base de toda a existência, a superestrutura o aspecto aparente do real e passível de determina-ção pelo concreto.

O par sujeito/objeto, outro esquema clássico da tradição fi losófi ca concebe que toda relação de conhecimento coloca em jogo um sujeito frente a um mundo de objetos. Sujeito e objeto são concebidos um em oposição ao outro. O objetivo é colocado em oposição ao subjetivo:

1°) O objeto tem uma existência própria, independente de qualquer ideia, ou consciência (subjetivo), é uma realidade que subsiste nela mesma.

2º) O objetivo é exterior as consciências, ou seja, o subjetivo é uma interio-ridade mental que se lança ao mundo objetivo, exterior.

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Pierre Bourdieu, um dos autores construtivistas que realizaram uma dupla crítica do objetivismo e do subjetivismo. O objetivismo teria como projeto o estabelecimento de regularidades tais como estrutura, leis, sistemas de relações que possuem uma realidade própria para além das vontades individuais, ou ain-da, para além das subjetividades. De um lado regularidades, estruturas, generali-dade, exterioridade, por outro, vontades individuais, consciência, interioridade (sujeito). O objetivismo concebe então o mundo social enquanto um espetáculo que se oferece a um observador posicionado que retira do objeto os princípios de sua relação com este mesmo objeto, ou seja, um sujeito cognoscente frente a um objeto cognoscível. Por outro lado, o subjetivismo segundo o autor conferiria excessiva autonomia e consciência às ações dos sujeitos:

O problema dessa forma de conhecimento segundo Bourdieu, não seria apenas seu escopo limitado, o fato de ela não atingir as bases sociais que supostamente condicionariam as experiências práticas, mas, sobretudo, o fato de ela contribuir para uma concepção ilusó-ria do mundo social (...) As escolhas, as percepções, as apreciações, as falas, os gestos, as ações e as interações deveria, sob o risco de se construir uma concepção enganosa do mundo social, ser analisa-dos em si mesmos, de forma independente em relação às estruturas objetivas que os constituem. (NOGUEIRA, 2002, p. 148)

Assim, toda uma tradição sociológica se baseou em uma posição em relação a esses pólos de análise. Dois níveis de análise produzindo universos conceituais concorrentes, que dão conta dos fenômenos sociais a partir de pontos de partida distintos — o primado do mundo objeto ou do sujeito.

Philippe Corcuff (2001) reconhece que para os sociólogos que se esforçaram para sair dos caminhos muito bem balizados entre pólos concorrentes, enfrenta-ram uma dupla questão. No plano conceitual, dar conta das relações entre aspec-tos objetivos e subjetivos do mundo social e, quanto à construção do objeto so-ciológico, estabelecer passagens entre o ponto de vista exterior do observador sobre o que ele observa e as maneiras como os observadores percebem e vivem o que fazem no curso de suas ações. De implícito a questão entre sujeito/objeto nos lança para outro par conceitual imensamente discutido na sociologia con-temporânea: ação/estrutura.

Por fi m, ainda à guisa de introdução podemos elencar o par coletivo/indivi-dual, sociedade/indivíduo. Este último par possui um caráter inaugural para as ciências sociais e nos lança para a própria questão da fundação da disciplina, poderíamos traçar diversos caminhos, todavia, nos deteremos à sociologia de Émile Durkheim, devido a centralidade desta antinomia na sua obra

Em As regras do método sociológico (2007), Durkheim concebe o social ou o coletivo distinto do individual. O primeiro estaria na própria defi nição de

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sociologia, enquanto a segunda está relacionada à psicologia. Para o autor, o social se defi ne enquanto uma entidade específi ca. A sociedade não é um sim-ples somatório de indivíduos, mas o sistema formado por sua associação e re-presenta uma realidade que tem suas próprias características. Assim, a socieda-de se caracterizaria por ultrapassar infi nitamente o indivíduo tanto no espaço quanto no tempo.

Para o autor francês haveria uma realidade sui generis que possui uma cons-ciência própria e independente. Esta realidade sui generis é a sociedade, uma consciência coletiva que possui suas próprias leis de constituição. Como afi rma, “o conjunto de crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado, que tem vida própria; pode-mos chamá-lo de ‘consciência coletiva’.” (ibidem, 2007, p.105). A sociedade está então em condições de impor aos seus membros as maneiras de agir e de pensar que ela consagrou com sua autoridade.

Assim, os sociólogos devem buscar os fatos sociais em detrimento dos fatos psicológicos ou orgânicos. Este aspecto se constitui enquanto uma “regra” a ser seguida na pesquisa sociológica: a causa determinante de um fato social deve ser procurada entre os fatos sociais antecedentes e não entre os estados de consciên-cia individual. Mas o que são esses fatos sociais? Como Durkheim os defi ne?

É fato social toda maneira de agir fi xa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando existência pró-pria, independente das manifestações individuais que possam ter. (ibidem, 2007, p.3)

Outra característica metodológica dos fatos sociais é que eles precisam ser tratados enquanto coisas. Isto é, distanciar-se das pré-noções, se livrar de concei-tos sem orientações científi cas. Os fatos sociais, embora produzidos pelas rela-ções entre os indivíduos, adquirem uma “consistência” e uma “autonomia” em relação a cada indivíduo que contribuiu para sua produção. Sendo exterior se constitui enquanto uma realidade objetiva, um dado. Assim o coletivo remete ao mesmo tempo à noção de constrangimento exterior que se impõe aos indivíduos e um domínio de validade, no tempo e no espaço, que ultrapassa amplamente as consciências individuais, possibilitando que este possa tomar uma consistência independente dos indivíduos que a compõe.

Todavia, devemos salientar que se trata aqui de uma interpretação tradicio-nal do trabalho de Durkheim, sua obra não é um todo homogêneo relativo a essas questões, é possível encontrar em suas últimas obras, como é o caso da Formas elementares da vida religiosa (1996) aspectos de uma orientação mais

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construtivista, abordando processos sociais de objetivação e de estruturação da realidade não restrito a uma postura meramente objetivista.

2. PROBLEMÁTICAS CONSTRUTIVISTAS

Neste conjunto de trabalhos, por vezes dispersos, aos quais denominamos “perspectivas construtivistas”, antes de produzir uma nova escola sociológica homogênea, trata de um mosaico de interpretações pouco consensuais entre si. Queremos dizer com isso que encontramos entre diversos autores algumas convergências fundamentais, ao mesmo tempo que é possível identifi car distân-cias consideráveis.

A principal convergência dessa geração de autores é que as realidades sociais são apreendidas como construções históricas e cotidianas dos atores individuais e coletivos. Assim a historicidade constitui uma noção fundamental para os cons-trutivistas. Segundo o sociólogo Paulo César Alves (2010) é preciso reconhecer a diferença entre historicidade, história e mesmo historicismo:

A historicidade é prévia à noção de história. É a possibilidade de construir a história. Em outras palavras, a historicidade não é resul-tado da história, mas esta é resultado daquela. Por sua vez, o histo-ricismo é um conjunto de doutrinas que enfatizam o papel desempe-nhado pelo caráter histórico do homem. O conceito de historicidade tem um outro sentido: refere-se à ideia de que todo o ser humano está regido pela temporalidade. A temporalidade é a condição de possibilidade da historicidade, é um modo pelo qual o ser humano tem de assumir seu próprio futuro. (ALVES, 2010, p.26)

Para Alves (ibidem) há na noção de historicidade três importantes aspectos:(...) a. lida com construções passadas (a ideia de que o mundo so-cial se constrói a partir das condições diretamente dadas e herdadas do passado); b. estas construções são atualizadas nas práticas e nas interações da vida cotidiana dos atores (as formas sociais passadas são apropriadas, reproduzidas e transformadas enquanto outras são inventadas); c. constitui aberturas de campos de possibilidades no futuro (a herança passada e o trabalho cotidiano sempre abrem perspectivas para o futuro) (ibidem).

O conceito de historicidade envolve, assim, aspectos de “objetivações” e “interiorizações” da realidade social. Já que em um sentido nos lança a mundos objetivados, os indivíduos e os grupos se servem de palavras, objetos, coisas, regras, instituições etc. legados pelas gerações anteriores, transformando-os e criando novas formas. De outro, remete a mundos subjetivos e interiorizados construídos de formas de sensibilidade, de percepção, de conhecimento.

Trata-se então de um duplo movimento, os modos de aprendizado e de socia-lização tornam possíveis a interiorização dos universos exteriores, e as práticas

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individuais e coletivas dos atores desembocam na objetivação dos universos in-teriores. É ao mesmo tempo um movimento de interiorização do exterior e de exteriorização do interior. Assim, as perspectivas construtivistas supõem um mo-mento de desconstrução, ao interrogar o que é “dado”, “atemporal”, “natural”, “necessário”, “homogêneo”, ao mesmo tempo que exigem investigações sobre os processos de construção e reconstrução da realidade social. Afi rmar que algo é construído signifi ca dizer que ele é o resultado de um trabalho humano, logo não esteve ali toda a eternidade. Os construtivismos ao questionar o “dado” dei-xam lugar para a pluralidade de realidades cujas relações devem ser pensadas.

Por outro lado se a noção de historicidade de algum modo possibilita a con-vergência entre essas diversas teorias, essas também divergem sobre todo um conjunto de questões. Algumas delas são:

1. Essas diversas teorias tratam de maneira variável a dupla ques-tão, por um lado, da descontinuidade ou da permanência de um mesmo ator através dos diferentes períodos de sua vida e, por outro lado, de sua unidade ou de sua fragmentação de identidade no cur-so de um mesmo momento;

2. Localizam diferentemente a questão da refl exividade sociológi-ca, ou seja, ao retorno sobre si mesmo, sobre sua atividade, sobre os instrumentos utilizados ou sobre suas relações com a pesquisa no processo de construção do objeto sociológico;

3. Diferem suas posições quanto às relações entre as formas erudi-tas de conhecimento da realidade social (posição do sociólogo) e as formas ordinárias (posição dos atores). Um conjunto de teorias insistem na “ruptura epistemológica” entre essas duas posições, ao passo que outras se interessaram pelo que as aproximam;

4. Algumas se apresentam como construções de segundo grau, isto é, como modelizações eruditas a partir dos saberes comuns e das interações cotidianas entre atores (construtores de construções). Outras integram em seus esquemas relações mais amplas no tempo e no espaço entre atores, relações estas que eles não têm necessa-riamente consciência, conhecimento, sendo assim, relações que não passam por interações diretas.

5. Por fi m, se cada uma delas se esforça para ultrapassar as antino-mias clássicas, não realizam da mesma maneira, segundo assumam como ponto de partida as estruturas ou as interações sociais.

As três últimas características que apontam as divergências entre as perspecti-vas construtivistas nos interessa sobremaneira. Nosso objetivo é apresentar que se por um lado essas perspectivas tiveram como ponto de partida a produção de uma arquitetura epistemológica capaz de superar essa série de antinomias clássicas, elas suscitaram outra “velha” questão. A relação entre ciência e senso comum, ou

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ainda, a posição diante desta questão nos leva reconhecer os limites de algumas perspectivas para a efetiva superação das antinomias. A fi m de fazer valer nosso argumento podemos estabelecer duas classifi cações: o construtivismo estrutural e o construtivismo interacional.

3. QUESTIONANDO O COTIDIANO: DAS ESTRUTURAS SOCIAIS ÀS INTERAÇÕES

O construtivismo estrutural tem a particularidade de continuar dar predomi-nância às estruturas sociais e aos aspectos macrossociais da realidade, integran-do de maneira variável, as dimensões interacionais e subjetivas. Este conjunto de atores desenvolveram seus trabalhos em contextos temporais e nacionais distin-tos, como é o caso de Nobert Elias e Pierre Bourdieu. Autores que apresentare-mos de modo mais detalhado, todavia o construtivismo estrutural não se reduz a eles, poderíamos ainda elencar Anthony Giddens, Alain Touraine, entre outros.

A apresentação desses autores construtivistas não se dará de forma exaustiva. Destacaremos alguns de seus principais conceitos que estão intimamente rela-cionados aos esforços de cada um deles de superar algumas antinomias clássicas. No caso de Nobert Elias elencamos os conceitos de interdependência ou depen-dência recíproca, confi guração e habitus

A interdependência ou dependência recíproca pode ser explicada por uma analogia com o jogo de xadrez. Qualquer ação realizada com relativa indepen-dência representa um golpe sobre o tabuleiro social, que por sua vez desencadeia um contragolpe de outro indivíduo limitando a liberdade de ação do primeiro jogador. Esse tabuleiro social é fruto de muitos contragolpes executados por muitos indivíduos.

A sociedade é então encarada como o tecido em movimento e mudança das múltiplas dependências recíprocas que ligam os indivíduos uns aos outros. Toda-via, esse tecido social é atravessado por numerosas formas de interrelações que se entrecruzam, chamadas confi gurações. Estas seriam então formas específi cas de interdependência que ligam os indivíduos entre si e podem assumir tamanho vari-ável: do jogo de cartas (em que quatro homens sentados em torno de uma mesa para jogar formam uma confi guração, suas relações são interdependentes) à nação ou às relações internacionais. O que diferencia estas confi gurações, do jogo de cartas à nação, é o comprimento e a complexidade das cadeias de relações recípro-cas que associam os indivíduos. Assim, as dependências que ligam os indivíduos entre si não se limitam àquelas cuja experiência e consciência eles possam ter.

Uma primeira divergência entre às duas abordagens construtivistas pode já ser estabelecida: as sociologias mais estruturais estendem seu campo de visão

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além da consciência e do conhecimento dos atores individuais, mas perdem a acuidade visual às interações e os saberes cotidianos. Esta característica marca também a sociologia de Pierre Bourdieu.

As interdependências ou confi gurações, segundo Elias, são marcadas pela desigualdade: dominação e poder. O poder em seu plano conceitual não é uma substância que venha a ser “possuída” por “alguém”, mas sim uma característi-ca associada às relações de interdependência: na medida em que dependemos mais dos outros do que eles de nós, eles têm um poder sobre nós. Todavia se as relações são desiguais, cada uma é de maneira variável e limitada por elas. Um exemplo disso é analisado em seu livro A Sociedade de corte (2001), Elias mos-tra como Luís XIV, mesmo tendo uma margem de ação superior aos outros atores da sociedade francesa de sua época, não podia fazer tudo a seu bel-prazer, pois ele também estava amarrado na rede de interdependências própria da sociedade de corte. O poder é tecido através dessas relações de interdependência.

Este esquema conceitual nos leva justamente a pensar a margem de ação que possui o indivíduo e o grau de determinação dessas confi gurações de rela-ções interdependentes:

Mas as oportunidades entre as quais a pessoa assim se vê forçada a optar não são, em si mesmas, criadas por essa pessoa. São prescri-tas e limitadas pela estrutura específica de sua sociedade e pela natureza das funções que as pessoas exercem dentro dela. E, seja qual for a oportunidade que ela aproveite, seu ato se entremeará com os de outras pessoas; desencadeará outras sequências de ações, cuja direção e resultado provisório não dependerão desse indivíduo,mas da distribuição do poder e da estrutura das tensões em toda essa rede humana móvel. (ELIAS, 1990, p. 48)

Assim autonomia produz um par com dependência. Elias reconhece que essas cadeias de interdependência se alongaram em nossas sociedades modernas de for-ma mais complexa, e que o indivíduo se situa no cruzamento de um maior número de redes de inter-relações, as quais ele não tem consciência. A principal inovação desta noção de interdependência é a possibilidade de sair de uma visão causal unilinear dos processos sociais, extremamente simplistas, do tipo A causa B. Trata de inter-relações entre ações individuais e não relações em um único sentido.

Todavia Elias não recai na ideia de “sistema” na acepção convencional que adquiriu nas ciências sociais, ou seja, dizer que elementos “fazem sistema”, indi-cando que eles agem uns sobre os outros em relação aos outros e estas relações possui coerência e estabilidade, com fronteiras bem defi nidas que o separa de outros sistemas. Quando Elias fala de inter-relações entre ações individuais ele evoca a noção de confi guração, pois justamente ela refuta a ideia de uma entidade completamente fechada sobre si mesma ou dotada de uma harmonia imanente.

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Outra característica dessas relações interdependentes nas quais as ações dos indivíduos estão presas é que elas não agem apenas como constrangimento exte-rior. Elas possuem um caráter formativo, elas participam das estruturas interiores da personalidade do indivíduo. Ao longo de toda a vida o indivíduo é obrigado a se inserir em numerosas redes de relações que preexistem a ele (família, grupo social, nação, etc). Estas redes são produto de uma longa história, contribuindo, então, para modelar suas formas de sensibilidade e pensamento. Neste caráter constitutivo das relações de interdependência é que localizamos a intervenção do habitus. Uma marca social sobre a personalidade, um produto das diferentes confi gurações das quais o indivíduo age.

Através da noção de interdependência Elias pretendeu englobar formas de relações macro, por exemplo, o mercado econômico mundial, como as micro relações, um jogo de cartas, buscando assim superar esta dicotomia. Para o autor as noções macro (formas estruturais) e micro (interações) não são concebidas como substâncias dadas defi nitivamente, são noções relativas que se defi nem uma em relação à outra. Uma cidade pode ser micro em relação ao mercado mundial, porém será macro em relação ao contato face a face entre duas pessoas. Todavia a noção de interdependência tende a dar primazia ao todo em relação às partes, inclusive para as menores unidades. No jogo de cartas, por exemplo, a noção de confi guração visa à fi gura global sempre em mudança formada pelos jogadores. Para ele as teorias da ação e da interação seriam incapazes de atingir os aspectos das relações humanas que fornecem o contexto de suas interações, ou seja, a confi guração.

Como consequência de sua postura epistemológica, podemos observar que se por um lado a noção de interdependência coloca em evidência cadeias de in-ter-relações mais amplas do que as interações diretas entre indivíduos, ela, por outro lado, é menos sensível à fl uidez de certas situações da vida cotidiana. Se-gundo o que é mostrado pelas sociologias interacionistas, estas situações podem contribuir a fazer, a desfazer e a deslocar as interdependências já constituídas.

Assim como listamos alguns dos conceitos fundamentais na obra de Nobert Elias que se ligam mais diretamente ao esforço deste autor para ultrapassar as antinomias clássicas, seguiremos lançando mão deste mesmo artifício para aná-lise da contribuição de Pierre Bourdieu, nossa análise se localizará nos conceitos de habitus e campo.

Para Bourdieu o princípio da ação histórica, da ação do artista, do erudito ou do governante, como também a do operário ou do pequeno funcionário público, não é de um sujeito que se oporia à sociedade, como o faria um objeto construído na exterioridade. Ele não reside nem na consciência, nem nas coisas, mas sim na

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relação entre dois estados do social, ou seja, a história objetivada nas coisas, sob forma de instituições, e a história encarnada nos corpos, sob forma de disposi-ções duráveis. Haveria para ele um duplo movimento de interiorização do exte-rior e de exteriorização do interior, um encontro entre habitus e campo.

O habitus é a maneira como as estruturas sociais se imprimem em nossas cabeças e em nossos corpos através da interiorização da exterioridade. Assim o conceito de habitus em Bourdieu é ainda mais preciso que em Elias, já que para o primeiro trata-se então de um sistema de disposições duráveis e transponíveis. Analisando cada elemento de sua defi nição é possível estabelecer quanto à:

1. disposições: inclinações a perceber, sentir, fazer e pensar de uma certa maneira, interiorizadas e incorporadas, geralmente de manei-ra inconsciente, para cada indivíduo, decorrente de suas condições objetivas de existência e sua trajetória social;

2. duráveis: se essas disposições podem se modifi car no curso de nossas experiências, elas são, no entanto, fortemente enraizadas em nós e tendem, por isso, resistir à mudança, marcando assim uma certa continuidade na vida da pessoa;

3. transponíveis: disposições adquiridas ao longo de certas experi-ências (familiares, por exemplo) têm efeito sobre outras esferas de experiência (profi ssionais, por exemplo);

4. sistema: tendem a ser unifi cadas entre si.

Contudo, o habitus não é mero reprodutor das estruturas sociais das quais é ele mesmo um produto. Ele funciona também como princípio gerador, no sentido em que é levado a dar múltiplas respostas a diversas situações encontradas a partir de um conjunto limitado de esquemas de ação e de pensamento. Ele repro-duz quando é confrontado com situações costumeiras e pode inovar quando se encontra diante de situações inéditas.

Por sua vez, o campo é a face exteriorização do interior do processo de pro-dução do mundo social. Através desta categoria Bourdieu concebe as instituições, elas são tomadas não como substâncias, mas enquanto possuindo um caráter re-lacional. O campo é uma esfera da vida social que se autonomizou progressiva-mente ao longo da história em torno de relações sociais, de conteúdos e de recur-sos próprios diferentes dos de outros campos. Para o autor existem então diversos campos o econômico, artístico, jornalístico, político, entre outros; ao passo que as pessoas não correm pelas mesmas razões em cada um dos campos.

Cada campo também é um campo de forças, marcado por uma distribuição desigual dos recursos e logo, por uma relação de forças entre dominantes e do-minados. Deste modo cada campo se confi gura enquanto um campo de luta, os

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agentes sociais se confrontam no interior de cada campo para conservar ou trans-formar esta relação de força. O fato de ser um campo de forças e de luta difere da noção de sistema, ou seja, cada campo é marcado por confl itos fruto das relações de concorrência entre seus agentes, possuindo ao mesmo tempo mecanismos específi cos de capitalização dos recursos legítimos próprios de cada campo. As-sim a busca de capital não se restringe ao econômico, trata-se da busca dos dife-rentes capitais no interior de cada campo (capital cultural, capital social, capital simbólico). Sendo assim, o espaço social é composto por uma pluralidade de campos autônomos que defi nem cada um dos modos específi cos de dominação.

Bourdieu, assim como Elias, dá uma predominância às estruturas o que leva a estes autores negligenciarem o peso das interações face a face nos processos de construção da realidade social. As interações escondem as estruturas que ali se realizam, ao passo que para Bourdieu a unidade e a continuidade da pessoa em ação tendencialmente com o habitus não são em geral as representadas conscien-temente e retrospectivamente pela própria pessoa (ilusão biográfi ca), mas sim, a unidade e a continuidade são reconstruídas pela prática do sociólogo. Assim o princípio que se manifesta nas interações é exterior a elas e acessível apenas ao conhecimento especializado, erudito do sociólogo, como consequência essa perspectiva construtivista destitui os saberes ordinários de uma possibilidade construtora do mundo social.

4. O GIRO FENOMENOLÓGICO: DAS INTERAÇÕES ÀS ESTRUTURAS

O construtivismo interacional tem como sua principal inspiração a fenome-nologia. Ele parte dos indivíduos e suas interações sem negligenciar as entidades mais amplas (instituições, organizações, redes, normas, etc.) Provavelmente a obra de Alfred Schutz emerge enquanto abertura para o que poderíamos chamar de um construtivismo fenomenológico. Este autor é o primeiro a se lançar na empreitada de transpor para teoria social as contribuições da fenomenologia. Um dos conceitos fundamentais na sociologia de Alfred Schutz é mundo da vida:

O mundo da vida cotidiana’ signifi cará o mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e inter-pretado por outros, nossos predecessores, como um mundo orga-nizado. Ele agora se dá à nossa experiência e interpretação. Toda interpretação desse mundo se baseia num estoque de experiências anteriores, as nossas própria experiências e aquelas que nos são transmitidas por nossos pais e professores, as quais, na forma de ‘conhecimento à mão’, funcionam como um código de referên-cia. (SCHULTZ, 1979: p. 72)

O mundo da vida é o mundo da doxa, em termos de uma experiência, de um vivido. Um espaço natural, em que as pessoas se relacionam com as coisas, o

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mundo que está antes de qualquer análise que se possa fazer dele, é esse horizon-te, esse solo comum, compartilhado, não homogêneo em que agimos sobre ele através de um “estoque de conhecimento” construído pela experiência em mundo social. Para Schultz é via “situação biográfi ca determinada” do sujeito, sedimen-tada ao longo do tempo é que interpretamos o mundo.

Contudo, esta “situação biográfi ca determinada” do sujeito possui uma íntima relação ao mundo de seus semelhantes tanto ao mundo dos predecessores (uma herança histórica dos semelhantes do passado), o mundo dos sucessores (infl uen-cia as relações e as ações humanas com perspectiva aberta para o futuro) e o mundo dos contemporâneos (aquele habitado por outros que compartilham o tem-po cósmico com o sujeito e com quem este faz trocas e intercâmbios sociais).

O mundo social, portanto, opera em termos de uma tipifi cação. Uma abstra-ção relativamente padronizada, mudando em termos de grau de proximidade em relação à interação, quanto mais direta a interação há uma “orientação do nós” mais viva, quanto mais indireta há uma “orientação há eles” mais tipifi cadas, papéis sociais. Vivemos, portanto em um mundo compartilhado, multiforme, que via experiência o interpretamos e signifi camos. A realidade da vida cotidiana contém, então, esquemas de tipifi cação em função dos quais os outros são apre-endidos e “tratados” nos encontros face-a-face. Assim eu apreendo o outro en-quanto “homem”, enquanto “europeu”, “comprador”, “tipo jovial”. Estas tipifi -cações recíprocas entre atores fazem parte de uma negociação contínua no interior da situação face a face. Há desse modo uma compreensão prática no mundo da vida, motivada pela mesma qualidade (prática). Tipifi camos, padroni-zamos, construímos esquemas por motivos práticos, mas sem estabelecer neces-sariamente uma refl exão, uma posição de dúvida ou questionamento.

Assim, as construções utilizadas pelo pesquisador das ciências sociais são construções de segundo grau, construções de construções edifi cadas pelos atores na cena social, cujo comportamento é observado pelo homem de ciência que tenta explica-lo, respeitando as regras de procedimento de sua ciência.

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pen-sar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (MERLEAU-PON-TY, 1999, Prefácio, p. III)

A tônica de compreensão prática do mundo da vida permeia toda fi losofi a de inspiração fenomenológica como é o caso de Maurice Merleau-Ponty:

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O mundo não é um objeto no qual possuo comigo a lei de consti-tuição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamen-tos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “ha-bita” apenas o “homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhe-ce. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 6)

Esse voltar-se ao pré-objetivo, compreensão prática, antes de qualquer refl e-xão ou abstração carrega consigo uma crítica às tradições materialista e idealista. A primeira toma o mundo como inteiramente pronto, ele é o meio de todo acon-tecimento possível, ignorando por completo o sujeito da percepção. A percepção é mais um acontecimento no mundo, assim como na física clássica, seria possí-vel estabelecer a categoria de causalidade, o pesquisador dessa maneira, procura descrever a ocorrência, “as sensações e seus substratos como se descrevesse a fauna de um país distante — sem perceber que ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal como ele a vive, desmente tudo o que ele diz da percepção em geral”. (MERLEAU-PONTY, 1999: p. 279). Por outro lado, a tradição idealista compreende a consciência antes de qualquer experiên-cia, todo o sistema de experiência encontra-se subordinado a um pensador uni-versal responsável em realizar todas as relações, é o Ego transcendental.

Esta perspectiva foi retomada por diversos autores como é o caso da etnome-todologia de Harold Garfi nkel, a sociologia congnitiva de Aaron Cicourel e a teoria simétrica de Bruno Latour. Passaremos a seguir por uma breve análise dessas contribuições.

O ponto de partida da etnometodologia é ação prática, as interações comuns e os métodos de raciocínio prático. A estrutura social, a regularidade, a concor-dância manifestadas pelos fenômenos sociais são o resultado de operações inte-rativas efetuadas em situação. Na palavra etnometodologia, etno sugere que um membro dispõe do saber do senso comum de uma sociedade e metodologia visa à utilização de métodos comuns por tal membro.

Os estudos etnometodológicos concebem as atividades cotidianas enquanto métodos dos atores dotados de conhecimento prático para tornar estas atividades visivelmente-racionais-e-relatáveis-para-qualquer objetivo prático, isto é, “des-critíveis” como organizações das atividades comuns. A refl exividade deste fenô-meno é um traço singular destas ações práticas, do saber de senso comum das estruturas sociais.

Harold Garfi nkel partindo então do legado da fenomenologia, leva em consi-deração este conhecimento prático da vida cotidiana, o próprio pensamento so-cial é uma construção que tem como base este conhecimento prático. Ao longo dos seus esforços ele se interessou profundamente pelas proximidades entre o conhecimento erudito e o conhecimento do senso comum do mundo social.

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Aaron Cicourel por sua vez recupera essas contribuições na reformulação da questão entre micro e macro processos da realidade social. Para ele uma microssociologia não pode pretender estudar a interação social como uma pro-dução local e auto sufi ciente, por outro lado, os teóricos dos aspectos macros-sociológicos não podem ignorar os microprocessos. Cada uma das abordagens, mesmo que de maneira implícita utiliza como pontos de apoio elementos em-prestados de outro nível.

O pesquisador micro situará sua observação participante de um pequeno gru-po de atores em um quadro institucional e cultural mais amplo, que para ele será evidente e que ele não questionará. Ao passo que o sociólogo macro acrescentará respostas a um questionário, pressupondo uma competência cognitiva e discursi-va dos atores entrevistados, mas sem toma-lo como objeto. Cada um em seus relatórios de pesquisa vai querer eliminar os ruídos macro ou micro na tentativa de sustentar o seu trabalho (CORCUFF, 2001).

Cicourel reconhece ao mesmo tempo a autonomia relativa de cada nível de análise e se esforça para levar em conta a interação dos diferentes níveis, para isso retoma a experiência compreensiva do mundo da vida. Para eles os mem-bros de um grupo ou de uma sociedade produziram suas próprias teorias e méto-dos no intuito de realizar esta integração e, consequentemente colocam em ação este sentido de integração em suas atividades cotidianas. Este trabalho de inte-gração, por sua vez, pode ser apreendido através da noção de resumo, defi nida enquanto modos de processamento de informação que transformam microacon-tecimentos em macro estruturas, um exemplo desta operação é dada através de uma análise a partir da relação médico-paciente.

O médico interpreta e resume as informações singulares recolhidas junto a seu paciente, ao longo de interações, em sua história médica utilizável por outros profi ssionais de saúde que será então considerada como um dado no interior das instituições médicas agregável a outros dados, por exemplo, na pesquisa de epi-demiologia. Pode-se ver processos similares em ação nas instituições escolares, através dos resumos de interações constituídos pelos boletins escolares dos alu-nos, reunidos em seguida em balanços que mostraram as performances de uma geração, e que servem de estudos de mobilidade social.

Por fi m, analisaremos algumas das principais contribuições de Bruno Latour na produção desse construtivismo interacional via sua teoria social simétrica. Este autor parte do princípio de uma simetria generalizada, o cientista social deve tratar da mesma maneira a verdade e o erro, os vencedores e os vencidos da história das ciências, os humanos e os não humanos. Latour desenvolve uma série de concei-tos no intuito de possibilitar esta simetria generalizada, analisaremos aqueles que

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justamente se aliam no esforço de não apenas superar as antinomias clássicas, mas também que levam em consideração a experiência “construtora” dos atores so-ciais. São eles: tradução e rede.

O conceito de tradução compreende que os atores (individuais e coletivos, humanos e não-humanos) trabalham constantemente traduzindo suas identida-des, seus problemas, suas linguagens ou seus interesses para os dos outros. Atra-vés deste processo é que o mundo se constrói e se destrói, se estabiliza e deses-tabiliza. Latour tece uma alternativa a rigidez sociológica própria das noções de “sistema”, “estrutura”, “função”, este autor nos convida a seguir os atores em suas múltiplas atividades de tradução (intertradução), fora das fronteiras bem defi nidas destas noções rígidas, redefi nindo até mesmo estas separações. Nesta perspectiva, a lista dos atores pertinentes (indivíduos, grupos ou objetos), bem como suas propriedades e as regras do jogo que eles jogam, não estão de uma vez por todas defi nidas.

As cadeias de tradução são tecidas em diferentes atividades: estratégias con-correntes, confrontações nas provas de força, um trabalho de mobilização e re-crutamento, a elaboração de dispositivos de interesse e de pontos de passagem obrigatórios a fi m de selar alianças e associações entre atores e, sobretudo, a emergência de porta-voz destas associações. Traduzir é deslocar, isto é, desloca-mentos de objetivos ou de interesses, deslocamentos de dispositivos, de seres humanos, larvas ou inscrições.

Nesta “entredefi nição” dos atores, há interdeslocamentos, rompendo com o esquema binário de produção/mudança, a noção de deslocamento permite enca-rar toda uma gama de práticas cotidianas que fazem-modifi cam em maior ou menor grau os estados estabilizados do mundo.

Outra noção fundamental da sociologia de Latour é a de rede, esta visa apre-ender a estabilização jamais defi nida e sempre em ação das relações entre huma-nos e objetos. Assim, a estabilização das formas da vida social deve ser conside-rada como um ponto de chegada mais do que um ponto de partida da análise. Estas estabilizações são chamadas de caixas pretas, ou seja, é tudo aquilo que tomado como “dado”, como evidente e não é mais questionado, pode ser um fato científi co, uma técnica, um procedimento ou uma instituição.

A rede é então o resultado solidifi cado, em maior ou menor grau, de processos de tradução e de um choque de caixas pretas, a qual indica que os recursos estão todos concentrados em alguns lugares — os nós — mais que estes nós estão liga-dos uns com os outros por malhas. Graças a estas conexões, os poucos recursos dispersos tornam-se uma rede que parece estender-se por todas as partes; são as redes sociotécnicas, associando justamente recursos acomodados habitualmente

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sob rótulos mais ou menos estáveis: sociais, econômicos, científi cos ou técnicos. Trata-se de reabrir as caixas pretas fechadas pelos atores.

A rede supõe um trabalho prévio de equivalência de recursos heterogêneos, tornando-os comensuráveis e permitindo-lhes funcionar juntos. Por sua vez, a solidez das redes dependem então do número de aliados mobilizados e de asso-ciações realizadas. As noções de tradução e rede oferecem consequentemente um caminho para sair das oposições individuo/sociedade, ação/estrutura, sujeito/objeto, micro/macro colocando em evidência processos pelos quais microatores estruturam, ao globalizar e instrumentalizar sua ação macroatores ou, inversa-mente, processos pelos quais entidades são desconstruídas e localizadas.

A partir deste princípio simétrico haveria uma tendência de dissolução da noção de verdade científi ca. Latour reduz às vezes a ciência a “relações de for-ça”, negando a existência de “relações de razão”. Consequentemente nenhuma explicação sociológica é mais ou menos válida, são as capacidades de convicção implantadas que fazem a diferença.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso objetivo foi apresentar como o reconhecimento de antinomias do que se convencionou chamar de teoria social contemporânea, antes de esfacelar as ciências sociais, promoveu novos rumos para as imaginações sociológicas. No sentido de mobilizar o esforço de um conjunto signifi cativo de pesquisadores cuja preocupação foi ultrapassar essas antinomias e compreende-las como com-plementares, todavia esse esforço logrou posturas não consensuais em relação a esta empreitada. O construtivismo estrutural buscou recuperar as interações nos processos de reprodução do mundo social, questionando a postura clássica de conceber as estruturas enquanto “dadas” em defi nitivo. As estruturas são cons-truídas, ou seja, elas são frutos de um processo de construção histórica, todavia, produziu uma nova antinomia: ciência/ senso comum.

O fundamento do conhecimento sociológico estaria na ruptura epistemológi-ca com os saberes ordinários, já que estes não são plenamente conscientes das relações que participam e, inclusive, o princípio de suas interações está localizado para além destas. Se por um lado o construtivismo estrutural recupera as intera-ções no sentido de conceber como historicamente as estruturas são produzidas, estes atores não tem consciência de suas atividades, já que o princípio de suas interações está acima delas. Justamente por não levar em consideração a experi-ência no mundo da vida envolvendo desde já uma forma de compreensão, o cons-trutivismo estrutural seguiu mantendo uma predominância das estruturas em rela-ção à ação dos atores, tornando-se menos sensível ao processo de construção que

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PARA ALÉM DAS ANTINOMIAS CLÁSSICAS: AS TRILHAS PARA A TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA

realizam. Isto é, aderindo à ruptura epistemológica, este construtivismo manteve, de modo diferente das antinomias clássicas, duas dimensões da realidade social, sendo que as estruturas predominam no processo de construção desta realidade.

Por outro lado, vemos emergir outro construtivismo, o interacional, marcado por uma infl uência da fenomenologia, transporta desse legado fi losófi co a expe-riência compreensiva do mundo da vida ou, como diria Merleau-Ponty, “porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história” (MERLEAU-PONTY, 1999: Prefácio, p. XVIII). Esta atenção ao cotidiano permitiu e permite a esses autores construtivistas reagregarem essa dupla dimensão da vida social, através da radicalidade de suas análises, ou seja, se concebemos a existência de substra-tos, grupos, coletividades, estruturas, é porque eles são formados e transladados. O que temos é uma permanente formação desses grupos pelos atores que partici-pam, por sua vez, de diversos grupos, inclusive contraditórios. O papel do soci-ólogo é então seguir estas atividades no sentido de reconhecer o trabalho cons-tante da vida social; sendo o sociólogo e a sociologia, ao mesmo tempo, também resultados de permanente atividade entre os atores. A sociologia enquanto ativi-dade mundana também participa do trabalho de construção da realidade social.

Assim, o construtivismo interacional abriu toda uma possibilidade de recu-perarmos a integração desses níveis. A partir do reconhecimento da intensa ativi-dade dos atores, a busca passa a ser pelas cadeias de associação entre micro e macroprocessos. A questão não é escolher um deles, questionar em qual deles reside o porto seguro para uma análise verdadeiramente científi ca. A questão não é partir em defi nitivo nem de um nem de outro, mas compreender, descrever, registrar esse processo de permanente construção.

O giro fenomenológico nas ciências sociais possibilitou assim a “encarna-ção” dessa ciência, no sentido de reconhecer esta enquanto uma construção ativa dos mais diversos atores, estabelecendo uma refl exividade radical, produzindo teorias mais porosas e atentas aos vínculos entre cotidiano e ciência. Assim, ao invés de explicações últimas dadas através de um projeto teórico acabado, nos lança para um trabalho investigativo de descobertas dessas redes de associações, volta-se novamente para a vida, no sentido de investigar como os fenômenos se “fazem fazer”, torna-se então um projeto construtivista de ponta a ponta.

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DANIELA FÉLIX C. MARTINS

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CAPÍTULO 11DOS CLÁSSICOS AOS CONTEMPORÂNEOS:

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA

Maria Medrado Nascimento

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. A fi losofi a clássica de Kant e Hegel: a crítica da razão pura e a dialética do conhecimento — 3. A teoria sociológica clássica: objetividade e subjetividade na construção do objeto — 4. Positivismo e a crítica ao positivismo: reconstruindo o objeto — 5. Sociologia contemporânea e a desconstrução do objeto — 6. Sobre uma outra perspectiva: o decolonialismo e as possibilidades de um giro epistêmico — 7. Considerações fi nais — 8. Referências bibliográfi cas.

1. INTRODUÇÃO

A compreensão de como a sociologia tem tratado a construção dos objetos de investigação evidencia a forma que a sociedade se problematiza e traduz as suas inquietações. Neste sentido, este artigo procura desenvolver algumas considera-ções sobre a infl uência das diversas correntes da teoria social clássica e contem-porânea na construção dos objetos de pesquisa. Não se pretende aqui realizar uma análise aprofundada sobre cada perspectiva teórica, mas analisar como as diferentes concepções teóricas podem delinear diferentes formas de defi nição e construção dos objetos de investigação, orientando o percurso da pesquisa de acordo com os seus fundamentos metodológicos.

Seguindo uma linha cronológica, o presente texto se inicia com a fi losofi a clássica de Kant e Hegel, passando pela sociologia clássica de Marx, Weber e Durkheim, pelo positivismo e a crítica ao positivismo discutido por Popper e Adorno, chegando à sociologia contemporânea europeia desenvolvida por Fou-cault, Habermas e Bourdieu e à sociologia pós-colonial e decolonial defendida por autores como Mignolo, Castro-Gomes e Maldonado-Torres. Portanto, as pá-ginas que seguem se propõem a refl etir a construção do objeto sobre a base de uma refl exão epistemológica referente as condições em que estão inseridas no percurso da teoria social.

A crítica à razão pura, a dialética da produção de conhecimento, a produção de discurso, a formação de conceitos e as diferentes perspectivas dos atores na construção e refl exão sobre as suas realidades sociais serão temas trabalhados no

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decorrer desse artigo. Pretendemos desenvolver refl exões sobre as bases episte-mológicas que permitem que a pesquisa desenvolva as suas estratégias metodo-lógicas, orientando as etapas da investigação.

2. A FILOSOFIA CLÁSSICA DE KANT E HEGEL: A CRÍTICA DA RAZÃO PURA E A DIALÉTICA DO CONHECIMENTO

Iniciando pela fi losofi a kantiana, a divisão da atividade fi losófi ca em duas fases — a pré-crítica e a crítica da Razão Pura — oferece grandes contribuições sobre o problema da objetividade e da subjetividade nas refl exões sobre as reali-dades sociais. Segundo o autor, a fi losofi a passa por três fases: a dogmática, a céptica e a critica. Na dogmática cada metafísica apresenta as suas teses como algo que não pode ser objeto de dúvidas. A uma fi losofi a dogmática opõem-se outras fi losofi as, cujas teses também são dogmáticas. Decorre daí uma luta entre sistemas, degenerando na anarquia correspondente a fase céptica. O autor busca, então, princípios adequados ao pensamento metafísico, o que conduz a crítica da própria razão e aos limites de todo conhecimento puro, pondo a verdade em jogo (KANT, 1989).

O pensamento kantiano considera que além do saber posteriori, extraído da experiência, haverá um saber de outra ordem, o saber a priori, que precede a experiência e cujo o objeto não nos pode ser dado por ela. O objeto desta ordem será o próprio sujeito, a sua estrutura. Será esta estrutura que torna possível a experiência. Avançando a refl exão sobre o conhecimento, Kant (1989) considera que a sensibilidade é a faculdade intuitiva que permite o acesso imediato aos dados e que o fenômeno é o objeto indeterminado da intuição. A forma a prior da sensibilidade é puramente receptiva e espontânea, nos fornecendo uma repre-sentação. As representações das coisas exteriores estão naturalmente em nós e o que está em nós é subordinar-se ao nosso sentido interno e, consequentemente, à sua forma e condição.

Neste sentido, Kant (idem) considera que ao lado da sensibilidade, que nos dá a intuição, temos o entendimento que nos fornece o conceito. A noção de es-quema surge como produto da imaginação, sendo intermediário entre os planos do sensível e do entendimento; ou seja, o esquema aparece como um método de construção da imagem em conformidade com um conceito, determinado pelo tempo segundo as exigências de cada categoria. Segundo o autor, o conhecimen-to começa pelos sentidos, passa para o entendimento e termina na razão.

A obra do autor pode ser dividida em duas fases: a fase Pré-Crítica, em que há uma predominância da física e da metafísica, e a Crítica da Razão Pura, que se lança com o uma tentativa de estudar não apenas os conceitos fundamentais e as

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leis relativas ao mundo sensível, como de dar a forma do que constitui a natureza do gosto, da metafísica e da moral. A segunda fase do pensamento kantiano con-sidera a importância das contradições da razão consigo mesmo, fundamentando a substituição da atitude metafísica e dogmática pela atitude crítica. Portanto, os fenômenos, sejam da experiência interna, sejam da experiência externa, não pas-sam de representações (KANT, 1989).

Retornando às refl exões propostas para esse artigo, a teoria kantiana nos per-mite questionar até que ponto a razão pode nos conduzir a delimitação do nosso foco de pesquisa: o objeto que será investigado. Que razão é essa? Como se de-fi ne? Como desvendar suas contradições? A teoria kantiana permite realizar uma crítica a essa própria razão, incorporando outros elementos que enriquecem a análise. Segundo o autor, a crítica da Razão Pura permite compreender até onde se é possível alcançar com a razão, reconhecendo o conhecimento puro e empí-rico envolvidos nesse conceito. Neste sentido, o autor defi ne o conhecimento empírico, que tem origem a posteriori, ou seja, na experiência e o conhecimento puro com origem a priori, independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos. Kant acredita que a fi losofi a necessita de uma ciência que determi-ne a possibilidade, os princípios e a extensão de todo o conhecimento a priori, alargando os conhecimentos provenientes da experiência.

A distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos também é um elemento fundamental da fi losofi a de Kant. No juízo analítico, a ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade, gerando juízos explicativos enquanto que no juízo sintético a ligação é pensada sem identidade, como juízos extensivos. Se-gundo Kant, em todas as ciências teóricas da razão encontram-se, como princí-pios, juízos sintéticos a priori. Assim, acredita que a metafísica possibilita:

alargar o conhecimento a priori, devendo servir de princípios capa-zes de acrescentar ao conceito dado alguma coisa que nele não es-tava contido e, mediante juízos sintéticos a priori, chegar tão longe que nem a própria experiência nos possa acompanhar. (1989: 49)

A razão é compreendida pelo autor como a faculdade que nos fornece os princípios para conhecer algo absolutamente a priori. Transcendendo a metafísi-ca, Kant inaugura o que considera uma ciência particular que defi ne como Crítica da Razão Pura. Para a sua construção teórica, o autor coloca o espaço e o tempo como conceitos fundamentais. Assim, o espaço não é um conceito empírico, ex-traído de experiências externas. É uma condição de possibilidade dos fenômenos; uma representação, a priori, que fundamenta todas as intuições externas.

Sobre o tempo, Kant afi rma este conceito também como dado a priori; como representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. O tempo, portanto, não é um conceito discursivo, ou universal, mas uma forma pura

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da intuição sensível. O conceito de mudança e de movimento só é possível na representação do tempo, o que permite explicar a possibilidade de tantos conhe-cimentos sintéticos a priori quanto os da teoria geral do movimento. O tempo, conforme Kant (1989), é uma condição subjetiva da nossa intuição.

Os conceitos de tempo e espaço na perspectiva kantiana aparecem como duas fontes de conhecimento das quais se podem extrair a priori diversos conhe-cimentos sintéticos. Intuições e conceitos constituem os elementos de todo o nosso conhecimento, podendo ser puros ou empíricos. A analítica transcendental proposta pelo autor se refere à decomposição de todo o nosso conhecimento a priori nos elementos do conhecimento puro do entendimento. A lógica transcen-dental reduz os conceitos a síntese pura das representações (KANT, 1989).

Portanto, o conceito nunca é referido imediatamente a um objeto, mas a qual-quer outra representação. Compreendendo o conceito como representação, é im-portante a refl exão de como se constrói o objeto de pesquisa. Considerando o objeto como conceito, ele não deixa de ser uma representação que navega nas intempéries do tempo e do espaço, marcado pela subjetividade inerente à crítica da razão pura proposta por Kant.

Partindo de uma outra perspectiva fi losófi ca, Hegel (1996) permite uma re-fl exão sobre a história da fi losofi a sobre a base argumentativa de que a história de um assunto está intimamente conectada com a concepção que dele se faça. Hegel acredita que a fi losofi a deve se levar ao plano da ciência, concebendo a verdade como sistema científi co. Em cada época, diferentes sistemas científi cos coexistem, incorporando em seu desenvolvimentos infl uências mútuas. A fi loso-fi a se defi ne como uma tarefa permanente que visa unifi car os saberes particula-res no absoluto, numa dinâmica dialética entre o múltiplo e o uno.

Segundo Hegel, uma obra fi losófi ca deve responder uma indicação históri-ca da sua tendência, ponto de vista, conteúdo geral e resultados. É um elemen-to do universal que leva dentro de si o particular. Para Hegel é importante a determinação das relações que uma obra fi losófi ca têm com outras tentativas sobre o mesmo tema, criticando a visão de antagonismo entre verdadeiro e falso e lançando o conceito de diversidade como tentativa de superação da dualidade. Partindo dessas perspectivas, a coisa não se reduz ao seu fi m, e sim ao seu desenvolvimento, assim como o resultado não é o real, mas está em união com o seu devir.

Hegel acredita que a verdade só tem validade no conceito, criticando a fi lo-sofi a clássica que considera o verdadeiro como intuição e saber imediato do absoluto. O verdadeiro não se apreende e se expressa como substância, como também e na mesma medida, como sujeito. O verdadeiro se evidencia como

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todo, porém o todo é somente a essência que se completa mediante o seu desen-volvimento. Assim, Hegel fundamenta a ideia de que as ações da negatividade do conteúdo é o próprio movimento do conceito, possibilitando a desaparição dos pensamentos considerados fi xos. O conhecimento científi co, segundo o fi -lósofo, exige entregar-se a vida do objeto e expressar a necessidade interna dele (HEGEL, 1996).

O conteúdo como própria refl exão em si permite a compreensão da ciência não como idealismo, dogmatismo da afi rmação, seguridade ou a certeza de si mesmo. O conceito, partindo dessa perspectiva, se move e recobre em si mesmo suas determinações. Na visão dialética do autor, a ciência aparece como o devi-nir, sendo parte do seu desenvolvimento as contradições que surgem nas defi ni-ções dos conceitos.

Por meio das contribuições de Hegel, a concepção do objeto de pesquisa se situa em um movimento dialético que fundamenta a história da ciência. Conver-gindo com a crítica de Kant ao que se refere a razão pura, a fi losofi a do século XVIII permite a visão da ciência como um processo de construção do saber que não é fi xo ou pragmático. Portanto, o próprio objeto de pesquisa está em cons-tante construção, não se fi xando em determinado sentido, mas na busca do de-vir. Estas refl exões sobre o percurso da ciência e do seu método orienta o surgi-mento da sociologia e a forma que os seus fundadores irão conceber o estudo sobre a sociedade.

3. A TEORIA SOCIOLÓGICA CLÁSSICA: OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NA CONSTRUÇÃO DO OBJETO

Chegando, então, aos “pais” da sociologia, o debate sobre a objetividade e subjetividade científi ca passa a ser refl etido em relação ao próprio objeto que a recente ciência se propõe desvendar: a sociedade.

A concepção dialética da história desenvolvida por Marx e Engels (2004) fundamentada na dialética hegeliana que coloca a verdade como um contínuo de síntese, antítese e tese delineia uma visão estruturalista da sociedade. Conforme estes pensadores, os homens sempre tiveram falsas noções de si mesmos, sobre o que são e o que deveriam ser. A crítica a fi losofi a alemã baseada na necessidade de rebelar-se contra os domínios das ideias, balindo de modo fi losófi co as repre-sentações da burguesia, constitui o núcleo da teoria neo-hegeliana. A proposta apresentada por Marx e Engels acredita no processo de decomposição do espírito absoluto, relacionando fi losofi a e realidade no olhar das condições materiais de reprodução social. Segundo os autores, os homens produzem seus meios de vida baseado nos meios de vida já encontrados e que eles precisam reproduzir. O que são coincide com o que produz e como produz (MARX e ENGELS, 2004).

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A produção de ideias, de representação e de consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade e ao intercambio material dos homens. Assim, em suas análises históricas, o primeiro fato histórico aparece como a produção dos meios que permitam que haja a satisfação das condições de vida. A história dos homens, conforme os autores, deve ser estudada e elaborada sempre em co-nexão com a história da indústria e do intercambio, uma vez que a dependência material dos homens entre si, condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção, assume e apresenta sempre novas formas.

A divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual é um elemento de fundamental importância na análise marxista. Por meio dessa divisão a possibi-lidade e a realidade de que a atividade espiritual e material são destinadas a indi-víduos diferentes revelando as contradições da distribuição desigual, quantitati-va e qualitativamente, do seu trabalho e dos seus produtos. Em todas as épocas as ideias dominantes são as da classe dominante. Ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a força intelectual domi-nante. No exemplo dado pelos autores, no tempo em que a aristocracia domina-va, dominava também os conceitos de honra e fi delidade. Quando passou ao domínio da burguesia, dominou os conceitos de liberdade e individualidade (MARX e ENGELS, 2004).

Na visão marxista a produção espiritual deve ser explicada pela prática ma-terial, subvertendo a ordem que privilegiava o mundo das ideias em detrimento das condições materiais. Esse referencial de análise indica que a construção do objeto passa, portanto, por uma refl exão sobre as condições materiais que in-fl uenciam diretamente na sua constituição e no sentido que é adquirido pelas classes dominantes que monopolizam as condições de produção dos problemas sociais. Portanto, a defi nição de um objeto de pesquisa refl ete as condições epis-temológicas que revelam contradições de interesse que escapam da possibilidade de uma construção imparcial das problemáticas da sociedade.

A questão da objetividade do conhecimento nas ciências sociais é um tema de grande interesse também na teoria weberiana. Weber (1992) irá questionar em que sentido há verdades objetivamente válidas para uma ciência que tem como objeto as instituições e os processos da cultura humana. Segundo o autor, é necessário uma divisão dos princípios entre o conhecimento daquilo que é e daquilo que deve ser, não sendo jamais tarefa de uma ciência empírica propor-cionar normas e ideais obrigatórios dos quais possa derivar “receitas” para a prática. Weber afi rma que a ciência permite a tomada de consciência de que toda ação e não ação implica na tomada de posição a favor de determinados valores e contra outros valores. Portanto, para uma abordagem científi ca dos juízos de valor não basta compreender os fi ns pretendidos e os ideais, mas sim ser capaz de avaliá-los criticamente.

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Weber desenvolve a discussão dos possíveis signifi cados da “validade” obje-tiva a que se pretende chegar. O caráter socioeconômico de um processo não é algo “objetivamente” inerente. Está condicionado a orientação dos interesses de conhecimento e em conformidade com o signifi cado cultural atribuído. Diver-gindo de Marx, Weber critica a explicação dos fenômenos culturais como produ-to ou função de determinadas constelações de interesses materiais. O foco da análise de Weber segue nas conexões e signifi cações culturais e nas causas pelas quais se desenvolveu historicamente de uma forma e não de outra. O conheci-mento cultural, segundo Weber, é condicionado por ideias de valor e, portanto, todo conhecimento científi co-cultural é sempre um conhecimento subordinado aos pontos de vista especifi camente particulares e encontra-se preso a premissas subjetivas (WEBER, 1992).

Seguindo a teoria weberiana, é necessário compreender qual a signifi cação da teoria e da formação teórica dos conceitos para o conhecimento da validade cultural. Para atingir tais objetivos, a construção de tipos ideais proposta por Weber pretende apontar o caminho para a formulação de hipóteses, se consoli-dando como meio de conhecimento. O tipo ideal aparece como tentativa de apre-ender os indivíduos históricos ou os seus diversos elementos em conceitos gené-ricos. Como pontua Weber, tipos ideais aparecem como “portos que serve de abrigo à espera de que se consiga uma orientação no mar imenso dos fatos empí-ricos” (1992: 48).

Nas ciências da cultura, a construção de conceito depende do modo de pro-posição dos problemas que varia de acordo com o conteúdo da cultura. Weber (idem) ressalta a importância do processo de crítica de construção dos conceitos mediante a observação de regularidades empíricas, construção de hipóteses e verifi cação das mesmas. A validade objetiva de todo saber empírico baseia-se na ordenação da validade dada segundo categorias subjetivas.

Na perspectiva de Durkheim (1983), fundamentada na ideia de que os fatos sociais deve ser considerado como coisas, a objetividade presente na visão mar-xista ganha um outro sentido. O autor acredita que o social só pode ser explica-do por ele mesmo, compreendendo “coisa” como todo objeto de conhecimento que não pode ser captado por um simples procedimento de análise mental. Só é possível ser compreendido na condição de se extroverter por meio de observa-ções e experimentações, passando dos caracteres mais externos e mais imedia-tamente acessíveis aos menos visíveis e mais profundos. Para Durkheim “é pre-ciso que esteja preparado para fazer descobertas que o surpreenderão e o desconcertarão” (1983: 77).

Os fatos sociais, segundo o autor, são exteriores as consciências individuais, não diferindo apenas qualitativamente dos fatos psíquicos, como também tendo

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outro substrato. Portanto, não evoluem no mesmo meio e não dependem das mesmas condições. Os fatos sociais são explicados por meio de representações coletivas. Para compreender a maneira como a sociedade representa a si próprio e o mundo, é preciso considerar a natureza da sociedade e não dos indivíduos. Os símbolos com os quais a sociedade se pensa muda de acordo com a natureza da própria sociedade.

Em “As formas elementares da vida religiosa” Durkheim defi ne como obje-to de pesquisa a sociologia religiosa e a teoria do conhecimento. Para analisar e explicar o seu objeto, o autor propõe como método o estudo da religião mais primitiva e mais simples que é conhecida: o totemismo. Como parâmetro de superioridade, Durkheim as diferencia de acordo com a elevação das funções mentais empregadas. Enquanto que nas religiões complexas é difícil distinguir nelas o secundário do principal e o essencial do acessório, nas sociedades infe-riores, com o menor desenvolvimento das individualidades, a homogeneidade das circunstâncias contribui para reduzir ao mínimo as diferenças e as variações (DURKHEIM, 1996).

Na obra citada, a escolha da religião como foco do estudo é justifi cada pelo autor pelo fato de ser de origem religiosa os primeiros sistemas de representação que o homem produziu do mundo e de si próprio. Os ritos se confi guram como maneiras de agir que só surgem no interior de grupos coordenados e tem como função suscitar, manter ou refazer alguns estados mentais desses grupos. As no-ções de tempo e espaço são fundamentais para a expressão do ritmo e da regula-ridade da atividade coletiva e da organização social relacionada com a organiza-ção espacial do grupo. As categorias são defi nidas pelo autor como representações coletivas, expressando os estados da coletividade. As representações coletivas são produto da cooperação que se estende não apenas no espaço, como também no tempo, traduzindo estados sociais.

O estudo de Durkheim sobre o sistema totêmico conclui que a ciência e as categorias fundamentais do pensamento têm origem religiosa e que quase todas as instituições sociais nasceram da religião. A religião, portanto, traduz a socie-dade perfeita e almejada que se busca encontrar. Real e ideal aparecem na teoria durkheimiana não como contraditórios, mas como elementos que fazem com que a sociedade se faça e refaça periodicamente. Assim, a vida social é uma importante fonte de vida lógica. A matéria do pensamento lógico é feita de con-ceitos que são generalizações feitas pela própria sociedade. Contudo, os concei-tos se opõe às representações sensíveis por estas serem fl uidas enquanto que o conceito só muda quando se descobre alguma imperfeição e precisa ser retifi ca-do. Segundo o autor, o conceito se não é universal, é universalizável. O sistema

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de conceito, assim como a linguagem, exprime a maneira como a sociedade re-presenta os objetos da experiência. Assim, cada civilização tem seu sistema or-ganizado de conceitos que a caracteriza.

O pensamento lógico, conforme Durkheim (1996), é impessoal e estável. Será esse sistema de representações lógicas coletivas que permite que os homens se compreendam. O produto desse pensamento lógico são os conceitos científi -cos que devem ser metodicamente controlados. Pensar racionalmente é pensar de acordo com leis que se impõem à universalidade dos seres racionais. A ciência e a moral implicam que o indivíduo seja capaz de elevar-se acima do seu ponto de vista e de viver de forma impessoal. A razão impessoal defi nida por Durkheim é uma forma de pensamento coletivo. Seguindo a perspectiva do autor, as cate-gorias aparecem como conceitos, ou seja, “coisas” sociais que são o produto da coletividade. As categorias desempenham no conhecimento um papel preponde-rante, pois tem por função dominar e envolver todos os outros conceitos, expres-sando relações que, de forma implícita, existem nas consciências individuais.

A noção de todo, na concepção durkheimiana, não pode provir do indivíduo. O conceito de totalidade, para o autor, excede infi nitamente o conteúdo de cada consciência individual tomada a parte, tornando-se a forma abstrata do conceito de sociedade; o todo que compreende todas as coisas, a classe suprema que abrange todas as outras classes. A sociedade, portanto, expressa uma consciência coletiva como forma mais elevada da vida psíquica.

A perspectiva durkheimiana em que acima do indivíduo está a sociedade lan-ça uma nova maneira de explicar o homem. O entendimento da sociedade como sistema de forças atuantes que transcende as consciências individuais permite realizar algumas considerações importantes sobre a construção do objeto de pes-quisa. O conceito compreendido como representação social permite perceber que a própria construção do objeto, partindo do seu conceito, não são apenas manifes-tação de interesse e conhecimento do pesquisador, mas produto socialmente construído, manifestando a própria consciência coletiva do mundo que pertence.

Se a análise weberiana nos permite refl etir sobre a forma que os fatores culturais interferem no desenvolvimento de toda a pesquisa, a ênfase dada por Marx e Engels privilegia os aspectos materiais que condicionam a vida dos ho-mens. Já na perspectiva de Durkheim, as representações coletivas e a constru-ção de conceitos impessoais e universalizáveis são elementares na constituição da sociedade. É possível perceber que as diferentes perspectivas apresentadas oferecem instrumentos de análise sobre a forma que condições materiais, valo-res de vida e representações coletivas infl uenciam no processo de construção do objeto a ser investigado. Seguindo o percurso proposto pelo presente artigo,

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passaremos as abordagens positivista e crítica nas refl exões sobre a construção do obejeto de pesquisa.

4. POSITIVISMO E A CRÍTICA AO POSITIVISMO: RECONSTRUINDO O OBJETO

Em “A lógica das ciências sociais”, Karl Popper desenvolve um conjunto de teses relativas ao conhecimento. O autor afi rma que o método das ciências so-ciais consiste em experimentar possíveis soluções para determinados problemas que podem ser refutadas, fazendo surgir novas tentativas. Esta ideia fundamenta a afi rmação popperiana de que a objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Portanto, a objetividade de uma ciência não depende da obje-tividade do cientista, mas sim de uma tradição crítica que possibilita criticar um dogma dominante conduzindo ao ideal da ciência pura (POPPER, 1978).

Segundo Popper (idem), as ciências trabalham com teorias, ou seja, com sis-temas dedutivos. Estes sistemas são tentativas de explicações e de solução de um problema científi co. Os sistemas dedutivos, assim como a teoria, pode ser criti-cado racionalmente por meio das suas consequências. Neste sentido o autor cri-tica a pretensão de uma teoria ser verdadeira utilizando a ideia de “aproximação da verdade” e de “poder explicativo” ou “conteúdo explicativo” de acordo com a lógica da situação. A lógica situacional admite um mundo físico e social no qual agimos, indicando que não existe nenhuma ciência puramente observacio-nal, sendo a sua condição de existência a teorização.

Embora seja considerado positivista por alguns, Karl Popper se considera um racionalista crítico. Afi rma que não existe observação pura, desinteressada ou livre de teoria. Considera que a objetividade repousa na discussão crítica e no exame crítico das experiências, considerando o relativismo um antídoto contra a onipotência da razão. De acordo com a visão do autor, há uma continuidade na construção da nova teoria e um confl ito com a sua predecessora, sendo essa uma condição para que uma nova teoria constitua uma descoberta. Uma nova teoria, ainda que revolucionária, deve sempre ser capaz de explicar o sucesso da teoria que a precedeu, jamais atingindo a verdade (GANEM, 2012).

Ao analisar os obstáculos ao progresso da ciência, Popper (1978) considera que estes são de natureza sociais, econômicas e ideológicas. Por meio dessa base de interpretação, relaciona revoluções sociais com revoluções científi cas, mos-trando as semelhanças e diferenças que podem ser identifi cadas entre elas. Como exemplo, o autor se refere a revolução copernicana e darwiniana como revolu-ções científi cas que originaram uma revolução ideológica. A preocupação com a evolução e revoluções do conhecimento científi co é de grande importância nas

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refl exões sobre os nossos poderes de conhecimento. Segundo Popper, os motivos e ideais científi cos, inclusive o ideal de uma desinteressada busca pela verdade, estão enraizadas em valorações extra-científi cas. As condições sociais de produ-ção da ciência, portanto, irá infl uenciar na construção dos objetos de pesquisa e na forma que as percepções sobre o tema se desenvolve. Em condições sociais mais favoráveis ao confronto de uma nova teoria com a sua predecessora, novas descobertas revolucionárias e criativas se tornam possíveis, interferindo, inclusi-ve, nas formas de compreender o objeto.

A crítica ao positivismo proposta por Popper ganha mais profundidade com a Teoria Crítica que tem como grande referência Theodor Adorno e a Escola de Frankfurt. Para essa escola de pensamento a razão só pode ser defendida pela crítica. A dialética aparece como método crítico capaz de enfrentar os desafi os teóricos defi nidos pelo pensamento positivista e pelo idealismo hegeliano hege-mônico. Para desenvolver os seus argumentos, o autor se refere à dialética nega-tiva que signifi ca o respeito à negação, às contradições, ao diferente, ao disso-nante. Adorno, neste sentido, defi ne o conceito de totalidade não como uma categoria afi rmativa, mas crítica. Embora apresentem pontos de convergências, as perspectivas de Popper e de Adorno também expressam signifi cativos con-frontos que podem ser agrupados em três temas: quanto ao método e a natureza do objeto; quanto a objetividade científi ca e quanto a natureza da crítica e da sociologia. Enquanto Popper realiza uma crítica a uma razão totalizadora perante uma realidade complexa e inalcançável na sua totalidade, sugerindo uma razão fragmentada com verdades provisórias, Adorno defende uma razão crítica eman-cipatória que integra o método dialético, tecendo considerações acerca das limi-tações do método hipotético-dedutivo (GANEN, 2012).

As refl exões propostas por Adorno (1970) rompe com a tese fundamental da autonomia absoluta da ciência ao afi rmar que a ciência, incluindo a lógica for-mal, não é apenas força social produtiva como também relação social de produ-ção. Sobre o percurso da ciência, o autor considera que a especulação passa a carecer de controles universalmente válidos sendo mediado pelo conceito. Con-tudo, como afi rma o autor, a pretensão de objetividade é subjetiva e a clareza corresponde unicamente à consciência subjetiva.

Sobre a ideia de totalidade, Adorno (idem) considera que esta não constitui uma categoria afi rmativa, mas sim, crítica. É compreendida como síntese da rela-ção social dos indivíduos entre si, assim como também se refere à aparência e à ideologia. O conceito dialético de totalidade que o autor se refere pretende ser aplicável a qualquer constatação social singular, se contrapondo ao conceito po-sitivista de totalidade que pretende reunir constatações sem contradição em um contínuo lógico. A Teoria Crítica defendida por Adorno implica na consciência

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frente a constituição antagônica da sociedade e frente à contradição de racionali-dade e irracionalidade, partindo para a crítica à sociedade através dos meios ra-cionais. Portanto, a Teoria Crítica se confronta com o positivismo afi rmando que este se presta a manipulação ideológica em virtude de sua indeterminação de conteúdo, procedimento ordenador e a preferência pela certeza frente a verdade.

A disciplina da sociologia, segundo Adorno, requer tanto um alto grau de exatidão da observação empírica quanto também a força da teoria que inspira a interpretação e graças a esta se modifi ca. Na sociologia o sujeito de todo conhe-cimento é simultaneamente objeto; sendo assim, a lógica é essencialmente inter-subjetiva, rompendo com a doutrina cientifi cista que tem como norma máxima a ausência de contraditoriedade. A clareza, para Adorno, constitui um momento no processo do conhecimento, e não sua referência única e total. Assim, os concei-tos não devem ser postos ou fi xados, mas sim, devem considerar a consciência de uma tal negatividade se confi gurando como mediação e não como ser em si (ADORNO, 1970).

A proposta da Teoria Crítica se apresenta como uma possibilidade aberta de compreensão do conceito, rompendo com uma visão positivista que o defi ne de forma reifi cada. A perspectiva dialética se confi gura como movimento que possi-bilita uma compreensão do conceito sob base da sua própria negatividade, lançan-do a crítica como possibilidade de avançar na busca da verdade. Retomando ao foco desse artigo, a defi nição do objeto de pesquisa se confi gura como a própria crítica dos conceitos orientando, a partir daí, o percurso da pesquisa científi ca.

5. SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA E A DESCONSTRUÇÃO DO OBJETO

O percurso crítico de construção dos conceitos conduz a novas perspectivas nas quais o foco deixa de ser o objeto em si, passando a ser o discurso sobre o objeto. Por meio dessa perspectiva, Foucault (2008) tece uma crítica à análise histórica do discurso do contínuo buscando uma mensuração das mutações que se operam no domínio da história. Para o autor, a preocupação deve se centrar no questionamento sobre a continuidade e as sínteses não problematizadas: “mos-trar que elas não se justifi cam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justifi cativas devem ser controladas.” (2008: 24).

Foucault propõe, portanto, que a análise do campo discursivo deve compre-ender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação, fazendo aparecer o espaço em que os acontecimentos discursivos acontecem, desenvolvendo uma descrição de relações entre enunciados. Para tanto, o autor estabelece quatro

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hipóteses: a primeira afi rma que os enunciados diferentes em sua forma e disper-sos no tempo, formam um conjunto quando se refere a um mesmo objeto. A se-gunda hipótese afi rma que a forma e o tipo de encadeamento defi ne um grupo de relações entre enunciados. A terceira questiona a possibilidade de se estabelecer grupos de enunciados que lhes determine o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que se encontram em jogo. Por fi m, a quarta hipótese propõe o reagru-pamento dos enunciados, a descrição de seu encadeamento e a explicação das formas unitárias sob as quais eles se apresentam.

A perspectiva analítica do autor se centra na ideia da formação discursiva como refl exo do sistema de dispersão e regularidade, compreendendo as regras de formação discursiva como condições de existência. É neste contexto que Fou-cault aprofunda as suas refl exões sobre a formação dos objetos resaltando a im-portância de demarcar as superfícies primeiras de sua emergência que são dife-rentes em cada sociedade, em cada época e nas diferentes formas de discurso. Portanto, o aparecimento de um objeto de discurso dependerá das condições históricas; ou seja, o objeto não preexiste a si mesmo, mas sim sob as condições positivas de um complexo de relações que não são internas ao discurso, envol-vendo instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classifi cação e modos de caracterização. Segundo o autor, os discursos não devem ser tratados como um conjunto de sig-nos, mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. A identifi cação de quem são os sujeitos falantes e a descrição dos lugares institu-cionais de onde são criados os discursos são elementos fundamentais na análise foucaultiana. O discurso representa um campo de regularidades para diversas posições de subjetividade. Desse modo é possível compreender as posições do sujeito que se defi nem pela situação que é possível ocupar em relação aos diver-sos domínios ou grupos de objetos.

Sobre a formação dos conceitos, Foucault (2008) destaca a análise das for-mas de sucessão e as diversas disposições das séries enunciativas assim como a análise das redes de conceitos e suas regras de formação. A ordem das narrativas, os tipos de correlações dos enunciados e os diversos esquemas retóricos permi-tem compreender a confi guração do campo enunciativo no qual surge os concei-tos. Para compreender a formação das estratégias utilizadas é necessário, segun-do o autor, a análise das redes de conceitos e suas regras, identifi cando os pontos de difração e de incompatibilidade dos discursos.

A análise arqueológica sugerida por Foucault (idem) também é um grande marco na sua teoria. Busca defi nir os próprios discursos enquanto práticas que obedecem a regras, os defi nindo de acordo com as suas especifi cidades. Segundo

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o autor, a arqueologia não está a procura das invenções, mas procura revelar a re-gularidade de uma prática discursiva que é exercida por todos os seus sucessores menos originais ou mesmo por alguns de seus predecessores. A arqueologia des-creve um nível de homogeneidade enunciativa que tem seu próprio recorte tempo-ral, indicando que as contradições não são nem aparência a transpor, nem princí-pios secretos a destacar, mas sim, objetos que devem ser descritos por si mesmos e que expressam formas específi cas de articulação entre si. Neste sentido, a descri-ção arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral, procurando descobrir todo o domínio das instituições, dos processos econômicos e das relações sociais nas quais uma formação discursiva pode se articular.

Seguindo a perspectiva apresentada por Foucault podemos compreender a construção do objeto de pesquisa por meio de uma análise arqueológica da for-mação discursiva do tema a ser investigado. A emergência de determinadas pro-blemáticas em detrimento de outras é o resultado de relações de poder estabele-cidas entre os diferentes discursos. Assim, a escolha do objeto longe de ser o resultado das escolhas e preferências pessoais do pesquisador, refl ete as relações de poder que marcam e dão a forma à emergência das questões sociais e, amar-rado a elas, do discurso sobre o próprio objeto.

A construção do discurso como refl exo das relações de poder também é um tema fundamental na análise de Habermas (1975). Segundo a perspectiva do autor, o positivismo conduziu a transformação da teoria do conhecimento pela teoria da ciência, impondo, por meio de sua lógica formal, que a produção do discurso científi co ocupasse um lugar privilegiado na estrutura de poder.

O agir comunicativo teorizado por Habermas aparece como uma forma de interação realizada simbolicamente pelos atores aonde estão em jogo diversos interesses. A ideia de sociedade emancipada se contrapõe à noção de esfera pú-blica burguesa formada por indivíduos privados que, em conjunto, discutem pu-blicamente assuntos de interesse geral, excluindo todos os grupos que, por ra-zões de ordem sexual, étnica ou econômica diferem do grupo social de referência, e funcionando como instância de controle e de legitimação do poder político exercido pelo estado administrativo (SILVA, 2001).

Portanto, a construção dos objetos de pesquisa são refl exo das relações de poder que se estabelecem na produção do discurso e na legitimação da lógica científi ca em detrimento das demais formas de conhecimento. Podemos recorrer, então, a análise de Bourdieu sobre o campo científi co e as relações que aconte-cem no seu interior. Segundo a perspectiva teórica do autor, o campo se defi ne como um microcosmo ou espaços de relações objetivas que possuem uma lógica própria. Os campos não são estruturas fi xas, mas produtos da história das suas

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posições constitutivas e das disposições que elas privilegiam. São tanto “campo de forças” quanto “campo de lutas” aonde diferentes formas de capital são postas em jogo (THIRY-CHERQUES e HERMANO, 2006).

Junto com os conceitos de campo e de capital, a noção de habitus é o tercei-ro pilar da teoria de Bourdieu, fundamentando a lógica das relações que aconte-cem no campo. O habitus expressa a forma que o social é internalizado pelos agentes indicando uma forma de conduta específi ca, condicionando todo o co-nhecimento. Para compreender o habitus sociológico, Bourdieu propõe três ar-tifícios: a interpretação dos pontos de vista a partir da origem e da posição do pesquisador; o recurso à interpretação das relações objetivas e a coletivização do processo de pesquisa.

Por meios das contribuições de Bourdier, Chamboredon e Passeron (2005), apresentamos aqui o primeiro passo para uma investigação sociológica: a ruptura epistemológica. Sobre esse passo, os autores ressaltam a importância de questio-namento sobre o próprio objeto e a conquista do fato contra a ilusão do saber imediato. A defi nição do objeto deve ser colocada como elemento de refl exão e não apenas de aceitação pelo pesquisador. Caminhando em direção ao tema do artigo, as refl exões dos autores dialogam com as de Popper e de Foucault ao propor uma refl exão sobre as condições sociais para a produção do saber. Assim, Bourdier, Chamboredon e Passeron desenvolvem uma refl exão sobre como a defi nição do objeto de pesquisa está associada a interesses materiais e simbólicos expressados nas diferente perspectivas teóricas.

A relação entre conhecimento e interesse também marca as relações entre as diferentes origens dos discursos. A hierarquia estabelecida entre os países, de-marcando a confi guração das relações de poder em escala global, faz emergir questionamentos sobre o poder de quem fala e de onde está falando. As perspec-tivas pós-colonialista e decolianialistas que serão apresentadas no item que se-gue servirão como contraponto às perspectivas hegemônicas apresentadas até aqui, colaborando para as refl exões sobre as realidades que não ocupam posição privilegiada na hierarquia de poder.

6. SOBRE UMA OUTRA PERSPECTIVA: O DECOLONIALISMO E AS POSSIBILIDADES DE UM GIRO EPISTÊMICO

A importância do local de onde se fala e da posição historicamente ocupada pelos sujeitos e grupos sociais são elementos ressaltados por autores contempo-râneos que integram a perspectiva pós-colonialista e decolonialista. O debate sobre a diversidade sócio-cultural e a importância dos saberes locais e da inter-disciplinaridade na análise das questões sociais se fortalece, indicando que o

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pensamento hegemônico dos países do norte não é único, mas convive com ou-tras perspectivas teóricas e metodológicas. Neste tópico trataremos, em linhas gerais, das principais perspectivas do pós-colonialismo, do decolonialismo e do giro decolonial. Este panorama geral é de grande importância para compreender-mos melhor como outras perspectivas epistemológicas são fundamentais para a construção dos objetos de pesquisa e para o desenvolvimento de novas perspec-tivas teóricas.

Para os pós-colonialistas, os principais pensamentos de referência são a teo-ria da dependência, a análise do sistema mundo e o pós-estruturalismo. O Pós--Colonial é um movimento intelectual iniciado por autores da diáspora negra ou migratória. Esta corrente apresenta uma forte infl uência do pós-estruturalismo ao que diz respeito ao reconhecimento do caráter discursivo do social, tendo como grandes referências autores como Derrida e Foucault. As teorias da pós-moder-nidade, o descentramento das narrativas e os estudos culturais, com especial atenção às questões de raça, gênero, etnia e identidades culturais, são elementos fundamentais da referida perspectiva (COSTA, 2006).

Segundo Costa (2006), “pós” não se limita a indicar um depois, mas sim uma reconfi guração do campo discursivo em que as relações hierárquicas adquirem signifi cado. “Colonial” vai além do colonialismo, abarcando as diversas situa-ções de opressão defi nidas na base do gênero, da etnia ou das fronteiras raciais. Portanto, segundo o autor, pós-colonial não signifi ca depois do colonialismo, mas sim, começa quando os colonizadores chegam e não acaba com a mudança da administração colonial nos continentes americano, africano e asiático.

O Decolonialismo, por sua vez, conforme defi nição de Mignolo (2007), sur-ge do Pós-Colonialismo e do Giro Decolonial como um complemento a catego-ria descolonização. Se fundamenta na heterarquia das múltiplas relações sociais, étnicas, sexuais, epistêmicas, econômicas e de gênero que a primeira descoloni-zação deixou intacta. Se constitui, portanto, como um processo de resignifi cação a largo prazo que não se pode reduzir a um acontecimento jurídico-político, di-ferenciando-se da teoria crítica moderna/pós-moderna.

A colonialidade como constitutiva da modernidade fundamenta a lógica que gera seres humanos humilhados, esquecidos e marginalizados, alimentando a po-laridade entre o Ocidente (civilizado, avançado, desenvolvido e bom) e o resto (selvagem, atrasado, subdesenvolvido e ruim). Para compreender a perspectiva decolonial, é importante ressaltar a crítica dessa corrente a pretensão de que a cosmovisão de uma etnia particular seja imposta como a racionalidade universal, a redução da história moderna a uma ocidentalização gradual e heroica do mun-do, ao mito da descolonização e a tese de que a pós-modernidade conduz a um

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mundo desvinculado da colonialidade, a ideia de desenvolvimento que deve ser seguido por todos, as formas eurocêntricas de conhecimento e a ideia de globali-zação como ocidentalização do mundo (MALDONADO-TORRES, 2007).

A crítica decolonial, tal como afi rma Spivak (1988) aponta para a violência epistemológica que é refl etida na constituição da subjetividade colonial como “outra”, revelando uma assimetria entre lógicas distintas que atinge diversos campos, tal como o do direito, o que gera impactos signifi cativos nas hierarquias que são constituídas e afi rmadas.

Para fundamentar o Decolonialismo, autores como Castro-Gomes e Ramon Grosfoquel (2007) apontam para o Giro Decolonial como possibilidade de aber-tura e da liberdade do pensamento, permitindo o desprendimento da retórica da modernidade e da sua imaginação imperial e intercambio de experiências e sig-nifi cados como base de uma outra racionalidade. Segundo Maldonado-Torres (2007), o giro decolonial implica em uma mudança de atitude no sujeito prático e de conhecimento e, portanto, na transformação da ideia de de-colonização. Sugere uma mudança de perspectiva e de atitude que se encontra nas práticas e nas formas de conhecimento de sujeitos colonizados e em um projeto de trans-formação global das pressuposições e implicações da modernidade assumido por uma série de sujeitos em diálogo.

Este projeto de transformação se apoia na confrontação direta com as hierar-quias produzidas por meio das categorias. O olhar segue em direção às possibi-lidades de discurso do “outro”, considerando as múltiplas expressões da colonia-lidade do ser, do saber e do fazer. Neste sentido, a construção dos objetos de pesquisa deve ser refl etida dentro dos contextos social, cultural, político e econô-mico de dada realidade, guiado pela possibilidade de uma ruptura com o saber imediato e com as construções pré-concebidas. O problema de pesquisa e a defi -nição do objeto deve estar atento a necessidade de afi rmação da crítica e da possibilidade de outros olhares que ajudem ampliar o conhecimento do social e, consequentemente, fortalecer a sociologia.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da apresentação geral de autores clássicos e contemporâneos sobre as diferentes perspectivas epistemológicas adotadas, podemos desenvolver algu-mas refl exões sobe as condições, possibilidades e limitações que permeiam a fase de construção dos objetos de pesquisa e, a partir daí, a forma que a pesquisa será conduzida.

A defi nição do objeto de pesquisa nos remete a uma contínua problematização tanto na forma como o cientista social produz as suas defi nições, como também na

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conotação política que tais conceitos adquirem e são tratados. O objeto defi nido se situa em uma posição no campo das relações de poder que se estabelecem e se manifestam nos campos político, econômico e cultural. O percurso na construção do objeto, portanto, não pode ser pré-determinado e os caminhos que podem indi-car são imprevisíveis. Tendo em vista que estamos em um mundo fl uido em rápi-das transformações, defi nir o objeto representa uma complexa teia de relações que devem ser refl etidas de forma crítica e multidimensional.

O compromisso com uma pesquisa de qualidade e conectada com o contex-to específi co de análise deve se iniciar com uma forte refl exão sobre a forma que lançamos a nossa pergunta de partida e, especialmente, na construção conceitu-al do objeto a ser investigado. Os conceitos, longe de serem defi nições estáveis e pré-concebidas, estão em contínua problematização, infl uenciados diretamen-te pelas relações de poder que se estabelecem ao seu entorno. Cabe ao pesqui-sador estar sensível a esse contexto, desenvolvendo estratégias que possibilitem uma maior refl exão crítica na utilização dos conceitos que irão fundamentar os seus argumentos.

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CAPÍTULO 12OBSERVAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

E O CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Fábio Baldaia

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. Sobre o conceito de campo científi co e as ciências sociais — 3. A redefi ni-ção das regras do jogo: a crítica pós-colonial — 4. Considerações Finais — 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

A história das ciências sociais comporta um alto grau de discordância teóri-co-metodológica, num espectro que varia da leve dissonância ao fi rme antago-nismo político. Esta é uma característica notável desde os primeiros momentos de confi guração da área, apontando uma especifi cidade que nunca permitiu que um único paradigma vigorasse. Considera-se então que as ciências sociais fun-cionam como um campo científi co (BOURDIEU, 1983), que se plasmou pelo sistema de relações competitivas entre os agentes. No que se refere especifi ca-mente à Sociologia, a trajetória da disciplina confunde-se com a sucessão das posições e tomadas de posição assumidas com o objetivo de construir uma hege-monia fundada em práticas que se pretendem legítimas e competentes ao produ-zir, difundir e utilizar o conhecimento acerca do social.

É a partir desse prisma que se concebe o forte infl uxo das teorias pós-colo-niais sobre as ciências sociais. O conjunto dessas perspectivas buscou descentrar as narrativas amparadas num olhar eurocêntrico sobre o mundo, atingindo com força um campo instituído, desestabilizando posições e conferindo novos contor-nos aos objetos em disputa, o que abriu outras possibilidades no jogo. O acento ao caráter competitivo, em contrapartida, não visa desmerecer a contribuição pós-colonial, mas tão somente demonstrar que o engajamento dos pesquisadores justifi ca-se para além de uma distinção entre caracteres somente objetivos ou político-subjetivos. Explica-se pela própria lógica que perpassa a forma de pro-duzir conhecimento sobre o social, bem como pela incorporação precedente de valores por parte dos autores que atuam a partir de regras inculcadas.

Adverte-se, entretanto, que esse breve capítulo não visa tratar da sociologia da ciência — é bem menos ambicioso que esta empreitada —, mas sim temati-zar os diálogos dos estudos pós-coloniais com o campo das ciências sociais.

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Esta abordagem será guiada por dois objetivos. Primeiro, analisar a inserção dos estudos pós-coloniais no campo das ciências sociais destacando a singula-ridade do seu olhar sobre o mundo social. Segundo, avaliar as contribuições teórico-metodológicas das teorias pós-coloniais quanto à problematização da natureza da produção do conhecimento científi co, suas estratégias de constru-ção e seus propósitos, o que inclui a relação entre sujeitos e objetos.

Feitas as observações introdutórias, as linhas a seguir buscam responder duas questões: de que modo é possível afi rmar que os estudos pós-coloniais de-senvolveram uma estratégia de inserção no campo das ciências sociais? Conse-quentemente, como estas estratégias viabilizaram a inserção de novas concep-ções sobre o social?

2. SOBRE O CONCEITO DE CAMPO CIENTÍFICO E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Um conceito central para as refl exões de que tratam este capítulo é o de cam-po científi co de Pierre Bourdieu (1983). Trata-se da especialização do conceito mais amplo de campo que dispõe acerca da relativa autonomia de certos domí-nios sociais, além de denotar a articulação entre elementos sociais e simbólicos. É uma ferramenta analítica para designar espaços parcialmente autônomos de forças objetivas e lutas padronizadas sobre formas específi cas de autoridade, do-tando de dinamismo histórico a noção de estrutura. O campo é um espaço estru-turado de posições, que podem ser analisados independentemente das caracterís-ticas dos seus ocupantes, no qual a posição dos agentes se encontra fi xada, e no qual se trava uma luta concorrencial em torno de interesses que caracterizam o campo. A sua dinâmica é dada pelos grupos sociais na tentativa de modifi car a sua estrutura e alterar o princípio hierárquico das suas posições internas. As clas-ses ou frações sociais dominantes são aquelas que impõem a sua espécie de ca-pital — econômico, social, cultural, simbólico... — como princípio de hierarqui-zação do campo. É uma luta política, em que se disputa o poder e a defi nição de quais os critérios de distribuição de poder. Os campos surgem progressivamente, mas não linearmente, e a admissão no campo requer a posse de diferentes formas de capital, na quantidade e qualidade do que conta na disputa interna, e as dispo-sições, inclinações e aprendizados que conformam a conformação de aspectos do habitus concernente ao campo. Afi nal, este domínio social é um microcosmo, com objetos e interesse específi cos, que institucionaliza pontos de vista nas coi-sas e nas disposições duráveis internalizadas nos agentes. (BOURDIEU, 1998)

Bourdieu destaca ainda que a participação no campo implica sempre em al-gum interesse, inclusive o campo produz e supõe uma forma específi ca de inte-resse, ou seja, aquele interesse que pareça desinteressado. Nesses termos, não há

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como isolar o que é politico do que é técnico, pois os confl itos epistemológicos são sempre, inseparavelmente, confl itos políticos. O campo científi co comporta um regime de racionalidade que proporciona um espaço legítimo de discussão, das questões geradas e mobilizadas, de consenso sobre o dissenso. Isto torna to-dos os agentes envolvidos em participantes enredados por inteiro nas crenças que sustentam os interesses em disputa e que atualizam-se na ação cotidiana, no caso em tela neste capítulo, nas rotinas científi cas. Nas palavras do próprio autor (BOURDIEU, 1983, p. 122):

O campo científi co, enquanto sistema de posições adquiridas (em lutas anteriores) é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorren-cial. O que está em jogo especifi camente nessa luta é o monopólio da autoridade científi ca defi nida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científi ca, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com au-toridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado.

A princípio, esta abordagem pode remeter ao trabalho de Thomas Kuhn (2011), contudo, ela está além de uma análise da descontinuidade no processo de desenvolvimento do saber cientifi co. Mesmo a noção de paradigma e ciência normal, presentes no esquema kuhniano, são insufi cientes para captar o funda-mento subjacente às práticas dos cientistas. Segundo Bourdieu, a análise de Kuhn é idealista, pois atribui à ciência uma lógica imanente de desenvolvimento, que irrompe em dados momentos de crise. Mesmo concordando com o reconhe-cimento do caráter confl itivo e não linear da ciência, existiriam para Bourdieu problemas no quadro de análise de Kuhn relacionados à confusão entre descrição e prescrição da lógica da mudança, o que rebate num tom normativo. Bourdieu frisa, nesse sentido, que as regras do jogo e o campo científi co em si são arbitrá-rios, portanto criados e regulados a partir de condições sociais, sempre determi-nadas pelas correlações de poder. Os padrões de acumulação de prestígio, de atribuição de legitimidade e autoridade são presididos por critérios aparentemen-te científi cos, porquanto aparentemente descolados de outros aspectos extra--científi cos. Porém, a despeito da sua efetividade — sua efi cácia objetiva, positi-va e simbólica — seu poder reside num substrato social. A análise de Thomas Kuhn, portanto, não contempla a consideração do espaço social confl itivo e dis-simulado que caracteriza o campo científi co.

Ao aplicar a análise às ciências sociais10, percebe-se que este campo particular formou-se sob o infl uxo de três fortes tradições oriundas dos autores considerados

10 Caracteriza-se que a Sociologia detém proeminência, porém não exclusividade, no campo das ciências sociais, pois este inclui ainda dimensões mobilizadas por diversas disciplinas como Antropologia, Ciência Política, História, Teoria da Literatura, Filosofi a, dentre outras.

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clássicos. Esse processo se deu com especial visibilidade no pós-guerra com a ascensão das ciências sociais norte-americanas tornadas hegemônicas sob a lide-rança de Talcott Parsons, orientado na perspectiva de uma síntese estrutural-fun-cionalista. Associaram-se como novas linhas importantes as abordagens com ên-fase no ator social e nos aspectos microsociológicos, como o interacionismo simbólico e a etnometodologia. Na Europa, desdobramentos do marxismo, como a Escola de Frankfurt, e do positivismo durkheimino, notadamente o estruturalis-mo, ganharam espaço. Fora dos centros de poder acadêmico — EUA, França, Reino Unido e Alemanha — muita produção nas ciências sociais foi desenvolvi-da, porém não foi considerada parte do grande jogo das questões centrais da dis-ciplina. Constituiu-se, assim, um acordo tácito que conformou os contornos de um campo científi co particular, estabelecendo-se padrões mínimos de diálogo e produção do campo das ciências sociais.

Jeffrey Alexander (1987), analisando as características das ciências sociais, nota que as condições defi nidoras da crise do paradigma11 nas ciências da natu-reza são a rotina nas sociais. Adaptando aos termos bourdieusianos, apesar de não haver uma confl uência direta entre ambos os autores, poder-se-ia dizer que o campo das ciências sociais apresenta-se como mais competitivo, oferecendo di-fi culdade à sedimentação da dominação e da defi nição última de uma autoridade científi ca considerada legítima. Assim, a discussão geral se torna parte integrante do debate nas ciências sociais, tanto como a própria atividade explicativa, pois o dissenso amplo é inerente à ciência social, havendo uma relação simbiótica entre descrição e avaliação. Alexander conclui que é por causa do desacordo empírico e teórico que a ciência social se divide em tradições e escolas, a partir das quais o desacordo científi co é manifesto e as bases sobre as quais tais desacordos são promovidos e reproduzidos.

Seguindo as abordagens de Bourdieu e Alexander, Marx, Durkheim e Weber demarcaram os temas, os problemas, e mais do que isso: os limites possíveis de dissenso, o espaço de tornar possível o conhecimento sobre o social, fora do qual uma proposição seria considerada inválida. A história das ciências sociais mos-trou-se uma trajetória pendular da sucessão de disputas pela defi nição dos crité-rios de verdade. O pêndulo das ciências sociais movimentou-se pela força — po-lítica e explicativa — que cada abordagem aportava. Entretanto, esse pêndulo que se moveu em torno de problemas como ordem e confl ito, agência e estrutura, desdobrava-se sobre um acordo implícito entre correntes teórico-metodológicas. Esse acordo fundamenta-se no caráter eurocêntrico do conhecimento que parte

11 Para Thomas Kuhn um paradigma é um conjunto de modelos, representações e interpretações do mundo tomadas apriori por determinada ciência, pressupostos que fornecem um campo de possíveis problemas.

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de um conjunto de pressupostos que tomam a experiência histórica europeia como exemplar em todos os planos. Os três demiurgos das ciências sociais não problematizaram o lugar cultural dos produtores dos discursos das ciências so-ciais, assim como dos seus receptores. Para além de Durkheim, traído pela sua própria crença na positividade da ciência, em Marx, apesar da radicalidade da concepção dialética e de sua percepção da vinculação do conhecimento com um projeto politico, permanece certa visão objetivamente, que prevê que seja possí-vel a descoberta de uma “essência”, de um desvelamento do “real”. Por outro lado, mesmo com sofi sticação metodológica, Weber pouco se atenta ao onde se produz ciência, às vicissitudes dos espaços sociais em si, fazendo do desenvolvi-mento da ciência uma questão de consenso e discussão racional.

Enfatiza-se que o uso do modelo de Bourdieu proporciona o entendimento de que o campo das ciências sociais é um espaço social de produção e reprodu-ção de ideias academicamente legitimadas que oferecem explicações para o comportamento social em sua estruturação, funcionamento e dinâmica; uma so-ciologia crítica da própria ciência social. Isto permite questionar: qual a relação entre a posição social do sujeito em termos de classe, gênero, etnia e nacionali-dade e o conhecimento produzido? Estaria a ciência social, mesmo a de aborda-gem crítica, presa invariavelmente às condições sociais da sua produção?

3. A REDEFINIÇÃO DAS REGRAS DO JOGO: A CRÍTICA PÓS-COLONIAL

De um desdobramento dos Estudos Culturais e da iniciativa de alguns autores de países da periferia do capitalismo surgiram os estudos pós-coloniais, que in-troduziram novas práticas refl exivas que problematizaram as bases epistemológi-cas das ciências humanas. Inicialmente surgidos na crítica literária, os estudos pós-coloniais alargaram-se para as ciências sociais rapidamente, infl uenciando fortemente suas produções a partir da década de 1990. Deve-se advertir, contudo, que os estudos pós-coloniais não se constituem como uma matriz teórica única, podendo ser identifi cados especialmente pelo esforço em desconstruir a substan-cialização de discursos e representações acerca do outro, quase sempre identifi -cado como aquele que não é o homem branco dos países centrais do sistema--mundo capitalista. Os autores que buscam se alinhar à perspectiva pós-colonial buscam, deste modo, explorar as fronteiras epistemológicas e culturais, produ-zindo um conhecimento que se pretende a partir das margens. (COSTA, 2006)

Alguns fatores foram importantes no surgimento desta linha teórica. A prin-cípio, os movimentos sociais fortalecidos na segunda metade do século XX, que politizaram dimensões ligadas à identidade e aos direitos civis das minorias, o que forneceu elementos para legitimidade de experiências que contestavam o

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pensamento hegemônico em todas as esferas da vida. Segundo, o processo de descolonização da África e da Ásia, que transcorreu a partir da década de 1940, aprofundando-se nas décadas seguintes, e que pôs em cheque a efetiva autorida-de dos países colonialistas europeus. Daí forjou-se a necessidade de fundar for-mas de pensamento autônomas e que veiculassem modalidades de produção in-telectual que tomem os subalternos como sujeitos. Terceiro, a migração de autores que concluíram ou realizaram seus estudos em países como EUA, Reino Unido e França, e passaram a enunciar seus discursos a partir de locais que agre-gavam legitimidade e autoridade acadêmicas aos novos discursos. Por fi m, desde a década de 1960 o estruturalismo enquanto infl uente corrente teórica nas ciên-cias humanas desgasta-se, o que abre espaço para a atuação de autores que vei-culam análises pós-estruturalistas, pós-modernas e de caráter construtivista, le-vando em consideração os agenciamentos, contingências e a historicidade. Diversos foram os nomes que infl uenciaram os estudos pós-coloniais, dos quais se destacam Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, François Lyotard, assim como o legado de Gramsci que inspirou autores neomar-xistas como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.

A abordagem pós-colonial constrói-se sobre a evidência de que toda enuncia-ção vem de algum lugar social, sendo por isso necessariamente entrelaçada aos sentidos do contexto. Esta crítica se expande a todas as formas de produção de saber (científi co, literário, artístico, musicológico, médico, esportivo...), explo-rando o fato das muitas verdades terem sido produzidas numa situação de domi-nação, especialmente colonial. O prefi xo pós do termo não indica somente um depois no sentido cronológico linear, denotando o fi m das relações de dominação colonial, mas sim alude a situações de dominação diversas: de classe, raça, étni-ca, gênero e outras. Desta maneira, os estudos pós-coloniais apresentam-se como uma alternativa teórica para compreender a diferença e a desigualdade sociocul-tural na e a partir da complexa sociedade contemporânea. (COSTA, 2006)

Edward Said foi um dos primeiros a destacar-se com o impactante livro Orientalismo (1990), que problematizou a criação da distinção entre Ocidente e Oriente. Seu objetivo foi demonstrar como a ideia de oriente no mundo ocidental constituiu-se como um conjunto de discursos que serviram para fundamentar a própria distinção. Em outras palavras, demonstrou como o oriente foi uma in-venção ocidental acerca de um tipo de alteridade que serviu como anteparo à sua própria afi rmação. Deste modo, o oriente oscilaria entre a lascívia e a perversi-dade, o excesso e o subdesenvolvimento, como pares de tudo o que seria contra-producente segundo a história a que os eruditos ocidentais contaram para si mes-mos. Said desnudou uma maneira reiterada de produzir conhecimento sobre um outro que pode ser aplicado a outros contatos interétnicos e internacionais em que o eurocentrismo aparece como organizador do mundo.

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No caminho aberto com Said, pode ser citado um trabalho igualmente in-fl uente, o ensaio Pode o Subalterno Falar?, de Gayatri Spivak (2010), que dis-cute a possibilidade e legitimidade da produção de discurso autônomo por parte dos subalternos. A autora indiana discutiu as representações do sujeito da perife-ria na conjuntura do discurso, que inclui o discurso científi co, ocidental e ociden-talizado. Seu objetivo maior, entretanto, é político, qual seja: chamar a atenção para a violência epistêmica do colonialismo e do imperialismo e desta maneira combater a reprodução da subalternidade, num mecanismo de critica que possi-bilite ao sujeito em situação de marginalidade falar e articular-se.

Com Paul Gilroy (2011), a discussão avança na perspectiva da compreensão da formação do que o autor chama de Atlântico Negro, uma formação geopolíti-ca e geocultural a partir da diáspora das populações subsaarianas que é impres-cindível à modernidade. As relações estabelecidas em decorrência da diáspora favoreceram a formação de um circuito comunicativo que extrapolou as frontei-ras étnicas do Estado-nação, permitindo às populações dispersas conversarem, interagirem e efetuarem trocas culturais. Nos seus termos, o negro integraria o ocidente sem fazer parte totalmente dele, sendo gestado pelo próprio contato desigual, cunhando daí o conceito de dupla consciência. Há em Gilroy uma pre-ocupação com o processo de transculturação que formou uma negritude plástica dividida entre as afi rmações de particularidade racial e o apelo aos universais modernos que transcendem a “raça”. A sua análise ensina que a reprodução das tradições culturais não pode ser interpretada como a transmissão pura e simples de uma “essência” fi xa ao longo do tempo, dando-se, ao contrário, nas rupturas.

Num plano análogo à abordagem de Gilroy, Stuart Hall (2009) discute de forma aprofundada as hibridizações culturais, problematizando o fato de toda produção cultural ser fruto de um processo de trocas, o que torna apenas um desejo o ideal de pureza nacional, étnica ou identitária em geral. Hall entende os processos de construção identitária como produto de uma dinâmica de negocia-ção, o que denuncia o seu caráter contingente, sujeito a adaptações situacionais passíveis em diferentes contextos, pois uma identidade é moldada por narrativas de várias matrizes que as unifi cam.

Ainda num mesmo diapasão, Homi Bhabha (1998), outro intelectual com origem nas ex-colônias britânicas e que constituiu carreira acadêmica no Reino Unido, aponta os contornos performáticos das nacionalidades e de outros dispo-sitivos discursivos que unifi cam o social. Destaca-os como construções cuja va-lidade depende da sua reiteração com efeitos persuasivos, o que indica continu-amente a fl uidez e a historicidade das identidades como artefato político. Junto a Stuart Hall, contribuí decisivamente para trazer e demarcar sob novo prisma a questão da alteridade, mostrando o quanto o outro sempre é inventado por mano-bras identitárias e discursivas.

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De modo geral, os estudos pós-coloniais direcionam contundentes críticas que atingem em cheio as teorias sociológicas, especialmente as que se afi nam com as teorias da modernização e do desenvolvimento, bem como ao eurocen-trismo das formas de ser e pensar e ao próprio projeto de emancipação unívoco das esquerdas. Erodem parte do terreno teórico do campo das ciências sociais sedimentado desde os primórdios no trabalho dos autores que foram emblemati-zados como os fundadores da Sociologia entre os séculos XIX e XX. Os estudos pós-coloniais colocam em nova chave a singularidade das ciências sociais, bem como a relação entre sujeito e objeto a partir de uma perspectiva que extrapola a enquadramento convencional, o que demarca uma posição, um lugar específi co a partir do qual se realiza o próprio papel de pesquisador/intelectual.

Na América Latina, com uma proposta de pensar a singularidade do “sub-continente”, os estudos pós-coloniais atualizaram-se no chamado Giro Decolo-nial. A abordagem vem expandindo-se nos países hispânicos e nos EUA por força do trabalho de autores como Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Ramón Grosfoguel e Nelson Maldonado-Torres.

Uma distinção fundamental retomada no Giro Decolonial foi a diferenciação entre colonialismo e colonialidade. O primeiro referir-se-ia à ocupação militar e anexação jurídica de um território e seus habitantes por uma força imperial es-trangeira, o segundo a uma lógica cultural que se iniciou com o colonialismo e persiste ao fi m deste. Esta reafi rmação possibilitou a emergência de uma opção decolonial, ou seja, um pensamento que assume uma objetividade entre parênte-ses, um espaço pluri-versal que impõe uma fratura epistemológica a partir da qual se gestarão projetos epistêmicos, políticos e éticos no século XXI. Almeja--se produzir novas verdades não mais se assentando em padrões de dominação, numa critica a privilégios que difi cultam a refl exão a partir dos lugares sociais subalternizados, podendo-se começar a pensar sem esperar a orientação de guias que reproduzem a colonialidade. Disto desdobra-se a ideia de uma desobediên-cia epistêmica que não propõe um novo universal, mas uma pluri-versaliade comprometida. Sua principal força orientadora é a trabalho intelectual continua-do sobre a realidade cultural e politica latino-americana, incluindo o conheci-mento subalternizado dos grupos explorados e oprimidos. (BELESTRIN, 2013)

Aprofundando a refl exão, os autores do Giro Decolonial demonstram que a colonialidade desdobra-se numa tripla dimensão: do poder, do saber e do ser. Confi gura-se como um lado necessário da modernidade capitalista, sua parte in-dissociavelmente constitutiva.

A colonialidade do poder, conceito desenvolvido por Aníbal Quijano (CAS-TRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007), exprime um processo fundamental de

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estruturação do sistema-mundo moderno/colonial, que articula os lugares perifé-ricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas globais.

A colonialidade do saber é a dimensão epistemológica da colonialidade, a geopolítica do conhecimento paralela à geopolítica da economia, o racismo epis-têmico e negação da alteridade epistêmica. Esta versão da colonialidade tem como raiz as concepções de iluministas, fundadas numa fi losofi a e ciência pau-tadas no universalismo em que é indiferente a sexualidade, gênero, etnia, raça ou língua do sujeito epistêmico, estando hipoteticamente e idealmente num plano apartado de relações de poder concretas e localizadas. Nas ciências sociais, assu-me-se esse modelo de sujeito produtor de conhecimento surdo e sem rosto a partir do XIX com a perspectiva da neutralidade axiológica e objetividade empí-rica do conhecimento cientifi co.

Por fi m, da articulação entre colonialidade do poder e do saber, funda-se uma colonalidade do ser, que segundo Maldonado-Torres (2007) refere-se à confor-mação de um corpo e uma subjetividade, dos efeitos da colonialidade na experi-ência vivida. O objetivo da crítica do Giro Decolonial neste caso é em menos a substituição de um paradigma, e mais o surgimento de outras abordagens, num descobrimento e revalorização das teorias e epistemologias do “sul”.

De que maneira então os autores dos estudos pós-coloniais jogam o jogo do campo das ciências sociais? Os autores que se intitulam como pertencentes aos estudos pós-coloniais podem ser entendidos como agentes em luta permanente para infundir categorias de visão e divisão que justifi cariam novas regras internas ao jogo. Pode-se transplantar para o campo científi co o que Roger Chartier (1990) chamou de luta de representações, ou seja, a disputa simbólica que visa à produ-ção de sentidos tornados comuns. Os autores de viés pós-colonial introduzem um posicionamento que coloca novas perspectivas acerca do processo de produção de conhecimento, salientando que a ciência reproduz as relações de poder deriva-das da lógica da colonização. Desta maneira, pretendem que os segmentos subal-ternizados constituam-se como capazes de falar por si mesmo e a partir de deter-minado lugar social. Esses novos agentes no campo desestabilizam os critérios de verdade e construção da veracidade numa radical ruptura com a ideia de que a ciência busca a verdade, ou pelo menos uma verdade absolutizada. Além disso, destacam as disputas pela defi nição dos critérios que presidem a defi nição da le-gitimidade teórico-metodológica, pois o estabelecimento do que está em jogo numa ciência faz parte da defi nição do que é a própria ciência. Alterar a estrutura de distribuição e a própria composição de capital especifi co que confere status

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aos agentes é uma das metas dos pós-coloniais, pondo em ação estratégias de subversão do campo, alargando suas fronteira para incluir novos espaços de enun-ciação, o que conferirá autoridade a novos agentes. Reavaliam o papel do pesqui-sador e do próprio processo de produção do conhecimento, em aspectos condi-zentes com a análise de Bourdieu (1983, p.137) acerca do campo científi co:

Na luta em que cada um dos agentes deve engajar-se para impor o valor de seus produtos e de sua própria autoridade de produtor le-gítimo, está sempre em jogo o poder de impor uma defi nição da ciência (isto é, a de limitação do campo dos problemas, dos méto-dos e das teorias que podem ser considerados científi cos) que mais esteja de acordo com seus interesses específi cos.

As teorias pós-coloniais adentraram no campo das ciências sociais com um menor acento empírico — talvez ainda por realizar —, e mais por seu viés dis-cursivo e argumentativo que objetiva a desconstrução das representações que sustentavam um tipo de lógica, de princípios geradores de teorias, do campo das ciências sociais. Esse é um movimento que radicalizou a noção de sujeito produ-tor de conhecimento e o seu lugar de fala, subvertendo os critérios de inclusão e exclusão do campo por meio da interdisciplinaridade e de artifícios compreensi-vos ligados à ênfase na discursividade do social. Por isso, assevera-se que o que está em jogo na luta interna pela autoridade científi ca no campo das ciências sociais — o poder de produzir, impor e inculcar a representação legítima do mundo social — é o que está em jogo entre grupos sociais no campo da política. Segue-se daí que as posições na luta interna não podem jamais atingir o grau de independência com relação às posições nas lutas externas.

Depois do abalo dos estudos pós-coloniais, estaria o campo das ciências so-ciais em crise? Houve uma tentativa de implosão do campo das ciências sociais?

Os estudos pós-coloniais, de maneira geral, trazem a possibilidade de acumu-lar conhecimento sobre o mundo a partir de pontos de vista diferentes e em com-petição, desta vez, considerando-se o que vem das margens, das periferias, dos subalternizados. Abalou-se um conjunto de pressupostos que demonstram que a ciência jamais teve outro fundamento senão o da crença coletiva em seus funda-mentos, que o próprio funcionamento do campo científi co produz e supõe. Ratifi -ca-se então nesse capítulo que os estudos pós-coloniais utilizaram-se estratégias para adentar no campo das ciências sociais, porém sem subverter a existência des-se campo específi co e das suas instâncias de legitimação. Isto pode ser comprova-do ao longo do processo de institucionalização dos estudos pós-coloniais. Primei-ro, os autores mais infl uentes ligaram-se ou já eram ligados a universidades e institutos de pesquisa considerados de excelência. Segundo, expedientes como seminários, grupos de pesquisa, revistas e outros foram usados para divulgar as

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ideias, torna-las usuais no campo. Terceiro, o corpo de ideias vem estabilizando-se como mais um paradigma, podendo contribuir para o movimento pendular desta-cado por Jeffrey Alexander.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O capítulo buscou destacar que a abordagem dos estudos pós-coloniais não perdeu de vista a necessidade de um conjunto de estratégias políticas, o que transformou a maneira de se fazer ciências sociais pelo menos nos últimos 20 anos. Ao considerar a crítica às teorias da modernização e aos paradigmas de corte eurocêntrico, destaca-se que estas não necessariamente levam ao relativis-mo niilista ou desnorteado, ao contrário, demonstram a força da inclusão de no-vas perspectivas e sujeitos à ciência da sociedade. Houve por parte dos estudos pós-coloniais um tensionamento dos temas e problemas levando-se em conside-ração as margens, os esquecidos, o ser periférico. Põe-se ai a relação entre as propostas epistemológicas e as posições políticas que podem ser entendidas a partir de uma perspectiva nacional-étnica e contribuíram para tornar pensado e pensável um conjunto de pressupostos antes irrefl etidos. Os estudos pós-colo-niais problematizam uma série de elementos antes não discutidos pelas ciências sociais, trazendo à tona uma nova maneira de conceber o conhecimento sobre o social. Desta maneira, trazem à discussão o estatuto da verdade e os próprios artifícios para sua elaboração, enunciação e legitimação, numa demonstração do seu vínculo com dimensões externas ao ofício do pesquisador, notabilizando-se como um movimento de resistência teórico, prático, político e epistemológico que expõe a lógica da modernidade/colonialidade. Foram, enfi m, fundamentais em sua contribuição no que tange à desconstrução dos essencialismos das cate-gorias sociais, e acima de tudo da nova problematização do lugar daquele que pesquisa e produz o conhecimento, bem como aquele é objeto de estudo ou mes-mo é silenciado devido a sua condição dominada.

Especifi camente a infl exão latino americana do Giro Decolonial não pode ser confundida com a rejeição da criação humana realizada pelo “norte” global e associado com aquilo que seria “genuinamente” criado no Sul. Ele pode ser lido como contraponto e resposta à tendência histórica da divisão de trabalho intelectual, na qual no máximo o “Sul” fornece experiências. Suas principais contribuições passam pela constituição de uma narrativa original que insere a América Latina como fundante do colonialismo, e, portanto, da modernidade. O reconhecimento da diferença colonial como matriz da fundamentação de outras diferenças confi guradas em desigualdades. A verifi cação da estrutura opressora do tripé colonialidade do poder, do saber e do ser como forma de denunciar e atualizar a continuidade da colonização e do imperialismo, mesmo fi ndados os

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marcos históricos da colonização. E, por fi m, o oferecimento de novos horizon-tes para a emancipação em diálogo com a produção de conhecimento, mostran-do que os saberes surgem a partir de condições de possibilidade históricas, so-ciais, culturais, econômicas e de poder.

O sucesso do programa pós-colonial cristalizou-se com a formação de novos pesquisadores, o estabelecimento de instituições, revistas, eventos, que permiti-ram que esta forma de saber antes subversiva ganhasse meios regulares para in-corporação, ou seja, sua reprodução enquanto esquemas geradores de práticas científi co-acadêmicas. Assim, a penetração da abordagem pós-colonial, inicial-mente um discurso herético no campo das ciências sociais que colocava em ques-tão os princípios do mesmo, confi gurou-se numa posição legitimada e vigorosa.

A principal ideia trazida neste capítulo — a de que os pesquisadores dos es-tudos pós-coloniais disputam um campo — foi reafi rmada na medida em que a própria enunciação destes se dá em espaços acadêmicos específi cos que confe-rem autoridade e legitimidade. Dessa maneira, há uma disputa no espaço social considerado erudito, qualifi cando ou desqualifi cando com as mesmas retóricas e práticas político-institucionais e teórico-metodológicas típicas do campo das ci-ências sociais. Ademais, foi justamente o espaço de enunciação adequado, sendo publicado pelos veículos adequados, que permitiu a visibilidade, ou seja, que o que é dito e escrito torne-se interessante para outros. Isto ocorre, porquanto o apelo a uma autoridade exterior ao campo em geral atrai descrédito, o que impe-liu os novos agentes a trabalhar na perspectiva de dilatar o espaço com a constru-ção de uma autoridade dentro do campo.

Os estudos pós-coloniais contribuem certamente para alargar o próprio con-ceito de teoria social, permitindo a inclusão de novos temas e problemas. Foram responsáveis, junto com as teorias pós-estruturalistas e os estudos culturais, pela guinada interdisciplinar nas ciências humanas. Sua critica teórica ofereceu um norteamento a autores que utilizaram a perspectiva empiricamente e vem produ-zindo nova ciência social com um campo já diferenciado. É possível afi rmar que os estudos pós-coloniais desenvolveram uma estratégia de inserção no campo das ciências sociais a partir da subversão da sua ótica eurocentrada, e, justamente por sua singularidade teórico-metodológica, foi possível que estas estratégias viabilizassem a inserção de novas concepções sobre o social.

Na atualidade, percebeu-se que a crítica as essencializações que buscam des-naturalizar as categorias sociais não inviabiliza a produção de conhecimento, muito pelo contrário, possibilita ter em mente que toda produção de conhecimen-to, incluindo o cientifi co, tem em si embutido um conjunto de categorias de apre-ensão do mundo que reproduzem interesses e poderes. Isto permite a formação de um repertório crítico a partir de um prisma que conote a complexidade social.

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CAPÍTULO 13DESDE OS ESTUDOS CULTURAIS

À DECOLONIALIDADE: UM PERCURSO AINDA NÃO ACABADO?

Florencia Campana Altuna

SUMÁRIO: 1. O grupo de Birmingham e os estudos culturais — 2. Desde os estudos culturais aos estu-dos subalternos — 3. A emergência e os eixos do pensamento decolonial — 4. Referências bibliográfi cas.

Dentro da diversa e importante gama de debates contemporâneos nas ciên-cias sociais e humanas marcada umas vezes pela polêmica modernidade / pos-modernidade, e outras abrindo renovados âmbitos para pensar os humanos em sua condição de seres sociais conjuntamente com sua historicidade, talvez uns dos mais instigantes para América Latina, seja o exposto pelo grupo de intelec-tuais agrupados entorno ao Projeto Modernidade/Colonialidade.

A proposta de pensar a decolonialidade é o ponto de chegada, depois de um longo trajeto, de refl exões que se iniciam em espaços acadêmicos norte-america-nos onde se processa a perspectiva dos estudos culturais, para depois continuar no Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos, lugar de encontro de um conjunto de professores de origem principalmente latino-americana inseridos nas universidades norte-americanas. Finalmente esta refl exão confl ui com pers-pectivas mais abarcantes como a teoria do sistema mundo e com elaborações de pensadores comprometidos com uma ética e uma política de transformação so-cial que tinham muitos anos de trabalho nessa direção desde Latinoamérica.

Durante o longo caminho recorrido por estas refl exões, ativaram-se proble-mas e debates teóricos, e inclusive políticos, que marcaram a orientação das produções acadêmicas, em meio das profundas transformações ocorridas no mundo tanto nos aspetos econômicos como culturais e subjetivos. O propósito deste artigo consiste em acompanhar, ainda que de maneira sucinta, esse percur-so identifi cando algumas temáticas chaves que regiram esses debates como a discussão sobre a relação estrutura/superestrutura, subalternidade e hegemonia, diversidade social e classe, e a compreensão do nacional frente ao estatuto da “americanidad” para dar conta da inserção de América latina na modernidade.

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1. O GRUPO DE BIRMINGHAM E OS ESTUDOS CULTURAIS

Na década dos anos quarenta surge um grupo de jovens historiadores que, formando parte do projeto teórico-político do Partido Comunista Britânico, ini-ciam uma refl exão crítica da relação estrutura/superestrutura — aspecto funda-mental no debate do marxismo tradicional — como pano de fundo para abordar historiografi camente os processos da Inglaterra que explicavam o desenvolvi-mento capitalista.

Anos mais tarde, depois de atravessar momentos cruciais para a história do século XX — a ascensão do nazismo e a II guerra mundial — e de experimentar os processos históricos vinculados ao stalinismo — a invasão a Hungria por exemplo —, estes intelectuais publicam inovadores estudos históricos sob a com-preensão da inseparável unidade das condições econômicas (materiais) e as for-mas políticas, jurídicas, artísticas, fi losófi cas (cultura) dos processos sociais. A insistência do componente material da dimensão simbólica decorrente de esta afi rmação leva estes historiadores sublinhar a materialidade física e até corporal da experiência dos grupos e a importância do cultural na confi guração do ser so-cial, superando assim a dicotomia entre a ordem socioeconômica e a ordem sim-bólica, e rejeitando, portanto, a posição de determinação estrutural da superestru-tura como afi rmava nesse momento a leitura dominante do pensamento de Marx.

Ao acompanhar a extensa investigação de estes intelectuais que focalizam seus trabalhos na Inglaterra no século XVIII, XIX e as primeiras décadas do sé-culo XX, é possível perceber o alvo das análises oferecidas, isto é o desenvolvi-mento dos confl itos e a luta de classes dentro de um período concreto da historia, com ajuda da sociologia, da literatura, da arte e dos métodos etnográfi cos. Assim, a contribuição de este grupo de historiadores foi abrir dentro da tradição histórica marxista um campo teórico materialista da cultura, uma de cujas particularidades foi manter distância com a Escola de Frankfurt — Adorno e Horkheimer — na medida em que outorgava importância fundamental à experiência da gente co-mum, à vida cotidiana entendida como o espaço-tempo para a elaboração da consciência, e à denominada cultura popular na construção de uma praxis dirigi-da à superação das condições de vida no capitalismo; sem esquecer a proximida-de com Gramsci (especialmente em estudos mais tardios) cujas categorias de subalterno e hegemonia ajudavam na compreensão dos processos de transforma-ção histórica por eles abordados, colocando assim maior atenção da tradicional-mente dada pelas abordagens estruturalistas às particularidades e às autonomias dos componentes das “superestruturas”, onde se incluía a arte e a literatura.

Esta perspectiva teórica se manteve no Centre for Contemporary Cultural Studies, fundado na Universidade de Birmingham no ano de 1964 por Richard

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Hoggart, historiador próximo ao enfoque mencionado. É também o momento da incorporação de Stuart Hall ao grupo, quem aprofunda a mirada da cultura nos termos já formulados por Raymond Williams: um total modo de vida, e indaga a problemática das relações comunicativas com especial atenção à recepção. Todo este processo deu como resultado o nascimento dos denominados estudos cultu-rais de matriz britânica.

Anos mais tarde, o desembarco dos estudos culturais no nosso continente americano, e concretamente nas universidades dos EEUU, evidenciou a particu-laridade do momento histórico que se experimentava, particularidade temporal convertida na condição de possibilidade dos desdobramentos experimentados neste campo de produção de pensamento. Estamos falando da reorganização da economia mundial e o comando da fi nancierização, da queda do denominado socialismo real, da emergência de discursos que interrogam à modernidade so-bre a base da afi rmação da sua crise, da disseminação nas ciências sociais e hu-manas das correntes pós-estruturalistas e pós-modernas. Estes processos signifi -caram ao mesmo tempo uma suposta perda de legitimidade do pensamento de Marx e o decorrente deslocamento dos marxismos dos âmbitos de debate acadê-mico e de produção teórica.

A porta de entrada dos estudos culturais na academia norteamericana foram as áreas de língua e literatura que nesse momento manifestavam um mal-estar pela ausência de fôlegos renovados frente aos outros domínios acadêmicos. Nes-se contexto os estudos culturais abriam a possibilidade de interagir com diferen-tes domínios teóricos e métodos na tarefa de construção de problemas e de for-mas de abordá-los, porém sem enquadrar-se particularmente em nenhuma disciplina estabelecida; assim emergiram os area estudies. A história foi um des-ses campos teóricos com maior infl uência, mas se considerou de crucial relevân-cia a necessidade de superar a pesquisa tradicional de arquivo inerente à historio-grafi a que supunha trabalhar com documentos legitimados pela instituição estabelecida, para dar importância aos textos que não teriam sido reconhecidos com valor ou eram esquecidos pelos discursos universais, totalizadores, isto é pelos grandes relatos ou meta-relatos, postura apoiada em uma leitura das con-tribuições de Foucault e Derrida, e obviamente de Lyotard.

Desde essa miragem derivou-se uma multiplicidade de trabalhos cujo obje-to de investigação foram histórias que tornaram-se pequenos relatos, construin-do deste modo um calidoscópio de narrativas e textualidades, realçando assim sua condição fragmentaria como forma de compreensão da historia, e ao mesmo tempo refutando a concepção de totalidade dialética contida na perspectiva he-geliana, e principalmente rejeitando o ponto de vista da lógica capitalista en-quanto totalidade.

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FLORENCIA CAMPANA ALTUNA

Este giro na direção de mirar a historia completamente fragmentada, marcou uma distância epistemológica com os estudos culturais fundadores, pois ainda que aspiravam a constituir um espaço acadêmico interdisciplinar para se aproxi-mar à matriz britânica, a transformação da sociedade capitalista enquanto totali-dade, presente como horizonte nos britânicos foi abandonada e em seu lugar emergiu a valorização das singularidades e minorias identitárias; diversidades às quais se concedeu uma latente capacidade transgressora ao “estabelecido” que no era o capitalismo, mas sim os espaços particulares onde a dominação dentro da relação de poder fragmentária tinha presença, aproximando-se assim à uma leitura foucaultiana do poder, inclusive desconhecedora do campo aberto pelas categorias guvernamentalidade e biopolítica do mesmo autor. Ao mesmo tempo, a valorização do tratamento fragmentado dos fatos históricos fazia desnecessário buscar articulações histórico-sociais ou político-econômicas nos processos cul-turais (GRUNER, 2005) que obrigariam abordar o problema da hegemonia ide-ológica cultural e das resistências, aspetos decisivos para o grupo de Birmin-gham bom sucessor de Gramsci.

Além disso, confl uindo com a linha de enfatizar a fragmentação dos fatos históricos e das historias parciais, o uso excessivo da condição narrada e textu-alizada desses eventos levou quase a perda de sua relação com a realidade para fi car enjaulados na linguagem de maneira isolada das práticas materiais, ou como disse Gruner (2005, p. 45) colocou em risco de “entrar en connivencia objetiva con la noción generalizada de que el universo sangriento y desgarrado en el que vivimos es pura fi cción, un mero simulacro” retirando com esse ato o grande aporte derridiano de evidenciar o caráter artifi cial, construído, interessado das discursividades culturais que aparecem como naturais na sociedade.

A transformação dos estudos culturais originais operada depois de traspas-sar o Atlântico e sob os aspectos acima mencionados, confl uiu com as teorias do multiculturalismo e das políticas da identidade e, portanto com a defesa das posturas políticas decorrentes delas que advogavam pelos direitos das identida-des diferenciadas (étnicas, culturais, de gênero, etc) convivendo dentro de um pluralismo cultural. Foi precisamente a categoria de hibridación cultural pro-posta por García Canclini que processou desde América Latina a problemática das diversidades culturais desmontando com ela “os pares de oposição conven-cionais” subalterno-hegemônico, tradicional-moderno quando se tratava do po-pular, graças ao argumento da existência de novas formas de organização da cultura caracterizadas pelo “cruzamento” entre o “culto” e o “popular”, tese que desconsiderava a diferença entre a cultura popular e a cultura de massas reivin-dicada pela tradição marxista e problematizada com profundeza por Adorno. Estas posturas receberam contundentes criticas desde intelectuais como Zizek

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DESDE OS ESTUDOS CULTURAIS À DECOLONIALIDADE: UM PERCURSO AINDA NÃO ACABADO?

(2005), para quem é ao menos suspeitoso o discurso da coexistência híbrida em um momento histórico da presença homogênea e abrangente das formas do ca-pitalismo como sistema. Este assunto tornar-se-á o ponto de debate muito im-portante até se transformar em motivo da cisão do grupo dos estudos culturais como o veremos mais adiante.

2. DESDE OS ESTUDOS CULTURAIS AOS ESTUDOS SUBALTERNOS

Neste marco geral da presença dos estudos culturais na universidade nortea-mericana, confi gurou-se um processo particular com um grupo de acadêmicos majoritariamente de origem latino americano que buscavam se inscrever em uma tradição de crítica cultural própria desta região. Com esse objetivo recolheram algumas categorias elaboradas nessa tradição e produzidas para interpretar a par-ticularidade da produção literária e cultural na América Latina, (por exemplo, transculturación, otredad, heterogeneidad, género testimonial, etc.) e as fi zeram confl uir com as perspectivas pós-estruturalistas e pós-modernas. A intenção era pôr em questão a razão moderna e sua lógica de dominação dentro dos espaços disciplinares da Filosofi a e da Historia, assim como colocar em evidencia a for-ma em que essa dominação é operacionalizada nos âmbitos simbólicos como a Literatura, crítica que se faz extensiva aos Area Studies latinoamericanos.

A nova perspectiva teórica buscava, portanto, uma incidência de caráter teó-rico-político sobre a instituição universitária, levando em conta que o agente--intelectual ativado na busca desse objetivo possuía uma experiência vital ligada às práticas de esquerda dos anos sessentas/setentas, nas quais ocupava um lugar de mediação ativa entre os subalternos e a produção do conhecimento. Era um intelectual orgânico em palavras de Gramsci. Esta afi rmação é validada por John Beverly, professor da universidade de Literatura Espanhola e Latinoamericana da universidade de Pittsburgh e um dos fundadores dos Estudos Subalternos La-tinoamericanos, quem reconstitui nestes termos a ubiquação pessoal dentro dos Estudos Culturais na academia norteamericana, como também a intenção implí-cita em esse ato:

Por mi parte vine a los Estudios Culturales desde la nueva izquier-da. Pensaba medio irónicamente, medio ingenuamente que los es-tudios culturales iban a ser un poco como la versión académica del foco guerillero o zona liberada de los sesenta, es decir un centro de poder alternativo que estaba necesariamente al margen de la insti-tucionalidad, en un espacio liminal, pero que ejercía, desde ese margen, un efecto radicalizador sobre la institución en el sentido de que cuestionaba la integridad de las disciplinas y proveía la idea de que uno puede sobrevivir haciendo cosas no tradicionales por-que hay un mercado para eso (...). (BEVERLY, 1996, p. 4-5)

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A subjetividade posta em evidencia na afi rmação de Beverly e identifi cada com a esquerda dentro do espectro ideológico, conjuntamente com a intenção enunciada de agir sobre a instituição (diríamos uma praxis), serão os elementos básicos da identidade do grupo que empreendia a aventura buscando o encontro com novas teorias para abrir uma perspectiva de análise que substituísse aquela do marxismo dominante conduzido pela luta entre as classes tradicionalmente antagônicas: proletariado entendido como operariado industrial e burguesia, em um momento onde as evidências históricas ao menos interrogavam essa possibi-lidade na teoria e na prática, e cujo símbolo maior foi a queda do muro de Ber-lim. O deslocamento produzido foi a instalação de um espaço de visibilidade do sujeito denominado subalterno que atuava e resistia à expansão do capital na era da globalização. Vejamos essa passagem que toma corpo na área dos estudos culturais segundo Beverly:

De hecho, nuestro interés en la cultura popular coincidió precisa-mente con el fenómeno posmodernista del colapso, en una serie de frentes de producción cultural, de la distinción entra alta cultura y cultura de masas –el Pop art, la música minimalista, los Beatles, la telenovela, el performance, el testimonio, etc. Siguiendo la heren-cia del Frente Popular y el mesianismo de Benjamin queríamos reivindicar una agenda política implícita en el espacio de la cultura popular, porque lo que estábamos predicando era un poder de ges-tión de clases y grupos sociales subalternos que no dependían de la alta cultura burguesa: estábamos tratando de construir una especie de populismo cultural. (...)

Esta reivindicación de la cultura popular coincidió con el deseo de formar una nueva ciencia de las comunicaciones más allá de los estudios literarios que se proponían la tarea de entender cómo la cultura en general interpela subjetividades. (...) En particular, los estudios de la comunicación tienen una gran utilidad en relación con el predominio de los medios en la nueva economía capitalista. (...) (BEVERLY, 1996)

A necessidade de um marco teórico que pudesse acolher esse programa encon-trou, em um primeiro momento, um território fértil na proposta de hibridez cultu-ral sugerida por García Canclini, categoria que permitiria explicar os processos culturais surgidos com as novas tecnologias tanto na produção quanto na circula-ção. Estes processos estavam identifi cados como “a quebra e a mescla de coleções de sistemas culturais, a desterritorialização dos processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros” (GARCÍA CANCLINI, 1997, 1), reafi rmando a tese funda-mental dos estudos culturais da segunda geração sobre a inoperância da dicotomia cultura popular ou de massas e alta cultura, que ao mesmo tempo colocava em interrogação as meta-narrativas do nacional enquanto unidade da cultura, frente aos processos de desterritorialização dos seres humanos (migração) e a presença dos sistemas simbólicos (tecnologias de comunicação) na época da globalização.

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Porém, as teses centrais de García Canclini continham outras decorrências. Assim, se por um lado a tese das novas sociedades atravessadas pela hibridação refutava a versão da convivência das diversidades tolerando ao Outro ou supor-tando sua presença, implícita na proposta multiculturalista da qual decorrem “es-tratégias e políticas adotadas para governar”, do outro lado compartia o desvane-cimento dos pares subalternidade/hegemonia, pois a mistura que apresentariam as práticas culturais mostraria os espaços vazios dessa relação, o que constituía uma consequência problemática para o programa do grupo latinoamericano.

Não obstante essa proximidade do grupo de intelectuais latinoamericanos com a postura de Garcia Canclini em contra dos essêncialismos e das dicotomias como cultura de massas/alta cultura, que por outro lado inscreviam a necessi-dade de modifi cações epistemológicas nas disciplinas (com os aportes dos estu-dos feministas, dos estudos étnicos, etc.), outros elementos marcaram a distân-cia. Com efeito, as críticas mais comuns aos estudos culturais de ter-se transformado em uma mera tática descritiva de experiências isoladas — híbridas ou multiculturais — por fora da totalidade onde deveriam estar inseridas, isto é o caráter histórico social dessas vivências; e por outro lado a crítica sobre a omissão do confl ito — sempre presente a pesar da celebração pela amálgama cultural que tem brotado no capitalismo atual —, foram recolhidas e processa-das por este grupo de intelectuais tentando superar o que a crítica tinha identifi -cado como inmobilismo contemplativo de la producción neo-etnográfi ca e da hipertrofi a despolitizadora de lo cultural. Este esforço tinha por objetivo cons-truir uma lógica que atuasse para confi gurar um bloco histórico potencialmente hegemônico dentro do grupo de intelectuais, re-politizando a prática intelectual e adequando a esquerda à pós-modernidade, postura que os induze a confl uir com o grupo de estudos subalternos de origem indiano, dirigido por Guha, e ao mesmo tempo afastar-se do grupo de estudos culturais latinoamericanos repre-sentado por García Canclini. Para Beverly:

Los estudios subalternos se prestaban a nuestras necesidades por-que los problema que identifi caban Guha y sus colaboradores eran muy parecidos a nuestros problemas: las limitaciones del naciona-lismo populista y de la teoría de la dependencia, la insufi ciencia del estado nacional tradicional, la crítica de las instituciones de la alta cultura, incluyendo la literatura, (nos impactó mucho la Ciudad Letrada de Rama) la crítica del historicismo eurocéntrico, del van-guardismo modernizador, etc. (...) Sabíamos que había precursores o anticipaciones de estudios subalternos dentro del campo de los estudios latinoamericanos –Mariátegui por ejemplo–; pero la obra del grupo de la India que compartía con nosotros la experiencia de una militancia revolucionaria frustrada, representó para nosotros una articulación contemporánea y especialmente aguda de esta problemática. De allí que decidimos formar un grupo paralelo lati-noamericano. (BEVERLY, 1996).

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Além dos pontos teóricos de convergência identifi cados no parágrafo acima mencionando, esta decisão de “formar um grupo paralelo” obedece à leitura feita da conjuntura latinoamericana existente na metade dos anos noventas e descrita nestes termos no Manifi esto Inaugural del Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos (1998: p.1): desmantelamento dos regimes autoritários e a reinstala-ção da democracia, a fi nalização do comunismo e o decorrente deslocamento dos projetos revolucionários, a presença abrangente dos mass media e a nova ordem econômica que perpassa os territórios nacionais. As condições históricas descri-tas teriam obrigado a revisar algumas posições epistemológicas nas ciências so-ciais e humanas, mas também a pensar as formas de manifestar-se a subalterni-dade dentro das sociedades plurais que interrogavam a ênfase em um “sujeito classista unitário” velando a diversidade dos sujeitos subalternos, desconhecen-do suas manifestações aparentemente contraditórias e negligenciando a relação complexa com as classes hegemônicas, complexidade que precisamente teria desvelado o processo da revolução nacional nicaragüense.

Segundo o grupo de estudos subalternos latinoamericanos, as limitações evi-denciadas nesse processo provinham de conceber as transformações radicais no marco dos discursos de liberação nacional que colocavam o macro-paradigma da nação e do nacional no centro da construção de uma nova sociedade e que, ao mesmo tempo, não levavam em conta as aspirações concretas dos diversos gru-pos subalternos porque desapareciam subsumidos sob a categoria “classe so-cial”. Estas leituras coincidiam com a abordagem desenvolvida pelos historiado-res indianos dos estudos subalternos que iniciam, nos anos setentas, a releitura do processo liderado pelo Partido do Congresso da India depois da independên-cia em 1947. É precisamente o projeto de desenvolver uma crítica “poscolonial” tentando pôr em questão o caráter liberador deste último processo, o que levou ao grupo de historiadores da universidade de Sussex a desconstruir a historia ofi cial abordada desde uma apologia da nação e das elites nacionalistas aliadas ou confrontadas com os administradores britânicos. Nesse intuito, Guha, o mais importante historiador do grupo, desenvolveu uma estratégia teórica buscando superar o marxismo economicista e a perspectiva totalizante do historicismo através do deslocamento do objeto empírico de investigação desde as elites polí-ticas ao âmbito dos movimentos e lutas camponesas, e por meio do uso protagô-nico da categoria gramsciana de subalterno assim como da ênfase das variáveis de índole cultural que mostrariam efeitos políticos nas práticas de resistência. (OVIEDO SILVA, 2006)

De fato, esta perspectiva superava os enfoques fragmentários e apenas narrati-vos dos estudos subalternos de segunda geração e se aproximava ao grupo de Birmigham, porém abriu um espaço problemático com o uso do termo poscolonial

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que se disseminou dentro dos estudos da subalternidade com o alicerce dos traba-lhos de Gayatrik Spivak e Homi K. Babha. (MELLINO, 2008)

O uso das duas categorias enfrentou diferentes desafi os. Para os intelectuais latinoamericanos a categoria “subalterno” que era chave nos postulados desen-volvidos por Gramsci para dar conta da heterogeneidade dos grupos populares em relação com a classe hegemônica, permitia processar as formas de domina-ção presentes na historia de América Latina. Com efeito, além da classe social, podia-se abordar a raça, o gênero e a linguagem, categorias indispensáveis para problematizar e levar adiante uma política liberadora ao dar visibilidade aos su-jeitos e suas práticas que tinham sido desconhecidos pela produção dominante do conhecimento.

Porém, se o uso da categoria “subalterno” ampliava a mirada para além da relação burguesia/proletariado transformando-se em um conceito mediador entre a abstração da teoria e os processos reais da sociedade, e por outro lado reintro-duzia a história, isto é a política em sentido forte como diz Gruner (2005, 58); o conceito de “pós-colonial”, equívoco para a mesma nova historiografi a da India, mostrou serias limitações para se aplicar aos processos latinoamericanos. Efeti-vamente, inclusive entendido como a presença continuada — após da indepen-dência administrativa alcançada pelos Estados nacionais — dos fundamentos que erigiram as colônias, pôs em evidencia o caráter essencialista e anistórico pelo fato de homogeneizar processos históricos diversos derivados dos momen-tos distintos da superação da administração colonial: os processos de indepen-dência nas Américas ocorreram durante o século XIX, entretanto, na India, no Magreb e na maior parte de África sucederam no século XX. Isto signifi cava que a “poscolonialidad” se desenvolveu em dois momentos/espaços geopolíticos ca-racterizados por diferentes hegemonias mundiais e também por diferentes tem-pos no desenvolvimento capitalista.

Sem dúvida, a melhor compreensão do termo “poscolonial” é a leitura irônica e trágica desse período que se inicia com a constituição dos estados nacionais e que perdura até hoje, por tanto o prefi xo post não marcaria a ruptura com a totali-dade denominada colônia, mas exibiria a impossibilidade de superar essa condi-ção “dadas las dinámicas neocoloniales que caracterizaron a la mayor parte de los procesos históricos de descolonización formal” como afi rma Mellino (2008).

No entanto esta concepção abrangente, a apropriação da categoria desprovida de um olhar crítico pelos intelectuais latinoamericanos deu lugar à interrogação sobre a novidade que estaria colocando a perspectiva “poscolonial” na empresa de superar a historiografi a tatuada pela visão colonial, na medida em que a revisão histórico cultural desde o outro latinoamericano já tinha um longo percurso

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inaugurado com o pensamento do cubano José Martí, de Simón Bolívar, etc. no século XIX; historiografi a onde se processaram as especifi cidades históricas e culturais de nosso continente e momento no qual confi gura-se América Latina como categoria de conhecimento. Além disso, a pauta de abandonar o lugar de locução desde a nação e ir até o passado colonial para falar desde as fronteiras do pensamento nacional, convalidada pela suposta perda referencial do estado-na-ção, se enfrentaria com a história real, dado que a pesar das formas transnacionais de organização política e econômica atuais e as consequências disso (a exemplo das migrações de pessoas e os fl uxos livres dos capitais), essas formas precisam dos estados nacionais para se desenvolver como afi rma Achugar (1998), um dos mais lúcidos críticos dos estudos poscoloniais, concordando com as posturas das análises sobre o agir do capitalismo tardio.

Nesse sentido, para Achugar, a perspectiva poscolonial trasladada a América ofereceria uma leitura de nossa “identidade” — na realidade, diversa e plural — desde uma postura geo-ideológica-cultural alheia, que constrói um lugar de au-toridade por fora da tradição e da memória latinoamericana, pois o locus de enunciação estaria na academia norteamericana onde os estudos poscoloniais teriam se institucionalizado, e os falantes seriam os latinoamericanos — com fala inglesa — migrantes e inseridos nela. Na situação descrita, a pergunta que decorreria seria sobre a legitimidade de estes intelectuais para falar por esses outros e em nome de “Latinoamérica”.

A estratégia discursiva do grupo de Estudos Subalternos Latinoamericano para desenvolver sua proposta colocou à “desterritorialização”, entendida como a condição própria deste momento caracterizado pela globalização, na centralidade de sua abordagem. A desterritorialização explicaria a decomposição das identida-des regionais e nacionais e o surgimento de uma subjetividade apta para interpre-tar e traduzir a complexidade do mundo interconectado; assim nasceria o conceito de “hermenêutica pluritópica” proposto por Mignolo (MIGNOLO, 1996) e con-traposta à “hermenêutica monotópica” universalizante, gestada no Ocidente, que possuiria a capacidade de compreensão das pluralidades, das diversidades, das multiplicidades marcadas pelas relações de dominação, e ativar-se-ia nos momen-tos de cruzamento, nas instâncias dobradiças, nas margens. Para Mignolo, esta capacidade desenvolvida pelos indivíduos migrantes se relacionaria com sua con-dição de subalternidade e o exemplo mais relevante seria aquele dos grupos mi-gratórios aos EEUU, e entre eles, dos acadêmicos nascidos em América Latina.

Outro elemento da mesma estratégia se refere à postura crítica frente à “cul-tura letrada” própria da modernidade e da academia, por condensar os mecanis-mos elementares de dominação que se operam ao excluir formas de linguagem

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distantes do alfabeto comuns nos subalternos, isto é a oralidade, levando-os assim à exclusão. Situando-se entre esses dois eixos, o lugar do pensar do sujei-to intelectual poscolonial estaria deslocado do espaço hegemônico, e o pensar brotaria das rachaduras das disciplinas e identidades estabelecidas, condição que permitiria segundo Mignolo (1996) “pensar con y desde los subalternos”. É desta maneira que o pensamento poscolonial latinoamericano aborda (ou eva-de?) o problema colocado por Spivak (em debate com Foucault sobre o papel dos intelectuais e a representação), da ausência de um lugar epistêmico que permitisse ser escutado o falar dos subalternos.

Os pontos críticos sublinhados por Achugar, isto é a conceição de Latinoa-mérica na perspectiva dos estudos poscoloniais externa à história, por um lado, e a concepção da subalternidade colocada apenas nos espaços da subjetividade e da cultura afastando-se dos condicionamentos do ser social em sua totalidade, por outro lado, obterão uma abordagem mais complexa com o denominado “giro decolonial”.

3. A EMERGÊNCIA E OS EIXOS DO PENSAMENTO DECOLONIAL

Pelo aniversário dos 500 anos da chegada de Colón a América, dois intelec-tuais de prestígio internacional, Aníbal Quijano e Inmanuel Wallerstein, publi-caram um artigo na Revista da UNESCO titulado “Americanidad como con-cepto, o América en el moderno sistema mundial”. Neste trabalho inaugural se apresenta a questão fundamental que, com deslocamentos conceituais efetua-dos no transcurso do tempo, tornar-se-á a base da proposta decolonial: a criação de América como entidade geosocial foi o ato constitutivo do moderno sistema mundial. (QUIJANO, WALLERSTEIN, 1992). O argumento dessa afi rmação desdobra-se da tese central da teoria de Wallerstein sobre o moderno sistema mundial que encontra na expansão geográfi ca do capitalismo e na constituição de Estados com aparelhos administrativos fortes, os componentes cruciais para a instalação da economia-mundo capitalista. A esta tese acrescenta-se em este artigo a necessidade para esse processo do desenvolvimento de métodos diver-sos de controle do trabalho estabelecidos para regiões e produtos, selando as-sim a confl uência da teoria do moderno sistema mundial com os trabalhos de Quijano sobre a matriz colonial do poder instaurada precisamente com o pro-cesso da conquista de América.

Segundo os autores, será com a presença de América que a necessidade de expansão territorial e da diversidade de formas de controle do trabalho encontra-ram resposta positiva para a constituição da economia-mundo. Por outro lado, com América se confi gurou um espaço como paradigma de “o novo”, de “a no-vidade” através de quatro elementos articuladores da esta recente visão do

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mundo: a colonialidade que toma corpo no estabelecimento do sistema inter--estatal hierárquico estabelecendo o centro e as periferias, ou em outras palavras a Europa e a não Europa. Um segundo elemento foi a etnicidade, isto é a cons-tituição de limites das identidades grupais em relação com o Estado e que con-fi gurá a americanidade; deste modo categorias como “indios”, “negros”, “bran-cos”, “mestiços”, “crioulos”, etc., emergiram para se corresponder com as formas de divisão e controle do trabalho. Estas restrições étnicas não foram su-fi cientes e surgiu o racismo formal que, depois de sua desaparição, fi cou estabe-lecido nas experiências cotidianas sob a sombra do universalismo como práticas meritocráticas. E fi nalmente, a condição propriamente dita de novidade do Novo Mundo que oferecia expectativas de inovação desprestigiando simultane-amente a “profundidade histórica” das sociedades, no cujo desdobramento Nor-te América se confi gurará como a depositária mais genuína da modernidade, razão explicativa do sucesso econômico e certamente da apertura do desenvol-vimento do subdesenvolvimento.

Esta perspectiva transformou a visão dos estudos poscoloniais latinoameri-canos, pois coloco o início da experiência colonial no ato da conquista de Amé-rica e o identifi cou como constituinte das dicotomias que organizaram e organi-zam a dominação dentro de una realidade maior: o sistema mundo. Como consequência de esta perspectiva, a confi guração das relações coloniais que de-rivaram das construções simbólicas de Oriente-Ocidente — espaço onde têm um lugar próprio as abordagens dos estudos subalternos do sudeste asiático e da In-dia — seria decorrente do ato fundacional constituído pela conquista dos territó-rios denominados americanos, iniciada no século XV.

Receptivos a esta proposta de compreensão da modernidade, intelectuais que se encontravam perto do grupo dos estudos subalternos e estavam trabalhando sobre a condição colonial como Mignolo e Escobar, foram confl uindo com o grupo Coloniality Working Group que, a sua vez congregava estudantes y pro-fessores vinculados à análise do sistema mundo na universidade de Binghamton. Foi através de diferentes encontros com a participação de Quijano e Dussel, Mignolo, Castro Gomez, Escobar, e outros, (inclusive Wallerstein em um pri-meiro encontro), quando estes intelectuais provenientes de diferentes disciplinas obtiveram consensos básicos como o uso da categoria “decolonialidade” ou “des-colonialidade” descrita nestes termos: “El giro decolonial es la apertura y libertad de pensamiento y de formas (economías-otras, teorías políticas-otras), la limpieza de la colonialidad del ser y del saber; el desprendimiento del encan-tamiento de la retórica de la modernidad, de su imaginario imperial articulado en la retórica de la democracia” (MIGNOLO, 2007, p. 27).

Esta cita resume a postura epistemológica presente na base da empresa deco-lonial, cuja aspiração é desprender-se dos sistemas de conhecimento gerados por

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uma única etnia, a européia na modernidade ocidental, tal como propõe Quijano no artigo publicado nos fi ns dos anos oitenta do século passado e recolhido por Mignolo. Para Quijano é indispensável realizar a crítica do paradigma da racio-nalidade/modernidade, porém afi rma que não é sufi ciente fazê-lo só com a nega-ção das categorias existentes nesse padrão do conhecimento, ou com dissolver a realidade no discurso; mas é preciso destruir a colonialidade do poder mundial.

Em essa tarefa, o grupo do Projeto Modernidade/Colonialidade como se au-todenominou, identifi ca a necessidade de se inserir dentro de outra genealogia do pensar, uma genealogia que encontra a origem no mesmo momento da fundação de modernidade/colonialidade; este momento é o século XVI com a emergência do pensamento dos indígenas e dos afro-caribenhos em reposta às estruturas de dominação. Estas práticas de resistência ampliaram-se, em outro momento da história, a Asia e à India como fenômenos decorrentes das expansões imperiais britânica e francesa, e das lutas de liberação.

Sob esta compreensão dos processos históricos e da necessidade de despren-dimento epistemológico, o grupo tomou distância com os estudos pos-coloniais, pois os processos surgidos da substituição da administração colonial em Asia e na India enfrentam um fato histórico anterior que instaura a colonialidade; por outro lado, a mirada inserida nesses estudos mostra que foram produzidos com ajuda da teoria crítica européia: Foucault, Lacan, Derrida, autores alheios ao pensar de uma outra genealogia. Um tratamento similar foi proposto para a tradição da Es-cola de Frankfurt, já que sua condição crítica está inscrita na genealogia de Euro-pa, a diferença da elaboração crítica da decolonialidade (MIGNOLO, 2005).

Estabelecidas as distâncias do pensar frente à teoria crítica de origem europeu e à teoria da poscolonialidade, o pensamento decolonial ancoro-se na coloniali-dade do poder como concepto analítico que permite dar nome à matriz de domi-nação própria da modernidade e nascida com a conquista de América no ato si-multâneo da interconexão mundial, e que cruza todos os âmbitos da vida social.

Serão dois os eixos nos quais se articula a colonialidade do poder; por um lado a raça como instrumento classifi cador jerárquico primário que depois incor-porará a classe e o gênero; e por outro lado o controle do trabalho articulando diversas formas de exploração produtivas de mercadorias para o mercado mun-dial, sob a organização capitalista.

Aprofundando nestes dois eixos e no objetivo de gerar um pensamento outro, o concepto de colonialidade contem uma proposta de classifi cação social dife-rente dá versão atribuída ao materialismo histórico sobre as classes sociais. Com efeito, recolhendo à asseveração de E. P. Thompson em sua crítica ao marxismo estruturalista sobre a transformação da categoria histórica classe social em uma

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categoria estática, determinada pela estrutura econômica; e afi rmando ao mes-mo tempo, que os esforços críticos de Thompson não conduziram a uma com-pleta proposta alternativa, Quijano (2007) afi rma que a teoria das classes está elaborada “exclusivamente sobre la base de la experiencia europea, la cual a su vez está pensada según la perspectiva eurocéntrica” das diferenças percebidas nos pares riqueza/pobreza e mando/obediência que remitem ao controle do tra-balho e ao controle da autoridade — o Estado. As outras diferenças existentes não são levadas em conta.

Frente a essa debilidade na teoria das classes sociais, que na verdade não está apenas presente na concepção marxista mas também na weberiana segundo Quijano, a teoria histórica da classifi cação social propõe pensar os processos de longo prazo “en los cuales las gentes disputan por el control de los ámbitos bá-sicos de la existencia social, y de cuyos resultados se confi gura un patrón de distribución de poder, centrado en relaciones de explotación/dominación/con-fl icto entre la población de una sociedad y en una historia determinadas.” Qui-jano (2007). Para o autor, é fundamental a conceição do poder apresentada em esta proposta: uma rede de relações de exploração/dominação/confl ito confi gu-rada entre as pessoas na disputa pelo controle do trabalho, da natureza, do sexo, das subjetividades e da autoridade. Neste sentido, é a distribuição historicamente situada do poder entre as pessoas o elemento de classifi cação social.

Decorrente desse tratamento classifi catório das pessoas no capitalismo mun-dial, moderno e colonial, a classifi cação social se produz com a articulação do trabalho, do gênero e da raça, devido à colonialidade do poder, pois a raça incor-pora-se tanto às relações do trabalho como às de gênero, em um processo de subjetivação; porém as relações de exploração/dominação, isto é do trabalho, constituem o âmbito central e permanente no ato classifi catório. Esta complexi-dade nos processos de classifi cação social traz como resultado a existência de classes sociais heterogêneas, confl ituosas, descontínuas; muito distantes das classes claramente diferenciadas e determinadas pelas estruturas.

Do concepto colonialidade do poder se desdobrarão as duas categorias que confi guram a totalidade da perspectiva decolonial: a colonialidade do saber (ra-cionalidade tecno-científi ca como a única episteme legítima para produzir co-nhecimento) e a colonialidade do ser (sujeitos desejantes de uma ontologia ur-bana e sujeitos ao capitalismo) entendidas como epistemologias e subjetividades que sustentam e refl etem a matriz de dominação. Nesse sentido a perspectiva decolonial teria como tarefa “abrir a ranhura do impensável” na “genealogia imperial da modernidade cristã, liberal e socialista-marxista” e deixar fl uir a ge-nealogia do pensamento exterior, isto é o pensamento indígena e afro-caribenho,

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o que não signifi ca apenas negar o paradigma europeu, mas deprender-se das vinculações da racionalidade moderna com a colonialidade. (QUIJANO citado por MIGNOLO, 2005).

Ainda que exista um corpus teórico portador de eixos básicos, as ênfases postas por cada autor dependendo das formações acadêmicas e da rigorosidade teórica, faz da perspectiva decolonial um feixe de discursos interceptados uns com os outros, mostrando muitas vezes grandes generalizações com respeito às teorias e leituras de processo históricos criticados por ela. É nesse sentido que começam a surgir críticas à proposta, sem deixar de reconhecer aportes cruciais para pensar a inserção de Latinoamérica no sistema mundo e na história.

Uma dessas críticas diz respeito ao tratamento da modernidade em termos muito geralistas, reproduzindo um olhar universalizante que esconde as diversi-dades de pensamentos e práticas ao interior do processo histórico da mesma modernidade européia; uma mirada que é produto da vontade epistêmica de desconhecer as múltiplas contradições existentes em toda realidade social, transformando assim a historia em uma planície comandada pela dicotomia co-lonialidad-modernidade afastando-se do pensamento complexo reivindicado pela mesma perspectiva decolonial. Segundo Restrepo e Rojas (2009) seria uma versão hiperreal, (abstracta, normativa, estructurante de la imaginación teóri-ca y política) da modernidade que termina por essêncializar, reifi car a moderni-dade e a colonialidade.

Outra das críticas importantes e que se encontra inter-relacionada com a an-terior, se refere à construção de um corpo categorial que repete as formas domi-nantes de Ocidente na geração de conhecimento através da elaboração de concei-tos que afi rmam o que é e não é, mas sem tratar os enunciados e os fatos produzidos sob o nome da modernidade, sem passagens etnográfi cos, isto é sem abordar as “singularidades como acontecimientos que deben comprenderse en sus propios contextos” afi rmam Restrepo e Rojas seguindo o ponto de vista fou-caultiano. Além disso, surgem interrogações sobre o sucesso na tarefa efetiva de aportar na construção de uma outra genealogia de conhecimento, pois leituras minuciosas dos textos mostram a constante interferência de percepções e pontos de vista elaboradas como decoloniais, mas que provêm das próprias epistemolo-gias européias. A elaboração de pensamentos e formas de “economias otras” e “teorías políticas otras” ainda tem um longo caminho para recorrer.

Por outro lado, continua permanente a tensão da representação e do papel dos intelectuais posta no debate pelos estudos poscoloniais, dado que ante a ausência do locus epistêmico próprio dos sujeitos dominados, estes continuam sendo falados, ainda que a perspectiva decolonial tenha começado abrir ouvidos

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para escutar os silêncios deles. Estes intelectuais já não estariam pedindo um estatuto de representação, mas, reivindicariam esta abordagem teórica como a condição de possibilidade para experimentar essas escutas.

Finalmente, e sem lugar para a dúvida, a colonialidade do poder como con-cepto que articula os âmbitos do trabalho, do gênero e da raça constitui um apor-te inovador e importante no objetivo de tentar mais uma vez a superação da fra-tura entre a estrutura e a superestrutura e aprofundar nesse debate. Tratar o aspecto particular e específi co que caracterizaria à modernidade capitalista, isto é a construção de jerarquias baseada em diferenças transformadas em desigual-dades com a racialização das relaciones e a decorrente dominação, é uma aper-tura e um convite a problematizar também as respostas dos dominados e a cons-trução de ações políticas. Os debates estão abertos.

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