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41 “A VIUVEZ É UM BILHETE PREMIADO!”: NOTAS INICIAIS DE PESQUISA SOBRE AS VIÚVAS NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII MICHELLE RAUPP SELISTER Mestranda do PPG História/UFRGS [email protected] Desde o início da ocupação portuguesa do território do atual Rio Grande do Sul, a presença de mulheres foi uma constante até porque para se povoar, é preciso que haja mulheres que procriem a fim de que os espaços sejam preenchidos e a fronteira melhor defendida. O Rio Grande de São Pedro, desde a fundação do presídio de Rio Grande (1737), por meio das cartas dos comandantes militares, é insistente nos pedidos de envio de mulheres para os confins meridionais da possessão portuguesa na América a fim de que fosse possível a efetiva colonização destas terras e a não deserção dos soldados. As índias foram muito utilizadas nesse propósito, mas a solicitação de mulheres brancas, incluindo as consideradas de má-vida (“as mais corridas e galicadas” 1 ), eram muito bem-vindas para que se mantivesse um grupo de brancos a fim de que não se tivesse uma terra dominada por mestiços 2 . Mas, devido ao fato do Rio Grande de São Pedro ser uma região de fronteira entre os domínios das duas Coroas Ibéricas, a sociedade que lá se forma acaba por ser extremamente militarizada devido à guerra endêmica entre portugueses e espanhóis. Com isso, a morte dos soldados levava muitas mulheres ao estado de viuvez, freqüentemente viuvezes precoces. Assim sendo, o presente trabalho busca resgatar através das trajetórias de duas viúvas o modo de vida dessas mulheres que, muitas vezes sós, sem um homem ao seu lado, tinham que viver/sobreviver em uma sociedade de Antigo Regime, na qual a família e a sociedade como um todo se centravam na figura do homem, já que as mulheres 1 Expressão utilizada pelo primeiro comandante-militar do Rio Grande de São Pedro, o Brigadeiro José da Silva Pais, em carta ao Prior de Chaves, por volta de 1742, apud CESAR, Guilhermino. Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998. p.108. 2 Sobre a mulher branca destinada ao clareamento da população, ver CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 125 e NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.71.

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“A VIUVEZ É UM BILHETE PREMIADO!”: NOTAS INICIAIS DE PESQUISA SOBRE AS VIÚVAS NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO NA

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII

Michelle Raupp SeliSteR

Mestranda do PPG História/[email protected]

Desde o início da ocupação portuguesa do território do atual Rio Grande do Sul, a presença de mulheres foi uma constante até porque para se povoar, é preciso que haja mulheres que procriem a fim de que os espaços sejam preenchidos e a fronteira melhor defendida. O Rio Grande de São Pedro, desde a fundação do presídio de Rio Grande (1737), por meio das cartas dos comandantes militares, é insistente nos pedidos de envio de mulheres para os confins meridionais da possessão portuguesa na América a fim de que fosse possível a efetiva colonização destas terras e a não deserção dos soldados. As índias foram muito utilizadas nesse propósito, mas a solicitação de mulheres brancas, incluindo as consideradas de má-vida (“as mais corridas e galicadas”1), eram muito bem-vindas para que se mantivesse um grupo de brancos a fim de que não se tivesse uma terra dominada por mestiços 2.

Mas, devido ao fato do Rio Grande de São Pedro ser uma região de fronteira entre os domínios das duas Coroas Ibéricas, a sociedade que lá se forma acaba por ser extremamente militarizada devido à guerra endêmica entre portugueses e espanhóis. Com isso, a morte dos soldados levava muitas mulheres ao estado de viuvez, freqüentemente viuvezes precoces. Assim sendo, o presente trabalho busca resgatar através das trajetórias de duas viúvas o modo de vida dessas mulheres que, muitas vezes sós, sem um homem ao seu lado, tinham que viver/sobreviver em uma sociedade de Antigo Regime, na qual a família e a sociedade como um todo se centravam na figura do homem, já que as mulheres

1 Expressão utilizada pelo primeiro comandante-militar do Rio Grande de São Pedro, o Brigadeiro José da Silva Pais, em carta ao Prior de Chaves, por volta de 1742, apud CESAR, Guilhermino. Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998. p.108. 2 Sobre a mulher branca destinada ao clareamento da população, ver CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 125 e NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.71.

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eram vistas como intelectualmente inferiores a eles3, como seres perversos cuja única destinação seria a de apoquentar os homens4. Já para melhor apreender os contextos social e econômico nos quais essas viúvas estavam inseridas, a nossa investigação também se focará nas redes sociais estabelecidas, principalmente pelo compadrio, e na inserção econômica dessas mulheres nessa sociedade do sul da América Portuguesa. Assim, através dessas duas trajetórias tentaremos responder às duas grandes dúvidas que norteiam este trabalho: por que algumas viúvas se casam novamente? Por que para algumas era interessante permanecer no estado de viuvez (seria uma escolha voluntária ou nela influiriam fatores como, por exemplo, a idade da viúva, ter ou não filhos pequenos5, situação econômica)? Assim, nos interessam investigar quais as estratégias matrimoniais utilizadas por essas mulheres e/ou suas famílias visando um segundo casamento e o que motivava a não escolha de um novo marido por boa parte delas.

O mercado matrimonial do Rio Grande de São Pedro, no século XVIII, não pode ser entendido sem antes se considerar que esta é uma sociedade de Antigo Regime na qual a família “extrapolava os limites consanguíneos, a coabitação e as relações rituais”6, ou seja, a escolha de um cônjuge não era feita livremente pelo indivíduo (neste caso, pela viúva), pois os casamentos eram vistos mais como uma maneira de criar laços de interesse econômico e/ou político do que a união por livre e espontânea vontade entre duas pessoas. Assim, o que importava na seleção de um novo membro a compor a casa/família era uma escolha feita, dentre a oferta que existia na região, de um cônjuge do mesmo nível social ou de um nível superior, não se elegendo, para a classe mais abastada, membros da camada inferior da sociedade que não poderiam agregar patrimônio ou influência social. Com isso em mente, ao se analisar os róis de confessados e os livros de casamento de Viamão, por exemplo, temos casos de viúvas que logo se casam e outras que permanecem no estado de viuvez por toda sua vida.

Apesar de aparecer muitas vezes como uma figura coadjuvante na historiografia tradicional, as mulheres não podem ser consideradas como tendo uma participação menor na História do período colonial brasileiro e isso vem sendo apresentado em estudos

3 Conforme BOXER, Charles R. A mulher na expansão ultramarina ibérica, 1415-1815, alguns factos, idéias e personalidades. Lisboa: Livros Horizonte, 1977. p. 122-128. Ver também CAMPOS, op. cit., p. 51 e Ordenações Filipinas, Livro 4, Título LXI: Do benefício do Senatus consulto Velleano, introduzido em favor das mulheres que ficam por fiadoras de outrem (ALMEIDA, 1870, p. 858-860).4 “(...) era sempre a mulher por sua perfídia natural, o grande perigo que rondava os homens antes de se casarem, e sobretudo depois, a menos que a pudessem subjugar.” VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos peca-dos: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989. p. 113.5 Conforme Faria, para os homens pobres “era vantajosa a escolha de uma mulher com muitos filhos em idade produtiva (...), pois com o trabalho de toda a família poderiam chegar a ter até escravos”. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 158.6 KUHN, Fabio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa – século XVIII. Niterói: PPG História/UFF, Tese de Doutorado, 2006. p.17.

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recentes de autores como Mary Lucy Murray Del Priore, Maria Odila Leite da Silva Dias, Alzira Lobo de Arruda Campos, Sheila de Castro Faria, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Muriel Nazzari, cujos trabalhos têm mostrado o protagonismo feminino, ou seja, as mulheres como agentes de suas próprias histórias e figuras centrais na reprodução da sociedade da época. Isso porque, pelo menos para a elite, as filhas tinham papel fundamental na cooptação de bons genros que pudessem agregar patrimônio, crédito ou até mesmo aumentar a esfera de influência de uma determinada família. Cabe destacar a seguir, aspectos dos trabalhos dos referidos autores que serão os principais interlocutores no desenvolvimento desta pesquisa.

De acordo com Del Priore7, na colônia, as mulheres serviram aos propósitos dos projetos civilizatório (Igreja) e colonizador (Império português). Isso porque com a construção da figura da santa-mãezinha por parte da Igreja em oposição às desqualificadas, consolidava-se nas colônias o catolicismo e a importância da família como essenciais para a organização da vida em sociedade.

Ainda segundo a autora, as mulheres, no papel de mães, exerciam um poder informal que se restringia ao interior de seus domicílios, limitado basicamente à sua prole. Poder esse que nunca poderia extrapolar a esfera familiar, mas que era exercido tanto pelas mães da elite quanto pelas pobres, representando os filhos para estas últimas o respaldo afetivo e material quando da ausência/inexistência de marido. Além dos filhos, as mulheres chefes de domicílio contavam com a ajuda de comadres e compadres, sendo o parentesco espiritual importante para a formação de redes de solidariedade para o sustento dessas mulheres e seus filhos.

Quanto ao matrimônio, Del Priore afirma que para a elite eram uniões insípidas com interesse em manter patrimônios e/ou reforçar esferas de influência enquanto para as mulheres pobres ele seria considerado um ideal a ser alcançado visto que traria respeitabilidade e segurança ao contrário das uniões consensuais que se constituíam em regra para as menos afortunadas e que, segundo a autora, essas uniões sem a benção da Igreja seriam a grande causadora das mulheres chefiando domicílios.

O trabalho de Dias8 centra-se na inserção econômica feminina no nascente meio urbano da cidade de São Paulo, mostrando que as mulheres solteiras ou viúvas tinham como fonte de renda a venda de gêneros alimentícios, lavagem de roupas e costuras. Devido a essas atividades, muitas vezes entravam em conflito com as autoridades seja por meio das “petições e requerimentos das padeiras contra as posturas da Câmara”9

7 DEL PRIORE, Mary Lucy Murray. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Brasília: Editora da UnB,1993.8 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984.9 Idem, p. 45.

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referentes ao preço do pão nas épocas de carestia de gêneros alimentícios, assim como prisões de mulheres arruaceiras e turbulentas. Apesar de abranger somente o século XIX, traz dados interessantes como, por exemplo, de que 40% dos fogos eram constituídos10 por mulheres chefes de família e a maioria das mães solteiras serem brancas. Além disso, a autora mostra a importância, para a sobrevivência das mulheres, da rede informal de vizinhas e da comunidade que auxiliavam na venda dos produtos. Como Del Priore, Dias aponta que o casamento era para os ricos enquanto os pobres deveriam se contentar com o concubinato e que muitas viúvas passavam a gerir os negócios do falecido marido, como o comércio e a venda de gado.

Já no trabalho de Campos11 sobre casamentos e divórcios na São Paulo colonial, mais especificamente no segundo capítulo que trata do “recrutamento dos cônjuges”, a autora se refere às viúvas apenas assinalando que a viuvez era frequente porque os homens escolhiam casar com mulheres mais novas e estas, com o marido morto, contraíam segundas núpcias. Para ela, tanto as solteiras quanto as viúvas se valiam das mesmas estratégias matrimoniais para a escolha do cônjuge: seleção biológica (basicamente escolher cônjuge da mesma etnia), econômica (que ela chama de sistema de mercado12) e social (alianças entre famílias para reprodução da sociedade colonial13). Além disso, Campos salienta que a escolha era feita pela família e não pelo indivíduo isoladamente.

Trabalhando com as devassas episcopais como fonte, Figueiredo14 nos traz a vida familiar nas Minas Gerais do século XVIII mostrando mulheres que deixavam seus maridos para ficarem com outros homens e que muitos casais que viviam em concubinato moravam em domicílios separados para evitarem a repreensão da Igreja. Assim, o autor mostra o embate constante entre o discurso misógino da Igreja e a vida real das mulheres que possuíam autonomia suficiente para administrar “a casa e os negócios do companheiro, permanentemente ou quando de sua ausência”15.

Nazzari16 em seu estudo lança mão dos inventários para mostrar o porquê do desaparecimento do dote em São Paulo entre os anos de 1600 a 1900. Para o século XVIII e mais especificamente as viúvas, ela diz que “as viúvas jovens, ainda que

10 Idem, p. 75-78.11 CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2003.12 CAMPOS, op. cit., p.133. Para a autora, a escolha do cônjuge funcionava como um sistema de mer-cado: quanto maior o dote, melhor marido se arranjava.13 Idem. p.152.14 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: HUCITEC, 1997.15 Idem. p. 138.16 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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legalmente competentes para administrar sua própria vida e bens, ainda tinham seus casamentos arranjados para elas por seus genitores”17 enquanto as mais velhas tinham mais independência nas escolhas quer seja para recasar, tornar-se tutora dos bens e dos filhos menores, para dotar ou não as filhas quando dos casamentos delas e mesmo optar por tocar os negócios do falecido.

A opção de continuar os negócios do marido faz muito sentido, pois no casamento, em tese, a mulher se encontrava em pé de igualdade com o marido já que contribuía com os meios de produção para o casal iniciar a vida, ou seja, administrar os bens do defunto era como dar continuidade a um negócio que também era dela, que ela havia ajudado a construir, já que fora fornecido pela família dela ao novo casal. Isso mostra que nessa sociedade, muitas vezes o homem precisava se casar para ter acesso à terra, gado e escravos que faziam parte do dote.18 Assim, a mulher se tornava uma via de acesso para a conquista tanto de patrimônio quanto de cargos, pois como já foi mostrado nos trabalhos de Kuhn (2006), Samara (1986)19 e Faria (1998)20 o casamento de comerciantes com mulheres de famílias dos primeiros povoadores, por exemplo, possibilitava o acesso aos cargos públicos, acesso ao poder. Sendo inclusive uma estratégia muito adotada em diversas regiões da colônia e na qual o benefício, para os dois lados, se dava da seguinte forma: a família da noiva ganharia um novo membro (o genro comerciante) que agregaria à casa dinheiro/crédito e em contrapartida o noivo teria acesso aos meios de produção e à terra fornecidos pela família da noiva o que lhe daria mais status visto que nas sociedades de Antigo Regime, segundo Osório21 e Faria22, os comerciantes sempre que conseguiam bons casamentos ou enriquecer abandonavam o comércio e dedicavam-se ao mundo agrário. O maior indicativo de que o genro se agregava à família da noiva se dá pelo fato de morarem perto da família dela (matrifocalidade)23 e a figura do genro herdeiro24, ou seja, o genro e não um dos filhos do sexo masculino é quem herdava bens e prestígio da família da noiva. Além disso, nessa sociedade de desiguais, mais valia a nobreza do que a riqueza e para as famílias mais abastadas (geralmente por serem os primeiros povoadores de determinada região), às vezes era mais interessante cooptar um genro nobre, porém

17 Idem, p. 63 e VAINFAS, op. cit., p. 124.18 Idem, p. 28.19 SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 44.20 FARIA, op. cit., p. 185.21 “A carreira de um comerciante poderia terminar em uma estância, mas o inverso não é verdadeiro”. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Filoso-fia. Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Tese de doutorado. 1999. p. 247.22 FARIA, op. cit., p. 168.23 NAZZARI, NAZZARI, op. cit., p. 67; Faria, op. cit., p.19524 FARIA, op. cit., p. 194-195 e 285.

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pobre do que um rico comerciante para dar mais status à família 25.Sheila Faria26 em seu trabalho sobre os Campos dos Goitacazes (Rio de Janeiro)

traz conclusões interessantes para servirem de contrapontos ao nosso trabalho, como, por exemplo, que a viúva com filhos em idade produtiva levava vantagem no mercado matrimonial em relação às jovens que tinham filhos pequenos27. Isso porque os filhos maiores eram considerados como mão-de-obra, visto que nas zonas agrárias ter uma família era o princípio básico para o funcionamento das unidades domésticas. Assim, não seria vantajoso se unir a uma mulher com filhos pequenos, pois seriam mais bocas para alimentar. Outra questão trazida por Faria é de que há diferenças entre freguesias rurais e urbanas quanto a taxas de ilegitimidade e número de crianças expostas apontando que ambas eram mais altas nas áreas urbanas28. Além disso, a autora mostra como as mulheres eram ativas economicamente já que tomavam empréstimos, possuíam e vendiam terras. Por fim, Faria traz a idéia de que, quando da morte do marido, muitas vezes a viúva ficava com tudo a fim de manter a unidade doméstica (no caso, não desmembrar o engenho), ficando os herdeiros usufruindo os bens junto com a mãe até a morte desta quando, aí sim, eles receberiam suas heranças.

Já para entender a situação das viúvas no século XVIII uma boa fonte são as Ordenações Filipinas que são as leis que regiam a sociedade à época e tratavam tanto da mulher viúva quanto da mulher casada normatizando suas condutas como, por exemplo, a de que o marido não podia vender bens sem o consentimento da mulher, a viúva se tornava cabeça do casal com a morte do esposo e determinava quando a mulher viúva poderia se casar de novo. Inclusive há um título especialmente direcionado às que tinha cinquenta anos ou mais e com filhos29, legislando que elas não poderiam dispor de seus bens livremente, somente da terça, para não desbaratar a herança dos filhos do primeiro matrimônio. Talvez esse fosse um fator que afastasse os pretendentes.

Excetuando a questão de ter cinquenta anos ou mais, a única menção à idade feita na legislação seria de não se infligirem pena nem às mulheres nem aos segundos maridos

25 Hameister chama de segundões os filhos segundos que, devido ao sistema português de herança que privilegiava o primogênito em detrimento dos demais herdeiros, tinham como única opção migrar para poderem obter terras e/ou ascender socialmente. HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros bastimais da Vila de Rio Grande (1738-1763). Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filo-sofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tese de doutorado. 2006. p. 156-162. Ver também CAMPOS, op. cit., p.149 e NAZZARI, op. cit., p. 69.26 FARIA, op. cit., 1998.27 Idem, p. 64.28 Idem, p. 54 e 69.29 Ordenações Filipinas, Livro 4, Título CV: Das mulheres viúvas que casam de cinquenta anos tendo filhos (ALMEIDA, 1870, p. 1011-1014).

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quando se casassem antes de passado um ano da morte do primeiro cônjuge da viúva30. Disso se pode inferir, conforme Vainfas31, de que haveria uma certa rejeição eclesiástica e popular a um segundo matrimônio. Mas também deixa entrever que as mulheres muitas vezes casavam-se antes de um ano de morte do marido, o que os dados já levantados confirmam: em Viamão, dentre as doze viúvas que contraem segundas núpcias, duas casam-se antes de completar um ano do falecimento do primeiro marido. Dentre esse grupo, constatamos que a média de intervalo de recasamento é de 1 ano e seis meses e se aproxima do apurado por Faria para os Campos dos Goitacazes, no Rio de Janeiro, em que a média de intervalo de recasamento para as mulheres brancas era de 2 anos e 3 meses32.

Com a discussão bibliográfica posta e pensando em uma região de fronteira, com poucos homens elegíveis, salta aos olhos o caso de Bernarda Ribeira, moradora da Freguesia de Viamão. Bernarda, no primeiro rol de confessados de Viamão do ano de 1751, aparece casada com Salvador Brás33 (filho de João Brás da família dos Brás Lopes que, segundo Kuhn34, são das famílias que primeiro povoaram Viamão) e tendo um filho chamado João. Já no próximo rol, de 1756, ela aparece casada com Bartolomeu Pereira (ou Ferreira) e continua com seu filho João, do casamento com Salvador Brás. Ao consultar o livro de batismos35, constatamos que Salvador e Bernarda são naturais da Vila de Laguna e que tiveram mais filhos: Lourenço, Gertrudes e Domingas, além da filha Marta (ou Maria Ribeira de Souza, nascida em Laguna) que vai aparecer casada no rol de 1758 e morando, juntamente com o marido João Fernandes, na casa da mãe e do padrasto. No registro de batismo de Domingas, 28/11/1751, consta que Bernarda estava grávida quando o marido faleceu. Segundo o que se pode depreender das fontes já consultadas, tanto Domingas, quanto Lourenço e Gertrudes vieram a falecer ainda em tenra idade, pois não constam dos róis em nenhum momento entre 1751 e 1781 (data do último rol no qual consta Bernarda) e nem dos registros de óbito ou casamento. No livro de óbitos36, o registro do falecimento de Salvador Brás data de 19 de abril de 1751. Seguindo a ordem cronológica dos registros de batismo, acrescida do livro de casamentos, Bernarda casou-se com Bartolomeu entre junho e dezembro de 1752, sendo ele natural de Guaratinguetá. Segundo os róis e livro de batismos37, Bartolomeu e Bernarda têm juntos cinco filhos:

30 Op. cit., Livro 4, Título CVI: Das viúvas que casam antes do ano e dia. (ALMEIDA, 1870, p. 1014-1015).31 VAINFAS, op. cit., p.89.32 FARIA, op. cit., p. 155.33 Segundo KUHN, op. cit, p. 244, Salvador Brás era estancieiro.34 KUHN, op. cit, p. 78-79.35 Livro 1 de Batismos de Viamão (1747-1759).36 Livro 1 de Óbitos de Viamão. (1748-1777)37 Livros 1 e 2 de Batismos de Viamão; Róis de Confessados de Viamão 1776, 1778, 1780 e 1781.

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Beatriz, Salvador, Ana, Manoel e Marcelino, sendo José Brás (irmão de Salvador Brás) e sua mulher Catarina Machada os padrinhos do último que era justamente o primogênito do casal. Esse compadrio denota que mesmo com um novo marido, Bernarda continua a ter relações com a família de seu primeiro cônjuge. Além disso, o casal batiza seu segundo filho com o mesmo nome do primeiro esposo de Bernarda, ou seja, Salvador. A partir de 1777 até o último rol de 1781, Bernarda passa a constar como viúva e cabeça de fogo. Isto posto e pensando que homens brancos para casar pertencentes à elite era artigo raro, como em um espaço de meses Bernarda se casa novamente? Além disso, tendo o cunhado e a esposa como padrinhos de seu filho com Bartolomeu, pensamos até que ponto a escolha desse novo marido não foi influenciada pela família Brás Lopes?

Em contraponto à Bernarda, temos a viúva D. Luzia Escócia (ou Escobar) Rodrigues vinda da Colônia do Sacramento, moradora de Nossa Senhora dos Anjos, que apesar de ser viúva do capitão de infantaria38 da Colônia Manuel Pinto Santiago, nem ela nem quatro de seus cinco filhos que migraram para a nova freguesia não se casam. Em compensação, seu filho Antonio Jose Pinto se casa em 1757 com Felicia Maria de Oliveira, tia do famoso Rafael Pinto Bandeira, portanto, filha da prestigiosa família dos Souza Fernando. Tirando o caso da filha Josefa que era louca39, a que padrões D. Luzia e seus três filhos não atendiam? Ou será que não haveria cônjuges à altura dela e de seus filhos? Assim como Francisca que, apesar de ser filha de Isabel Antônia Ribeira, ou seja, era neta e sobrinha de capitães-mores de Laguna, não arranja matrimônio (pelo menos até o que as fontes nos permitem inferir, Francisca aparece com 36 anos, morando com a mãe no Rol de Confessados de Nossa Senhora dos Anjos de 1795)?

No que já pesquisamos nas fontes paroquiais das freguesias de Viamão e Nossa Senhora dos Anjos, dentro desse grupo das viúvas temos três situações: viúvas cujo marido morre e logo se casam, outras que no intervalo dos dois casamentos têm filhos de pais incógnitos e aquelas que permanecem no estado de viuvez pelo resto de suas vidas. No primeiro grupo, temos Bernarda Ribeira, Maria de Araújo Vilella, Teodósia de Magalhães e Maria Lopes Rodrigues, por exemplo. Já para o segundo, temos Antonia de Ávila que entre a morte de Luis da Cunha e o segundo casamento com José Carlos Miranda, tem Marcelina, em 1751, registrada no Livro de Batismos como filha de pai incógnito; outro caso ilustrativo desse grupo é Vitória Pereira que três anos antes do segundo matrimônio, em 1755, teve o filho João também sem pai declarado no registro de batismo, tendo a morte de seu primeiro marido ocorrido antes de 1754. Para o terceiro e último grupo,

38 Segundo Kuhn, op. cit,, ele seria capitão de infantaria. Já no Livro 2 de Batismos de Viamão, no registro no ano de 1763 de Constantino, filho de Antonio Jose Pinto e Felicia Maria Oliveira, ele era Sargento-mor da Colônia de Sacramento. Já em RHEINGANTZ (1949, p. 397), ele é apenas referido como alferes. 39 Cf. Rol de Confessados de Nossa Senhora dos Anjos de 1789.

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temos os casos de D. Luzia Escócia (ou Escobar) Rodrigues e Ana da Guerra que após a morte de seus maridos não se casaram novamente. Assim, comparando, por exemplo, os casos de Ana da Guerra com o dessas duas mulheres que tiveram filhos frutos de relações não sacramentadas pela Igreja, por que a primeira foi, digamos, condenada ao celibato enquanto as duas últimas não foram desvalorizadas no mercado matrimonial?

O presente trabalho desenvolve-se no campo da História da Família, pois em uma sociedade de Antigo Regime não se tem como cogitar as estratégias matrimoniais sem se levar em conta a importância da família naquela sociedade, já que no mundo do Brasil Colonial tudo se origina e converge para ela. Como já apontado pelos estudos mais recentes arrolados acima, não se pode mais falar em família, mas sim em famílias40, pois há inúmeras possibilidades de arranjos familiares para o período colonial e esses arranjos também são encontrados para Viamão e Nossa Senhora dos Anjos, nas quais temos, por exemplo, fogos compostos por viúvas mais escravos, irmãs (fratrias) e escravos e mãe e filhos mais escravos. Para o nosso estudo, consideraremos que a família não é só a consanguínea, mas aquela que além dessa, agrega os co-residentes e os que possuem parentesco espiritual ou, conforme Samara, “a família brasileira era uma vasta parentela que possuía fins comuns. Solidariedade, deveres, obrigações mútuas e parentesco fictício integravam os indivíduos em verdadeiras redes de dependência.”41. Um exemplo disso é o que temos no Rol de Confessados de Viamão de 1778 no qual no fogo de Antônia Pereira, viúva, além dela moram dois filhos homens solteiros, três netos e seis escravos, ou seja, uma casa na qual não está presente nem o pai dos filhos e nem a mãe dos netos.

Além disso, pela impossibilidade de ocupar cargos públicos e participar explicitamente da vida política, concordamos com Del Priore que diz que a família é praticamente o único espaço no qual a mulher exerce poder de fato nesse período, e esse poder é sobre a sua prole. Assim, o que procuraremos resgatar é, já que seu alcance se confinava ao privado, ao lar, em que medida as mulheres quando viúvas poderiam escolher o futuro cônjuge e como tratavam também o casamento de seus filhos enquanto cabeça de casal. Ademais, as mulheres desempenhavam papel importante naquela sociedade, pois por meio delas era possível agregar membros masculinos com mais cabedais ou nobres até, o que era impossível para o filho homem já que a ele só era reservado mulheres de mesma igualha ou um pouco inferior enquanto as mulheres poderiam se juntar a homens de posição social e financeira melhor que a sua e de sua família.

Quanto à metodologia, serão usadas propostas e conceitos da micro-história42

40 SCOTT, Ana Silvia Volpi. As teias que a família tece As teias que a família tece: uma reflexão sobre o percurso da História da Família no Brasil. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 51, p. 13-29, jul./dez. 2009. Editora UFPR. p. 16-2041 SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru, SP; EDUSC, 2003. p. 20.42 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas pers-

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como o método onomástico, o cruzamento de fontes seriais e variadas, redução da escala de observação e o conceito de estratégia. A acepção de estratégia aqui adotada será aquela definida por Levi43, na qual os agentes fazem suas escolhas visando a melhor adaptação do grupo, neste caso da família, a fim de sobreviverem nesse ambiente de fronteira da América Portuguesa. Assim como em um jogo, as estratégias podem tanto ser bem sucedidas quanto redundarem em completo fracasso. Mas elas são o resultado das escolhas dos indivíduos ou do grupo levando em consideração os recursos materiais que possuem e as limitadas informações a disposição. Já referente ao método onomástico, nosso maior obstáculo é que a maioria das mulheres não usava sobrenomes, mas sim “o nome de um santo ou de algum advento religioso, como “de Santo Antônio”, “da Anunciação”, “do Espírito Santo” ou “do Sacramento””.44 O que dificulta sobremaneira a pesquisa, pois além da falta de sobrenomes, muitas vezes quando os têm, os mesmos são mudados. Um exemplo é o de Bernarda Ribeira que aparece como Francisca Ribeira, Bernarda Moreira e Bernarda de Souza.

Para o presente trabalho, foi feito o cruzamento de fontes eclesiásticas e laicas a fim de traçar as trajetórias das viúvas Ana da Guerra e Mariana Quintanilha moradoras, respectivamente, das freguesias de Viamão e Nossa Senhora dos Anjos, pois acreditamos que o acompanhamento de suas trajetórias de vida será de grande valia já que os casos particulares dessas senhoras ajudarão a elucidar as estratégias matrimoniais de outras viúvas da mesma época. Para tanto, fez-se a busca nominal de Mariana, Ana, de seus maridos e filhos, nos róis de confessados, livros de batismos, óbitos e casamentos e documentos do Arquivo Histórico Ultramarino.

As trajetórias de duas viúvas: Ana da Guerra e Mariana Quintanilha

1. Ana da Guerra: filha do capitão mor da Vila de Laguna Francisco de Brito Peixoto com uma índia carijó e natural desta mesma vila, já constava como proprietária de fazenda no Rio Grande de São Pedro no ano de 174145. Junto com os irmãos, foi dos primeiros povoadores de Viamão, além de ter ajudado na construção da primeira capela de Viamão. Foi casada com Diogo da Fonseca natural de Cima do Douro, bispado do Porto, mas em todas as fontes consultadas sempre aparece como viúva. Como em 1741 constava

pectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.43 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 43-47.44 Hameister, op. cit., p.98.45 AHU-RS. Caixa 1, doc. 41. MAPA das fazendas povoadas de gado no Rio Grande de São Pedro até esta data, das partes norte e sul, incluindo os nomes dos proprietários e as quantidades de gado. Rio Gran-de de São Pedro, 13.10.1741.

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seu nome e não o de Diogo como proprietária de fazenda, inferimos que já nesta data Ana era viúva. Com Diogo, Ana teve pelo menos três filhos: Maria da Luz, Miguel da Fonseca Peixoto e José da Fonseca Peixoto, todos nascidos em Laguna. O filho Miguel morre solteiro aos 29 anos em 1762 e “estava debaixo do pátrio poder de sua mãe”46; José e Maria falecem ambos no ano de 1793. José se casa com uma prima em primeiro grau (filha de uma irmã de Ana) e têm numerosa prole enquanto Maria da Luz casa-se duas vezes, mas não tem filhos com nenhum dos dois cônjuges.

Ana da Guerra falece em 1791 sem ter se casado novamente. Observando a idade de seus filhos quando da morte de cada um deles e a idade da própria Ana quando falece, a situação em que ela fica quando seu marido morre é a seguinte: uma fazenda com índios administrados (mas sem escravos negros)47, três filhos pequenos com idades entre 8 e 10 anos e ela com idade entre 30 e 40 anos. Portanto, Ana se encaixa em um fator que Faria apontou como desvantajoso no mercado matrimonial, ou seja, tinha três filhos pequenos quando da morte do marido. Assim, aquele que casasse com ela, teria além do casal, já três bocas a mais para alimentar e isso sem contar os filhos que provavelmente o novo casal teria. Acrescido a isso, quando Ana ficou viúva, Viamão estava no início de sua ocupação, ou seja, em 1741, havia 44 fazendas, sendo uma da própria Ana, duas Reais e outras três pertencentes a seus parentes vindos de Laguna. Portanto, acreditamos que a junção desses dois fatores possa ter prejudicado Ana da Guerra na escolha de um novo cônjuge, principalmente o segundo visto que o mercado matrimonial ainda estava muitíssimo restrito já que os outros proprietários de fazenda, em sua maioria, também já eram casados. 2. Mariana Eufrásia (Francisca) Torres Quintanilha: nasceu por volta de 1754, natural de Santa Catarina, filha de Francisco da Fonseca Quintanilha e Francisca Mariana. Antes de 1777 casa-se com Manuel Joaquim Homem (natural da Vila de Rio Grande), neto de Antonia de Moraes Garces (casada em segundas núpcias com o Sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro). Com a morte deste, os pais de Manuel Joaquim recebem por herança a Estância da Figueira. Quando da morte do marido, entre 1782 e 1783, Mariana passa a ser a proprietária dessa Estância e no ano de 1785 declara que vive dos efeitos dessa sua fazenda48. No Rol de Confessados de Nossa Senhora dos Anjos de 1784, Mariana já era viúva e vivia com onze escravos mais o seu filho do primeiro casamento, Francisco, nascido em 177849. Já no Rol de 1789, Mariana está casada com Joaquim Luis Vicente da Costa e com eles moram os filhos Francisco de 12 anos, Antonio de 2 e José de 1 ano. Os dois últimos certamente fruto do segundo matrimônio. Como nos róis dessa freguesia são

46 Livro 1 de Óbitos de Viamão. (1748-1777).47 Cf. Rol de Confessados de Viamão de 1751.48 AHRS. Códice F1198 A: Relação de moradores de Nossa Senhora dos Anjos para o ano de 1785.49 Cf. Livro 3 de Batismos de Viamão (1769-1782).

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informadas as idades dos paroquianos, sabemos que Mariana era entre cinco e sete anos mais velha que Joaquim Luis. Em 1795, estão com mais dois filhos: João e Domingos, além de possuírem nove escravos. Em relação a estes, se compararmos os que ela possuía quando viúva e o primeiro Rol no qual ela aparece casada com o segundo esposo, vemos que os escravos do novo casal são quase todos os que Mariana já possuía. Infelizmente, como ainda não tivemos acesso aos livros de Batismo e casamento da Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, não nos foi possível saber a procedência de Joaquim Luis Vicente da Costa. Mas o que sabemos, é que quando ficou viúva, Mariana tinha por volta de 30 anos, uma estância, doze escravos e um filho de 5 anos. Acreditamos que isso a coloque num bom patamar no mercado matrimonial, pois ainda está em idade reprodutiva, tem apenas um único filho pequeno e é proprietária de terra e escravos. Quanto ao motivo da escolha de Joaquim Luis só podemos por enquanto especular se foi a própria Mariana que quis ou se a sua família teve alguma influência já que uma irmã e um irmão seus também nascidos em Santa Catarina se mudaram para Viamão constituindo numerosas famílias. Como o presente artigo refere-se a notas iniciais de minha pesquisa no mestrado, há fontes a serem pesquisadas e os resultados ainda são muito embrionários. Apesar disso, o que já se delineia no grupo das duas freguesias estudadas, quais sejam, Viamão e Nossa Senhora dos Anjos, é que viúva com três ou mais filhos pequenos não consegue arranjar um novo casamento e que o recasamento ocorre na faixa dos 30 aos 40 anos de idade, ou seja, quando a mulher ainda está em idade reprodutiva, podendo ter mais filhos com o novo marido. Um exemplo disso é a já citada Bernarda Ribeira, que tem cinco filhos do primeiro casamento e mais cinco do segundo.

Outro ponto a se destacar, é a grande mobilidade geográfica das viúvas como, por exemplo, Luzia Escobar Rodrigues que nasce na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Sarapuí (no atual estado do Rio de Janeiro), vai para a Colônia de Sacramento, depois vai morar na casa do filho em Viamão e finalmente chefia um fogo na freguesia de Nossa Senhora dos Anjos. Por fim, salientamos que a maioria das viúvas está unida pelo compadrio como, por exemplo, Antonia de Ávila que batiza a filha de Bernarda Ribeira e a irmã mais nova de Maria de Araújo Vilela, e cujos pais, em 1752, eram moradores na Estância da Figueira que posteriormente seria herdada por Mariana Eufrásia Torres Quintanilha.

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Fontes Primárias Manuscritas:

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA): Registros paroquiaisFreguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão: - Livro 1 de Batismos (1747-1759, livres e 1747-1757, escravos) - Livro 2 de Batismos (1759-1769, livres) - Livro 3 de Batismos(1769-1782, livres) - Livro 4 de Batismos (1782-1799, livres e 1784-1810, escravos) - Livro 1 de Casamentos (1747-1759, livres e escravos) - Livro 1 de Óbitos (1748-1777, livres e escravos) - Livro 2 de Óbitos (1776-1800, livres e 1776-1817, escravos)

Róis de confessadosFreguesia de Nossa Senhora dos Anjos. Anos: 1780,1782,1784,1789, 1790, 1791, 1792, 1794 e 1795.Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão. Anos: 1751, 1756, 1757, 1758, 1760, 1761, 1776, 1777, 1778, 1779, 1780, 1781 e 1782.Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS):- Códice F1198 A e B: Relação de moradores de Nossa Senhora dos Anjos e Viamão para os anos de 1785 e 1797. Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate: Capitania do Rio Grande do Sul∙ Caixa 1, doc. 41. MAPA das fazendas povoadas de gado no Rio Grande de São Pedro até esta data, das partes norte e sul, incluindo os nomes dos proprietários e as quantidades de gado. Rio Grande de São Pedro, 13.10.1741.

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