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Michael Löwy: O pensamento de Rosa Luxemburgo Algumas palavras pessoais, a título de introdução. Descobri Rosa Luxemburgo por volta de 1955, aos 17 anos, graças ao amigo Paulo Singer. Paulo me explicou longamente a teoria do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo foram os textos políticos que ele me passou, a crítica do centralismo, a visão revolucionária e democrática de Rosa Luxemburgo. Aderimos juntos a uma pequena organização “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente, da qual também faziam parte Maurício Tragtenberg, Hermínio Sacchetta e, alguns anos depois, os irmãos Sader. Tínhamos um local de reuniões no centro de São Paulo que media 2 x 5 metros e cuja única ornamentação era um quadro com um desenho que representava Rosa Luxemburgo. Nessa época, recebi de minha mãe um exemplar das cartas de prisão1 que ela havia trazido de Viena quando emigrou para o Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensão humana e generosa da revolucionária intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a orientação de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 19642, toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. É uma paixão que dura até hoje. MARXISMO E FILOSOFIA DA PRÁXIS Quando publicou as Teses sobre Feuerbach [Em A ideologia alemã, Boitempo 2007] de Marx, em 1888, Engels qualificou-as de “primeiro documento em que está depositado o germe genial de uma nova concepção do mundo”. Com efeito, nesse texto Marx supera dialeticamente – a famosa Aufhebung, negação/conservação/superação o materialismo e o idealismo anteriores e formula uma nova teoria, que se poderia designar como filosofia da práxis. Enquanto os materialistas franceses insistiam que é necessário mudar as circunstâncias para que os seres humanos se transformem, os idealistas alemães acreditavam que, ao promover uma nova consciência nos indivíduos, modifica-se em seguida a sociedade. Contra essas duas percepções unilaterais, que conduziam ao impasse e à busca de um “Grande Educador” ou Salvador Supremo – Marx afirma na Tese III: “A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou mudança de si mesmo [Selbstveränderung], pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto práxis revolucionária”. Em outros termos: na prática revolucionária, na ação coletiva emancipadora, o sujeito histórico as classes oprimidas transforma ao mesmo tempo as circunstâncias materiais e sua própria consciência. Marx volta a essa problemática na Ideologia alemã, na qual escreve: A revolução, portanto, não é apenas necessária porque não há outro meio de derrubar a classe dominante, mas porque a classe subversiva [stürzende] pode ter êxito apenas por meio de uma revolução para livrar-se de toda a velha merda [Dreck] e tornar-se assim capaz de efetuar uma nova fundação da sociedade.”3 Isso significa que a autoemancipação revolucionária é a única forma possível de libertação: é só por sua própria práxis, por sua experiência na ação, que as classes oprimidas podem transformar sua consciência, ao mesmo tempo que subvertem o poder do capital. É verdade que em textos posteriores, como, por exemplo, no famoso prefácio de 1857 à Contribuição à crítica da economia política [em As armas da crítica, Boitempo, 2012], encontramos uma versão muito mais determinista, que vê a

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  • Michael Lwy: O pensamento de Rosa Luxemburgo

    Algumas palavras pessoais, a ttulo de introduo. Descobri Rosa Luxemburgo por volta de 1955, aos

    17 anos, graas ao amigo Paulo Singer. Paulo me explicou longamente a teoria do imperialismo, mas

    o que me atraiu mesmo foram os textos polticos que ele me passou, a crtica do centralismo, a viso

    revolucionria e democrtica de Rosa Luxemburgo. Aderimos juntos a uma pequena organizao

    luxemburguista, a Liga Socialista Independente, da qual tambm faziam parte Maurcio

    Tragtenberg, Hermnio Sacchetta e, alguns anos depois, os irmos Sader. Tnhamos um local de

    reunies no centro de So Paulo que media 2 x 5 metros e cuja nica ornamentao era um quadro

    com um desenho que representava Rosa Luxemburgo. Nessa poca, recebi de minha me um exemplar

    das cartas de priso1 que ela havia trazido de Viena quando emigrou para o Brasil, o que me permitiu

    apreciar melhor a dimenso humana e generosa da revolucionria intransigente. Anos mais tarde,

    escrevi, sob a orientao de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne

    em 19642, toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. uma paixo que dura at hoje.

    MARXISMO E FILOSOFIA DA PRXIS

    Quando publicou as Teses sobre Feuerbach [Em A ideologia alem, Boitempo 2007] de Marx, em

    1888, Engels qualificou-as de primeiro documento em que est depositado o germe genial de uma

    nova concepo do mundo. Com efeito, nesse texto Marx supera dialeticamente a

    famosa Aufhebung, negao/conservao/superao o materialismo e o idealismo anteriores e

    formula uma nova teoria, que se poderia designar como filosofia da prxis. Enquanto os materialistas

    franceses insistiam que necessrio mudar as circunstncias para que os seres humanos se

    transformem, os idealistas alemes acreditavam que, ao promover uma nova conscincia nos

    indivduos, modifica-se em seguida a sociedade. Contra essas duas percepes unilaterais, que

    conduziam ao impasse e busca de um Grande Educador ou Salvador Supremo Marx afirma na

    Tese III: A coincidncia da mudana das circunstncias e da atividade humana, ou mudana de si

    mesmo [Selbstvernderung], pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas

    enquanto prxis revolucionria. Em outros termos: na prtica revolucionria, na ao coletiva

    emancipadora, o sujeito histrico as classes oprimidas transforma ao mesmo tempo as

    circunstncias materiais e sua prpria conscincia. Marx volta a essa problemtica na Ideologia alem,

    na qual escreve:

    A revoluo, portanto, no apenas necessria porque no h outro meio de derrubar a classe

    dominante, mas porque a classe subversiva [strzende] pode ter xito apenas por meio de uma

    revoluo para livrar-se de toda a velha merda [Dreck] e tornar-se assim capaz de efetuar uma nova

    fundao da sociedade.3

    Isso significa que a autoemancipao revolucionria a nica forma possvel de libertao: s por

    sua prpria prxis, por sua experincia na ao, que as classes oprimidas podem transformar sua

    conscincia, ao mesmo tempo que subvertem o poder do capital. verdade que em textos posteriores,

    como, por exemplo, no famoso prefcio de 1857 Contribuio crtica da economia poltica [em As

    armas da crtica, Boitempo, 2012], encontramos uma verso muito mais determinista, que v a

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  • revoluo como resultado inevitvel da contradio entre foras e relaes de produo, mas o

    princpio da autoemancipao dos trabalhadores continua a inspirar o pensamento poltico de Marx.

    Antonio Gramsci, nos Cadernos do crcere [em As armas da crtica, Boitempo, 2012], que vai

    utilizar pela primeira vez a expresso filosofia da prxis para referir-se ao marxismo. Pretendem

    alguns que isso seria apenas uma astcia para enganar seus carcereiros fascistas, que poderiam

    desconfiar de qualquer referncia a Marx; mas esse argumento no explica porque ele no usou outra

    frmula, como dialtica racional ou filosofia crtica. Na verdade, com essa expresso, ele define

    de modo preciso e coerente o que distingue o marxismo como viso de mundo especfica e distancia-

    se radicalmente das leituras positivistas e evolucionistas do materialismo histrico.

    A FILOSOFIA DA PRXIS NO PENSAMENTO DE ROSA LUXEMBURGO

    Poucos marxistas do sculo XX estiveram to prximos do esprito dessa filosofia marxista da prxis

    como Rosa Luxemburgo. Claro, ela no escrevia textos filosficos nem elaborava teorias sistemticas

    como observa com razo Isabel Loureiro: suas ideias, esparsas em artigos de jornal, brochuras,

    discursos, cartas [] so muito mais respostas imediatas conjuntura do que uma teoria lgica e

    internamente coerente4. Ainda assim, a filosofia da prxis, que ela interpreta de maneira original e

    criativa, o fio condutor no sentido eltrico da palavra de sua obra e de sua ao como

    revolucionria. Mas seu pensamento est longe de ser esttico: uma reflexo em movimento, que se

    enriquece com a experincia histrica. Tentaremos reconstituir a evoluo de seu pensamento por

    meio de alguns exemplos.

    verdade que seus escritos so atravessados por uma tenso entre o determinismo histrico a

    inevitabilidade da derrocada do capitalismo e o voluntarismo da ao revolucionria. Isso se aplica

    em particular a seus primeiros trabalhos, anteriores a 1914; Reforma ou revoluo?, de 1899, obra

    com que Rosa Luxemburgo se tornou conhecida no movimento operrio alemo e internacional, um

    exemplo claro dessa ambivalncia. Contra Bernstein, insiste que a evoluo do capitalismo se orienta

    no sentido de um desmoronamento (Zusammenbruch) e que esse desmoronamento a via histrica

    que conduz realizao da sociedade socialista. Trata-se, em ltima anlise, de uma variante

    socialista da ideologia do progresso linear e inevitvel que dominou o pensamento ocidental desde a

    Filosofia da Ilustrao. O que salva seu argumento de um economicismo fatalista a pedagogia

    revolucionria da ao: Somente no curso [] de lutas demoradas e tenazes, poder o proletariado

    chegar ao grau de maturidade poltica que lhe permita obter a vitria definitiva da revoluo5.

    Essa pedagogia dialtica da luta tambm um dos principais eixos da polmica com Lenin, em 1904:

    somente no curso da luta que o exrcito do proletariado se recruta e que ele toma conscincia dos

    fins dessa luta. A organizao, a conscientizao [Aufklrung] e o combate no so fases distintas,

    mecanicamente separadas no tempo [] mas apenas aspectos diversos de um nico e mesmo processo.

    claro que a classe pode se equivocar no curso desse combate, mas, em ltima anlise, os erros

    cometidos por um movimento realmente revolucionrio so histrica e infinitamente mais fecundos e

    valiosos que a infalibilidade do melhor Comit Central.

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  • A autoemancipao dos oprimidos implica a autotransformao da classe revolucionria por sua

    experincia prtica; esta, por sua vez, produz no s a conscincia tema clssico do marxismo ,

    mas tambm a vontade:

    O movimento histrico-universal [Weltgeschichtlich] do proletariado at sua vitria um processo

    cuja particularidade reside no fato de que aqui, pela primeira vez na histria, as prprias massas

    populares impem sua vontade contra as classes dominantes []. Entretanto, as massas no podem

    conquistar essa vontade seno na luta quotidiana com a ordem estabelecida, isto , no quadro dessa

    ordem.6

    Poderamos comparar a viso de Lenin com a de Rosa Luxemburgo na seguinte imagem: para

    Vladimir Ilitch, redator do jornal Iskra, a centelha revolucionria trazida pela vanguarda poltica

    organizada, de fora para dentro das lutas espontneas do proletariado; para a revolucionria judeu-

    polaca, a centelha da conscincia e da vontade revolucionria se acende no combate, na ao de

    massas. verdade que sua viso de partido como expresso orgnica da classe correspondia mais

    situao na Alemanha do que na Rssia ou na Polnia, onde j se colocava a questo da diversidade

    de partidos em relao ao socialismo.

    Os eventos revolucionrios de 1905 no Imprio Russo czarista vo amplamente confirmar Rosa

    Luxemburgo em sua convico de que o processo de tomada de conscincia das massas operrias

    resulta menos da atividade esclarecedora do partido do que da experincia de ao direta e autnoma

    dos trabalhadores:

    o proletariado que vai derrubar o absolutismo na Rssia. Mas o proletariado necessita para isso de

    um alto grau de educao poltica, de conscincia de classe e de organizao. Todas essas condies

    no podem surgir da leitura de panfletos e brochuras, mas somente na escola da luta e na luta poltica

    viva, no curso da revoluo em marcha. [] O sbito levantamento geral [Generalerhebung] do

    proletariado em janeiro, sob a forte impulso dos acontecimentos de So Petersburgo, foi, em sua ao

    dirigida para o exterior, um ato poltico de declarao de guerra revolucionria ao absolutismo. Mas

    essa primeira ao geral direta da classe teve um impacto ainda maior numa direo interna,

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  • despertando pela primeira vez, como que por um choque eltrico [einen elektrischen Schlag], o

    sentimento e a conscincia de classe em milhes e milhes de indivduos.7

    verdade que a frmula polmica sobre panfletos e brochuras parece subestimar a importncia da

    teoria revolucionria nesse processo; por outro lado, a atividade poltica de Rosa Luxemburgo, que

    consistia em grande parte na redao de artigos de jornais e de brochuras sem falar de suas obras

    tericas no campo da economia poltica demonstra, sem dar margem a dvidas, o significado

    decisivo que ela atribua ao trabalho terico e polmica poltica no processo de preparao da

    revoluo.

    Na famosa brochura de 1906 sobre a greve de massas [publicado em As armas da crtica, Boitempo

    2012], Rosa Luxemburgo ainda utiliza os argumentos deterministas tradicionais: a revoluo ocorrera

    com a necessidade de uma lei da natureza. Mas sua viso concreta do processo revolucionrio

    coincide com a teoria da revoluo de Marx, tal como ele a desenvolve na Ideologia alem, obra que

    ela no conhecia, j que s foi publicada depois de sua morte: a conscincia revolucionria no pode

    se generalizar seno no curso de um movimento prtico, a transformao macia dos oprimidos

    s pode se generalizar no curso da prpria revoluo. A categoria da prxis que, para ela e para

    Marx, a unidade dialtica entre o objetivo e o subjetivo, a mediao pela qual a classe em si torna-

    se para si permite superar o dilema paralisante e metafsico da social-democracia alem, entre o

    moralismo abstrato de Bernstein e o economicismo mecnico de Kautsky: enquanto, para o primeiro,

    a mudana subjetiva, moral e espiritual dos homens a condio do advento da justia social,

    para o segundo a evoluo econmica objetiva que leva fatalmente ao socialismo. Isso permite

    entender melhor por que Rosa Luxemburgo se opunha no s aos revisionistas neokantianos, mas

    tambm, a partir de 1905, estratgia de atentismo passivo defendida pelo assim chamado centro

    ortodoxo do partido.

    Essa mesma viso dialtica da prxis que lhe permite superar o tradicional dualismo encarnado no

    Programa de Erfurt do Partido Social-Democrata Alemo entre as reformas (ou o programa mnimo)

    e a revoluo (ou o objetivo final). Pela estratgia da greve de massas que ela prope em 1906

    contra a burocracia sindical e em 1910 contra Kautsky , Rosa Luxemburgo encontra precisamente

    o caminho capaz de transformar as lutas econmicas ou o combate pelo sufrgio universal num

    movimento revolucionrio geral.

    Ao contrrio de Lenin, que distingue a conscincia sindical (trade-unionista) da conscincia social-

    democrata, ela sugere uma distino entre a conscinciaterica latente, caracterstica do movimento

    operrio no perodo de dominao do parlamentarismo burgus, e a conscincia prtica e ativa, que

    surge no processo revolucionrio, quando as prprias massas, e no apenas os deputados e dirigentes

    do partido, aparecem na cena poltica, cristalizando sua educao ideolgica diretamente na prxis;

    graas a essa conscincia prtico-ativa que as camadas menos organizadas e mais atrasadas podem

    se tornar, em perodo de luta revolucionria, o elemento mais radical. Dessa premissa decorre sua

    crtica queles que baseiam sua estratgia poltica numa superestimao do papel da organizao na

    luta de classes que se acompanha em geral da subestimao do proletariado no organizado ,

    esquecendo a ao pedaggica da luta revolucionria: Seis meses de revoluo faro mais para a

  • educao das massas atualmente no organizadas do que dez anos de reunies pblicas e distribuio

    de panfletos8.

    Ento, Rosa Luxemburgo espontanesta? No bem assim. Nessa brochura sobre Greve de massas,

    partido e sindicatos (1906) [em As armas da crtica, Boitempo, 2012], ela insiste que o papel da

    vanguarda consciente no esperar com fatalismo que o movimento popular espontneo caia do

    cu. Ao contrrio, seu papel precisamente preceder [vorauseilen] a evoluo das coisas e

    tentar aceler-la. Ela reconhece que o partido socialista deve tomar a direo poltica da greve de

    massas, o que consiste em dar batalha sua palavra de ordem, sua tendncia, assim como a ttica da

    luta poltica; chega a afirmar que a organizao socialista a vanguarda [Vorhut] dirigente de todo

    o povo trabalhador e que a clareza poltica, a fora, a unidade do movimento resultam precisamente

    dessa organizao9.

    interessante observar que a organizao polonesa dirigida por Rosa Luxemburgo e Leo Jogiches, o

    Partido Social-Democrata do Reino da Polnia e Litunia (SDKPiL), clandestina e revolucionria,

    tinha mais semelhanas com o partido bolchevique do que com a social-democracia alem. Deve-se

    tambm levar em conta, na discusso das concepes organizacionais de Rosa Luxemburgo, suas teses

    sobre a Internacional como partido mundial centralizado e disciplinado, propostas num documento

    redigido em 1914, aps o colapso da Segunda Internacional. Por uma ironia da histria, Karl

    Liebknecht, numa carta amiga Rosa Luxemburgo, tacha essa concepo da nova Internacional como

    demasiadamente centralista e mecnica, com disciplina em excesso e muito pouca

    espontaneidade, considerando as massas demasiados instrumentos da ao, no portadoras de

    vontade; mais como instrumentos da ao desejados e decididos pela Internacional, e menos desejados

    e decididos por elas mesmas10.

    O otimismo determinista (econmico) da teoria do Zusammenbruch, a derrocada do capitalismo como

    vtima de suas prprias contradies, no desaparece de seus escritos, mas, ao contrrio, encontra-se

    no centro de sua grande obra econmica A acumulao do capital [trecho em As armas da crtica,

    Boitempo, 2012], de 1911. O texto que vai superar essa viso tradicional do movimento socialista do

    comeo do sculo a brochura A crise da social-democracia, escrita na priso em 1915, publicada na

    Sua em janeiro de 1916 e assinada com o pseudnimo Junius. Esse documento, graas palavra

    de ordem socialismo ou barbrie, um marco na histria do pensamento marxista. Curiosamente, o

    argumento de Rosa Luxemburgo comea referindo-se s leis inalterveis da histria; ela observa

    que a ao do proletariado contribui para determinar a histria, mas parece acreditar que se trata

    apenas de acelerar ou retardar o processo histrico. At aqui, nada de novo!

    Logo em seguida, porm, ela compara a vitria do proletariado a um salto da humanidade do reino

    animal para o reino da liberdade, acrescentando: esse salto no ser possvel se a fasca incendiria

    [zndende Funke] da vontade consciente das massas no surgir das circunstncias materiais que so

    fruto do desenvolvimento anterior. Aqui aparece ento a famosa Iskra, essa centelha da vontade

    revolucionria que capaz de fazer explodir a plvora seca das condies materiais. Mas o que produz

    essa zndende Funke? graas a uma grande cadeia de poderosas lutas que o proletariado

    internacional far seu aprendizado sob a direo da social-democracia e tentar tomar em suas mos

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  • sua prpria histria [seine Geschichte]11. Em outras palavras: na experincia prtica da luta que se

    acende a centelha da conscincia revolucionria dos oprimidos e explorados.

    Ao introduzir a expresso socialismo ou barbrie, Junius refere-se autoridade de Engels num

    escrito de quarenta anos atrs (o Anti-Dhring): Friedrich Engels disse certa vez: A sociedade

    burguesa acha-se num dilema: avano ao socialismo ou regresso barbrie12. Na verdade, o que

    disse Engels bastante diferente:

    As foras produtivas engendradas pelo modo de produo capitalista moderno, assim como o sistema

    de repartio dos bens que ele criou, entraram em contradio flagrante com o modo de produo

    mesmo, e isso a tal grau que se torna necessria uma mudana do modo de produo e de repartio,

    se no quisermos ver toda a sociedade moderna perecer.13

    O argumento de Engels essencialmente econmico e no poltico, como o de Junius bem mais

    retrico, uma espcie de demonstrao por absurdo da necessidade do socialismo, seno a sociedade

    moderna vai perecer frmula vaga que no se sabe bem a que se refere. Na verdade, foi Rosa

    Luxemburgo quem inventou, no sentido pleno da palavra, a expresso socialismo ou barbrie, que

    teria tanto impacto no curso do sculo XX. Se se refere a Engels, talvez para tentar dar legitimidade

    maior a uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente, foi a guerra e o desmoronamento do

    movimento operrio internacional, em agosto de 1914 que terminou abalando sua convico na

    vitria inevitvel do socialismo. Nos pargrafos seguintes, Junius desenvolve seu ponto de vista

    inovador:

    Ns nos encontramos hoje, tal como profetizou Engels h uma gerao, diante da terrvel opo: ou

    triunfa o imperialismo, provocando a destruio de toda a cultura e, como na Roma Antiga, o

    despovoamento, a desolao, a degenerao, um imenso cemitrio, ou triunfa o socialismo, ou seja, a

    luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, seus mtodos, suas guerras. Tal

    o dilema da histria universal, sua alternativa de ferro, sua balana oscilando no ponto de equilbrio,

    aguardando a deciso do proletariado.

    Pode-se discutir o significado do conceito de barbrie: trata-se, sem dvida, de uma barbrie

    moderna, civilizada, portanto a comparao com a Roma Antiga pouco til e, nesse caso, a

    afirmao da brochura Junius revela-se proftica: o fascismo alemo, manifestao suprema da

    barbrie moderna, resultou da derrota do socialismo. Contudo, o mais importante na frmula

    socialismo ou barbrie a palavra ou: trata-se do princpio de uma histria aberta, de uma

    alternativa ainda no decidida (pelas leis da histria ou da economia), que depende, em ltima

    anlise, de fatores subjetivos: a conscincia, a deciso, a vontade, a iniciativa, a ao, a prxis

    revolucionria. No insisto mais porque escrevi j h muitos anos um artigo sobre essa questo14.

    Como aponta Isabel Loureiro em seu belo livro, verdade que mesmo na brochura Junius, assim como

    em textos posteriores de Rosa Luxemburgo, ainda encontramos referncias ao colapso inevitvel do

    capitalismo, dialtica da histria e necessidade histrica do socialismo15. Mas de alguma

    maneira, com a frmula socialismo ou barbrie, colocavam-se as bases de uma outra concepo da

    dialtica da histria, distinta do determinismo econmico e da ideologia iluminista do progresso

    inevitvel.

  • Voltamos a encontrar a filosofia da prxis no centro da polmica de 1918 sobre a Revoluo Russa

    outro texto capital redigido atrs das grades da priso. O teor desse documento conhecido: de um

    lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenin e Trotsky frente, salvaram a honra do socialismo

    internacional, ousando a Revoluo de Outubro; de outro, um conjunto de crticas, algumas bastante

    discutveis, como as questes agrria e nacional, e outras, como o captulo da democracia, que

    aparecem como profticas. O que preocupa a revolucionria judeu-polaco-alem , acima de tudo, a

    supresso das liberdades democrticas pelos bolcheviques: liberdade de imprensa, de associao e de

    reunio, que so precisamente a garantia da atividade poltica das massas operrias; sem elas,

    inconcebvel a dominao das grandes massas populares. As tarefas gigantescas da transio ao

    socialismo s quais os bolcheviques se apegaram com coragem e resoluo no podem ser

    realizadas sem uma intensa educao poltica das massas e uma acumulao de experincias,

    impossveis sem liberdades democrticas. A construo de uma nova sociedade uma terra virgem,

    que levanta problemas para milnios; ora, s a experincia capaz de trazer as correes

    necessrias e abrir novos caminhos. O socialismo um produto histrico nascido da prpria escola

    da experincia: o conjunto das massas populares (Volksmassen) deve participar dessa experincia, de

    outro modo o socialismo decretado, outorgado, por uma dezena de intelectuais reunidos em torno

    de um pano verde. Para os inevitveis erros do processo, o nico sol curativo e purificador a

    prpria revoluo e seu princpio renovador, a vida espiritual, a atividade e a autorresponsabilidade

    [Selbstverantwortung] das massas que surgem com ela e formam-se na mais ampla liberdade

    poltica16.

    Esse argumento muito mais importante do que o debate sobre a Assembleia Constituinte, no qual se

    concentraram as objees leninistas ao texto de 1918. Sem liberdades democrticas impossvel a

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  • prxis revolucionria das massas, a autoeducao popular pela experincia prtica, a autoemancipao

    revolucionria dos oprimidos e o prprio exerccio do poder pela classe trabalhadora.

    Georg Lukcs, em seu importante ensaio Rosa Luxemburgo marxista, de janeiro de 1921, mostra

    com grande agudeza como, graas unidade da teoria e da prxis (formulada por Marx em

    suas Teses sobre Feuerbach), Rosa Luxemburgo conseguiu superar o dilema da impotncia dos

    movimentos social-democratas, o dilema do fatalismo das leis puras e da tica das puras intenes.

    O que significa essa unidade dialtica?

    Da mesma forma que o proletariado como classe no pode conquistar e guardar sua conscincia de

    classe, elevar-se ao nvel de sua tarefa histrica (objetivamente dada) seno no combate e na ao, o

    partido e o militante individual no podem apropriar-se realmente de sua teoria seno ao passar essa

    unidade em sua prxis.17

    Portanto, surpreendente que, apenas um ano mais tarde, em janeiro de 1922, Lukcs redija o ensaio

    Comentrios crticos sobre a crtica da Revoluo Russa em Rosa Luxemburgo, que tambm vai

    figurar em Historia e conscincia de classe e em que ele rejeita em bloco o conjunto dos comentrios

    dissidentes da fundadora da Liga Esprtaco, afirmando, ainda por cima, que ela se representa a

    revoluo proletria nas formas estruturais das revolues burguesas18 uma acusao pouco crvel,

    como mostra Isabel Loureiro19. Como explicar a diferena, no tom e no contedo, entre o ensaio de

    janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922? Uma converso rpida ao leninismo ortodoxo? Possivelmente,

    mas tambm entra em jogo a posio de Lukcs em relao aos debates do comunismo alemo. Paul

    Levi, principal dirigente do Partido Comunista Alemo, havia se oposto Ao de Maro de 1921,

    uma tentativa fracassada de levante comunista na Alemanha, que teve o apoio entusiasmado de

    Lukcs, mas foi criticada por Lenin. Excludo do partido, Paul Levi decide publicar em 1922 o

    manuscrito sobre a Revoluo Russa, que Rosa Luxemburgo havia lhe confiado em 1918. A polmica

    de Lukcs com respeito a esse documento tambm, indiretamente, um acerto de contas com Paul

    Levi.

    Na verdade, o captulo sobre democracia desse folheto de Rosa Luxemburgo um dos textos mais

    importantes do marxismo, do comunismo, da teoria crtica e do pensamento revolucionrio no sculo

    XX. E difcil imaginar uma refundao do socialismo no sculo XXI que no leve em conta os

    argumentos desenvolvidos nessas pginas febris. Os representantes mais inteligentes do leninismo e

    do trotskismo, como Ernest Mandel, reconheciam que essa crtica de 1918 ao bolchevismo, no que

    concerne questo das liberdades democrticas, era, em ltima anlise, justificada. bvio que a

    democracia que se refere Rosa Luxemburgo a exercida pelos trabalhadores num processo

    revolucionrio, e no a democracia de baixa intensidade do parlamentarismo burgus, na qual as

    decises importantes so tomadas por banqueiros, empresrios, militares e tecnocratas.

    A zndende Funke, a centelha incendiria de Rosa Luxemburgo, brilhou uma ltima vez em dezembro

    de 1918, na conferncia diante do congresso de fundao do Partido Comunista Alemo (Liga

    Esprtaco). Ainda encontramos nesse texto referncias lei do desenvolvimento objetivo e necessrio

    da revoluo socialista, mas trata-se, na realidade, da amarga experincia que vrias foras do

    movimento operrio tm de fazer antes de encontrar o caminho revolucionrio. As ltimas palavras

    RodrigoDestacar

    RodrigoLinha

    RodrigoRetngulo

    RodrigoDestacar

  • dessa memorvel conferncia so diretamente inspiradas pela perspectiva da prxis autoemancipadora

    dos oprimidos:

    s exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder. No h outra maneira de ensinar-lhe.

    Ns j superamos, felizmente, o tempo em que se pretendia ensinar o socialismo ao proletariado.

    Aparentemente esse tempo ainda no passou para os marxistas da escola de Kautsky. Educar as massas

    queria dizer: fazer-lhes discursos, difundir panfletos e brochuras. No, a escola socialista dos

    proletrios no necessita de nada disso. Sua educao se faz quando eles passam ao [zur Tat

    greifen].

    Aqui Rosa Luxemburgo vai se referir a uma famosa frase de Goethe: Am Anfang war die Tat! No

    comeo de tudo no se encontra o Verbo, mas a Ao! Nas palavras da revolucionria marxista: No

    comeo era a Ao, tal aqui nossa divisa; e a ao quando os conselhos de operrios e de soldados

    se sentem chamados a tornar-se a nica fora pblica do pas e aprendem a s-lo20. Poucos dias

    depois, ela seria assassinada pelos paramilitares (Freikorps) mobilizados pelo governo social-

    democrata contra o levante dos operrios espartaquistas de Berlim.

    Rosa Luxemburgo no era infalvel, cometeu erros como qualquer ser humano e qualquer militante, e

    suas ideias no constituem um sistema terico fechado, uma doutrina dogmtica para ser aplicada em

    qualquer lugar e em qualquer poca. Mas, sem dvida, seu pensamento uma caixa de ferramentas

    preciosa para tentar desmontar a mquina capitalista que nos tritura. No por acaso que ela se tornou

    nos ltimos anos, em particular na Amrica Latina, uma das referncias mais importantes do debate

    acerca de um socialismo do sculo XXI, capaz de superar os impasses das experincias reivindicando

    o socialismo do sculo passado, seja a social-democracia, seja o stalinismo. Sua oposio

    irreconcilivel ao capitalismo e ao imperialismo, sua concepo de um socialismo revolucionrio e ao

    mesmo tempo democrtico, baseado na prxis autoemancipadora dos trabalhadores, na autoeducao

    pela experincia e pela ao das grandes massas populares, de uma impressionante atualidade,

    sobretudo aqui, no Brasil e na Amrica Latina.

    Dizem os jornais que recentemente, noventa anos aps sua morte, seu corpo teria sido encontrado.

    Haver um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que a enterrem uma e outra vez, no

    conseguiro libertar-se de seu espectro. A centelha incendiria de suas ideias ningum conseguir

    apagar.

    * Artigo originalmente publicado no nmero 15 da revista semestral Margem Esquerda Ensaios

    Marxistas da Boitempo, com o ttulo, A centelha se acende na ao: a filosofia da prxis no

    pensamento de Rosa Luxemburgo, e recuperado aqui, no Blog da Boitempo, no contexto do

    especial Dia da mulher, dia da luta feminista, no aniversrio de 144 anos de nascimento da

    revolucionria e terica marxista.

    NOTAS

    1 Rosa Luxemburgo, Briefe (Berlim, Verlag der Jugend-Internationale, 1927).

    2 Essa tese est disponvel no Brasil com o ttulo A teoria da revoluo do jovem Marx (Boitempo,

    2013).

    3 Karl Marx e Friedrich Engels, Lidologie allemande (Paris, ditions Sociales, 1968), VI, p. 243.

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  • [Ed. bras.: A ideologia alem, So Paulo, Boitempo, 2007.]

    4 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburgo: os dilemas da ao revolucionria (So Paulo, Unesp, 1995),

    p. 23.

    5 Rosa Luxemburgo, Reforma ou revoluo? (So Paulo, Expresso Popular, 1999), p. 24, 41 e 105.

    Cito a traduo brasileira, de Lvio Xavier, bela figura de militante e intelectual que ainda cheguei a

    conhecer.

    6 Idem, Organisationsfragen der russischen Sozialdemokratie (1904), em Die Russische

    Revolution (Frankfurt, Europische Verlagsanstalt, 1963), p. 27-8, 42 e 44. [Ed. bras.: A Revoluo

    Russa, Petrpolis, Vozes, 1991.]

    7 Idem, Massenstreik, Partei und Gewerkschaften, em Gewerkschaftskampf und

    Massenstreik (Berlim, Vereinigung Internationaler Verlagsanstalten, 1928, p. 426-7) [ed.

    bras.: Greve de massas, partido e sindicatos, So Paulo, Kayros, 1979]. Trata-se de uma coletnea

    de ensaios de Rosa Luxemburgo sobre a greve de massas, organizada por seu excelente discpulo e

    bigrafo Paul Frlich, excludo nos anos 20 do Partido Comunista. Consegui esse livro num sebo em

    Tel-Aviv; o exemplar tinha o carimbo do Kibutz Ein Harod, Seminrio de Ideias, Biblioteca

    Central. O proprietrio do livro era, sem dvida, um esquerdista judeu-alemo que emigrou para a

    Palestina em 1933 e entregou sua biblioteca ao kibutz onde se instalou. Com a morte dos velhos

    militantes do kibutz, e como a nova gerao no l alemo, a biblioteca vendeu ao sebo seu estoque

    de livros na lngua de Marx.

    8 Ibidem, p. 455-7.

    9 Ibidem, p. 445 e 457.

    10 Ver Karl Liebknecht, Rosa Luxemburg: remarques propos de son projet de thses pour le

    groupe Internationale, Partisans, n. 45, jan. 1969, p. 113.

    11 Rosa Luxemburgo, Brochura Junius, em Rosa, a vermelha (2. ed., So Paulo, Busca Vida, 1988),

    p. 114-5, corrigido pelo original alemo Die Krise der Sozialdemokratie von Junius (Bern,

    Unionsdruckerei, 1916), p. 11. Essa cpia da edio original pertenceu a meu professor e orientador

    Lucien Goldmann; recebi-a recentemente de sua viva, Annie Goldmann.

    12 Ibidem, p. 115.

    13 Friedrich Engels, Anti-Dhring (Boitempo, 2015).

    14 Michael Lwy, O significado metodolgico da frmula socialismo ou barbrie, em Mtodo

    dialtico e teoria poltica (3. ed., So Paulo, Paz e Terra, 1985).

    15 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 123.

    16 Rosa Luxemburgo, A Revoluo Russa, em Rosa, a vermelha, cit., p. 217-22, corrigido pelo

    original alemo, Die Russische Revolution, cit., p. 73-6.

    17 Georg Lukcs, Rosa Luxemburg, marxiste, em Histoire et conscience de classe (Paris, Minuit,

    1960), p. 65. [Ed. bras.: Histria e conscincia de classe, So Paulo, Martins Fontes, 2003.]

    18 Ibidem, p. 321.

    19 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 85-8.

    20 Rosa Luxemburgo, Rede zum Programm der KPD (Spartakusbund), emAusgewhlten

  • Reden und Schriften (Berlim, Dietz Verlag, 1953), Band II, p. 687. A edio que estou utilizando

    aqui tem uma histria curiosa: trata-se de uma coletnea de ensaios de Rosa Luxemburgo editada

    pelo Marx-Engels-Lenin-Stalin Institut beim ZK der SED, com prefcio de Wilhelm Pieck,

    dirigente stalinista da Repblica Democrtica Alem, e introdues de Lenin e Stalin, com crticas

    aos erros da autora. Comprei esse exemplar num sebo e descobri que trazia uma dedicatria em

    ingls, datada de 1957, assinada por Tamara e Isaac sem dvida, Tamara e Isaac Deutscher ,

    em que pediam desculpas por no terem encontrado uma edio sem todas essas suprfluas

    introdues!