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Miguel Gomes Martins

1147, A CONQUISTA DE LISBOA

NA ROTA DA SEGUNDA CRUZADA

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

1. A EUROPA, O NORTE DE ÁFRICA E O MÉDIO ORIENTE

NOS SÉCULOS XI E XII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

2. A PENÍNSULA IBÉRICA, DA CONQUISTA MUÇULMANA A MEADOS

DO SÉCULO XII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

3. DO CONDADO PORTUCALENSE ÀS PORTAS DE LISBOA . . . . . . . . . . . 79

4. A QUEDA DE EDESSA E O INÍCIO DA SEGUNDA CRUZADA . . . . . . . . . 105

5. A CRUZADA, S. BERNARDO E SANTARÉM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

6. A LISBOA MUÇULMANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

7. OS PRIMEIROS EMBATES E AS PRIMEIRAS NEGOCIAÇÕES . . . . . . . . . 167

8. INSTALAR OS ARRAIAIS E DOMINAR OS ARRABALDES . . . . . . . . . . . 185

9. OS MANTIMENTOS, OS MORTOS E AS MÁQUINAS . . . . . . . . . . . . . . 203

10. DESAIRES E ESPERANÇAS RENOVADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221

11. À BEIRA DO FIM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

12. O DIA SEGUINTE, OS ANOS SEGUINTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261

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13. DE LISBOA A TORTOSA E OS ESTRANHOS CAMINHOS DA CRUZADA . . 281

14. O FALHANÇO DE DAMASCO E O FIM DA SEGUNDA CRUZADA . . . . . . . 295

CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313

NOTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

BIBLIOGRAFIA E FONTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359

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INTRODUÇÃO

Tratando -se de um acontecimento rodeado da maior importância militar, política e simbólica, não é de admirar que a conquista de

Lisboa em 1147 se encontre mencionada em inúmeras fontes medievais portuguesas, muito em particular nas fontes narrativas, já que a documentação régia desse período é bastante escassa e, sobretudo, silen-ciosa a respeito do episódio.

Contudo, aquelas revelam -se muito desiguais entre si, sobretudo no que toca ao desenvolvimento dado ao tema. A grande maioria limita -se a referi -lo de um modo muito sucinto, mesmo quando são cronologica-mente próximas dos factos, como o Chronicon Conimbricense, o Chro-nicon Lamecense1, os Annales Portugalenses Veteres, ou o Livro das Eras2. Até mesmo nos Annales D. Alfonsi, redigidos no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra pouco depois da morte de Afonso Henriques – e nos quais talvez fosse de esperar, em virtude dos objectivos apologé-ticos da obra3, uma abordagem mais profunda –, a conquista de Lisboa é tratada de forma muito sumária, mas, ainda assim, com um pouco mais de detalhe do que nas atrás referidas4. Bastante mais desenvolvida é, apesar de tudo, a «Notícia da Fundação do Mosteiro de São Vicente de Lisboa», ligeiramente posterior aos acontecimentos, mas escrita ainda no século XII, e que, apesar de não ter como tema central a conquista de Lisboa, não deixa de dar conta de alguns dos seus aspectos mais signi->cativos, de que o autor – Mestre Estêvão, cónego da Sé de Lisboa – teve conhecimento, como o próprio faz questão de a>rmar, graças aos

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depoimentos, por um lado, de um clérigo de nome Ota (Otão?) e, por outro, de Fernão Peres Cativo, testemunhas presenciais do cerco5.

Porém, tendo a conquista da cidade contado com a participação de um grande número de combatentes estrangeiros, não é de admirar que a memória do acontecimento tenha também >cado preservada nos locais de onde esses homens eram oriundos e para onde muitos acabariam por regressar. É isso que, em parte, explica a existência de inúmeras fontes narrativas inglesas, alemãs e Wamengas, que aludem ao cerco de 1147, circunstância que revela igualmente o eco que esse episódio teve na Europa do seu tempo. Contudo, também nestes casos, o que encontra-mos são quase sempre notícias curtas e meramente informativas, como as que foram deixadas para a posteridade nos Annales Blandinieneses, provenientes da Abadia de São Pedro de Ghent, na Flandres6; nos Annal-les Parchenses, da abadia Wamenga de Parc, ligada à Ordem Premons-tratense7, na Chronica Montis Sereni, do mosteiro de cónegos agostinhos de Lauterberg, na Alemanha8, na Sigiberti Continuatio Gemblacensis, produzido na abadia beneditina de Gembloux, na actual Bélgica9, nos Annales Elnonenses, da Abadia de Saint -Amand, situada no Norte de França10, na Chronica Slavorum, escrita entre 1170 e 1177 pelo monge alemão Helmold de Bosau11, ou na Continuatio Gesta Abbatum S. Ber-tini Sithiensium, da autoria do religioso Wamengo Simão de Ghent12, entre muitos outros exemplos. Por vezes, essas fontes apresentam um teor um tudo ou nada mais desenvolvido, embora isso não signi>que necessariamente uma maior profundidade na análise do episódio – como acontece com a Crónica, do inglês Henrique de Huntingdon, escrita poucos anos após os acontecimentos13 –, o que não invalida que não possam, aqui ou ali, fornecer informações originais e de grande interesse, como sucede com os Annales Elmarenses, copiados na Abadia de São Pedro de Ghent14, ou com a Sigiberti Continuatio Praemonstraten-sis, proveniente também da atrás mencionada abadia de Gembloux15.

Apesar da proximidade geográ>ca, e ao contrário do que talvez se esperaria, em Leão e em Castela os cronistas não parecem ter feito grande eco da conquista de Lisboa, que não é sequer mencionada na Chronica Adefonsi Imperatoris, isto é, na crónica de Afonso VII – monarca que governou entre 1126 e 1157 –, elaborada em meados do século XII. E até mesmo o geralmente bem informado arcebispo de Toledo, D. Rodrigo Jimenez de Rada, que no seu De Rebus Hispaniae,

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INTRODUÇÃO 11

já de inícios do século XIII, incluiu um capítulo intitulado Sobre los bri-llantes combates de Alfonso, rey de Portugal, limitou -se a registar, sem nada mais adiantar sobre o assunto, que o monarca português «Con-quistó Santarém, Sintra, Lisboa, Évora y Alenquer»16, uma atenção, aliás, em tudo semelhante à que, décadas mais tarde, seria dada ao episódio pela Primera Cronica General de España, que parece ter -se cingido ao aproveitamento integral daquela passagem da obra do arcebispo tole-dano17.

Mas se a maior parte das fontes cristãs, independentemente da sua proveniência, se limita a pequenas notícias, quando nos debruçamos sobre os textos muçulmanos o panorama consegue ser ainda mais deso-lador, já que quase todos eles passam o episódio completamente em branco. E quando não o fazem, optam por tecer comentários breves, como o de al -Garnati, que terá escrito o Farhat al -Anfus pouco depois da queda da cidade em mãos cristãs e que, com o exagero a que as fon-tes medievais nos habituaram – sobretudo quando se trata de justi>car uma derrota –, assinala apenas que «apoderaram -se os cristãos de San-tarém, Sintra e Lisboa, no ano de 541 [da Hégira]. Eram treze mil homens. Todos morreram no combate, sobrevivendo apenas pouca gente». Informação em tudo semelhante, se bem que ainda mais sinte-tizada, é a de Abd Allah Al -Hamawi que, no seu Murgam al -Baldan, já de inícios do século XIII, refere simplesmente que «os cristãos apoderaram--se dela [de Lisboa] no ano de 573 [da Hégira], e creio que continua em seu poder»18. E não deixa de ser curiosa a circunstância de ambos os autores errarem na data da queda da cidade.

 Claro que nem todas as fontes narrativas que referem a conquista de

Lisboa se pautam pelo laconismo. De facto, algumas crónicas portugue-sas descrevem -na até com um considerável grau de detalhe. Trata -se, no entanto, de relatos todos eles muito posteriores aos acontecimentos. É o caso, por um lado, da anónima Crónica de Portugal de 141919 – cujos capítulos respeitantes à conquista de Lisboa seriam reproduzidos, quase sem alterações, nas crónicas de Duarte Galvão, de >nais do século XV, e de Duarte Nunes de Leão, dos últimos anos do século XVI – e, por outro, da ainda mais tardia, do século XVII, Monarquia Lusitana20. Ape-sar de muitos estudiosos, na esteira de Herculano, terem posto em causa a credibilidade dessas duas obras, por aludirem a situações – algumas

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delas envolvidas numa enorme dose de fantasia – a que mais nenhuma outra fonte faz menção, nem por isso o seu testemunho – desde que sujeito a uma aturada análise crítica – deve deixar de ser tido em linha de conta, pois, independentemente da forma como são apresentados, muitos desses episódios parecem, no essencial, referir -se a factos real-mente ocorridos e que, de outra forma, não seriam nunca conhecidos.

Mas por muito importantes que sejam estas fontes de que temos vindo a dar conta, as que mais úteis se revelam para a compreensão da forma como decorreu o cerco de Lisboa são, inquestionavelmente, os relatos deixados por alguns dos Cruzados intervenientes nesse episódio. Extremamente ricos em informações, pormenorizados e, sobretudo, >dedignos – se bem que devam também ser lidos e interpretados à luz dos propósitos dos seus autores, preocupados em enaltecer o papel das forças estrangeiras e em apresentar a conquista como uma vitória esma-gadora da Cruz sobre o Crescente –, são, por isso, a principal base de estudo de todo e qualquer trabalho que tenha como objecto de análise o cerco de 1147.

E de entre estes testemunhos aquele que mais se destaca é o De Expugnatione Lyxbonensi, uma longa e detalhada missiva enviada ao clérigo inglês Osberto de Bawdsey dando -lhe conta dos sucessos obtidos pelos Cruzados. Mas se o destinatário não suscita qualquer dúvida, o mesmo não pode ser dito a respeito da autoria da epístola. Apontado inicialmente como tratando -se de um indivíduo de nome Osberno ou Osberto e, mais tarde, como Ranulfo ou Randulfo de Glanville, o res-ponsável por este texto seria, em 1990 e de acordo com a proposta de Harold Livermore, identi>cado como Raul, o mesmo presbítero que, em Abril de 1148, doou ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra a ermida que instituíra durante o cerco21. Ainda que envolta em inúmeras inter-rogações – nomeadamente as que rodeiam a autenticidade do do cumento da doação de 1148 –, esta é, no entanto, a hipótese que mais consenso tem reunido e a que tem sido adoptada pela maior parte dos estudiosos, pese embora a existência de outras teses, como a de Maria João Violante Branco, que – com bons argumentos – sugere a possibilidade de a carta ter sido redigida por Roberto, cónego da Sé de Lisboa, «cujo percurso e características também poderiam adequar -se ao per>l do narrador da tomada de Lisboa»22. Este texto – que se encontra ainda hoje na Biblio-teca do Corpus Christi College, em Cambridge – foi publicado pela

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INTRODUÇÃO 13

primeira vez na segunda metade do século XIX nos Portugaliae Monu-menta Historica23. Seguiram -se outras edições, algumas das quais acom-panhadas pela respectiva tradução portuguesa, como a que foi dada à estampa em 1935, por José Augusto de Oliveira, com reedição logo no ano seguinte24. Essa tradução seria reproduzida na íntegra por Costa Brochado, em 195225, e por José da Felicidade Alves, em 198926, e, de modo parcial, por Alfredo Pimenta, em 194627. Pela mesma altura em que surgiu o trabalho de J. A. de Oliveira, em 1936, o estudioso norte--americano Charles Wendell David editou também uma primeira versão bilingue – latim e inglês – desse mesmo texto, o que contribuiu larga-mente para uma maior divulgação, nomeadamente nos países anglófo-nos, do episódio da conquista da Lisboa28. Mais recentemente, em 2001, Aires Augusto do Nascimento publicou uma nova edição – latim e por-tuguês – da carta em questão, a mesma que iremos utilizar ao longo deste nosso trabalho, complementada, em apêndice, com a «Notícia da Fun-dação do Mosteiro de São Vicente de Lisboa» e com a doação de 1148 a que atrás nos referimos29. Porém, por muito importante e rico que se revele, o relato de Raul não foi o único deixado para a posteridade pelos participantes no cerco de 1147.

Não tão extensa nem eloquente, mas igualmente da maior importân-cia, é a chamada «Fonte Teutónica», ou «Carta de Lisboa», isto é, as missivas enviadas pelos cruzados Winando, Arnulfo e Duodequino de Lahnstein, respectivamente ao arcebispo de Colónia, Arnoldo; ao bispo de Thérouanne, Milon I; e a Cuno, abade do mosteiro de Disibodenberg, dando -lhes conta do resultado da expedição. Tudo indica tratar -se de três versões de uma mesma carta – a de Winando, segundo Susan Eding-ton – que, por sua vez, serviu de modelo para as outras duas, copiadas pelos seus companheiros. Estas revelam, no entanto, algumas diferenças, nomeadamente na introdução e na conclusão, em particular na versão de Duodequino, a mais extensa e detalhada das três e que, por isso, faz referência a questões a que nenhuma das outras alude30. A carta de Arnulfo foi publicada em Portugal, pela primeira vez, nos Portugaliae Monumenta Historica, em 186131, tendo sido traduzida por José Augusto de Oliveira em 1936, aquando da segunda edição da Conquista de Lis-boa aos Mouros (1147), obra onde também apresenta o texto original em latim32. Esta tradução seria, mais tarde, integralmente aproveitada por Alfredo Pimenta para as Fontes Medievais de História de Portugal33,

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colectânea na qual encontramos também, reproduzidos a partir dos Monumenta Germaniae Historica – onde foram publicados pela pri-meira vez –, os textos originais em latim de Duodequino e de Winando (identi>cado, porém, como «anónimo»)34. Sem contradizer o depoi-mento de Raul, que apresenta, essencialmente, o ponto de vista das for-ças anglo -normandas, a «Carta de Lisboa» – em qualquer uma das suas três versões – fornece uma outra perspectiva do cerco, isto é, a dos cru-zados Wamengos e germânicos, o que, em conjugação com o De Expug-natione Lyxbonensi, permite não só uma leitura muito mais abrangente de todos os acontecimentos, como uma visão detalhada da forma como foram conduzidas as operações no sector oriental da cidade, onde esses contingentes foram posicionados.

 Mas ao contrário das fontes, abundantes e diversi>cadas, os estudos

sobre o cerco de Lisboa de 1147 são ainda em número relativamente modesto. A primeira abordagem mais demorada e consistente do tema – em larga medida proporcionada pelo acesso que o autor teve às fon-tes, nomeadamente a algumas que até então não eram sequer conheci-das em Portugal – deve -se a Alexandre Herculano, na sua História de Portugal, originalmente publicada entre 1846 e 185335. Seguiu -se, logo em 1884, um estudo de Júlio de Castilho, correspondente ao segundo volume da obra Lisboa Antiga – Bairros Orientais, mas que nada acres-centa ao que já se sabia, podendo inclusivamente a>rmar -se que o tra-balho em causa constituiu um retrocesso relativamente ao seu antecessor36. Cenário em tudo semelhante é aquele com que deparamos no primeiro volume – quase inteiramente dedicado à conquista de 1147 – das Peregrinações em Lisboa, do olisipógrafo Norberto de Araújo, publicado em 1938 e em que a abordagem, assente numa nar-rativa >ccionada, cumpre um propósito eminentemente literário37. Quase um século depois de Herculano, nesse mesmo ano de 1938, é >nalmente publicado, por José Augusto de Oliveira, o primeiro estudo monográ>co inteiramente dedicado à conquista de Lisboa, um trabalho que, não só pelo pioneirismo, como pela circunstância de se encontrar solidamente alicerçado no testemunho das fontes, viria a a>rmar -se como uma obra de referência no que ao tema diz respeito38. O autor voltaria a abordá -lo pouco tempo depois, em 1940, centrando a sua análise nos contingentes de Cruzados que participaram na campanha39,

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INTRODUÇÃO 15

a que se seguiu, em 1947, uma síntese incluída na obra colectiva Lisboa, Oito Séculos de História, coordenada por Gustavo Matos Sequeira40, e, por >m, em 1949, um pequeno estudo em que questiona se a parti-cipação dos Cruzados no cerco foi, ou não, previamente planeada41. Em 1952 era dada à estampa uma nova monogra>a sobre a conquista de Lisboa – ou melhor, sobre as questões relacionadas com a preparação da campanha e com a presença das forças estrangeiras –, na qual o autor, Costa Brochado, rebatia algumas das teses defendidas por José Augusto de Oliveira42. Contudo, quando talvez se esperasse que o ambiente gerado em torno das Comemorações dos 800 anos da Con-quista de Lisboa aos Mouros, em 1947, despoletasse a produção de mais estudos, a partir de inícios da década de 1950 o interesse da his-toriogra>a pelo tema parece ter esmorecido, acabando votado a um quase total esquecimento durante praticamente meio século. A ideia que perpassa é a de que a questão foi considerada esgotada e que nada de novo havia para acrescentar ao que já se sabia.

Na verdade, só em 2003 o assunto seria retomado, na ocasião, por Pedro Gomes Barbosa, através de um pequeno estudo monográ>co inti-tulado Conquista de Lisboa. A Cidade Reconquistada aos Mouros43. Os primeiros anos do século XXI vieram, aliás, con>rmar este interesse renovado pela conquista de Lisboa, abordada sobretudo em trabalhos de síntese, alguns dos quais da autoria de estudiosos estrangeiros que, por essa altura, começam igualmente a dedicar -lhe uma maior atenção, o que não será alheio ao facto de os estudos sobre a Segunda Cruzada terem também por esses anos recebido um interesse renovado. Recor-demos, por exemplo, o texto de Matthew Bennett – «Military aspects of the conquest of Lisbon, 1947» – incluído na obra colectiva The Second Crusade. Scope and Consequences, de 200144 e o capítulo – «The conquest of Lisbon» – dedicado ao tema por Jonathan Phillips no livro The Second Crusade. Extending the Frontiers of the Christendom, edi-tado em 201045, a que se somam os de Kelly DeVries e de Donald J. Kagay, ambos publicados em obras colectivas de âmbito mais amplo, o primeiro no livro Battles of the Crusades (1097 -1444), de 2007, e o segundo, em 2010, na The Oxford Encyclopedia of Medieval Warfare and Military Technology46. Não se pense, no entanto, que foram apenas autores estrangeiros que, nos últimos anos, produziram trabalhos de síntese sobre o cerco de 1147. Veja -se as importantes páginas que em

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2006 José Mattoso lhe dedicou na biogra>a de Afonso Henriques47, a abordagem que nós próprios levámos a cabo num dos capítulos da obra De Ourique a Aljubarrota. A Guerra na Idade Média48, ou o trabalho de Joaquim Ferreira da Silva centrado na componente naval do cerco de Lisboa49.

Claro que nem todos os estudos privilegiaram uma abordagem pano-râmica. Na verdade, são também vários os trabalhos que incidem sobre questões especí>cas relacionadas com o tema. Recordemos o de Alfredo Pimenta, datado de 1940, sobre o episódio de Martim Moniz, em que contesta as objecções de Alexandre Herculano50; ou o de Fernando Castelo -Branco, de 1960, sobre o mesmo assunto51; o artigo de Miguel de Oliveira, de 1964, a respeito do papel de Bernardo de Claraval – que o autor rejeita – no cerco de Lisboa52; o de Maria João Branco acerca da cidade no período imediatamente após a conquista e publicado em 200153; o de Armando de Sousa Pereira, dedicado ao culto ao cruzado alemão Henrique de Bona54; e, mais recentemente, o de Marco de Oli-veira Borges, sobre a componente naval portuguesa e o seu eventual papel no cerco55. E neste aspecto também os autores estrangeiros se deixaram seduzir desde cedo pelas matérias relacionadas com a con-quista de Lisboa, embora quase sempre a respeito da participação dos contingentes de cruzados. Veja -se os artigos de Stephen Lay a respeito da >gura e do culto do cavaleiro Henrique de Bona56; ou de Alan J. Forey, intitulado «The siege of Lisbon and the Second Crusade», onde expõe os seus argumentos contra as teses que defendem que a presença dos Cruzados no cerco foi o resultado de um planeamento prévio57; o estudo de Francisco García Fitz e Feliciano Novoa Portela sobre a presença de Cruzados nos teatros de operações da Reconquista58; os dois artigos de Giles Constable e um outro de André L’Hoist sobre os contingentes Wa-mengos59; o trabalho de Bruno Meyer acerca da participação alemã na Reconquista peninsular durante os séculos XII e XIII60; ou ainda as pági-nas que, na sua dissertação de doutoramento, Lucas Villegas -Aristizábal dedicou à análise do contributo anglo -normando para o cerco de Lisboa61.

 Face a este panorama de que temos vindo a dar conta, pareceu -nos

ser esta a altura indicada para, através de um trabalho monográ>co e de âmbito panorâmico, revisitarmos – como sugeria o título de um artigo

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INTRODUÇÃO 17

de Maria João Branco62 – a conquista de Lisboa em 1147. Poder -se -á contra -argumentar a>rmando que nada mais há para conhecer a respeito do cerco porquanto, no essencial, as fontes a que hoje temos acesso são praticamente as mesmas que, desde Herculano, têm sido a base da maior parte dos estudos dedicados ao tema. Na verdade, esse lote não se alte-rou substancialmente, embora desde então tenham sido dadas a conhe-cer mais algumas fontes estrangeiras que permaneciam desconhecidas dos autores portugueses. Para além disso, os estudos que entretanto foram sendo levados a cabo sobre a origem, datação, autoria e objecti-vos desses testemunhos possibilitam uma interpretação mais rigorosa não só dos textos em causa, como do contexto em que foram produzidos. A tudo isto acresce também o facto de pretendermos ainda submeter todas essas narrativas a um questionário diferente daqueles a que ante-riormente foram sujeitas, pelo que muitas das respostas que delas espe-ramos obter serão necessariamente diversas. De igual modo, o recurso a fontes – portuguesas e estrangeiras – até agora pouco exploradas ou a que, por um ou outro motivo, não foi dada a devida atenção, poderá também fornecer dados interessantes e que, como esperamos, contri-buam para elaborar uma imagem ainda mais completa e porventura diferente do cerco de 1147.

Mas existem outros motivos que, no nosso ponto de vista, justi>cam uma nova abordagem da conquista de Lisboa. Como atrás deixámos sublinhado, os progressos historiográ>cos veri>cados a partir do início deste século vieram lançar uma nova luz não só sobre inúmeros aspectos da conquista de Lisboa, como sobre muitas outras áreas temáticas rela-cionadas. É o caso da História de Lisboa, muito em particular dos con-tributos da Arqueologia, graças aos quais temos hoje uma imagem, ainda que parcelar e fragmentada, consideravelmente precisa e detalhada a respeito da cidade medieval, nomeadamente durante o período islâmico. Do mesmo modo, os estudos mais recentes a respeito das Cruzadas e, muito concretamente, da Segunda Cruzada, permitem observar e anali-sar o cerco de 1147 no contexto desse grande empreendimento, do qual foi um dos episódios mais relevantes. Da maior importância para a ela-boração de uma visão que se pretende abrangente e rigorosa da con-quista de Lisboa são também os estudos de História Militar Medieval – nomeadamente os que incidem sobre o armamento, a organização e a composição dos exércitos e a poliorcética –, disciplina que nas últimas

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décadas sofreu um enorme impulso e cujos contributos se revelam igual-mente fundamentais para a tarefa a que nos propomos.

Em suma, parece -nos existir um sólido conjunto de boas razões para que revisitemos a conquista de Lisboa. De facto, um novo questionário às fontes – algumas das quais até agora pouco utilizadas –, por um lado, e o apoio dos mais recentes contributos da historiogra>a, por outro, permitir -nos -ão observar este episódio com um outro olhar e, como tal, compreendê -lo também sob uma perspectiva diferente e, seguramente, mais completa do que as que foram levadas a cabo pelos autores que nos antecederam, mas cujas abordagens não foram, de modo algum, esquecidas. E é precisamente com o intuito de alargar o nosso campo de observação que optámos por não olhar para o cerco de 1147 como um acontecimento isolado, mas sim integrado num contexto cronológico e geográ>co mais amplo, ou seja, no quadro da História Medieval Portuguesa e Peninsular, da Segunda Cruzada e do «mundo» dos séculos XI e XII.

 É este, pois, o desa>o que propomos ao leitor, ou seja, que embarque

connosco numa longa viagem que nos levará das Ilhas Britânicas ao Norte de África, da Sicília ao Báltico, do Médio Oriente à Península Ibérica e, claro está, até à cidade de Lisboa. Esta é, no entanto, uma jor-nada que não empreenderemos sozinhos. Para isso teremos a companhia e a ajuda de um grande número de amigos e colegas que, de diversas formas, connosco colaboraram neste projecto: os Doutores João Gou-veia Monteiro, Francisco García Fitz e Santiago Macias, pelas sugestões e críticas suscitadas pelo cuidado que dedicaram à leitura de alguns dos capítulos desta obra; aos Mestres Armando de Sousa Pereira, Manuel Fialho – com quem também troquei inúmeras impressões a respeito do cerco e da Lisboa Medieval –, Inês Lourinho e o Major Carlos Afonso, aos quais muito agradeço as indicações bibliográ>cas, bem como as obras e os artigos que me facultaram e, por >m, a Dr.ª Ana Paula Serra, que atentamente e cuidadosamente traduziu alguns dos textos latinos que utilizámos ao longo deste livro. Para todos, o meu mais sincero agradecimento.

Está, pois, na altura de dar início a este percurso que nos levará até ao longínquo ano de 1147, quando a Lushbuna muçulmana se conver-teu na Lisboa portuguesa.

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A EUROPA, O NORTE DE ÁFRICA E O MÉDIO ORIENTE NOS SÉCULOS XI E XII

Dois séculos de mudanças

Os séculos XI e XII constituem, um pouco por toda a Europa, um período de profundas transformações económicas, sociais, tecnológicas e políticas. Apesar de, como sublinha Jacques Le Goff, ser difícil neste processo distinguir aquilo que foi causa e aquilo que foi efeito1, tudo indica que essas mudanças tiveram início com o enorme impulso resul-tante da renovação das práticas agrícolas e pecuárias e o aumento da produtividade daí decorrente. São mutações tornadas possíveis e con-solidadas por um claro crescimento populacional e pela consequente disponibilidade de mão -de -obra, mas também, por um lado, pelas alte-rações favoráveis das condições climáticas, expressas num ligeiro aumento da temperatura e numa diminuição da pluviosidade, e, por outro, por importantes desenvolvimentos tecnológicos: novos métodos de atrelagem animal, crescente utilização do ferro nos instrumentos e alfaias agrícolas, introdução de melhores e mais e>cazes sistemas de irrigação, etc. Como consequência de tudo isto, em particular do aumento da produtividade das terras, da introdução de novas culturas e da ampliação dos campos agrícolas – recorde -se que este é o período dos grandes arroteamentos, do desbravamento de Worestas e da secagem de muitos pântanos –, veri>ca -se também uma melhoria substancial da dieta alimentar, um aumento da esperança média de vida, uma redução da taxa de mortalidade e, como tal, a consolidação da tendência de

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aumento populacional, que em algumas regiões teve início ainda no século IX e que segundo alguns autores pode mesmo ter sido o motor de todos esses desenvolvimentos veri>cados nos séculos XI e XII2.

É também ao longo destas duas centúrias que se observa um notável aumento da produção artesanal, que praticamente abandona os campos para se instalar de>nitivamente nas cidades, onde a procura era maior e onde, por isso, as oportunidades de lucro eram consideravelmente superiores. Cada vez mais especializados e sujeitos a uma regulamenta-ção própria, os mesteirais passam a organizar -se em associações e a distribuir -se, por iniciativa das autoridades municipais, por ruas ou bair-ros próprios, de modo a que tanto a sua actividade, quanto os preços praticados e a qualidade dos produtos fossem objecto de um controlo mais apertado, mas também para que o consumidor pudesse, mais facil-mente, tomar as suas opções no momento da compra3.

Todo este aumento da produção agrícola, pecuária e artesanal pos-sibilitou a criação de excedentes, pelo que não é de espantar o desenvol-vimento comercial daí decorrente, em particular o do comércio internacional – que recuperava, assim, boa parte do dinamismo perdido nos séculos IX -X em virtude da segunda vaga de invasões, protagonizada por Viquingues, Magiares e Muçulmanos –, apoiado pelo aumento da circulação monetária e pela cunhagem de uma quantidade crescente de moeda de boa qualidade e de valor superior (de prata e de ouro). Apesar de se veri>car, por essa altura, uma melhoria considerável das redes viá-rias, agora tornadas também mais seguras, o papel de destaque nesta renovação comercial é desempenhado pelo transporte marítimo4. Mais rápido e com a enorme vantagem de permitir deslocar um volume muito superior de mercadorias, será esse um dos grandes trunfos de cidades italianas costeiras como Veneza, Amal> ou Bari que, dada a sua posição privilegiada, em pleno Mediterrâneo e a meio caminho entre o Oriente e o Ocidente, irão desempenhar um papel de destaque nesse comércio, especialmente a partir da Primeira Cruzada e da fundação dos Estados Latinos do Oriente, com os quais irão desenvolver relações comerciais privilegiadas5.

Resultado da dinamização do grande comércio, este é também o período das grandes feiras, como as que tinham lugar na região de Champagne (Provins, Troyes, Lagny e Bar -sur -Aube), a meio caminho entre a Flandres e a Itália e surgidas justamente nos inícios do século XII.

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Eram locais de reunião de uma multidão de mercadores de diversas proveniências que aí acorriam com o objectivo de vender por atacado os seus produtos – na sua maioria bens de grande valor ou mesmo de luxo –, mas também com o intuito de comprar outros que, por sua vez, comercializavam, com um lucro consideravelmente elevado, nas suas terras de origem, nomeadamente nas feiras e nos mercados que anima-vam as cada vez mais importantes cidades do Ocidente medieval6.

De facto, o século XII é também um momento de consolidação do renascimento urbano iniciado na centúria precedente, com particular destaque para os núcleos populacionais localizados no cruzamento das principais rotas comerciais, mas também para os que se situavam nas proximidades das terras agrícolas mais ricas e cujos excedentes permi-tiam não só alimentar os que nelas habitavam, como também favoreciam um maior dinamismo artesanal e comercial. E nesta relação entre a retoma da vida urbana e o incremento das actividades artesanais e mer-cantis, algumas cidades especializam -se mesmo no fabrico e comercia-lização de determinados produtos. Na Península Itálica, por exemplo, onde o surto urbano é mais precoce, esse fenómeno observa -se desde cedo em cidades como Lucca, com as sedas; Brescia, com as armas; Bolonha, com o calçado; ou Cremona, com os têxteis, sem dúvida um dos produtos que mais dinamismo trouxeram à economia medieval7 e que possibilitou também, na Flandres, o crescimento de cidades como Ypres ou o nascimento de outras, como Douai e Gand8.

Ora, numa sociedade ainda profundamente ruralizada, as comunida-des urbanas que agora se desenvolvem constituíam autênticas novidades – ou «corpos estranhos», como lhes chama João Gouveia Monteiro9 – necessitadas, por isso, de um enquadramento administrativo e jurídico próprio. Além disso, em muitas delas era urgente ocupar o vazio político deixado pela incapacidade revelada por reis e senhores, quer na defesa, quer no exercício da justiça, do mesmo modo que era forçoso encontrar meios legais que protegessem da pressão feudal os que aí habitavam e trabalhavam. A resposta a todas estas necessidades surge através da criação dos concelhos e das comunas, o que em alguns casos podia ser conseguido pelas populações com o recurso à violência e na sequência de revoltas, mas que na maior parte das vezes resultava de uma nego-ciação de direitos e deveres com os monarcas ou com os senhores laicos e eclesiásticos, que rapidamente perceberam as vantagens económicas

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que poderiam obter com o crescimento e desenvolvimento desses centros urbanos10.

Todas estas transformações de que muito sinteticamente temos vindo a dar conta vieram, inevitavelmente, introduzir novos equilíbrios no sistema das três ordens (os que rezam – oratores, os que lutam – bella-tores, os que trabalham – laboratores) em que a sociedade feudal se encontrava organizada.

No seio da nobreza – que por si só já era um grupo que pouco tinha de homogéneo11 – essas modi>cações são, essencialmente, resultantes do facto de a sua riqueza assentar essencialmente na posse da terra e de isso ter obrigado os membros desse grupo a encontrar formas de se adaptarem rapidamente a um mundo em que o dinheiro tinha uma importância crescente, levando, por exemplo, ao surgimento de modelos estipendiários de remuneração do serviço militar dos nobres e, em mui-tos casos, à sua mercenarização. Outro dos elementos de perturbação surgidos na ordem dos bellatores resultou do aparecimento de uma nobreza empobrecida e obrigada a encontrar, na guerra, nos torneios e também no comércio, novas formas de subsistência, uma situação que decorre da perda de muitos dos seus rendimentos, mas que, para muitos, se agrava devido à adopção generalizada do morgadio, a solução encon-trada para impedir a fragmentação do património entre vários herdeiros e que, como se percebe, veio afectar, sobretudo, os >lhos segundos e bastardos, afastados assim da herança familiar12.

As mudanças resultantes do quadro geral de alterações dos séculos XI e XII provocaram também importantes modi>cações no interior da ordem dos oratores, isto é, do clero –, que, tal como a nobreza, estava longe de constituir um grupo homogéneo –, e não apenas as que resultam da Reforma Gregoriana e do processo de centralização do poder papal, que incidem sobretudo junto do clero secular. Com efeito, elas expressam--se também no clero regular, por exemplo, através da recuperação da Regra de Santo Agostinho, ou do crescimento da importância e da inWuência política da Ordem de Cluny. Mas este é também um período de surgimento de novas experiências monástico -conventuais como a Ordem de Cister, fundada nos >nais do século XI, e que, com a sua reac-ção de oposição ao mundo urbano emergente, expressa na instalação das suas abadias em locais ermos e inóspitos, fará desses monges os res-ponsáveis por importantes arroteamentos e desbravamento de Worestas,

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mas também por um notável desenvolvimento das técnicas agrícolas13. Outra das grandes novidades surgidas nos meios religiosos é a criação, primeiro na Palestina – na sequência da fundação dos Estados Latinos do Oriente – e depois na Península Ibérica, das ordens militares, uma fórmula de vida monástica que, pela primeira vez, conjugava a missão religiosa com o exercício das armas e que, desde cedo, irá ter o apoio do papado.

Quanto ao grupo popular, os laboratores, as alterações expressam -se, sobretudo, na libertação gradual de boa parte das velhas formas de ser-vidão e de dependência a que a esmagadora maioria dos seus membros estava sujeita, em grande medida porque os senhores cedo perceberam as vantagens económicas que daí poderiam resultar. Se bem que isso tenha levado, em muitos casos, a novas formas de dependência, ainda assim menos pesadas, este processo acabará por possibilitar o surgi-mento de um número crescente de foreiros e rendeiros livres, alguns dos quais se convertem mesmo em médios e grandes proprietários rurais14. Quanto aos meios urbanos, as alterações dizem respeito à constituição de uma burguesia ligada ao grande comércio internacional, mas também de uma classe média composta por pequenos e médios comerciantes, artesãos, o>ciais, etc. Como a>rma Georges Duby, «da massa dos homens destinados a cuidar dos outros, a alimentá -los, a servi -los (…) libertara -se um grupo (…); não desempenhavam já a terceira função, abastecedora, para satisfazer somente o seu senhor; trabalhavam por sua conta, enriqueciam, guardando para si parte das taxas que faziam entrar ou do valor do produto que forneciam»15. Contudo, importa não esquecer o reverso da medalha, ou seja, a formação de um vasto prole-tariado urbano ligado às actividades manufactureiras e composto por gente de condição livre, maioritariamente vinda dos campos em busca de uma vida melhor, mas que o mercado de trabalho não conseguirá assimilar na sua totalidade, criando excedentes que acabarão inevita-velmente por engrossar o número crescente de pedintes e de vagabundos que caracteriza também este novo mundo urbano16.

E inevitavelmente, as monarquias europeias não >cam à margem deste cenário de profundas transformações económicas, tecnológicas e sociais. Com efeito, ainda que a ritmos diferentes, elas serão igualmente afectadas por essas e por muitas outras mudanças. Porém, saberão também aproveitá -las para encontrar, por um lado, novas fontes de

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>nanciamento, novos apoios e novos aliados, essenciais para o processo de consolidação e de a>rmação da sua autoridade e do seu poder, mas também para iniciarem um processo de expansão territorial que irá mudar por completo o mapa da Europa e do Médio Oriente durante os séculos seguintes17.

Inglaterra

Uni>cado na sua quase totalidade por Alfredo, o Grande (871 -899) e seus sucessores, entre >nais do século IX e inícios do século X, o reino de Inglaterra foi conquistado em 1066 por Guilherme, o Bastardo (duque desde 1037 e rei entre 1066 e 1087), duque da Normandia, na sequência da vitória obtida na Batalha de Hastings, no dia 14 de Outu-bro desse ano, sobre o rei Harold II Godwynson (1066). Contudo, a resistência dos anglo -saxões duraria ainda durante mais alguns anos, obrigando os exércitos de Guilherme a duras campanhas que termina-riam apenas em 1071. O Bastardo convertia -se, assim, n’o Conquis-tador.

Com uma tão forte ligação ao território da Normandia, ou seja, ao continente, poder -se -ia esperar que ambos os lados do canal da Mancha seguissem caminhos políticos semelhantes, ou seja, que no reino recém--conquistado se implantasse igualmente um modelo político de dispersão do poder em diversos condados, ducados e castelanias, como o que então existia em território francês. Contudo, o que se veri>cou em Inglaterra foi precisamente o contrário, assistindo -se a um rápido processo de a>r-mação do poder real, em larga medida graças ao seu carácter profunda-mente militarizado, carácter esse que possibilitou, desde 1067 e até 1075, ou seja, logo nos primeiros anos do reinado de Guilherme, dar início à conquista de Gales18, ou lançar, em 1072, uma importante campanha militar contra a Escócia, destinada a proteger a zona norte do reino das incursões dali provenientes19. Ainda assim, isso não impediu o surgi-mento de diversos períodos de turbulência e de instabilidade interna, como os conWitos que opuseram o Conquistador ao seu >lho mais velho, Robert Curthose, a quem prometera legar o ducado da Normandia e que em 1078, por pretender de imediato assumir essa dignidade, se revoltara contra o próprio pai, derrotando -o em batalha campal nas

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imediações do castelo de Gerberois. Tratou -se, no entanto, de um des-fecho que em nada alterou a vontade e as disposições do monarca, motivo pelo qual o conWito viria a reacender -se em 1086, com Robert a recorrer ao apoio armado do rei Filipe I de França, motivo que levou Guilherme a atacar Nantes, em >nais de Julho ou inícios de Agosto do ano seguinte, uma operação militar que viria a ditar a sua morte, pouco mais de um mês depois, na sequência das graves lesões provocadas por uma queda de cavalo sofrida durante essa mesma campanha20.

A Coroa de Inglaterra seria então entregue a Guilherme II Rufus (1087 -1100), cujo reinado foi, de um modo geral, tranquilo, salvo alguns períodos de maior agitação político -militar resultante da revolta, em 1088, do seu tio Odão, bispo de Bayeux e irmão d’o Conquistador, apoiado pelo turbulento duque da Normandia21.

A morte de Guilherme II, em 1100, num acidente de caça, sem deixar quaisquer descendentes, parecia anunciar um período de luta pelo trono. Contudo, a presença de Robert Curthose na Palestina, na sequência da sua participação na Primeira Cruzada, abriria o caminho para a entro-nização do seu irmão, Henrique I (1100 -1135). Mas como certamente se esperava, a reacção de Robert, que desde 1087, depois de perdoado pelo seu pai, governava o ducado da Normandia, não se faz esperar. E assim, em 1106, leva a cabo uma tentativa, rapidamente abortada, de invasão de Inglaterra. Em resposta, Henrique cruza a Mancha e cerca o castelo de Tinchebrai, junto do qual teve lugar uma curta batalha cam-pal, mas de importância decisiva, que terminou com a captura de Robert, um desfecho que permitiu a Henrique I apossar -se do ducado da Nor-mandia22. Contudo, isso acabaria por colocá -lo em rota de colisão, por um lado, com o condado de Anjou e com o rei de França, preocupados com uma eventual expansão inglesa para territórios franceses, e, por outro, com importantes sectores da própria aristocracia normanda. Desagradada com uma situação que lhes retirava muita da autonomia de que gozava, uma boa parte desses nobres viria mesmo a pegar em armas contra Henrique I que, em 1124, acabaria por lhes inWigir uma pesada derrota na Batalha de Bourgthéroulde23.

Os conWitos internos voltariam a varrer o reino de Inglaterra a partir de 1135, ano da morte de Henrique I, com a guerra civil que opôs a sua >lha, Matilda – viúva do imperador germânico Henrique V e mulher do conde Godofredo de Anjou – a Estêvão de Blois (1135 -1154), sobrinho

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do rei – >lho da sua irmã Adélia e do conde de Blois –, que, com o apoio dos barões ingleses e dos cidadãos de Londres, conseguiu impor -se face às pretensões da rival24. A disputa pelo trono – que teria alguns episódios militares dignos de destaque, tais como a Batalha de Northallerton, em 1138, o cerco a Arundel, em 1139, ou o cerco e Batalha de Lincoln, em 114125 – seria ultrapassada apenas em 1153. Neste ano, a morte prematura do >lho e único herdeiro de Estêvão abriria as portas a um acordo de paz que estabelecia que a sucessão deveria recair sobre Hen-rique, >lho de Matilda e do seu segundo marido, o conde de Anjou, que desde 1142 protagonizava, em nome da mãe, a principal oposição a Estêvão. Rei de Inglaterra e duque da Normandia a partir de 1154, Henrique II (1154 -1189) governava também o condado de Anjou – her-dado de seu pai em 1151. A estes domínios acrescentaria ainda o ducado da Aquitânia, que passaria a controlar graças ao seu casamento com a ex -mulher do rei de França, Leonor da Aquitânia, em 1152, convertendo--se, assim, num dos mais poderosos monarcas do seu tempo e cujo senhorio se estendia desde a fronteira escocesa até aos Pirenéus.

França

De forma lenta e marcada por constantes avanços e recuos, a monar-quia francesa começa, a partir de meados do século XI, a dar sinais de pretender conduzir uma política de expansão do Domínio Régio – situado entre os rios Loire e Oise, e com uma área de apenas 8000 km2 –, a única região em território francês onde o rei, mesmo com di>culdade, ainda conseguia exercer um poder efectivo e de onde retirava avultados rendimentos, em boa medida porque era aí que se situavam algumas das melhores e mais povoadas terras do reino26. Quanto ao restante território, onde exercia apenas uma autoridade meramente residual, era constituído por uma verdadeira manta de retalhos de principados, ducados e condados e, sobretudo, de castelanias feudais, cuja origem remontava, em muitos casos, a meados do século IX, isto é, à altura da desagregação do Império Carolíngio. Por tudo isso, não é de admirar que os primeiros monarcas da dinastia dos Capetos, que sobe ao trono em >nais do século X, se intitulassem «reis dos Francos» e não «reis de França»27.

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Apesar de durante o seu governo se assistir ao surgimento de um grande número de castelanias, muitas delas encravadas em pleno Domí-nio Régio, Henrique I (1031 -1060) – o terceiro rei dessa dinastia – mostrou -se mais preocupado em travar a ascensão do ducado da Normandia, cujo poder crescia ameaçadoramente. Contudo, todas as tentativas que fez para dominar aquele território redundaram em fra-cassos. Assim foi em Fevereiro de 1054 quando, apesar do importante apoio militar de Godofredo Martel de Anjou, acabou batido, na Batalha de Mortemer, pelas forças de Guilherme, o Bastardo28, ou quando, em Agosto de 1058, igualmente auxiliado pelos contingentes do duque de

O Sul de Inglaterra e o reino de França em meados do século XII

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