103 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS Milton Marques Júnior Caros Alunos, Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-lhes o mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da leitura de textos escolhidos de seus principais autores, como Homero e Virgílio, no gênero épico, e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero dramático. Com a leitura dos autores escolhidos, teremos condições de compreender um conceito sobre o Clássico e a funcionalidade das literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas especicidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a perceber a obra de Homero e de Virgílio como textos deagradores do fenômeno literário do Ocidente, importantes, portanto, para a nossa cultura. O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias para perceber na nossa época e na nossa cultura os elementos de um mundo antigo que muitos supõem morto e enterrado no passado. Apenas com o contato direto com os textos do passado é que teremos condições de entender o processo de evolução de nossa cultura e o modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais especicamente, na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la melhor. A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira unidade mostrará uma introdução e contextualização do mundo clássico greco-latino; a segunda unidade visa ao estudo de Homero, com a leitura detalhada do Canto I da Ilíada; a terceira unidade pretende dar uma visão genérica dos autores do teatro trágico, e a quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do Livro I da Eneida. No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita continuamente, através de exercícios e questionários periódicos; participação nos debates no fórum ou on-line e, evidentemente pela contribuição dada por cada um, a partir da reexão sobre temas discutidos nas aulas. Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do material que preparamos. Professor Milton Marques Júnior

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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS

Milton Marques Júnior

Caros Alunos,Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-lhes o

mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da leitura de textos escolhidos de seus principais autores, como Homero e Virgílio, no gênero épico, e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero dramático. Com a leitura dos autores escolhidos, teremos condições de compreender um conceito sobre o Clássico e a funcionalidade das literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas especiÞ cidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a perceber a obra de Homero e de Virgílio como textos deß agradores do fenômeno literário do Ocidente, importantes, portanto, para a nossa cultura.

O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias para perceber na nossa época e na nossa cultura os elementos de um mundo antigo que muitos supõem morto e enterrado no passado. Apenas com o contato direto com os textos do passado é que teremos condições de entender o processo de evolução de nossa cultura e o modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais especiÞ camente, na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la melhor.

A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira unidade mostrará uma introdução e contextualização do mundo clássico greco-latino; a segunda unidade visa ao estudo de Homero, com a leitura detalhada do Canto I da Ilíada; a terceira unidade pretende dar uma visão genérica dos autores do teatro trágico, e a quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do Livro I da Eneida.

No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita continuamente, através de exercícios e questionários periódicos; participação nos debates no fórum ou on-line e, evidentemente pela contribuição dada por cada um, a partir da reß exão sobre temas discutidos nas aulas.

Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do material que preparamos.

Professor Milton Marques Júnior

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UNIDADE I

UMA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS

1.1 Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação

1.1.1 O Clássico no mundo de hoje

Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula, diferentemente do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros itens. Qual o sentido desta diferença? Acreditamos que o termo esteja tão banalizado – característica do mundo moderno, imediato e informatizado em que vivemos – que se torna difícil entender o que é o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com a mesma velocidade com que aparece e desaparece, nada é clássico, obviamente. É isto mesmo: se tudo é clássico, nada é clássico. Não há mais distinção possível. Mundo da imagem, não da reß exão; mundo da concepção de que a aprendizagem é fácil e não diÞ cultosa; mundo da atração que vem de fora e não da curiosidade que vem de dentro. É nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer coisa de somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não há, então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta pergunta, passemos a veriÞ car como o termo se constrói ao longo do tempo, para ser destruído pela modernidade em que vivemos.

1.1.2 O Clássico na Grécia

A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora em maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na Grécia e em Roma, durante o período que se convencionou chamar de Antiguidade Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas idéias, nem sempre ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele denomina. Que se trata de uma antiguidade é um fato inquestionável; que essa antiguidade é totalmente clássica, isso é plenamente discutível. Comecemos por determinar esse período.

Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a História, dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história ocidental, chamaram de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo tempo entre os séculos VIII a. C. e o século V da Era Cristã. Assim, a Antiguidade Clássica vai da redescoberta da escrita pelos gregos (século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente, no ano 476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros, provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como podemos ver, trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas pessoas, e não me reÞ ro necessariamente aos historiadores, aludem a esses 1300 anos como se fossem um coisa só! Nada mais errôneo. As duas principais culturas da Antiguidade Clássica – a grega e a romana – se assemelham, mais esta àquela do que o contrário, mas são diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no comércio...

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Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período cultural da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece pouco, não? Posso-lhes aÞ rmar, contudo, que se o conhecimento produzido, digamos, nesses cem anos tivesse sobrevivido na íntegra, os estudiosos teriam matéria para muitos e muitos séculos de estudo... Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa de que tenham sido produzidas mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas sobreviveram... É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura um bem de valor incalculável.

Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da tirania; a Þ losoÞ a questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita ganha relevância jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico mostra que a humanidade precisa de homens, não de heróis; cria-se o conceito de cidade (pólis) e de cidadão (polites), e o direito é comum a todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de escritores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e de Þ lósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na Ática, é o palco de todas essas transformações. Veja o mapa abaixo.

1.1.3 O Clássico em Roma

Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é necessário que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta cidade que dominaria o mundo, primeiro pelas armas, depois pela herança cultural, começou como uma simples vila de pastores, na metade do século VIII a. C., em 753. A Roma que nos interessa, mais especiÞ camente, neste tópico, é a Roma compreendida entre o século I a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro do mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, apesar de conturbado momento político que vai da transição da República ao início do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando pelas guerras civis. A Grécia

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também viu seu momento especial ser marcado pelas guerras contra os persas (início do século V a. C., cerca 499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do aparecimento da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o romance de costumes com Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse intervalo se produziu o melhor da literatura latina com o aparecimento de grandes poetas, protegidos por Mecenas, amigo do imperador Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa época também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17 a. C.), poema que celebra a glória de Roma, na Þ gura de Enéias, o troiano incumbido da ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que daria origem à mais gloriosa das cidades. É o período que se costuma chamar de Século de Augusto. Veja no mapa abaixo a localização de Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e estratégica no Mediterrâneo.

1.1.4 O Classicismo

Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico, período que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade cultural e literária, é de se esperar que estas características sejam irradiadas ao longo da história da humanidade e recuperadas ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o mundo moderno e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados pelo humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento Þ losóÞ co, artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra pela Europa ocidental, tem como desdobramento natural o Classicismo. O Classicismo europeu se

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conÞ gura para nós brasileiros na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-1580), principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da gloriÞ cação da navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias, permitindo a expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de navegação, até então, desconhecida. O poema retoma a tradição da épica clássica de Homero e Virgílio, na exaltação dos feitos heróicos de um povo, de uma nação ou de um herói, com a exaltação centrada na Þ gura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524), tomado metonímica e Þ ccionalmente como a nação lusitana.

Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O Classicismo é por deÞ nição um movimento cultural que visa ao retorno do Clássico, em outra circunstância, com outros objetivos. A nova Europa que nascia das grandes navegações, a partir de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, era o campo propício para a volta dos grandes heróis épicos, navegadores, cujo símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais Þ losóÞ cos de busca da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero (1483-1546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de indulgências, em 1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o protestantismo signiÞ ca perda da hegemonia da Igreja Católica. O mundo que se descortina com novas culturas leva a novas reß exões, e a própria conÞ guração do universo se modiÞ ca com o heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como centro desse universo – antropocentrismo – em oposição ao teocentrismo medieval. É isso que faz o gênio de Leonardo da Vinci (1452-1519), quando imagina e desenha O Homem Vitruviano. Nada mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas...

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1.1.5 O Neoclassicismo

Como última representação do Clássico greco-latino toma força, no século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da racionalidade iluminista. Tratava-se de um movimento literário nascido na Itália, desde 1690, com a Arcádia Romana, e continuado em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de onde chegaria ao Brasil e ß oresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante. O ideal do movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos deuses e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e generosa se encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida simples, em meio à natureza deleitosa, sem preocupações com o amanhã, que se perde diante da ganância do homem, tem sua origem no poema Os trabalhos e os dias, do poeta grego Hesíodo (século VIII a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo nome do movimento – Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável. Esse momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o Clássico da Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina em ambos. Podemos dizer que o Clássico greco-latino é contemporâneo de si mesmo, procurando o seu próprio mundo e seu próprio tempo. O Classicismo surge em um momento propício ao retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada pelas grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a natureza acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de um tempo mítico e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens brutalmente jogam-se uns contra os outros e a queda é fatal: na Idade de Ferro em que se encontram, não há mais espaço para Vergonha (Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram de seu convívio. Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito menos com os deuses...

Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por exemplo, a obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) Marília de Dirceu.

1.1.6 Há espaço para o Clássico?

“Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?”

Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo Calvino (1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estudam e que pretendem conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que somos ainda esmagados por uma avalancha muito maior de informações incorpóreas do mundo virtual da internet, que torna quase impossível uma reflexão sobre elas. A rapidez e a quantidade da informação produzida, em ambiente sedutor de alta tecnologia, contribuem para que se afaste o leitor do livro e, mais especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo antigo, obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é inaudível ou quase.

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Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado como um ciclo, permanece, porque fundado em valores universais e entranhados no ser humano. O Clássico vive em permanente estado de movimentação, o que lhe garante a eternidade. Há dois mil e oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado e analisado. Nenhum outro autor na história da humanidade ocidental é tão prestigiado quanto Homero. A Ilíada e a Odisséia continuam encantando gerações e gerações de leitores, Þ lmes continuam sendo feitos, em cada página há ainda um mundo a se descobrir com relação a estes poemas, incansavelmente editados, para Þ carmos apenas com Homero.

E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas, inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta direta e on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V a. C.) e verão que o sistema de fogueiras acesas ao longo das ilhas do mar Egeu para dar a notícia

a Clitemnestra do retorno do rei Agamêmnon à Grécia, acabada a guerra de Tróia, antecipa em, pelo menos, 2500 anos a internet...

Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é de escolas, bibliotecas e uma melhor formação dos nossos professores – parece que para isto é que não há espaço, infelizmente –, pois para onde nos voltamos vemos a marca viva do passado em nossas vidas, nos nossos nomes, nos nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à maneira de Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos” (1993: 16).

De forma a Þ xar o exposto até aqui, propomos a leitura acompanhada de uma das Liras de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua erudição, passeia pela antiguidade greco-latina de Homero

a Horácio, passando por Virgílio e pelos ciclos da mitologia grega. Não há como ler o narcisismo de Dirceu, sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as penas e diÞ culdades do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o aproveitamento sadio da vida, na paz do campo, pelos pastores, sem preocupações com o amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só é possível com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso, pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer à tona essa relação existente nas diversas Liras, os seus temas recorrentes e reescrituras, como a beleza divina de Marília, os sofrimentos provocados por Amor e a exaltação do carpe diem horaciano.

Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase 5000 versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, dividido e publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799 e 1812. O texto que vamos abordar, a Lira VII, pertence à primeira parte do poema que trata do amor do pastor Dirceu por sua amada, a pastora Marília, cuja beleza é ressaltada e

Busto de Homero

(Museu do Louvre)

Fragmento da

Ilíada

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enaltecida. De beleza divinizada, Marília chega a ser louvada como mais bela do que as três deusas olímpicas, padrões da beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite (Vênus) e Palas Atena (Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não deixa de fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua mocidade, sua força de mando e propriedades, além de sua destreza como poeta. É a parte mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, reß ete a natureza equilibrada do mítico mundo clássico. É importante ressaltar a forte presença mitológica, imprescindível para a compreensão do poema. Vamos à Lira VII1.

Lira VII

Vou retratar a Marília,A Marília, meus amores;Porém como? se eu não vejoQuem me empreste as Þ nas cores!Dar-mas a terra não pode;Não, que a sua cor mimosaVence o lírio, vence a rosa,O jasmim e as outras ß ores.

Ah! socorre, Amor, socorreAo mais grato empenho meu!Voa sobre os Astros, voa,Traze-me as tintas do Céu.

Mas não se esmoreça logo;Busquemos um pouco mais;Nos mares talvez se encontremCores, que sejam iguais.Porém não, que em paraleloDa minha ninfa adoradaPérolas não valem nada,Não valem nada os corais.

Ah! socorre, Amor, socorreAo mais grato empenho meu!Voa sobre os Astros, voa,Traze-me as tintas do Céu.

Só no céu achar-se podemTais belezas como aquelas,Que Marília tem nos olhos,E que tem nas faces belas;Mas às faces graciosas,Aos negros olhos, que matam,Não imitam, não retratamNem auroras nem Estrelas.

1 GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: A poesia dos inconÞ dentes: poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto; organização de Domício Proença Filho; artigos, ensaios e notas de Melânia Silva de Aguiar et alii. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 583-584

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Ah! socorre, Amor, socorreAo mais grato empenho meu!Voa sobre os Astros, voa,Traze-me as tintas do Céu.

Entremos, Amor, entremos, Entremos na mesma Esfera;Venha Palas, venha Juno,Venha a Deusa de Citera.Porém, não, que se MaríliaNo certame antigo entrasse, Bem que a Páris não peitasse,A todas as três vencera.

Vai-te, Amor, em vão socorresAo mais grato empenho meu:Para formar-lhe o retratoNão bastam tintas do Céu.

Trata-se de uma Lira constituída por quatro estrofes de doze versos heptassílabos, nitidamente dividida em um agrupamento inicial de oito versos (oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou quarteto), funcionando como refrão, em que se observa uma mudança apenas na última estrofe, tendo em vista a inutilidade do esforço de Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a beleza de Marília. O esquema das rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG, observando-se a existência de versos brancos.

Marília é retratada como pura e recatada, pois “sua cor mimosa/Vence o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras ß ores”. Sua beleza é sem igual, superando as cores vivas dos corais e a brancura leitosa das pérolas. Prepara-se já nessa estrofe a divindade de Marília, com Dirceu chamando-a de “ninfa adorada”, numa referência às divindades protetoras dos bosques, e da natureza de modo geral, encarnadas por mulheres extremamente belas.

A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais brilhante que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável pela abertura das portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a saída de Apolo cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe, fecha-se o ciclo: Marília é constituída por algo superior aos quatro elementos básicos – terra, água, ar e fogo – vez que não existe nestes quatros elementos nada comparável à sua beleza.

A última estrofe é a conÞ rmação dessa beleza com a alusão à disputa do Monte Ida. Marília é confrontada com as três deusas olímpicas, consideradas padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas Atena (Minerva) e Afrodite (Vênus), aqui chamada pelo epíteto de Deusa de Citera. Recuperemos a história mítica.

Palas Atena, deusa da sabedoria participa de um concurso de beleza, envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais bela presente na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais de Aquiles. A deusa Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe darem atenção durante o casamento de Peleu e Thétis, fez surgir entre os convidados um pomo de ouro, destinado “à mais bela”. Prontamente as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto.

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Zeus, não querendo decidir uma questão tão delicada, chamou Hermes e mandou que ele as levasse ao Monte Ida, onde o pastor Páris faria a escolha. Apresentando-se diante de Páris, cada uma das deusas tentou suborná-lo. Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibilidade na guerra; Afrodite, desnudando os seios, garantiu-lhe o amor da mais bela das mulheres, Helena da Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris entregou o pomo a Afrodite, fazendo o ódio das outras duas se voltar contra si e contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a guerra de Tróia, desencadeada pelo rapto de Helena por Páris, ocasião em que Palas e Hera se colocarão ao lado dos gregos, portanto, contrárias a Páris e aos troianos, protegidos por Afrodite

Afrodite aparece no texto da Lira através de um dos seus vários epítetos deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos duas tradições são registradas: a primeira aÞ rma que Afrodite seria a Þ lha de Zeus e Dione, conforme vemos na Ilíada, de Homero (V, 370-372; XIV, 224; XXIII, 185); a segunda, defendida por Hesíodo, apresenta a deusa como Þ lha de Urano e das espumas do mar (versos 134-210). De acordo com a versão da Teogonia de Hesíodo, Urano teve o órgão sexual cortado e atirado por seu Þ lho Cronos ao mar. Assim, da mistura do esperma do deus com as espumas, teria nascido Afrodite. Tão logo nasceu, a deusa foi conduzida pelas ondas, ou por ZéÞ ro, o vento, para a Ilha de Citera, daí o seu epíteto de Citeréia.

Páris, Þ lho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado pelo pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como futuro responsável pela destruição do reino. Por piedade, o pastor incumbido de tal tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido por Cassandra, sua irmã, e reintegrado à família real. A quarta estrofe do poema, portanto, refere-se ao julgamento que Páris, teve de fazer, para escolher a mais bela das três deusas, cujas conseqüências serão o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição de Tróia. Ao aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a superioridade de Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar o mito. Páris a faria vencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de Tróia não acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não morre. Vê-se, portanto, que Helena contraposta a Marília, marca a oposição entre a beleza ruinosa (Helena) e a beleza benfazeja (Marília), contribuindo para a harmonia do mundo. E há mais: como o poeta-pastor diz que para formar o retrato de Marília não bastam tintas do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória, através do mito, o ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris, para conÞ gurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna possível a perenidade e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito rememora. Tal leitura só é possível com o conhecimento do mito de Páris e Helena, constante do poema O rapto de Helena, de Colutos (século VI d. C.).

Texto para Exercício

Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos elementos do mundo clássico nele existentes. Para a sua análise, recomendamos o conhecimento do mito de Apolo e Dafne.

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Soneto 122

O Þ lho de Latona, esclarecido,Que com seu raio alegra a humana gente,O hórrido Piton, brava serpente,Matou, sendo das gentes tão temido.

Ferio com arco e de arco foi ferido,Com ponta aguda de ouro reluzente;Nas tessálicas praias, docemente,Pola Ninfa Penea andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,Ciência, diligências, nem respeitoDe ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um enganoDe quem era tão pouco em seu respeito,Eu que espero de um ser que é mais que humano?2

Luís Vaz de Camões

Textos de Apoio

Mito de Apolo e Daphne

Mito de Python (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os outros animais sob formas diversas, assim que a umidade que ela ainda retinha foi esquentada sob os fogos do sol, quando o calor inß ou a lama e as águas pantanosas, quando os germes fecundos das coisas, nutridos por um solo viviÞ cante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram com o tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo das sete embocaduras deixou os campos inundados e levou de volta suas torrentes para seu antigo leito, quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua chama no limo recente, os cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um grande número de animais; eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no momento mesmo de seu nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de alguns de seus órgãos; muitas vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a outra não é senão ainda terra informe. Com efeito, assim que a umidade e o calor se combinaram um com ou outro, eles concebem; é destes dois princípios que nascem todos os seres; ainda que o fogo seja inimigo da água, uma claridade úmida engendra todas as coisas e a concórdia na discórdia convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta de lama pelo dilúvio recente3, recomeça a receber do alto dos ares o calor dos raios do sol, ela deu à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais sua Þ gura primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade que ela engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recém-nascidos, serpente então desconhecida, tu era um objeto de terror, tanto tu ocupavas o espaço ao longo da montanha. O arqueiro divino, que jamais antes

2 CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões (corpus dos sonetos camonianos); edição e notas por Cleonice Serôa da Mo a Berardinelli. Paris: Centre Culturel Portugais Lisbonne; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 180.

3 O dilúvio enviado por Zeus, para punir os homens (Les métamorphoses, I, v. 253-312).

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não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos prontos para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele a matou; por negras feridas se espalhou o veneno da fera. Para que o tempo não pudesse apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de concursos solenes, os jogos sagrados que do nome da serpente vencida tomaram o nome de Pythicos. Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos, suas pernas ou as rodas de seus carros tinham tido a vitória, recebiam como recompensa uma coroa de carvalho; o loureiro ainda não existia e, para cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela fronte, Febo tomava emprestado seu ramo a árvores de toda sorte.

Mito de Daphne (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne, Þ lha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de uma violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de sua vitória sobre a serpente, o vira curvar, puxando a corda para si, as duas extremidades de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas armas poderosas? Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com elas eu posso desferir golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um inimigo; ainda há pouco, quando Python cobria grande superfície com seu ventre inchado de venenos, eu a abati sob minhas ß echas inumeráveis. Para ti, que te seja suÞ ciente iluminar com tua tocha não sei que fogos de amor; guarda-te de pretender meus sucessos”. O Þ lho de Vênus lhe respondeu: “Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te furar a ti mesmo; tanto todos os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória é inferior à minha”. Ele disse, fende o ar com o batimento de suas asas e, sem perder um instante, se posta sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava cheia de ß echas, ele retira duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o amor, a outra o faz nascer. A que o faz nascer é dourada e armada com uma ponta aguda e brilhante; aquela que o expulsa é arredondada e sob a haste contém chumbo. O deus fere com a segunda a ninfa, Þ lha de Peneu; com a primeira ele traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a ninfa foge até ao nome do amante; os abrigos das ß orestas, os despojos dos animais selvagens que ela capturou fazem toda a sua alegria; ela é a êmula da casta Febe4; uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem. Muitos pretendentes a pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos, recusando-se ao jugo de um esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o que é o canto do himeneu, o amor, o casamento? Ela não se inquietava de sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse: “Tu me deves um genro, minha Þ lha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime, ela tem horror às tochas conjugais; o rubor da vergonha se espalha sobre seu belo rosto e, com os braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe responde: “Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgindade; Diana bem que o obteve do seu5”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados, Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus votos. Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele o espera e ele está enganado por seus próprios oráculos6. Como uma palha leve se abrasa, depois que se colheram as espigas, como uma sebe se consome ao fogo de uma tocha que um viajante por acaso dela aproximou demasiado ou que ele ali deixou quando o dia já nascia; assim o deus inß amou-se; assim ele queima até o fundo de seu coração e nutre de esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos da ninfa ß utuando sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele, se ela tomasse cuidado com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os astros; ele vê sua pequena boca, que não lhe é suÞ ciente apenas ver; ele admira

4 A deusa Diana (Ártemis), a irmã de Apolo, de cujo séquito Daphne participava.

5 Referência a Júpiter (Zeus), pai de Diana (Ártemis).

6 Como deus da profecia, Apolo deveria saber que não teria sucesso no amor com Daphne, mas o amor engana até os profetas...

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seus dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ainda. Ela, ela foge, mais rápido que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais propósitos:

“Ó ninfa, eu te imploro, Þ lha de Peneu, pára; não é um inimigo quem te persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as pombas com as asas trêmulas fogem da águia; cada uma tem seu inimigo; eu, é o amor que me joga sobre tuas pegadas. Qual não é minha infelicidade! Cuidado para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente feridas, a marca das sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O terreno sobre o qual te lanças é rude; modera tua corrida, eu te suplico, diminui a tua fuga; eu mesmo, eu moderarei minha perseguição. Sabe, no entanto, que tu me encantaste; eu não sou um montanhês, nem um pastor, ou um desses homens incultos que vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes, imprudente, tu não sabes de quem tu foges e porque tu foges. É a mim que obedecem o país de Delfos7 e Claros8 e Tênedos9 e a residência real de Patara10; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que ele revelou o futuro, o passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons das cordas. Minha ß echa acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas seguramente ainda, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A medicina é uma das minhas invenções; em todo o universo me chamam o que socorre e o poder das plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.”

Ele ia dizer ainda mais, porém a Þ lha de Peneu continuava sua corrida louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a seus olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em sentindo contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus cabelos levantados; sua fuga realça ainda mais sua beleza. Mas o jovem deus renuncia a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio amor, ele segue os passos da ninfa redobrando a sua velocidade. Quando um cão gaulês percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam, um para pegar a presa, outro para salvar sua vida; um parece sobre o ponto de pegar o fugitivo, ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso, estreita de perto suas pegadas; o outro, incerto se ele o pegou, se livra das mordidas e esquiva-se da boca que o tocava; assim o deus e a virgem são levados um pela esperança, outro pelo medo. Mas o perseguidor, levado pelas asas de Amor, é mais rápido e não tem necessidade de repouso; já ele se inclina sobre as espáduas da fugitiva, ele roça com o hálito os cabelos esparsos sobre seu pescoço. Ela, no Þ m das forças, empalideceu; quebrada pelo cansaço de uma fuga tão rápida, os olhares voltados para as águas do Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os rios como tu têm um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza demasiado sedutora”.

Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros; uma Þ na casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se mudam em folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis, aderem ao solo por raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore coroa sua cabeça; de seus encantos não resta senão o brilho. Febo, no entanto, sempre a ama; sua mão posta sobre o tronco, ele sente ainda o coração palpitar sobre a casca recente; cercando com seus braços os ramos que substituem os membros da ninfa, ele cobre a madeira com seus beijos; mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem, diz ele, visto que não podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore;

7 Cidade na Grécia, onde Apolo tem seu templo mais famoso.

8 Cidade na Jônia, onde existe um templo de Apolo.

9 Ilha no mar Egeu, em frente a Tróia, onde existe o célebre templo de Apolo Esmintheu, o dos ratos.

10 Residência dos soberanos da Lícia, na Ásia Menor. Apolo é chamado também de Apolo Lício.

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para todo o sempre tu ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras, minhas aljavas; tu acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres farão escutar cantos de triunfo e o Capitólio11 verá vir até ele longos cortejos. Tu crescerás, guardião Þ el, diante da porta de Augusto12 e tu protegerás a coroa de carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira jamais conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será sempre ornada com uma folhagem inalterável13”. Peã14 havia falado; o loureiro inclina seus galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma cabeça.15

O MITO DAS RAÇAS HUMANAS16

De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais habitantes do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele reinava ainda no céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de inquietações, longe e ao abrigo das penas e das misérias: a velhice miserável não pesava sobre suas cabeças; ao contrário, braços e pernas sempre jovens, eles se alegravam nos festins, longe de todos os males. Quando morriam, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo fecundo produzia espontaneamente uma abundante e generosa colheita, e eles, na alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio de bens inumeráveis. Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela vontade de Zeus Todo-Poderoso, os bons gênios da terra, guardiães dos mortais, distribuidores da riqueza: é a honra real que lhes foi atribuída em partilha.

Em seguida uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi criada ainda pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe nem pelo espírito aos da raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia brincando ao lado de sua digna mãe, a alma toda pueril, na sua casa. E quando, crescendo com a idade, eles atingiam o termo que marca a entrada na adolescência, viviam, então, pouco tempo, e, por sua falta de discernimento, sofriam mil penas. Eles não sabiam abster-se de um descomedimento louco. Recusavam o oferecimento de culto aos Imortais ou o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados, segundo a lei dos homens que se deram moradas Þ xas. Então Zeus, Þ lho de Cronos, encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos deuses Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez, os tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ainda merecedores, contudo, de alguma honra.

E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a raça de bronze, bem diferente da raça de prata, Þ lha dos freixos, terrível e poderosa. Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de Ares e com as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu coração era como o aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua força, invencíveis os braços que se pregavam contra a espádua de seus corpos vigorosos. Suas armas eram de bronze, de bronze suas casas, com o bronze eles trabalhavam, pois o ferro não existia. Eles sucumbiram, sob os próprios braços e partiram para a estada mofada do arrepiante Hades, sem deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por apavorantes que fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol.

E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, Þ lho de Cronos, dele criou ainda uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais

11 Principal sítio de Roma.

12 Dois loureiros davam sombra ao palácio do imperador Augusto, no Palatino.

13 O loureiro não perde as folhas no inverno.

14 Um dos epítetos de Apolo e nome do hino em sua honra.

15 OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles Le res, 1928. Tradução operacional de Milton Marques Júnior.

16 HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le bouclier; texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Le res, 1996, versos 90-201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon.

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brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração nos precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra e na batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas das Sete Portas, outros sob o solo cádmio, combatendo pelos Þ lhos de Édipo; outros além do abismo marinho, em Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por Helena dos belos cabelos, e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A outros, enÞ m, Zeus, Þ lho de Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e uma morada distante dos homens, estabelecendo-os nos conÞ ns da terra. É lá que habitam, o coração livre de inquietações, nas Ilhas dos Bem-Aventurados, à borda dos turbilhões profundos do Oceano, heróis afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por ano uma ß orescente e doce colheita.

E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio dos da quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais tarde. Pois esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer, durante o dia, cansaços e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas duras angústias que lhes enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ainda alguns poucos bens, misturados aos seus males. Mas chegará a hora em que Zeus aniquilará, por sua vez, toda esta raça de homens perecíveis: este será o momento em que eles nascerão com as têmporas brancas. O pai, então, não parecerá com o Þ lho, nem o Þ lho com o pai; o hóspede não será mais querido de seu anÞ trião, o amigo pelo seu amigo, o irmão pelo seu irmão, assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles envelhecerem, eles não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles se exprimirão com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o temor ao Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus respeitos; o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O covarde atacará o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso juramento. Ao passo de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à linguagem amarga, à fronte odiosa, que se compraz com o mal. Então, deixando pelo Olimpo a terra dos largos caminhos, escondendo seus belos corpos sob véus brancos, Honra (Aidós) e Justiça (Némésis), abandonarão os homens, subirão para os Eternos. Restarão aos mortais apenas tristes sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos.

1.. Contextualização do Clássico: os períodos históricos das Literaturas grega e latina

1.2.1. Introdução à Literatura Grega

A literatura grega compreende basicamente três momentos: o período Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V – IV a. C.) e o período Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do século III a. C., com a dominação da Grécia por Roma, a literatura que se sobressai é a latina, iniciada pelas mãos de gregos tomados como cativos pelos romanos nas guerras de conquistas.

O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato literário, quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu desaparecimento por quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a. C. Ainda se trata de uma cultura oralizada, apesar da escrita, em que a literatura aparece cantada pelos aedos e

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rapsodos, os poetas e cantores da época. É nesse momento que são produzidos os poemas homéricos – Ilíada e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e Os trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por isto que se chama a esse período de arcaico. Diferentemente do sentido que a palavra tem hoje, arcaico signiÞ ca para o mundo grego algo que está no princípio, na origem dos fatos. Os poemas homéricos e hesiódicos são o princípio, a origem de toda a literatura que se faz no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período marca a reintrodução da escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a literatura procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo mais próximo da natureza e tendo no mito a sua explicação. Se Homero trata de heróis em guerra ou retornando para casa após a guerra, Hesíodo trata da ordem do universo, de como os deuses nasceram e da necessidade da justiça entre os homens.

O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo da pólis, da cidade, que substitui o mundo anterior mais ligado à natureza. É um momento complexo em que a Þ losoÞ a cria uma explicação lógica para o mundo, a partir de um discurso racional. Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando reß etir sobre a condição e a fragilidade humana. Mesmo apoiado nos mitos antigos, o teatro revela o conß ito do homem entre o passado e o presente da pólis com suas leis escritas, diferentes das leis divinas do mundo mítico do passado. Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes autores desse período, legando-nos obras-primas como Orestéia, Édipo Rei e Hécuba, respectivamente.

O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela expansão do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande (335-323 a. C.) e a criação da Biblioteca de Alexandria, por volta do século III a. C., reunindo um sem-número de obras importantes. O último grande poema do mundo grego, pertencente a esse período e que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de Rhodes, cerca de 295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre a Grécia e começa a surgir a literatura latina.

1.2.2. Introdução à Literatura Latina

O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até Virgílio, no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado com propriedade de literatura. Da fundação de Roma (753 a. C.) à edição da Eneida (17 a. C.), distam quase oito séculos. Desse tempo, apenas o período compreendido entre o século III a. C. e o século III d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz um momento particular da glória romana, é que pode ser chamado realmente de literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma convergência entre a cidade, que se faz senhora do mundo, e uma língua, que se faz literária. É o estado social e político poderoso criando as condições para a existência de uma língua de cultura.

O fervilhamento cultural da Alexandria dos Ptolomeus, produto direto da helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana pelo mar mediterrâneo, após a primeira vitória sobre Cartago, em meados desse mesmo século, e o domínio militar sobre os gregos favorecerão o ß orescimento da literatura latina. Dentre os nomes importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes (295 a. C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja inß uência, dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É, pois, a dominação

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cultural grega, apesar do domínio militar romano, que permite a aÞ rmação de que a literatura latina é proveniente da literatura grega.

Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se entre a fase primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.), em que predomina a oralidade, e a literatura cristã (a partir do século III-IV da nossa era), que já se distancia do espírito da Roma gloriosa. Nesse momento podem-se distinguir os períodos Arcaico (século III – I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no período Arcaico que passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius Andronicus, escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma tradução e adaptação da Odisséia de Homero, por sua temática ocidental, pois as viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de retornar em deÞ nitivo para Ítaca. Não menos importante é o Bellum Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius, escrito por volta do ano 209 a.C., tratando da primeira guerra entre Roma e Cartago. Os primeiros cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando a tradição de Enéias como mito fundador e herói itálico, além dos seus amores com Dido, de onde se originaria a rivalidade entre Roma e Cartago. Deste modo, Naevius não só antecipa Virgílio e a Eneida, mas também abre espaço para a exaltação dos heróis nacionais.

O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta de 80 a. C., com a consolidação da língua literária, que tem na sua base a retórica. Os grandes autores da poesia estarão nas décadas seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C., no início da chamada era de Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no período Clássico que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio (70-19 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-19 a. C.), Propércio (50-15 a. C.) e Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência da literatura latina.

Glossário

Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, signiÞ cando cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos da poesia épica, quando solicitado pelo público.

Antiguidade Clássica: Primeiro período da história ocidental, marcado pelo reaparecimento da escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o seu início a partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V da Era Cristã, quando da queda do império romano do Ocidente, em 476.

Arcadismo: Movimento literário, originada na Itália a partir da fundação da Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal, em 1756 com a Arcádia Lusitana, e chegado ao Brasil em 1768, Þ xando-se em Minas Gerais. Tinha como objetivo recuperar a harmonia da vida simples do pastor, em contraposição à vida desregrada e corrupta da cidade. O seu nome se liga a uma das regiões mais antigas da Grécia, a Arcádia, no Peloponeso.

Carpe Diem: Expressão latina, proveniente da Ode XI, Livro I das Odes de Horácio (século I a. C.), signiÞ cando colhe o dia. O sentido é o de que devemos aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser humano não deve se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos deuses. Enquanto nos preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo foge. Devemos, portanto, saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para aproveitá-las.

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Classicismo: Período cultural que se Þ rma a partir do século XV, como um desdobramento natural do Renascimento, uma vez iniciada a difusão da cultura clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís Vaz de Camões, cuja obra-prima é Os Lusíadas (1572).

Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago, nos séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na Fenícia (atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se transformando em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146 a. C.) e aquela que determina a derrota de Cartago e o controle de Roma sobre o Norte da África é a segunda (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o Africano, vence Aníbal, o Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no Norte da África.

Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do universo e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formulada por Nicolau Copérnico contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía o centro do universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu redor.

Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo teria se iniciado desde o século XI com o estudo das obras dos Þ lósofos gregos.

Idade de Ferro: V. Idade de Ouro.Idade de Ouro: Idade mítica do homem, presente na obra do poeta grego

Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do poeta grego, o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e generosa. Não sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e perdendo as benesses que os deuses lhes deram. A última etapa da decadência humana é a Idade de Ferro, em que a corrupção e os males grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar à Idade de Ferro, o homem ainda passaria por mais três etapas: a Idade de Prata, a Idade de Bronze, a Idade dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a degradação vai se processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal menos nobre e oxidável, o ferro.

Iluminismo: Movimento Þ losóÞ co-político nascido na França em meados do século XVIII, preconizando a liberdade do homem através da razão. O conhecimento é a luz que levará à razão.

Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano, no Monte Ida, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual era a mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo escolhido Afrodite, seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a mulher mais bela do mundo, Páris atrai a fúria das outras deusas contra si e contra os troianos. Seu ato terá como conseqüências o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição de Tróia.

Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (Þ nal do século XVII até a segunda metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vida simples na natureza equilibrada, fugindo da dissolução do mundo urbano. Inspirado no Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e harmônico.

Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o rapsodo tecia a narrativa e compunha.

Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por Martinho Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra a Igreja, na Alemanha, no início do século XVI.

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Renascimento: Movimento cultural Þ losóÞ co de origem italiana, cujo centro foi a cidade de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o Renascimento tenha iniciado com a redescoberta e difusão da cultura greco-latina.

Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se Þ rma como língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu apogeu com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio Augusto César, primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.).

Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C., vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia; o Þ losóÞ co com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a democracia.

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UNIDADE II

ESTUDO DE HOMERO – O CANTO I DA ILÍADA

2.1. Estudo de Homero

Produzidos no período Arcaico da Literatura Grega (VIII – V a. C.), a Ilíada e a Odisséia são os poemas fundadores de toda a literatura ocidental. A sua autoria foi atribuída a Homero, aedo cuja existência é sempre questionada1. Tendo sobrevivido na tradição oral por duzentos anos, estes dois poemas conheceram sua primeira forma em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano Pisístratos, acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a escritura dos versos.

A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema, por outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo em vista que o aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então, escolhiam os episódios para cantar ao seu público e, muitas vezes, introduziam versos de outros poemas. A depuração dos textos só aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido pelos sábios do Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de Éfeso, Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam em estudar, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os primeiros estudos Þ lológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por exemplo, que determina, deÞ nitivamente, o número de versos dos poemas. Essa Þ xação, no entanto, não impediu que os poemas conhecessem várias fontes.

Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a existência de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII da Odisséia, cantando as façanhas dos gregos em Tróia, e em especial as de Odisseus (nome grego de Ulisses), no banquete oferecido por Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa é de exaltação da nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização arcaica, a Ilíada e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e comentados em classe, na sala de aula, tendo não só ajudado a formar o espírito grego, mas, principalmente, permanecido na cultura universal.

Visto consensualmente como o poema da fúria de Aquiles ou uma Teomaquia, a Ilíada é a maior expressão da poesia épica em todos os tempos, enfocando um mundo das origens, em que heróis são comandados por um grande senhor, investido de um poder divino. Poema de estrutura oral, próprio para ser cantado pelo aedo ou rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros dactílicos, fazendo a exaltação dessa aristocracia da civilização arcaica, que tinha em Micenas o seu apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor.

Os limites da Ilíada, normalmente conhecido como tratando da guerra de Tróia, estão restritos, na realidade, a um momento especíÞ co no início do décimo ano do cerco dos Argivos (nome genérico para designar os gregos) a Tróia. A narração desse momento parte da querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I) aos funerais de Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são chamados de

1 Nada menos do que sete cidades da atual Turquia, a antiga Ásia Menor, dentre elas Chios e Esmirna, disputam a primazia de ser o local de seu nascimento. O que suscita a disputa é o fato de que, na essência, o dialeto dos poemas homéricos é o jônio, com alguns empréstimos do eólio, língua da mesma região.

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Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um tema presente na tradição oral há séculos antes de sua formulação como poema, no século VIII a. C., é normal que Homero e os aedos de forma geral não precisem explicar muita coisa que já é do conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não é poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um conhecimento anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados pelo seu epíteto ou pela sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu nome. Aquiles é o Pelida (Þ lho de Peleu) ou o Eacida (neto de Éaco), mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus é o Laertida (Þ lho de Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Cronida (Þ lho de Cronos) e o “ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”; Agamêmnon e Menelau são os Atridas (Þ lhos de Atreu); aquele é o “Senhor dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo são os Priamidas, enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”...

Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu (o pequeno), comandante dos Lócridas; Ájax Telamida (o maior), comandante dos Salaminos; Diomedes, comandante dos argivos e dos tiríntios, ao lado de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, comandante de Micenas e Corinto, e comandante supremo dos gregos; Menelau, irmão de Agamêmnon, comandante da Lacedemônia, Esparta e Auriclas; Nestor, comandante de Pilos e Dorion; Odisseus, comandante de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion, comandantes de Creta; Tlepôlemo, Þ lho de Hércules, comandante de Rhodes; Aquiles, comandante dos Mirmidões, Helenos e Aqueus; Pátrocles, amigo dileto de Aquiles; Macâon e Podalírio, irmãos médicos, Þ lhos de Asclépios, comandantes da Oicália.

Entre os Troianos se destacam Heitor, comandante dos Troianos; Páris, irmão de Heitor, raptor de Helena e causador da guerra; Enéias, Þ lho de Anquises e Afrodite, comandante dos Dardânios; Pândoro do arco de Apolo, Þ lho de Licaon, comandante dos Zeleus; Sárpedon e Glaucos, comandantes dos Lícios.

Dividida em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do alfabeto grego2, distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilíada tem como argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir dos muitos episódios do poema. Cada canto, no entanto, apresenta o seu argumento, os quais podem ser assim sintetizados:

Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611 versos). Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo das naus e dos heróis

(878 versos).Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461 versos).Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos).Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos).Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de Heitor e

Andrômaca (529 versos).Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos).Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutralidade dos Deuses (565

versos).Canto IX (Iota) – Embaixada a Aquiles (713 versos).

2 A Ilíada se representa com o alfabeto maiúsculo e a Odisséia com o alfabeto minúsculo.

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Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos).Canto XI (Lambda) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos).Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos).Canto XIII (Nu) – Combate perto das naus gregas (837 versos).Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos).Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a ajuda de Posídon (764

versos).Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos).Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo contra Atena

(761 versos). Canto XVIII (Sigma) – Fabricação das armas de Aquiles (617 versos).Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon (424

versos).Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles (503

versos).Canto XXI (Phi) – A Verdadeira Teomaquia/ Combate perto do rio (611).Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos).Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897 versos).Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804 versos).

Tudo concorrerá para se mostrar a razão da fúria funesta de Aquiles, núcleo da Ilíada. Podemos observar, no entanto, no decorrer do poema, vários episódios embrionários, ligados ou não à guerra de Tróia. Como temos um poema in medias res – a narrativa abre com o início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e não há um ß ash-back continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo ano da guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmentadas e dispersas, aludindo ao motivo da guerra, como o rapto de Helena por Páris, que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445). Outras referências se encontram na Ilíada como a alusão ao casamento de Peleu e Thétis (Canto XVIII, versos 433-434; Canto XXIV, versos 59-63), e a alusão ao julgamento de Páris (Canto XXIV, versos 26-30).

Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis, apesar de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura da Ilíada não suscita com facilidade uma estrutura para o leitor desavisado. A ausência de Aquiles por quase dois terços da narrativa, mesmo sendo o protagonista, torna ainda mais complexa essa assimilação. Muitos heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas genealogias desÞ adas... Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos, sugerimos uma estruturação da Ilíada dividindo-a em três momentos: a Querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixada a Aquiles (Canto IX), o Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII).

A querela entre os dois maiores heróis gregos da guerra de Tróia leva à retirada de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo todo-poderoso Agamêmnon. A conseqüência é a perda de espaço para os troianos que conseguem acuar os gregos em seu próprio acampamento. Pela primeira vez, em dez anos de cerco, os troianos acampam fora e longe das muralhas. O recuo dos argivos conduz à embaixada despachada por Agamêmnon a Aquiles (Canto

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IX). Os esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado duramente em sua honra, porque o Atrida lhe tomara a sua presa de guerra, Briseida, o que distingue um herói da grande massa. O fracasso da embaixada e um relativo sucesso dos gregos (Canto X, Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e Odisseus ao acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus, Agamêmnon, Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra as hostes de Heitor que conseguiu chegar ao acampamento grego (Canto XII-XVI) e ameaça queimar os navios, chegando ainda a queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com a ajuda de Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir todas as outras naus (XVI, 292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos gregos é a morte de Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas armas por Heitor. Isto determina o retorno de Aquiles à guerra.

Este último momento da Ilíada é importante, pois as desavenças entre Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio atribuído por Aquiles a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele precise participar das competições dos jogos fúnebres em honra de Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a Aquiles, bem como a reparação material da sua honra ofendida, com a devolução de sua presa de guerra, Briseida. A conseqüência da paz entre os dois heróis é a carniÞ cina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a morte de Heitor e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao belíssimo e tocante episódio do resgate do corpo do Þ lho por Príamo, no Canto XXIV.

Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilíada é o livro das prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não veremos na Ilíada a morte de Aquiles ou a queda de Tróia. Limitada entre a desavença Aquiles-Agamêmnon e os funerais de Heitor, este poema frustra o leitor que for à busca de episódios conhecidos como o do cavalo de Tróia ou a luta de Aquiles contra a rainha das Amazonas, Pentesiléia, por exemplo. Mas isso não impede de o poema anunciar a cada passo tanto a destruição de Tróia, quanto a morte de Aquiles. Para melhor entendermos essas prolepses, faz-se necessário um breve estudo do Canto I, em que se dá a desavença entre Aquiles e Agamêmnon, provocando a retirada do Pelida dos combates.

2.2. O Canto I da Ilíada

O proêmio da Ilíada está circunscrito aos sete primeiros versos do Canto I. Ali, numa mescla de proposição e invocação, o poeta apresenta o argumento do poema – a fúria funesta de Aquiles que tantos heróis mandou para o Hades cumprindo o que havia estabelecido Zeus. A narração propriamente dita inicia-se a partir do verso 8, estendendo-se até o Þ nal do Canto XXIV, após os funerais de Heitor. O argumento do Canto I é o desentendimento entre Aquiles e Agamêmnon. Preocupado com a peste que grassa no acampamento grego, matando homens e animais, Aquiles convoca a ágora – a assembléia dos Aqueus –, para saber qual a origem de tantos males. Ele descobre, através do sacerdote Calcas que a culpa de tal desgraça cabe a Agamêmnon, autor de uma grave ofensa

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ao sacerdote de Apolo Crises. É para desagravar Crises que Apolo desencadeou a peste no acampamento Aqueu.

Querendo resgatar a Þ lha, Criseida, que havia sido feita prisioneira na tomada de Lyrnessos por Aquiles, Crises vai até Agamêmnon, a quem coube a presa de guerra, e oferece-lhe um alto resgate, em troca da liberdade da Þ lha. Agamêmnon não só não aceita, mas também ofende e ameaça de morte o sacerdote de Apolo. A descoberta da causa da peste leva Aquiles ao confronto com Agamêmnon, sobretudo quando este ameaça tomar o quinhão de qualquer outro, mesmo o de Aquiles, caso entregue Criseida de volta ao pai, Crises. A discussão se instaura entre eles, com Aquiles se sentindo desonrado e Agamêmnon se sentindo privado do seu prêmio. Aquiles só cede ao ímpeto de matar Agamêmnon diante da intervenção de Palas, que, aparecendo só a ele, o detém, puxando-lhe a cabeleira loura e o aconselhando a ofender com palavras o quanto puder a Agamêmnon, mas evitando matá-lo. Privado de sua Briseida, tomada por Agamêmnon, Aquiles se retira da guerra, lamenta a sua desonra à mãe, queixa-se de Zeus que não está cumprindo a sua parte no acordo do destino breve, mas glorioso. Thétis, sua mãe, resolve interceder por ele junto a Zeus e obtém do pai dos deuses e dos homens a certeza de Aquiles voltar a ser honrado pelos Aqueus, após derrotas para os Troianos. O canto se fecha com o banquete dos deuses no Olimpo.

O que norteia o Canto I da Ilíada é a discussão travada sobre a honra do herói. Como obter a glória que se busca sem a honra? Este é o drama de Aquiles. De um lado se põe o senhor dos heróis, Agamêmnon, comandante supremo do exército de coalizão dos Aqueus, que conta, aproximadamente, com cem mil homens. Do outro lado está o maior dos heróis, o melhor dos Aqueus, o mirmidão Aquiles, temido por todos os guerreiros Troianos, por ser, nas palavras de Nestor, “a grande muralha dos Aqueus contra a guerra cruel” (Canto I, versos 288-289). É a prepotência de um contra a força do outro. Ofendido na sua honra, Aquiles sente tomar-lhe o ímpeto desaÞ ador que o leva ser irônico e mordaz com Agamêmnon, e a sentir ganas de matá-lo. Agamêmnon por sua vez, não abre mão de seu direito como chefe supremo, poder que emana de Zeus, concentrado no cetro que empunha, com uma honra, portanto superior à de Aquiles. É isto o que diz também Nestor (Canto I, versos 278-279)

Em favor de Aquiles, no entanto, registre-se que o herói deseja a contemporização, procurando compensar Agamêmnon de outras formas, uma vez entregue Criseida ao pai – caberia ao Atrida três ou quatro vezes mais que aos outros o butim partilhado, depois da ruína de Tróia (Canto I, versos 122-129). Agamêmnon é que parte para o confronto (Canto I, versos 130-147), o que desencadeia as ofensas de Aquiles (Canto I, versos 148-171; 225-245; 292-303). Dentre elas, destaca-se a alusão à cara de cão de Agamêmnon (Canto I, verso 159), numa referência a seu caráter impudente, cujo espírito só pensa no ganho (Canto I, verso 149). Em outro momento, a avidez do cão, se associa ao medo do gamo e ao prazer do vinho a que se entregaria Agamêmnon, vez que o grande senhor não participa dos combates na visão de Aquiles (Canto I, verso 225). Tal é cupidez de Agamêmnon que Aquiles o chama de devorador do povo, que precisa para exercer seu mando reinar sobre gente nula (Canto I, verso 231). Aquiles Þ naliza suas ofensas, não antes de jogar por terra o cetro do Atrida (Canto I, verso 245), dizendo que se aceitasse sem contestação a força de mando de Agamêmnon, não seria mais do que desprezível e nulidade (Canto I, verso 293).

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As réplicas de Agamêmnon (Canto I, versos 177-187; 285-291) não Þ cam atrás. Mandando Aquiles reinar sobre os Mirmidões (Canto I, verso 180), numa ironia cortante, cujo trocadilho se perde na tradução, Aquiles é para Agamêmnon nada mais do que o povo que ele comanda – formiga. Agamêmnon replica diante da ponderação que faz Nestor, na tentativa de sanar os ânimos: Aquiles pretende ser o mais poderoso e reinar sobre todos, o que é uma afronta a seu comando e a investidura divina de seu poder de senhor supremo (Canto I, versos 287-288).

Com fortes ironias despachadas de ambos os lados, nem a contemporização de Nestor é capaz de apaziguar os dois que se ofendem mutuamente. Nestor e Palas Atena são a racionalidade em contraponto à fúria e ao descomedimento de ambos os heróis. Nessa arena está em jogo a honra ferida – Agamêmnon de vasto poder não só não honrou o melhor dos Aqueus como também não honrou a sacerdote de Apolo, Crises (Canto I, versos 10-11) –, o que desencadeia toda a querela. Aquiles se retira da guerra, pois desonrado não pode alcançar a glória. Será necessária a intervenção de Zeus, a pedido de Thétis, para que o herói volte à guerra. Se Zeus lhe deu uma vida breve, que pelo menos em troca lhe conceda a honra (Canto I, verso 353). Prêmio de guerra e honra/desonra com as variantes das formas e tempos verbais correspondentes são as palavras centrais desse capítulo.

Assim é que as prolepses desse capítulo são importantes para o desencadeamento da narrativa: os versos 212-214 antecipam a embaixada a Aquiles, que ocorrerá no Canto IX, e os esplêndidos presentes (Canto I, verso 212) que o Pelida aceitará no Canto XIX, como pagamento da desmedida de Agamêmnon, pondo Þ m ao desentendimento entre ambos. É o que lhe promete Atena. Os versos 240-244, proferidos pelo próprio Aquiles, antecipam as vitórias dos Troianos liderados por Heitor sobre os Aqueus; os versos 337-342 revelam a necessidade que os Aqueus terão de ter Aquiles consigo para poderem combater perto das naus sem perigo. Isto se dará com o retorno efetivo de Aquiles à guerra, no Canto XX. Por Þ m, o destino de Aquiles, aludido tantas vezes neste Canto I (versos 352-356; 413-428; 517-527), será retomado ao longo da Ilíada, principalmente no canto XVIII.

Glossário

Acaios: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente de Acaia, regiões gregas, uma situada no Peloponeso e a outra na Tessália, no continente. O mesmo que Aqueus ou Aquivos.

Ágora: A praça onde se reuniam os senhores para tomada de decisão sobre alguma coisa. O termo, por metonímia acaba designando a própria assembléia.

Aqueus: V. Acaios.Argivos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente da

região de Argos, uma das principais cidades do Peloponeso.Atrida: Epíteto para Agamêmnon e Menelau, ambos Þ lhos de Atreu.Canto: Capítulo do poema épico, assim chamado porque o poema era para

ser cantado, não declamado.Dânaos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente de

um dos ancestrais gregos, chamado Dânaos.

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Dardânios: Nome genérico para designar os troianos, proveniente de um dos ancestrais da raça troianos, chamado Dárdanos.

Epílogo: Parte Þ nal do poema épico, quando se acaba a narração e encaminha-se o Þ m da narrativa.

Epíteto: Aposto ao nome de pessoas, deuses, heróis e cidades. Muito usado no poema épico como recurso mnemônico, dando ritmo ao hexâmetro.

Flash-Back: Retorno ao passado de modo linear e organizado, de modo a esclarecer fatos da narrativa.

Helenos: Nome genérico dado aos gregos, termo proveniente de parte dos soldados tessálios comandados por Aquiles. O termo também se refere a Helena, Þ lha de Deucalião, visto como pai dos gregos.

Hexâmetro Dactílico: Verso característico do poema épico, construído com seis medidas ou seis pés, tendo como base o pé dáctilo, constituído de uma sílaba longa e duas breves.

Honras Fúnebres: Todas as pessoas que morriam deveriam ter direito às honras fúnebres, sem as quais a sua alma não chegaria ao Hades, o mundo inferior. As honras fúnebres do herói, por exemplo, consistiam na queima de sua carne e no encerramento de seus ossos numa urna para posterior sepultamento num túmulo, erigido sobre uma colina.

In Medias Res: Termo utilizado por Horácio (século I a. C.), para designar a ação do poema épico, já bem adiantada quando a narração se inicia. O termo signiÞ ca “no meio das coisas”, sem preâmbulos, sem explicação anterior.

Invocação: Uma das partes do poema épico, que consiste no pedido de auxílio às Musas, como deusas protetoras das artes e do conhecimento, para que elas comuniquem o seu saber ao poeta e ele possa cantar o que assinala na proposição do seu poema.

Micenas: Cidade-estado ao nordeste do Peloponeso, reino ß orescente entre os séculos XVI e XII a. C. O grande senhor Agamêmnon reinava absoluto sobre a Micenas homérica, nos tempos míticos.

Mirmidão: Um dos epítetos para designar Aquiles, por reinar sobre os soldados do mesmo nome. O nome é proveniente das formigas que habitavam a ilha de Egina, transformadas em homens por Zeus, para que Éaco, avô de Aquiles, pudesse reinar sobre eles. No plural, designa os soldados comandados por Aquiles.

Narração: A parte mais longa do poema épico. Cerne do poema épico, quando o poeta desenvolve minuciosamente em episódios o argumento apresentado na proposição.

Pelida: Um dos epítetos de Aquiles. O termo é proveniente de Peleu, pai do herói. Aquiles também pode ser chamado de Eacida, por causa do avô, Éaco.

Período Arcaico: Primeiro período da literatura grega, situado entre os séculos VIII e V a. C. É o momento do início, quando surge a primeira forma literária, o poema épico. Nesse período ainda surgiria a poesia lírica, em sua forma de lírica amorosa, lírica exaltativa e bucólica.

Presa de Guerra: Trata-se do butim, do espólio conseguido pelo guerreiro, depois de conquistada e destruída uma cidade. É assim que Briseida e Criseida são tratadas na Ilíada: presas ou prêmios de guerra.

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Proêmio: Versos iniciais e introdutórios do poema épico, reunindo a proposição e a invocação. É onde se encontra o argumento do poema, apresentado sinteticamente para ser desenvolvido posteriormente na narração.

Prolepse: Adiantamento da narrativa. Ao leitor ou ao ouvinte é dado conhecer os fatos antes de eles acontecerem. Assim, não vemos a destruição de Tróia ou a morte de Aquiles na Ilíada, mas sabemos que ambos os fatos vão ocorrer, pois eles são adiantados, através de alusões as mais variadas.

Proposição: Parte do poema épico em que se apresenta o argumento. De modo sintético, o poeta diz qual será o tema de seu canto. A Ilíada apresenta como argumento a fúria funesta de Aquiles; a Odisséia, a volta de Odisseus para Ítaca.

Teomaquia: SigniÞ ca, literalmente, batalha dos deuses. Termo cunhado para designar a Ilíada, sobretudo a partir do Canto XX, quando Zeus libera os deuses para tomar partido na guerra de Tróia e formam-se os grupos de deuses em defesa dos gregos ou dos troianos.

Teucros: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Teucro.

Tróades: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Tros.

Observação: Para uma melhor assimilação dos conteúdos desta unidade, faz-se necessária a leitura do Canto I da Ilíada.

Exercícios

1. “Nem a morte de Aquiles, predita desde o início, nem a tomada de Tróia graças à artimanha do famoso cavalo de madeira, astúcia concebida por Ulisses, Þ guram na Ilíada.” Explique esta aÞ rmação de Claude Mossé (A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1989.).

2. Explique por que na Proposição/Invocação da Ilíada, o poeta pede que se cante “a ira funesta de Aquiles”.

3. Qual a origem da querela entre Aquiles e Agamêmnon? 4. Quais as conseqüências imediatas e as conseqüências posteriores para os

gregos dessa querela? 5. Considerando o Canto I da Ilíada, qual a importância de Aquiles para os

gregos?

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UNIDADE III

VISÃO GENÉRICA DOS AUTORES DO TEATRO TRÁGICO

3.1 O Teatro Grego

Nesta terceira unidade, procuraremos fazer o estudo do teatro grego na sua origem, mais especiÞ camente, da tragédia grega como fenômeno do período clássico, numa reß exão sobre o mundo da Pólis.

É consenso entre os estudiosos do teatro grego que a sua origem está ligada ao coro que anima o culto ao deus Dionisos. Deus da vegetação e da fecundidade, Dionisos era o centro de um culto à fecundação – a faloforia, condução do falo como representação do deus Príapo, seu Þ lho com Afrodite – em que se sacriÞ cavam bodes e touros. A essência do culto consistia no abandono dos limites entre o humano e o divino, quando grupo de seguidores de Dionisos desejava o êxtase (deslocamento, espírito sem destino) e o entusiasmo (possessão divina, animação por um transporte divino), para transformar-se em bacante.

As Grandes Dionisíacas ou Dionisias da Cidade eram a festa mais importante do mundo grego, contando com a aß uência de toda a Grécia e do exterior. Elas se davam entre os meses de março e abril, princípio da primavera, quando o tempo abria para as navegações. A partir do século VI a. C. (534), foram instituídos os concursos dramáticos pelo tirano Pisístratos, que contavam tanto com o concurso de ditirambo (hino a Dionisos), quanto com um concurso dramático. Os concursos duravam três dias para as tragédias e um para as comédias, e tinham como espaço o teatro de Dionisos, ao pé da Acrópole, em Atenas, onde cabiam 17000 pessoas. Um espaço tão grande numa época tão remota, explica-se diante da função que o teatro tinha na Grécia: uma função coletiva. As entradas eram subvencionadas pelo estado e o Þ nanciamento do coro e de um dos atores era feito por um cidadão rico. No século V a. C., apogeu do período Clássico, esses concursos se tornaram freqüentes e estima-se, por exemplo, que foram apresentados cerca 5000 ditirambos e mais de 1000 tragédias.

No início, as peças eram apresentadas na praça pública, a ágora, depois, por conta do aß uxo de espectadores e para dar uma visualização melhor da encenação foi construído o teatro de Dionisos, ao pé da Acrópole. O espaço físico do teatro era constituído dos seguintes ambientes (veja a planta baixa de um anÞ teatro grego, em seguida):

• Teatro: lugar onde se instalavam os espectadores para ver o espetáculo.• Orquestra: área circular para a dança, em cujo centro havia um pequeno

altar de pedra, consagrado ao deus. O coro faz aí a sua evolução.• Cena: cabana ou tenda servindo de bastidores, para a troca de máscaras

e de roupas. Boa parte da ação se passava no interior da cena. As cenas chocantes de assassinato ou suicídio, por exemplo.

• Proscênio: lugar à frente da cena, onde os atores encenavam as peças.• Párodos: passagens que davam acesso ao teatro e por onde entrava e saía o

coro.

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O teatro como drama (a palavra drama signiÞ ca ação, em grego) apresentava os seguintes componentes

• Prólogo: cena de exposição, sob a forma de diálogo ou de monólogo, precedendo a aparição do coro.

• Párodos: entrada do coro, após o prólogo, num ritmo anapéstico (duas sílabas breves e uma longa). Composto de estrofes cantadas que se respondem.

• Episódio: parte do drama entre duas entradas do coro. O primeiro episódio fazia dialogar os atores entre eles e com o coro.

• Estásimo: parte cantada pelo coro, mas sem haver deslocamento. O primeiro estásimo se apresenta como um conjunto variável de estrofes cantadas pelo coro, ao que se seguem dois outros episódios, seguidos de dois estásimos.

• Coro: coro de dança, grupo de pessoas que Þ guram em uma dança. Unidade coletiva que cantava sob a direção do Corifeu ou declamava dançando. A maior parte das vezes, o coro era formado por velhos ou por mulheres infelizes, conhecedores profundos dos rituais religiosos.1

• Corifeu2: Chefe do coro, representando uma intervenção breve do coro nas cenas dialogadas.

• Komos: canto comum ou alternado ente coro e personagens, auge lírico de dor (mais freqüentemente), na tragédia.

• Êxodos: Saída do coro de cena. Toda a peça se desenrola entre o párodos e o êxodos, dividida por estásimos e separadas por episódios. Consistia de fato no último episódio, por vezes longo e complexo.

1 Aristóteles (Poética, 18, 1456a) considera o Coro como um ator nos moldes de Sófocles, não nos de Eurípides, que já não tem inß uência sobre a ação. No teatro de Sófocles, o Coro pode, sob o comando do Corifeu, intervir na ação, dialogando com os personagens. Coro signiÞ ca dança, em grego.

2 O termo deriva em grego de cabeça, cimo, capacete.

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A parte coral da encenação tinha um grande rigor formal, se apresentando em uma série de evoluções na orquestra, ao redor do altar. As evoluções podiam ser para a direita, e assim se chamavam de estrofes, ou para a esquerda, chamadas de antístrofes. O epodo consistia em um canto adicional, terceira estrofe, em que o coro Þ cava imóvel. Para a encenação dos autores ou do coro se utilizavam metros variados para os versos.

No capítulo IX (1451b) da Poética, primeira obra a sistematizar um estudo sobre a tragédia grega, Aristóteles diz que “o poeta deve ser fabricante de intrigas mais do que de metros”. Como o teatro grego era estruturado em versos de metros variados, Aristóteles ensina que não basta criar o verso, mais importante é a intriga (o que em grego se diz mito). Tratando a tragédia como uma poesia que imita os homens nobres e melhores do que nós, entenda-se aí a deÞ nição do herói, o Þ lósofo aponta para a origem da tragédia na improvisação de uma declamação, por ocasião da faloforia.

Com a evolução do gênero, a tragédia passa a ser a imitação de uma ação nobre e acabada, com limite de extensão, em linguagem agradável (condimentada), executada por personagens que agem, sem utilizar a narração, sendo através do binômio piedade e terror que a tragédia opera a puriÞ cação das emoções, o que Aristóteles denominou de catarse. A linguagem agradável (condimentada, no termo grego utilizado) diz respeito ao ritmo, melodia e canto. A ação se imita pela intriga, como reunião dos acontecimentos – Þ nalidade, princípio e alma da tragédia –, cujas partes se constituem de peripécias, reconhecimentos e patético.

Para Aristóteles, a peripécia é quando a ação resulta no contrário do esperado, segundo a verossimilhança e a necessidade. Já o reconhecimento é a passagem da ignorância ao conhecimento. O reconhecimento com peripécia faz a intriga mais bela, porque mais elaborada, resultando na piedade e no terror, emoções de que a tragédia supõe ser a imitação. O patético é a ação destrutiva ou dolorosa, como os assassinatos, as grandes dores, os ferimentos e todas as coisas visíveis do mesmo gênero. A essência da tragédia consiste em passar da felicidade à infelicidade, não por causa dos vícios ou da maldade, mas por grande erro do herói.

3. 2. Autores Trágicos

O primeiro dos autores trágicos foi Téspis de Lesbos que ganhou o prêmio de melhor tragédia, instituído pela primeira vez em 534 a. C., quando da organização das Grandes Dionisíacas por Pisístratos, em Atenas. A ele se atribui o costume de mascarar os atores (GRIMAL, 1986: 31). No entanto, apenas três autores da tragédia grega nos chegaram: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Vejamos o que cada um produziu e o que foi poupado pelo tempo.

Ésquilo (525-456/5 a. C.) coloca um segundo autor em cena (deutoragonista), depois um terceiro, imitando Sófocles. Era considerado grande músico. Das 90 peças que lhe são atribuídas, apenas sete tragédias nos chegaram: Os Persas (472), peça isolada. Sem fazer parte de uma trilogia, o que era habitual, Os Persas é a única peça do teatro trágico grego que abordava um tema contemporâneo, a guerra dos gregos contra os persas, de que Ésquilo foi um dos combatentes; Os Sete contra Tebas (467), peça premiada; As Suplicantes (463), Þ m de uma trilogia;

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Orestéia (458); trilogia completa, composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides; Prometeu Acorrentado (?), início de uma trilogia.

Sófocles (497-406 a. C.) é o mais premiado dos teatrólogos, tendo ganhado o prêmio das Grandes Dionisíacas 26 vezes, o que dá um total de 78 peças premiadas. Atribuem-se-lhe 123 peças, embora só tenhamos conhecimento efetivo de sete. Sófocles inova com a inclusão de um terceiro ator em cena (tritagonista). As sete tragédias conservadas pela tradição são Ajax (445), Electra (421? 413?) Filoctetes (409, ciclo troiano); Antígona (442), Édipo Rei (421), Édipo em Colona (401, ciclo Tebano) e As Traquinianas (444, ciclo de Héracles).

Eurípides (480-406 a. C.) reduz o tamanho e a signiÞ cação do coro, aumenta as peripécias e os efeitos de surpresa. Com o aumento da intriga, acresce o número de personagens. Atribuem-se-lhe 92 peças, mas apenas dezoito tragédias e um drama satírico nos chegaram: O Ciclope (drama satírico com base no Canto IX da Odisséia de Homero), Alceste (438), Medéia (431), Hipólito (428), Os Heráclidas (428), Andrômaca (428), Hécuba (424), A Loucura de Hércules (415), As Suplicantes (415), Íon (~421 e 413), As Troianas (?), IÞ gênia em Táuris (?), Electra (413), Helena (412), As Fenícias (410), Orestes (408), As Bacantes (peça póstuma), IÞ gênia em Áulis (peça póstuma) e Rhésos (tragédia atribuída). Grande é o número de peças pertencentes ao ciclo troiano.

Numa visão didática dos ciclos da tragédia grega, podemos falar dos Primórdios, com Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, abordando a prepotência; do Ciclo Tebano com Édipo Rei e Antígona, ambas de Sófocles, tratando, respectivamente da impotência e da intolerância, e do Ciclo Troiano, com Ajax, de Sófocles, em que se aborda a dignidade do herói; a Orestéia, de Ésquilo, em que a maldição dos atridas é Þ nalmente redimida, e três peças de Eurípides, especialmente escolhidas: IÞ gênia em Áulis, sobre a ambição; Hécuba, que trata da dor individual, e As Troianas, abordando a dor coletiva.

Dada a impossibilidade de se estudarem todas estas peças, recomendamos-lhes a leitura de Édipo Rei, por se tratar de peça muito conhecida e amplamente editada. Lembramos que muitos dos assuntos das tragédias estão na poesia épica, sobretudo aquelas peças que enfocam o ciclo troiano. Para o momento, Þ quemos com uma visão rápida de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, como peça importante para a compreensão dos primórdios do mito.

3.3. Prometeu Acorrentado

Ésquilo traz para a tragédia a idéia de Justiça, mais ou menos estranha a Homero, mas que aparece com nitidez em Hesíodo (v. Trabalhos e dias). Afi rma Paul Mazon na introdução geral à obra de Ésquilo3:

“Ésquilo compreende que a essência do drama deve ser esta idéia de justiça, que se incorporou à deÞ nição mesma do homem. Toda ação humana formula uma questão de direito. A tragédia tratará, portanto, das questões de direito” (ÉSCHYLE, 2002: XI).

Uma idéia original em Ésquilo é a de que o direito se desloca, pela incapacidade do homem em retê-lo. Ao querer mais do que lhe compete, o homem vê o direito colocar-se ao lado do adversário. A única maneira de

1 ESCHYLE. Tragédies: Les suppliantes, Les perses, Les sept contre Thèbes, Prométhée enchaîné; texte établi et traduit par Paul Mazon. 2. éd. Paris: Les Belles Le res, 2002.

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combater o excesso é a moderação, virtude suprema aos olhos do grego. Ao saber se moderar, o homem poderá conservar consigo o direito que lhe cabe. Entregar-se às paixões é o meio mais rápido para que o homem se veja privado do seu direito.

A discussão travada em Prometeu acorrentado enfoca justamente a concepção de direito e justiça. Texto de data desconhecida, esta peça faz parte de uma trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu libertado e Prometeu porta-fogo –, em que personagens divinos são mostrados numa teomaquia, a exemplo de Homero e de Hesíodo, com a diferença de que nos dois poetas épicos as teomaquias não constituem tragédias, pois não comportam uma idéia moral.

Tendo roubado o fogo sagrado de Zeus para dá-lo aos humanos, Prometeu é punido com o acorrentamento ao Cáucaso, com o sepultamento vivo pela montanha e, posteriormente, com o martírio de uma águia, a águia de Zeus, que vem comer-lhe o fígado diariamente. Na peça, que ora estudamos, única que nos sobrou, só vemos as duas primeiras partes da punição: o aprisionamento e o sepultamento vivo de Prometeu, embora Hermes anuncie ao Titã a terceira parte da punição.

O conß ito Zeus x Prometeu, no entanto, vai além do roubo do fogo ou do ludíbrio de Prometeu a Zeus. Não há dúvida de que o Titã se rebelou e quebrou a lei divina ao levar o fogo aos homens, mas Prometeu é detentor de um segredo importante para Zeus, o oráculo de Thêmis, que lhe foi anunciado e cujos desdobramentos ele conhece por ser ele sabedor do que vai acontecer, vez que seu nome signiÞ ca o que conhece antes. No conß ito da peça Þ ca clara a desmedida de Zeus em relação a Prometeu, sendo a Força e o Poder, deuses que acompanham Hefestos na missão de acorrentar Prometeu, o símbolo desta desmedida. Ao que parece, o endurecimento da punição é menos pelo roubo do fogo e mais por ser o Titã detentor de um segredo danoso a Zeus, cuja revelação depende de sua libertação.

Na trilogia, se estabelece que é da desmedida que se reconhece, dolorosamente, a moderação e o domínio de si, como virtudes importantes e necessárias, mesmo no Olimpo. Zeus como um deus cósmico, que ordena o universo, deverá se moderar e permitir a libertação de Prometeu – primeiro com Hércules matando a águia, depois com a troca de Prometeu pelo Centauro Quíron, que, ferido por Hércules, aceitará descer ao Hades em lugar do Titã – para não pôr em risco a ordem que ele mesmo criou. Desse modo, é importante o episódio de Io, antepassada de Hércules, que toma boa parte da peça.

A peça se inicia com Hefestos, acompanhado do Poder e da Força, levando Prometeu, que segue e se mantém calado, para o aprisionamento. Hefestos é quem tem a obrigação de prender Prometeu ao rochedo do Cáucaso. O erro de Prometeu foi roubar o fogo brilhante de onde nascem todas as artes para levá-lo aos homens: Prometeu está sendo punido por ser benfeitor dos homens. Zeus como novo mestre, que impõe uma nova ordem, tem coração inß exível, duro como um rochedo.

O Poder demonstra sua força sem concessões, enquanto Hefestos mostra-se constrangido em aprisionar Prometeu, revelando o conß ito da técnica obrigada a servir ao poder constituído. Daí dizer-se que a peça trata da prepotência, palavra que não deve ser entendida como arrogância, mas com o sentido de alguém ter o poder sobre todas as coisas.

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Prometeu só se pronuncia a partir do verso 88, para lamentar-se de sua condição, iniciando com a invocação das forças da natureza:

“Éter divino, ventos de asa rápida, águas dos rios, sorriso inumeráveis das vagas marinhas, Terra, mãe dos seres, e tu, Sol, olho que tudo vê, eu os invoco aqui: vede o que um deus sofre pelos deuses!” (v. 88-92).

O roubo do fogo numa férula, entregando-o aos mortais é mais do que uma rebelião contra Zeus, é a aÞ rmação de Prometeu como mestre de todas as artes. O fogo aí aparece como um grande recurso, permitindo aos seres humanos a entrada na civilização. Toda a constituição da peça aponta para os primórdios, para os mitos da origem, do mundo arcaico, portanto. Assim é que o coro, formado pelas Oceânides, mostra a nova lei que se impõe a partir de Zeus, lei que destrói os colossos do passado, numa alusão aos Titãs e à titanomaquia – a luta e vitória de Zeus contra os Titãs e, sobretudo, seu pai, Cronos. Esta vitória, só possível com a astúcia de Zeus, mais do que a força dos seus adversários, conta com a ajuda de Prometeu, antigo aliado do deus supremo do Olimpo. O que leva, então, Prometeu a cair em desgraça e passar da ventura à desventura, como diria Aristóteles? Foi o fato de ele ter infringido o direito e ter dado cegas esperanças aos seres humanos. Ele comete a desmedida e não segue o aforisma básico da contenção: “Conhece-te a ti mesmo” (v. 309).

Oceano, pai das Oceânides, intervém para recriminar Prometeu por sua falta de humildade e por querer se opor a um monarca, cujo poder não tem contas a prestar. Mesmo assim, Oceano tenta ajudar Prometeu, mostrando-se disposto a intervir junto a Zeus a seu favor, mas é ironizado pelo Titã. Em lugar de se mostrar humilde, Prometeu passa a desÞ ar todos os benefícios que levou aos seres humanos. E aí, ß agramos o conß ito dialético da peça: quem ensinou aos seres humanos todas as artes, para libertação da ignorância, ignora a arte de se libertar a si mesmo:

“No início, eles viam sem ver, eles escutavam sem ouvir, e, iguais às formas oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles ignoravam as casas de tijolo ensolaradas, eles ignoravam o trabalho da madeira; eles viviam sob a terra como formigas ágeis, no fundo de grotas fechadas ao sol” (v. 447-453).

Prometeu ensina aos seres humanos a astronomia, os números, as letras, a arte de construir os carros atrelados a cavalos, os navios a vela, a medicina, as artes divinatórias, a ornitomancia, a queima da carne envolta na gordura para saber os presságios; revelou-lhes os tesouros sob a terra – ouro, prata, bronze, ferro: “Com uma palavra tu saberás tudo ao mesmo tempo: todas as artes aos mortais vieram de Prometeu (resposta ao Corifeu, v. 505-506).

O episódio de Io (v. 591-886) é dos mais importantes na peça, pois anuncia o nascimento do libertador de Prometeu, treze gerações depois. Perseguida pelo fantasma de Argos, o cão de Hera, morto por Hermes, enquanto a vigiava, Io vai falar com Prometeu, que lhe prediz o futuro: ela, fugindo aos moscardos que a picam, atravessará o estreito que separa a Europa da Ásia e que levará seu nome (futuro estreito de Bósforo ou passagem da vaca, pois Io se apresenta como uma

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novilha). Depois, chegando ao Egito, Io dará à luz Epafos, iniciador de gerações que vão culminar em Hércules, o futuro libertador do Titã (v. genealogia em seguida).

A Io, Prometeu revela parte do oráculo de Thêmis sobre a queda de Zeus: o deus pai terá um casamento de que se arrependerá, pois o Þ lho por ele gerado será mais forte que o pai, proporcionando a sua queda. Com a queda, Zeus saberá qual a diferença entre reinar e servir (v. 926-927).

Hermes, mensageiro de Zeus, aparece como núncio de castigos maiores (v. 944-1093). Querendo descobrir qual o casamento que proporcionará a queda de Zeus, Hermes encontra um Prometeu cheio de orgulho e de ironia, para quem o segredo só será revelado com a libertação. Em resposta a Hermes que lhe diz ser Zeus desconhecedor do lamento, Prometeu retruca:

“Não existe nada que com a velhice, o tempo não ensine” (v. 980).

Hermes anuncia o castigo além do acorrentamento: ele será sepultado vivo pela montanha e, depois, a águia de Zeus comerá o seu fígado eternamente. Na sua fala Þ nal, Prometeu faz o encerramento com o mesmo lamento inicial sobre a injustiça de que é vítima:

“Mas eis os fatos e não mais as palavras: a terra vacila; nas suas profundezas, ao mesmo tempo, muge a voz do trovão; em ziguezagues embrasados o raio surge explodindo; um ciclone faz turbilhonar a poeira; todos os sopros do ar se lançam ao ataque uns aos outros; a guerra é declarada entre os ventos, e o éter já se confunde com os mares. Eis, portanto, a tormenta que, para me espantar, manifestamente vem sobre mim, em nome de Zeus. Ó Majestade de minha mãe e tu, Éter, que faz rolar em torno do mundo a luz oferecida a todos, vós vedes bem as iniqüidades que eu suporto? (v. 1080-1093)

É essencial para o estudo da peça que compreendamos o seguinte: Prometeu está ligado ao mito primordial da criação da terra, dos deuses e dos homens, fruto de uma teogonia, que se desdobra em uma titanomaquia, para estabelecimento de uma cosmogonia (v. Hesíodo, Teogonia.), em que Zeus reinará absoluto, mesmo partilhando o poder com os irmãos Posídon (deus do mar) e Hades (deus do interior da terra, o mundo inferior). Por outro lado, o oráculo de Thêmis revela uma possível queda de Zeus, o que resultaria no retorno ao caos. É a justiça que vai de encontro ao direito. É do direito de Zeus punir Prometeu pelo roubo do fogo, levado aos seres humanos, mas é justo que ele seja punido por tirá-los da cegueira em que viviam, abrindo-lhes as portas da civilização? Eis a grande questão da peça.

Para não correr o risco de retorno ao caos com a perda do seu poder, Zeus terá de se vencer a si mesmo, moderando a sua desmedida e proporcionando a libertação de Prometeu, através de uma das mulheres por ele fecundadas, Io. A libertação sairá das mesmas mãos de quem puniu. Saindo da ventura para desventura, Prometeu conhece antecipadamente a possível queda de Zeus, mas ignora como poderá se libertar. Submetido à força e ao poder, seu trunfo é a justiça divina, o oráculo de Thêmis.

Por Þ m, podemos ver Prometeu acorrentado como uma alegorização da Pólis, no sentido de que a civilização está em desacordo com o poder prepotente que, como diz Oceano, não tem contas a prestar.

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Genealogia de Hércules

GLOSSÁRIO

Acrópole: Literalmente, cidade alta, cidade no cume. É a parte alta da cidade de Atenas, onde se encontra o Partenon, grande templo em louvor de Palas Atena, a deusa protetora da cidade.

Antístrofe: Movimento do coro para a esquerda, em torno do altar, no centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.

Bacante: Seguidor de Dionisos, tomado pela fúria do deus. O deus Dionisos também era conhecido como Baco.

Catarse: A tragédia tinha por objetivo inspirar terror e piedade. A catarse era a conseqüência disso, objetivando a puriÞ cação das emoções.

Deuteragonista: O segundo personagem em cena, introduzido por Ésquilo.Ditirambo: Hino a Dionisos, cantado durante a procissão da faloforia.Entusiasmo: Trata-se da possessão divina, a animação por um transporte

divino, para transformar-se em bacante.

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Estreito de Bósforo: Passagem que divide a Europa da Ásia, que dá acesso do Mar de Mármara ao Mar Negro ou vice-versa. Na parte Européia do Estreito de Bósforo encontra-se Istambul, que já foi Constantinopla e já foi Bizâncio. Seu nome signiÞ ca literalmente “Passagem da Vaca” por causa de Io.

Estrofe: Movimento do coro para a direita, em torno do altar, no centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.

Êxtase: Trata-se do deslocamento do espírito. O seguidor de Dionisos buscava sair de si para ir ao encontro do deus ou para que o deus pudesse entrar nele.

Faloforia: Procissão para culto de Dionisos e da fertilidade. Os seguidores do deus carregavam um enorme falo sobre o andor, em homenagem ao deus Príapo, agradecendo pelas colheitas e pela fertilidade.

Grandes Dionisíacas: Festas entre os meses de março e abril, durante a primavera, em honra ao deus Dionisos, para culto da fertilidade e da colheita. Durante essas festas acontecia o concurso de teatro.

Oceânides: Filhas de Oceano e Téthys. Hesíodo alude a quarenta e uma Oceânides, mas a lista teria pelo menos três mil. São, como o próprio nome indica, divindades marinhas.

Ornitomancia: É a prática de se descobrir o futuro a partir do vôo dos pássaros ou do estudo de suas entranhas.

Peripécia: Ação que na Tragédia resulta no contrário do esperado.Pólis: Assim se chama a cidade grega, a partir do século VI a. C. A pólis

marca a entrada da Grécia na democracia, com os cidadãos (polites) se reunindo em torno da praça (ágora) para tomar as decisões.

Protagonista: O personagem principal. Até Ésquilo, tratava-se do único personagem em cena.

Reconhecimento: Momento da tragédia em que o personagem sai da ignorância para o conhecimento dos fatos.

Teomaquia: Batalha dos deuses. É assim que acontece na Ilíada, nos Cantos XX e XXI, quando Zeus libera a participação dos deuses na guerra de Tróia, para que eles tomem o partido que lhes parecer melhor. Também na Teogonia de Hesíodo existe uma teomaquia, mais especiÞ camente uma titanomaquia, na luta de Zeus contra os Titãs, liderados por seu pai Cronos. Zeus é o vencedor, aprisionando os Titãs no Tártaro.

Titanomaquia: V. Teomaquia.Trilogia: conjunto de três peças trágicas, apresentadas por ocasião dos

concursos.Tritagonista: Terceiro personagem em cena, introduzido por Sófocles.

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UNIDADE IV

ESTUDO DE VIRGÍLIO – O LIVRO I DA ENEIDA

4.1 Estudo de Virgílio

Publius Vergilius Maro (Mântua, 70 a. C. – Brundísio ou Bríndise, 19 a. C.), considerado um dos maiores poetas da língua latina, viveu no período Clássico da literatura latina – a chamada Idade de Ouro do imperador Otávio Augusto –, momento em que a literatura atinge seu apogeu, contando para isto com o concurso da Þ gura de Mecenas, amigo de Otávio. Estudante de gramática e retórica na juventude, Virgílio prefere a companhia de Þ lósofos e poetas, por reconhecer na timidez uma barreira para enfrentar os debates retóricos. A partir da vitória de Otávio sobre Marco Antônio (31 a. C.), na batalha de Actium, e de sua aclamação como princeps (29 a. C.), Virgílio cai nas graças do futuro imperador, que lhe encomenda uma epopéia sobre a glória romana.

De suas obras mais importantes, temos notícia das Bucólicas (39 a. C.), poema do campo, em que pastores na natureza ideal desfrutam da felicidade fazendo poesia, cuja base são os Idílios de Teócrito (poeta grego do século III a. C.); as Geórgicas (29 a. C.), poema didático, dedicado a Mecenas, sobre a agricultura e a criação dos animais, inspirado em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (poeta grego do século VIII a. C.) e em De rerum natura de Lucrécio (poeta latino 99/94-55/50 a. C.)1. Por Þ m, aquela que é considerada a sua obra-prima a Eneida (17 a. C.), epopéia inspirada na Ilíada e na Odisséia de Homero (VIII a. C.), narrando a fundação das bases da futura Roma, o que virá a ser feito pelos descendentes de Enéias, personagem central do poema.

A epopéia mais antiga entre os latinos é a tradução/adaptação da Odisséia de Homero por Livius Andronicus – Odissia (cerca de 250 a. C.) –, em cuja composição o poeta utilizou versos saturnianos. Só com Ennius e os Anais (século II a. C.) é que os romanos terão uma epopéia com o hexâmetro dactílico ou espondaico, dando a Roma a sua primeira obra de porte. Segundo Pierre Grimal (1997: 174), para escrever a sua epopéia, a Eneida, Virgílio aglutina a tradição homérica à nova tradição de Ennius, este considerado o pai da literatura latina.

Tendo começado a composição da Eneida por volta de 29-28 a. C., dez anos depois Virgílio ainda não se dava por satisfeito com o que escrevera, por isto teria determinado a destruição de sua obra, quando estava próximo a sua morte, em 19 a. C. Por interferência de Otávio é que o poema foi editado. O já imperador incumbiu dois amigos de Virgílio, também poetas, L. Varius e Plotius Tucca, de cuidarem da edição da Eneida, publicada dois anos depois da morte do poeta, em 17 a. C. (GRIMAL, 1997: 237).

A lenda da fundação de Roma reserva o ano de 753 a. C. para a sua construção. Com a queda de Tróia, Enéias e um grupo de troianos são impelidos pelo destino a deixar a cidade de Príamo e ir em busca de fundar uma nova Tróia, tão gloriosa quanto aquela que acabava de ser tomada pelos gregos, após

1 O poema foi lido por Virgílio, que alternava a leitura com Mecenas quando este cansava, a Otávio, em 29 a. C., na Campânia, em seu retorno vitorioso do Oriente (GRIMAL, 1997: 128)

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dez anos de cerco. A chegada dos Troianos à Península Itálica põe em confronto Enéias e Turno, rei dos Rútulos, pela posse da terra. Vitorioso, Enéias funda o reino de Lavínio, cujo nome é originário da Þ lha do rei Latino, Lavínia, que ele recebe como esposa. Seu Þ lho Iulo, em seguida, funda a cidade de Alba Longa, onde reinará por trinta anos, e seus descendentes por trezentos anos. Passado esse tempo, a sacerdotisa vestal Rhéia Sílvia dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo, netos de Numitor, rei de Alba longa, proporcionando assim as condições para a futura fundação de Roma. Em linhas gerais, este é o argumento da Eneida, com a ressalva de que o poema encerra com a morte de Turno por Enéias. Mesmo que não vejamos o desenrolar dos acontecimentos, eles são anunciados ao longo da narrativa, desde o Livro Primeiro, numa antecipação do destino de Enéias e da glória romana.

A história de Enéias, como ancestral de Roma, está na tradição latina2, mas é na Ilíada que Virgílio encontra a deixa literária para escrever a Eneida. A glória de Enéias como mito fundador e o destino de seus descendentes são anunciados no Canto XX do maior poema homérico, nos versos 292-3083:

Imediatamente, [Posídon] diz aos deuses imortais:Ai de mim! sinto uma grande dor por Enéias do grande coração,Que depressa baixará ao Hades, sob o braço do Pelida,Por ter sido persuadido pelas palavras de Apolo, o que fere de longe.Tolo! Não é ele [Apolo] que vai socorrê-lo contra a morte ruinosa.Mas qual a necessidade de que ele sofra estas dores,Inutilmente, pelos males dos outros, ele que sempre ofereceuPresentes aos deuses que habitam o vasto céu?Eia, vamos subtraí-lo da morte e levá-lo conosco,Se por um lado, o Cronida se indignaria de ver Aquiles Matá-lo, por outro lado, o destino deseja vê-lo salvo,Para que não pereça, sem posteridade e aniquilada,A raça de Dárdanos, que, dentre todos os seus Þ lhos, Nascidos dele e de uma mortal, o Cronida mais amou.Já a raça de Príamo, o Cronida odeia.É o poderoso Enéias que reinará, doravante, sobre os troianos,Ele e os Þ lhos de seus Þ lhos, que nascerão em seguida.

Descendente de Dárdanos, Þ lho amado de Zeus, Enéias deve ser salvo da luta contra Aquiles. Assim manda o Destino, para que ele possa ser rei dos troianos um dia, bem como os Þ lhos de seus Þ lhos. É com este argumento que Posídon, apesar de estar ao lado dos gregos na guerra de Tróia, salva Enéias de ser morto por Aquiles, envolvendo o Pelida em um nevoeiro tenebroso, e jogando Enéias em outra frente de combate, onde não será alcançado pelo melhor dos aqueus, Aquiles. Nestes versos também se encontra a personalidade piedosa de Enéias, sacriÞ cando aos deuses do Olimpo.

Contando com 9896 versos, dividida em doze Livros ou Cantos, nós podemos distribuir, didaticamente, os argumentos de cada livro da Eneida da seguinte maneira:

Livro I (756 versos): Os Troianos na África – Enéias em CartagoLivro II (804 versos): As Narrativas de Enéias – O Fim de Tróia

2 Veja-se, por exemplo, Tito Lívio, na bibliograÞ a.

3 Tradução nossa do original grego.

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Livro III (718 versos): As Narrativas de Enéias – Os Anos de Errância Livro IV (705 versos): Os Amores de Enéias e Dido – Morte de DidoLivro V (871 versos): Enéias na Sicília – Jogos Fúnebres em Honra de

AnchisesLivro VI (901 versos): A Descida aos Infernos – Entrevista com AnchisesLivro VII (817 versos): Enéias no Lácio – Juno e Alecto Semeiam a DiscórdiaLivro VIII (731 versos): A Aliança com Evandro – O Escudo de EnéiasLivro IX (818 versos): O Cerco aos Troianos – Batalha contra TurnoLivro X (908 versos): O Primeiro Embate – Morte de MezêncioLivro XI (915 versos): O Segundo Embate – Morte de CamilaLivro XII (952 versos): A Decisão – Morte de Turno

Muitos são os estudos sobre a Eneida, cada qual apresentando uma estrutura do poema. A estrutura da Eneida mais conhecida é aquela que divide o poema em duas partes, relacionando os seis primeiros livros à Odisséia e os seis últimos livros à Ilíada, numa estruturação invertida com relação aos poemas homéricos. Apesar de simplista, podemos dizer que, em linhas gerais, esta estruturação não deixa de ser correta. Como, no entanto, trata-se de um poema de uma intertextualidade complexa, nós propomos uma estrutura triádica para a sua análise, de modo a cobrir com mais propriedade o poema. A saber:

I. Provações (Livros I-IV): As provações são um rito de iniciação para Enéias como mito fundador. O herói, além de perder a pátria e o pai, tem a missão imposta pelo destino de fundar uma nova Tróia. As provações, que se revelam entre os Livros I e III, apresentam uma transição no Livro IV, em que se mostram as provações de Dido, e a renovação dos votos da missão de Enéias. O Livro I mostra a tempestade desencadeada por Éolo a mando de Juno, que faz Enéias se desviar de sua rota e bater com os costados no litoral da África do Norte, a Líbia de então, onde Dido constrói o reino de Cartago. O Livro II é o início das narrativas de Enéias, mais especiÞ camente enfocando a queda de Tróia. Trata-se do melhor relato nas grandes epopéias da vitória dos gregos sobre os troianos, após uma guerra de dez anos. O Livro III dá continuidade às narrativas de Enéias, desÞ ando o itinerário diÞ cultoso do herói, digno da Odisséia: viagens pelo mar, pestes, tempestades, errâncias, profecias sombrias, morte do pai, nova tempestade, desvio de rota... O Livro IV mostra os amores de Enéias e Dido, com o herói vendo-se obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu destino. O desdobramento de amor e fuga de Enéias leva Dido à morte, origem mítico-poética dos desentendimentos futuros entre Roma e Cartago. Aqui se dão as três principais perdas de Enéias: a pátria, a esposa e o pai.

II. Rituais (Livros V-VIII): Os rituais revelam o rito de passagem de Enéias em busca do pai e da pátria. Primeiro, os ritos fúnebres com que ele celebra o pai, no Livro V, com os jogos na Sicília, em Drépano, após um ano da morte de Anchises; em seguida, no Livro VI, Enéias faz a Catábasis (descida ao inferno para o reencontro com o pai, que o aconselha e mostra o futuro glorioso de Roma), num ritual de conhecimento e clariÞ cação do destino, e a Anábasis, subida de volta ao mundo dos vivos para encontrar a pátria,

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ritualisticamente encontrada no Livro VII, na chegada ao Lácio, após o cumprimento da sombria profecia de Celeno (Livro III), de que os troianos, de fome, comeriam as próprias mesas. É aí que se dá o rito fundador, com a invocação aos deuses: deuses do local, Ninfas, Rios e cursos d’água, Noite, Júpiter do Ida, a mãe frígia Cibele, sua mãe celeste Vênus, e o pai Anchises, que se encontra no Érebo, nos Infernos. A este ritual, Júpiter responde com três trovões, aprovando e conÞ rmando o destino do herói, que passa a demarcar a terra prometida, já construindo uma fortiÞ cação (Livro VII, versos 137-159). Finalmente, a transição que se opera no livro VIII, transição que vai da aliança com o Arcádio Evandro, que passeia com o troiano sobre o sítio da futura Roma, ao recebimento das armas forjadas por Vulcano, em que se anuncia, ainda uma vez a glória de Roma, futura senhora do mundo. É este o momento em que Enéias põe termo aos ritos e revela-se um rei pronto para a guerra de conquista do novo reino.

III. Combates (Livros IX-XII): Tendo adquirido a têmpera necessária e feitas as alianças indispensáveis com o Arcádio Evandro (Livro VIII) e o Etrusco Tarcão (Livro X), Enéias parte para a guerra contra Turno, rei dos Rútulos. No primeiro grande embate, Enéias mata o cruel Mezêncio, no Livro X; no segundo grande embate, morre Camila pelas mãos de Arrunte, no livro XI; por Þ m, Enéias mata Turno, no Livro XII. A posse da terra é também a posse da mulher, Lavínia, em cuja homenagem ele colocará o nome do reino – Lavínio. Está formada a base para a construção da futura Roma. Em suma, mito fundador, Enéias perde a pátria e o pai, para, reencontrando o pai, ser o pai da nova pátria (vejam-se, no Livro I, os versos 555, 580 e 699, e no Livro III, o verso 716, em que Enéias é chamado de Pater, pai.). É verdade que o poema termina de maneira abrupta com a morte de Turno por Enéias, não se vendo, portanto, a fundação de Roma, sequer do reino Lavínio. No decorrer do poema, contudo, anuncia-se a cada passo o destino de Enéias, vinculado à fundação da Roma gloriosa, senhora do Mediterrâneo, no início da sua glória, e senhora do mundo com Augusto.

4.2 O Livro I da Eneida – Fim das Provações pelo Mar

Georges Dumézil se refere aos últimos seis livros da Eneida como presididos pelos “Fata fermés” ou destinos fechados (1995: 365-387). Ele considera que Enéias só verá com clareza o seu destino, após fazer a anábasis, a subida do inferno, voltando para o mundo dos vivos. Tendo visto no mundo das sombras a glória da futura Roma, apresentada pelo seu pai Anchises, Enéias se apressa a voltar às naus e juntar-se aos seus companheiros. Os destinos são fechados para a maior parte dos personagens, que serão levados ao aniquilamento, como é o caso de Evandro (cujas esperanças estão depositadas no Þ lho Palante), Palante, Lausos, Camila, Mezêncio e Turno.

No que diz respeito a Enéias, seu destino será conÞ rmado pela profecia de Fauno, pai de Latino, e de um arúspice a Evandro, a quem Enéias vai pedir ajuda. Além do apoio de Evandro, Enéias vai contar com a ajuda dos Etruscos de Tarcão, que querem vingança de Mezêncio e de suas crueldades. Na profecia de Fauno, a Þ lha do rei Latino deverá ser dada em casamento a um estrangeiro; na do arúspice, as tropas contra Mezêncio devem ser comandadas por um estrangeiro. Para chegar a esta clareza, no entanto, Enéias faz um caminho tortuoso, narrado

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nos primeiros quatro livros da Eneida, o caminho das provações. Vamos fazer um breve estudo do Livro I para podermos entender as provações do herói.

Para o leitor que não se dá conta de que está diante de uma estrutura narrativa in medias res, este Livro I da Eneida seria o início das provações de Enéias, com a tempestade desencadeada por Éolo a pedido de Juno, perseguidora do herói troiano. O verdadeiro início das provações, contudo, acontece bem antes, com a queda de Tróia, mas o leitor só o conhecerá com o ß ash-back proporcionado pelo herói, nos Livros II e III. Abrindo com o proêmio – misto de invocação e proposição –, o Livro I nos apresenta o argumento do poema, dirigindo a uma leitura que não pode desconsiderar a ação do destino. Assim é que o herói Enéias nos é apresentado, compelido à fuga de Tróia pelo destino, exilado da pátria pela ação do destino – fato profugus (v. 2)4 e assinalado pelos deuses por sua piedade – insignem pietate uirum (verso 10). Sua missão é chegar à Itália, nas terras da Lavínia e ali construir os altos muros da futura Roma.

A narração já nos mostra Enéias em meio à tempestade, perseguido pela cólera de Juno, ressentida com fatos passados e temendo fatos futuros. Ainda irada com a escolha de Páris, no julgamento do Monte Ida, e com o rapto do troiano Ganimedes por Zeus – fatos passados –, Juno continua com o seu propósito de acabar com os troianos, sobretudo, após saber que se Enéias fundar uma nova Tróia, isto será a causa da perdição de Cartago, a cidade por ela protegida e que está sendo erguida por Dido na costa da África do Norte, na Líbia de então (versos 12-33)5. Cartago é o Þ m da errância custosa a Enéias e sua gente, antes de atingir o Lácio:

(Juno) distanciava (os troianos) para bem longe do Lácio, por muitos anose (os troianos) erravam por causa dos fados por todos os mares em torno.Tamanha diÞ culdade era fundar a nação Romana. (I, versos 31-33)

Este primeiro capítulo é proléptico, contando com algum ß ash-back sobre a guerra de Tróia. A prolepse mais importante é a referente ao destino de Enéias, com Júpiter predizendo e reaÞ rmando a Vênus a missão de Enéias como mito fundador, que dará aos homens leis e muralhas; e a glória da futura Roma. Os destinos dos troianos, portanto, permanecem imutáveis, nada fará com que o Deus mude suas decisões: Enéias reinará no Lácio por três anos, após submeter os rútulos, fundando o Reino de Lavínio; Iulo reinará trinta anos após Enéias, fundando o reino de Alba Longa; por trezentos anos reinarão os troianos até o nascimento de Rômulo e Remo, que irão fundar Roma. Ciente do seu destino e dos trabalhos que irá enfrentar, Enéias exclama ao deparar-se com o formigamento da construção de Cartago:

Ó afortunados, dos quais as muralhas já surgem! (I, verso 437)

Na continuidade da prolepse, o narrador nos conta da dominação da Grécia por Roma. Oprimida pela casa de Assáraco, o Þ lho de Tros, de cuja linhagem sairão Anchises e Enéias, a Ftia, a ilustre casa de Micenas e a vencida Argos, ironicamente serão subservientes aos Troianos outrora derrotados. Conclui-se essa prolepse com a expansão do Império Romano, com César, e o período da Pax Romana, com Augusto (versos 257-296)6. Roma será um império sem limites e sem Þ m:

4 Todas as citações da Eneida são da edição da Les Belles Le res, de Paris, constante da bibliograÞ a. As traduções do latim e do grego são nossas, salvo quando forem devidamente r e f e r e n c i a d a s . Esclarecemos também que as traduções são operacionais, com o sentido de entender o texto no seu original, sem pretensões poéticas.

5 Hoje Tunísia.

6 Analisaremos este trecho, mais minuciosamente, em seguida.

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A estes eu não Þ xo limites nem tempo:Um império sem Þ m eu lhes dei (I, versos 278-9).

A prolepse da narrativa, no entanto, não se dá apenas com o futuro glorioso de Roma. Ocorre também com o amor de Enéias e Dido, fato que acontecerá no Livro IV. A partir dos versos 667 e seguintes, prepara-se este amor, quando, por ocasião do banquete a Enéias, seu Þ lho Ascânio é trocado, numa intervenção de Vênus, por Cupido, para insuß ar a paixão em Dido, que Þ cará desde já embebida de um amor que lhe trará a infelicidade (I, verso749):

E a infeliz Dido bebia um longo amor.

Como sabemos, este Livro I é a chegada de Enéias em Cartago, onde terminam as suas provações pelo mar, o que denominaremos de rito iniciático. O Þ nal das provações se dará em dois momentos, no templo de Juno e no banquete a Enéias, oferecido por Dido. Nas paredes do templo, que está sendo construído em homenagem a Juno, Enéias vê cenas da guerra de Tróia, que o levam às lágrimas. A Fama já havia difundido o infortúnio dos troianos em todos os recantos do mundo:

Parou e chorou: “Em que lugar” perguntou “Achate,Que região na terra não está cheia de nossas dores?”

(I, v. 459-460)

Das cenas vistas por Enéias se destacam: Príamo e Aquiles irritado contra os atridas (A irritação de Aquiles contra os atridas, e mais especiÞ camente Agamêmnon, é o tema do Canto I da Ilíada); recuo dos gregos ante os troianos (o que acontece na Ilíada até o Canto XVI); recuo dos troianos ante Aquiles (Ilíada, a partir do Canto XX); morte do rei Rheso da Trácia (Ilíada, Canto X); morte de Troilo ante Aquiles (Ilíada, Canto XXIV, segundo relato de Príamo); dor das mulheres troianas (Ilíada, Cantos XXI-XXIV); morte, ultraje e resgate do corpo de Heitor (Ilíada, Cantos XXII-XXIV) e a luta de Pentesiléia, rainha das Amazonas, aliadas dos troianos, morta por Aquiles (Pós-Homérica, de Quinto de Esmirna, episódio fora da Ilíada).

O segundo momento, que determina o Þ m das provações, é uma espécie de catarse de Enéias, quando instado por Dido a narrar as suas aventuras, o que se dá nos dois Livros seguintes. Enéias fala da queda de Tróia, da perda da esposa (Livro II) e de sua errância, por terra e por mar, momento em que perde o pai (Livro III). Enéias tem consciência das provações (I, v. 198-207), alerta os seus companheiros para o fato, mas não perde a esperança de dias melhores, prometida pelo destino:

Por vários acasos, por um sem grande número de perigosDirigimo-nos para o Lácio, onde os fados um domícilio aprazívelAcenam; ali as leis sagradas nos permitirão ressuscitar o reino de Tróia.Tende paciência, e conservai-vos para as coisas favoráveis

(I, versos 204-207).

A análise de um trecho especíÞ co do Livro I nos dará a consciência da estrutura triádica do herói Enéias. Trata-se dos versos 223 a 296, em que se observa a reaÞ rmação do destino de Enéias para a gloriÞ cação de Roma.

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Sabemos que na Eneida, o destino de Enéias é fechado7, pois se trata de um destino bom: o herói está determinado pelos deuses a fundar uma cidade tão gloriosa quanto Tróia recém-destruída e assim perpetuar a progênie de Dárdano e a casa de Assáraco. Impelido, portanto, pelo fado – fato profugus –, Enéias se lança ao mar com os Penates de Tróia, em busca do lugar prometido e anunciado por Creúsa, sua esposa, que, no momento da destruição de Tróia, desaparece e, posteriormente, reaparece-lhe na condição de simulacro, para lhe falar das terras da Hespéria, onde à beira do Tibre opulento o aguardam a fortuna e uma esposa real. Após várias errâncias pelo mar, Enéias chega à costa da África, apesar da perseguição da deusa Juno (Hera), ainda ressentida com os troianos desde o julgamento do Monte Ida – este apenas um dos motivos –, quando sua beleza foi preterida por Páris, em favor de Vênus (Afrodite).

Salvo por Netuno da tempestade desencadeada por Éolo a mando de Juno, Enéias consegue aportar na Líbia e assim escapar do naufrágio. A sua chegada, última provação do herói no mar, é observada por Júpiter (Zeus), pai dos deuses, a quem coube determinar o destino de Enéias. Estamos no Livro I da Eneida, mais ou menos no seu primeiro terço8. É nossa intenção montar a estrutura e desenvolver a análise de um trecho de 73 versos, compreendido entre os versos 223 e 296 deste Livro I.

O trecho pode ser divido em dois momentos: a queixa de Vênus a Júpiter (versos 223-253) e a conÞ rmação do destino de Enéias (versos 254-296). O primeiro momento é bem simples, pois se resume exatamente à queixa de Vênus a Júpiter, intercedendo pela sorte de seu Þ lho Enéias, cobrando ao pai a promessa feita: os romanos, nascidos do sangue reanimado de Teucro, seriam os senhores do mundo:

É daí, sem dúvida, que, no curso dos anos, outrora prometeste,(nasceriam) os Romanos; do sangue reanimado de Teucrodeverão surgir os senhores que manterão com toda soberaniao oceano e as terras: que pensamento, pai, te mudou?9

(I, 234-237)

Embora Vênus saiba que o destino de Enéias vai se cumprir – é determinação do pai Júpiter –, as provações tantas por que Enéias já passara (o que só vamos conhecer com a narrativa em ß ash-back dos Livros II e III) não foram suÞ cientes para conduzi-lo a seu termo. O mundo inteiro teria se fechado com a tempestade de Juno, proibindo o herói de chegar à Itália (I, verso 233).

Sabemos que todas as provações são necessárias para a formação do herói, fazendo parte, portanto, de seu rito de passagem, Vênus não teria, pois, que questionar Júpiter sobre as determinações já conhecidas. Mas as razões de mãe são sempre de ordem emocional... No questionamento a Júpiter, Vênus compara a sorte de Enéias à de Antenor. Este troiano, para muitos um traidor, conseguiu escapar da destruição de Tróia e chegar sem perigos ao norte da Itália, onde fundou Pádua no vale inferior do rio Pó, ali vivendo em tranqüilidade. A comparação que mostra o sucesso de Antenor e os fracassos de Enéias tem sua razão de ser. Antenor não é de raça divina, Enéias é. Como permitir a um simples mortal, visto por muitos como traidor da pátria, sem ter sido assinalado pelos deuses, ter êxito na sua fuga e viver em paz? Enéias além de ser duplamente

7 Ver DUMÉZIL, Georges (1995: 365): “A longa noite de Tróia, os anos de incerta navegação, os oráculos e os milagres, a tentação púnica evitada, tudo teve um sentido: reconduzida a sua origem ausoniana, a realeza de Príamo vai reß orescer sobre esta terra prometida enÞ m tocada, a Itália.”

8 O Livro I tem 756 versos.

9 A tradução, apenas operacional, é nossa.

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divino – Þ lho de Vênus e neto de Júpiter – foi designado pelo Destino para cumprir uma missão gloriosa. Trata-se de um herói em sua plenitude, escolhido pelos deuses (leia-se Júpiter) para perpetuação de uma raça e, mais ainda, para a construção de uma nova Tróia, desta feita com a devida anuência divina. Bem ao contrário da outra Tróia que fora destruída por ter sido construída no erro e por nele ter persistido. Mito civilizador, que expande a civilização troiana para o Ocidente, Enéias deve ter suas provações de viagem terminadas, pois já se mostrou pio o suÞ ciente para merecer chegar ao termo do seu destino. É chegada a hora de ver realizada a promessa à prole – a entrada na alta morada do céu (I, verso 250) e a recompensa pela piedade (I, verso 253) – com a retomada do cetro e a reconstituição da realeza troiana, a partir de Enéias (I, verso 253).

É neste pequeno fragmento que se revela, de modo inequívoco, o conß ito entre Vênus e Juno. Esta persegue, aquela protege Enéias. Este embate será vencido temporariamente, de modo ardiloso por Vênus, no Livro IV, quando do acordo entre as duas deusas para unir Enéias a Dido. Vênus acha lamentável, terrível mesmo (infandum!, verso 251) que os troianos tenham que padecer, sendo abandonados com seus navios pela cólera de uma única divindade.

É importante observar que deste pequeno fragmento de trinta versos, pelo menos três idéias fundamentais para a compreensão da Eneida surgem. A primeira é a noção de que os deuses, mesmo interferindo na trajetória do herói, podendo até retardar o cumprimento do destino, não podem mudar o determinado pelo destino. Enéias sofreu todas as provações possíveis e imagináveis, mas seu destino será cumprido. A segunda é a idéia de que o herói tem uma contrapartida a apresentar pelo destino bom que o aguarda. Não é porque o destino será cumprido que o herói não deva mostrar-se merecedor dele. As provações de Enéias são a sua preparação, seu rito de passagem para a condição do herói civilizador. É isto o que representa o recebimento das armas fabricadas por Hefestos, no Livro VIII da Eneida. A terceira idéia está ligada a um conceito religioso caro aos romanos: a piedade (pietas). A piedade de Enéias já se encontra na Invocação do poema (v. 10); o epíteto por que Enéias deverá ser conhecido, pius Aeneas, o piedoso Enéias, incansavelmente repetido ao longo da narrativa, já se encontra no verso 220 deste Livro I10.

De acordo com Pierre Grimal (1981: 73), a pietas era uma atitude que consistia em observar escrupulosamente não somente os ritos, mas também as relações existentes entre os seres no universo. Inicialmente, tratava-se de uma espécie de justiça do mundo material, capaz de manter as coisas do mundo espiritual no seu lugar ou de remetê-las para lá, cada vez que algo de natureza acidental pudesse provocar a desarmonia, portanto a injustiça. Grimal faz ainda uma leitura etimológica do termo pietas, apontado uma relação estreita com o verbo piare, que designa uma ação de apagar uma mancha, um mau presságio, um crime (1981: 73).

Ora, Enéias é piedoso, pois a sua atitude é de temente e obediente aos deuses, e de cumpridor dos rituais sagrados, atitude devidamente comprovada no curso da narrativa – veja-se o ritualístico Livro V, por exemplo –, mas já testada no Livro II (versos 717-720), quando o herói se recusa a levar em suas mãos os Penates de Tróia, pois se encontrava sujo de poeira e sangue da guerra travada contra os invasores argivos. Impuro, ele se encontrava proibido de tocá-los (me.../ a rectare nefas, versos 718-719). É, pois, na condição de piedoso, que

10 Neste Livro I, ainda há outras duas ocorrências do epíteto nos versos 305 e 378.

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Enéias deveria fundar uma nova Tróia, limpando a anterior de sua mancha, do seu erro, assunto a que voltaremos mais adiante.

Constatamos, portanto, que este pequeno trecho das queixas de Vênus nos apresenta duas das três partes estruturais da Eneida: as provações e os rituais advindos da piedade. A terceira parte – as guerras – será apresentada no trecho seguinte, o da resposta de Júpiter.

A segunda parte do trecho, a conÞ rmação do destino de Enéias (I, versos 254-296), nos revela uma complexidade muito maior, pois Virgílio na composição do seu poema utiliza-se substancialmente da história de Roma. Logo de início, vemos o resultado da missão de Enéias, como uma forma de Júpiter tranqüilizar a angústia da Þ lha, para depois nos ser mostrado o roteiro que levará ao Þ m dessa missão. Tranqüilidade expressa num rosto que serena o céu e as tempestades (uoltu, quae caelum tempestatesque serenat, verso 255), prometendo que os destinos dos descendentes de Vênus permanecem imutáveis (manent immota fata, versos 257-258) e que a deusa verá surgirem os muros da cidade e ela mesma elevará Enéias aos astros do céu (feres ad sidera caeli/ magnanimum Aeneam, versos 259-260). Aqui se conÞ rma o Enéias empreendedor, fundador de cidades. Mais abaixo, veremos, na revelação dos arcanos do Destino, o Enéias guerreiro que fará grande guerra na Itália, domando povos ferozes, além do Enéias empreendedor e sacerdote, pois dará leis e cidades aos homens. Não é suÞ ciente que o herói seja apenas um mito fundador, ele deve ser um mito civilizador, cabe-lhe, portanto introduzir a civilização, o que se fará através das leis, na Península Itálica:

Este à Itália levará grande guerra, os povos ferozesaniquilirá e estabelecerá leis e muralhas aos homens

(I, versos 263-264)

Itália Antiga (Tito-Lívio, História de Roma)

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Enéias terá um reinado curto, após a submissão dos Rútulos, o que ocorrerá após a morte de seu rei, Turno (V. Livro XII), não nos permitindo ver a fundação de Roma, distante da fundação do reino de Lavínio por Enéias cerca de 350 anos. Assim como não vemos a morte de Aquiles e a destruição de Tróia na Ilíada, fatos apenas anunciados a cada passo da narrativa, também não veremos a construção e fundação de Roma, na Eneida, embora isso também seja anunciado ao longo da narrativa. Vejam-se os Livros VI e VIII, por exemplo.

A descendência de Enéias está garantida através de Iulo, seu Þ lho, fundador de Alba Longa, onde reinarão seus descendentes e de onde surgirá Roma. A construção de Roma virá com Rômulo, Þ lho de Marte com Rhéia Sílvia ou Ília. Corrigindo uma usurpação – o trono tomado por Amúlio de seu irmão Numitor –, o deus Marte se une a Rhéia Sílvia, sacerdotisa Vestal11 obrigada pelo tio Amúlio, e ela dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo. Uma vez adultos, os rapazes se descobrem netos de Numitor, matam Amúlio e restituem o reino de Alba Longa ao avô. Agraciados com um pedaço de terra cada um (Rômulo no Palatino e Remo no Aventino), a Rômulo cabe fundar a cidade, orientado pelo augúrio dos doze abutres (Veja-se a seguir a genealogia do Rômulo e Remo, o mapa das colinas de Roma e o mapa da Roma dos primórdios).

Mapa das colinas de Roma (Tito-Lívio, História de Roma)

11 A condição de Vestal exigia da sacerdotisa a castidade. Este foi um expediente de Amúlio, após matar os Þ lhos homens do irmão Numitor. Impondo o sacerdócio à sobrinha, ele não teria que se preocupar com uma linhagem masculina que pudesse tirá-lo do poder. Vesta era uma deusa romana, identiÞ cada com a grega Héstia, é a personiÞ cação da Lareira (sempre no centro, seja do altar, da casa ou da cidade). Protetora do fogo sagrado, Vesta teria sido introduzida no Lácio por Enéias (v. Livro II da Eneida, versos 296-297). Numa também lhe erigiu um templo, com fogo perene e inextinguível (v. Ovídio, Fastos, 6, 255-298). Tito Lívio nos mostra Numa Pompílio como rei virtuoso que escolhe jovens donzelas obrigadas à castidade para o serviço de Vesta e lhes dá um tratamento pago pelo estado (I, XX: 1-3).

12

13

12 Destrona o irmão, mata os sobrinhos homens e obriga a sobrinha a ser vestal (Tito Lívio, I, III: 10-11).

13 Rhea Silvia engravida de Marte e dá à luz gêmeos, expostos no leito do Tibre, aleitados por uma loba e criados pelo pastor Faustulus (Tito Lívio, I, IV:1-9)

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Mapa da Roma dos primórdios (Tito-Lívio, História de Roma)

O importante é ver como Rômulo é apresentado nessa prolepse de Júpiter – ele receberá a nação, construirá as muralhas mavórcias e dará seu nome aos romanos (I, versos 276-277). Rômulo consulta, recebe e interpreta os augúrios, tendo por isto recebido com a anuência divina a cidade, o que lhe confere a função sacerdotal; ele constrói as muralhas e dá nome ao povo, o que lhe confere a função empreendedora, por Þ m, as muralhas são guerreiras: muralhas mavórcias, de Marte, o que lhe confere a função guerreira. Deste modo, há uma perfeita simbiose entre Enéias e Rômulo, desempenhando ambos as três funções do indo-europeu – Sacerdote, Guerreiro e Empreendedor.

A Eneida, podemos dizer, acompanha esta estrutura do indo-europeu, vez que é possível dividir o poema em três momentos: as provações, os rituais e as guerras, com Enéias desempenhando as três funções. Se não vemos a fundação de Roma, mas acompanhamos a fundação de várias cidades pelo herói (v. Livros III, IV, V e VII).

A glória de Roma nos aparece apresentada em prolepse por Júpiter a Vênus entre os versos 278 e 296. Dentro do espírito da Roma imperial em que Virgílio vivia, é natural que se cresse na glória perpétua do grande império que começava a ser construído por Augusto. A Eneida, a um só tempo, se refere ao passado e ao presente, numa exaltação do imperador Otávio Augusto, reconhecendo as

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mudanças por que passara Roma desde o Þ nal do segundo triunvirato, com a vitória de Otávio sobre Marco Antônio em Actium (31 a. C.)14, ligando-o à Þ gura de Rômulo, fundador da cidade. Augusto aparece como novo fundador de Roma, permitindo um tempo de paz e prosperidade. Assim, Enéias surge como a ligação entre os dois – Rômulo e Augusto – nas suas funções triplas de rei guerreiro, rei sacerdote e rei empreendedor. Observe-se que, assim como Enéias, Augusto perde o pai, perde a nação, para ser o reconstrutor de uma nova nação e, portanto, ser o pai dessa nação.

A fala de Júpiter, portanto, não deixa a menor dúvida sobre esse destino glorioso – aos romanos não ponho limites nem tempo para as conquistas: dei-lhes um império sem Þ m (I, versos 278-279). Os romanos, gente togada, devidamente já favorecidos por Juno, dobrada pela força da pietas, serão os senhores do mundo (rerum dominos, verso 282 ). Mais do que promessa de Júpiter, este é o seu desejo – sic placitum (I, verso 283).

Um dos momentos mais importantes do trecho em estudo é o que trata da dominação da Grécia por Roma, numa ironia do destino, invertendo as proposições: os antigos troianos, derrotados pelo exército de coalizão comandado por Agamêmnon, que tinha em Aquiles o seu guerreiro mais temido, agora dominarão a Grécia, através da descendência que fará surgirem os romanos. Assim é que a casa de Assáraco manterá em servitude a Ftia e a ilustre Micenas, e dominará os Argivos vencidos (I, versos 283-285).

Enéias é proveniente da casa de Assáraco e não da de Laomedonte. Se Zeus e os deuses têm raiva de Laomedonte, por sua impiedade, e de seu Þ lho Príamo por permitir a impiedade, os provenientes de Assáraco, no caso Enéias e seus descendentes e protegidos, serão os escolhidos para a fundação da nova Tróia sob os auspícios dos deuses, por causa da piedade de Enéias. A piedade de Enéias já é conhecida desde a Ilíada (Canto XX, 292-308), quando Posídon o salva das mãos de Aquiles. A justiÞ cativa é que Enéias não tem que morrer pelos outros, vez que o herói tantos presentes ofereceu aos deuses do vasto céu. Para que o destino se cumpra, é imperioso salvar Enéias. Eis o mote para Virgílio escrever a Eneida.

Por sua vez, Laomedonte, pai de Príamo demonstra sua natureza ímpia ao negar o pagamento prometido a Apolo e a Posídon pela construção das muralhas de Tróia. Príamo aceita que o Þ lho, Páris, traga para casa uma mulher casada, Helena, após o Þ lho ter violado o laço sagrado da hospedagem, que lhe foi concedida por Menelau. A falta é grave, pois atinge diretamente a Zeus Hospedador. Aceitando a falta do Þ lho, a mancha recai sobre todos os habitantes. A contaminação de Páris atinge a todos, por não ter sido repudiado por Príamo. O erro de um, não combatido, torna-se o erro de todos. Some-se a isto o fato de que Tróia foi construída por Dárdanos (a cidadela) e Ilos (a cidade) sobre a colina onde, jogado por Zeus do Olimpo, caiu o Erro, temos todas as condições para a destruição de Tróia. Nascida do erro e tendo permanecido no erro, a cidade deve ser destruída.

Enéias, tendo nascido da casa de Assáraco, longe, portanto, da mancha de Laomedonte e de Príamo é o escolhido para fundar a nova cidade com a aquiescência dos deuses. É por isto que Creúsa não pode seguir Enéias, quando da fuga de Tróia. O herói deve cortar todos os laços com os da raça de Príamo e de Laomedonte, independente de sua vontade. A rejeição dos deuses à ida de Creúsa com Enéias simboliza a rejeição à descendência de Príamo, na fundação

14 A esse respeito se pronuncia André Bellessort, na introdução que prepara para a edição da Eneida da Les Belles Le res, traduzida por ele (VIRGILE, 1952: VIII): “Virgile tourné vers le passé évoque l’origine divine de ce e Rome maîtresse des nations et se tournant vers l’avenir en proclame la pérennité” (Virgílio voltado para o passado evoca a origem divina desta Roma senhora das nações e se voltando para o porvir proclama sua perenidade).

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da nova cidade por Enéias (Livro II, versos 776-779). Da progênie de Enéias nascerão os que oprimirão os antigos opressores de sua raça: Roma dominará sobre a Grécia para ser a senhora do mundo.

No primeiro “Hino a Afrodite”, datado do Þ nal do século VII a. C., a deusa do amor anuncia a Anquises, seu amante naquela ocasião, que dela ele terá um Þ lho que reinará sobre Tróia, cuja descendência será continuada com o nascimento de Þ lhos e de Þ lhos dos Þ lhos. Seu nome será Enéias, diz a deusa, porque uma atroz angústia a confrange por ter-se deixado cair no leito de um mortal (HOMÈRE, 1936, versos 196-199). Enéias, pois, está fadado pelo aviso da mãe, a ser o rei de Tróia. Virgílio o que faz é contar com a tradição homérica da Ilíada aliando-a ao anúncio do “Hino Homérico a Afrodite”. Juntando essas peças e atribuindo a pietas ao herói, eis a razão da Eneida: mostrar a supremacia de Roma sobre o mundo, Roma, em cuja origem teve um herói piedoso15 (Veja-se a seguir a genealogia troiana).

Com os olhos voltados para a sua época, Virgílio não poderia deixar de mostrar a importância da Gens Iulia, a família Júlia, inicialmente, vinculando Júlio César a Iulo, fi lho de Enéias. A extensão do império romano, apenas limitado pelo oceano, mas com a fama chegando até os astros, dever-se-á a Júlio César, divinizado após a morte e recebido nos céus pela própria Vênus16. Depois, mostrando o tempo de Augusto e a paz estabelecida pelo seu governo:

Então os duros séculos, com as guerras cessadas, amansar-se-ão;a Fé encanecida e Vesta, Remo com o irmão Quirinodarão as leis; e com as junturas estreitadas por ferroas terríveis portas da Guerra fechar-se-ão; dentro o Furor ímpiosentado sobre armas selvagens e apertado nas costaspor cem nós de bronze, horrível, fremirá com a boca ensangüentada

(I, versos 291-296).

A Augusto cabe a honra de fazer um governo próspero, proporcionado pela paz17. A condição da paz, no entanto, depende do respeito aos ritos religiosos e

15 Veja-se Grimal, falando de Virgílio: “C’est parce que la race romaine avait été fondé par um héros juste et pieux que Rome avait reçu l’empire du monde” (1981: 167) – Porque a raça romana foi fundada por um herói justo e piedoso, Roma recebeu o império do mundo

16 Grimal nos informa que César foi a última divindade instalada pelo povo romano no Fórum. No local em que seu corpo foi queimado, construiu-se uma coluna de mármore e um altar. Um dos primeiros atos de Otávio, após tomar a responsabilidade como herdeiro de César, foi proclamar oÞ cialmente a divinização do “mártir”. Otávio ainda fez construir um templo diante do local onde foi a pira de César, consagrado ao novo deus, Diuus Iulius (1981: 232).

17 Grimal se refere a um altar da Paz dedicado a Roma por Augusto, em 9 a. C., cuja frisa imortaliza no mármore a cerimônia da dedicatória. Diz Grimal: “On y voit l’Empereur avec sa famille, les magistrats, les prêtres, le Sénat, allant em procession accomplir le sacriÞ ce aux dieux” (Vê-se na frisa o Imperador com sua família, os magistrados, os sacerdotes, o Senado, indo em procissão cumprir o sacrifício aos deuses. GRIMAL,1981: 183)

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dos elos familiares, que tão bem caracterizavam a cultura romana da época. A paz augusta, para Virgílio tem uma lei estabelecida pela Fidelidade (Fides), a personiÞ cação da Palavra Dada, representada por uma mulher idosa, de cabelos brancos, mais velha do que Júpiter. Grimal a caracteriza como o respeito à palavra, fundamento de toda a ordem social e política (Grimal, 2000)18. Ainda para Grimal, a Fides é uma das manifestações mais primitivas da Pietas romana, aparecendo como o respeito aos compromissos (1981: 74). Virtude cardinal romana, a conÞ ança substitui a força pela clemência, reconhecendo o direito de todos os homens “de boa fé” à vida, mesmo se a sorte das armas lhes havia sido contrária (1981: 75). A Virtus como disciplina das emoções e controle de si mesmo; a Pietas como respeito mútuo aos rituais religiosos, e a Fides como Þ delidade aos compromissos constituíram a trilogia do ideal da moral romana, para a defesa e garantia do grupo social, seja a família, seja a cidade, como diz Pierre Grimal (1981: 75). A seguir, veja-se a frisa do altar à Paz, erigido por Augusto.

Frisa do altar à Paz (Museu do Louvre)

Vesta, a deusa do fogo sagrado, seja do altar do lar ou da cidade, também é responsável pela paz, juntamente com Quirino, a divinização de Rômulo19, agora em concordância com o irmão, Remo. A união da família em torno do fogo sagrado representa a união mesma da cidade. As desavenças do início da cidade

18 Tito-Lívio (I, XXI: 4-5) apresenta Numa Pompílio instituindo uma festa solene para a Fides, no dia 01 de outubro. Numa Pompílio sucedeu Rômulo, no período de 717 a 673, quando foi rei (Tito-Lívio, I, XXI: 6). Foi com Numa que os romanos adquiriram uma sólida reputação de pietas e construíram um altar à Fides, fundamento da vida social e também das relações internacionais, na medida em que Fides implica a substituição das relações de força pelas relações fundadas sobre a conÞ ança mútua (Grimal, 1981: 18)

19 É a aparição de Rômulo a Proculus Julius, após a sua apoteose, que conÞ rma a condição divina de Rômulo e a condição de Roma como senhora do mundo: “Abi, nuntia, Romanis caelestes ita uelle ut mea Roma caput orbis terrarum” – “Vai, anuncia aos romanos a vontade celeste que minha Roma (seja) senhora de todo o mundo” (Tito Lívio, I, XVI: 5:8). Quirino forma uma tríade com Júpiter e Marte (depois será substituído por Minerva). Deus guerreiro, assimilado a Rômulo, após a sua apoteose

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devem ser postas de lado, em proveito do bem comum20. Os três deuses elencados por Júpiter correspondem às três funções do indo-europeu, aglutinadas em favor da paz:

Fides = Firmeza e empenho da Palavra Dada, razão para o progresso (paz);Vesta = Proteção divina da casa e da cidade pelo fogo puriÞ cador (paz)Quirino e Remo = guerra conciliada (paz)

Com o templo da guerra fechado21 e o Furor ímpio aprisionado, Roma dominará sobranceira sobre os povos, pela força da conÞ ança e da lei. Este o sentido apresentado por Anchises a Enéias, na segunda prolepse dos destinos romanos na Eneida, no Livro VI:

Tu regerás com poder os povos, Romano, lembra-te(estas serão tuas artes), impor a paz e os costumes,poupar os sujeitos e debelar os soberbos

(v. 851-853).

Este breve trecho do Livro I da Eneida nos abre a perspectiva de leitura do poema a partir de uma caracterização do herói Enéias e do seu destino glorioso, qual seja a fundação das bases de uma grande cidade de onde se originará Roma, futura senhora do mundo. Enéias na sua caminhada pode ser lido e analisado pelos epítetos com que é brindado. Sabemos que o epíteto mais comum na Eneida é pius Aeneas, o piedoso Enéias, o que contribui para a sua caracterização como o sacerdote, na visão triádica da sociedade indo-européia. Ao lado desse epíteto, encontramos outro também muito freqüente, pater Aeneas, o pai Enéias, por sua condição de mito fundador e civilizador, coerente com a visão indo-européia do rei empreendedor. Por Þ m, há outros três epítetos que se unem em um só, para a formação do rei guerreiro: Aeneas heros, o herói Enéias (Livro VI, verso 103), com suas variantes Troius heros (o herói troiano, Livro VI, verso 451; Livro XII, verso 502) e Laomedontius heros (o herói Laomedôntio, Livro VIII, v. 18), e ingens Aeneas (o enorme Enéias, Livro VI, v. 413; Livro VIII, verso 367). Destacando-se também pela sua estatura física, Enéias combina em si todas as habilidades que o tornam o grande herói, por cujas mãos nascerá uma grande cidade. Não é gratuito o fato de ele ser apresentado pela Sibila de Cumas a Caronte, o barqueiro do inferno, como Troius Aeneas, pietate insiginis et armis (VI, verso 403) – O troiano Enéias, insigne pela piedade e pelas armas –, conÞ rmando o verso 10 do Livro I, na primeira Invocação do poema, insignem pietate uirum – herói insigne pela piedade.

Em nossa leitura da Eneida, percebemos que o herói Enéias aglutina as três funções da cultura indo-européia identiÞ cadas por Dumézil (1995): a função Sacerdotal (Religião); a função guerreira (Guerra) e a função empreendedora (Riqueza). A partir da estrutura triádica que apresentamos para a Eneida – Provações (Livros I-IV), Rituais (Livros V-VIII) e Guerras (Livros IX-XII), podemos constatar como as duas partes iniciais se juntam para mostrar Enéias em cumprimento da sua função sacerdotal. Nos primeiros oito livros da Eneida, portanto, o herói é o pio Enéias, temente aos deuses, oferecendo-lhes rituais e sacrifícios, por eles escolhidos para dar nova pátria aos Penates, sendo guiado pelos deuses, em especial por Vênus e Apolo, contando com o apoio de Júpiter, a interferência de Mercúrio e a ajuda de Netuno, para ser o construtor da nova

20 A morte de Remo por Rômulo, apesar do fratricídio, marca simbolicamente a inviolabilidade futura da cidade (Grimal, 1981: 12) Segundo Tito Lívio, após terem recolocado o avô Numitor no trono de Alba Longa, Rômulo e Remo receberam terras onde foram expostos para ali fundar, cada um uma cidade. Rômulo escolheu o Palatino e Remo o Aventino, em busca dos augúrios (Tito Lívio, I, VI: 3-4). Para Remo apareceram seis abutres e para Rômulo, doze. Começando a traçar os limites da cidade, Rômulo é ironizado por Remo que salta por cima das muralhas iniciadas, sendo morto pelo irmão. Rômulo teria dito: “Sic deinde, quicumque alius transiliet moenia mea” – “assim (pereça) qualquer um outro que, a partir de agora, saltar minhas muralhas” (Tito-Lívio, I, VII, 1-3).

21 O templo de Jano foi construído por Numa Pompílio, segundo Tito Lívio (I, XIX: 2). Quando aberto anunciava Roma em armas; quando fechado, reinava a paz ao redor dele.

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Tróia. Mito fundador, pai da pátria, cabe ao pai Enéias, tantas vezes assim chamado ao longo do poema, a função sacerdotal. Nos últimos quatro livros da Eneida, Enéias cumpre a sua função guerreira, sendo o herói que conquista a terra e a mulher, após ser devidamente provado pelos deuses.

Assim como o Livro IV mostra uma transição do Enéias das provações ao Enéias ritualístico, porém dentro da mesma função sacerdotal, o livro VIII é um livro de transição entre uma função e outra, pois aí se dá a aliança de Enéias com Evandro e, posteriormente com Tarcão, que o reconhecem como o prenunciado pelos deuses para conduzir os destinos do Lácio. Não é por outro motivo que, nesse Livro, se dá a fabricação de suas armas por Vulcano, o que lhe concede a condição de herói pronto para as próximas funções – a guerra e a grandeza –, vez que o trabalho entalhado no seu escudo por Vulcano lhe mostra a grande glória que seus descendentes terão pela frente.

É emblemático como nesse Livro VIII, Evandro leva Enéias a passear pelos sítios onde será erigida a futura e gloriosa Roma, deixando entrever a terceira função, a do empreendimento e da riqueza. Esta relação – a de um troiano ajudado por um grego a construir a glória da futura Roma, mais tarde dominador da futura Grécia, é bem sintomática. Enéias e Evandro não apenas se unirão na guerra contra Turno e Mezêncio. Eles estão unidos pela amizade que Evandro tinha a Anquises e por serem, de certo modo, da mesma família. Atlas gera duas Þ lhas, Electra e Maia, que se ligarão a Zeus, dando origem, respectivamente à família de Enéias e à de Evandro. Relações amigáveis que vêm dos antepassados e se conÞ rmam no presente para abrir a perspectiva da glória futura. Após esse reconhecimento de Enéias por Evandro, a celebração da aliança com um banquete ritualístico marca o Þ m dos grandes rituais do herói. É o momento da apresentação do futuro e da fabricação das armas que permitirão a conquista da terra para a realização da terceira função.

O início dos combates, no Livro IX, com o cerco dos rútulos aos troianos, tal como na Ilíada se dá o cerco dos troianos aos gregos, prepara a arrancada de Enéias à consecução do seu destino. O cruel Mezêncio morre por suas mãos no Livro X; Arrunte mata a amazona Camila, no Livro XI, e Enéias mata Turno no Livro XII. Está feito o caminho para a conquista da terra e da mulher. Morto o inimigo, embora a narrativa ali termine, permanece a perspectiva anunciada a cada passo da Eneida: a fundação de Roma, tornando-se esta cidade a cabeça do mundo. Aí se completaria a terceira função, a da riqueza e a da paz, conforme o prognóstico de Anchises (v. Livro VI).

Desse modo, podemos dizer que Enéias aglutina em si as três funções – sacerdote, guerreiro e empreendedor – pois, como sabemos, ele é um mito fundador (v. Livro III). Mais do que isso, ele é o pai da pátria, conforme se anuncia ao Þ nal do Livro III, fazendo o seguinte itinerário: Enéias perde a pátria, perde o pai, vai à busca do pai, para fundar a nova pátria, sendo, portanto, o pai da pátria, que será a cabeça do mundo.

Observação: Para a assimilação mais eÞ caz do conteúdo desta unidade, recomendamos a leitura do Livro I da Eneida de Virgílio.

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Glossário

Anábasis: Movimento ritualístico de subida dos Infernos, realizado por Enéias no Livro VI da Eneida.

Aventino: Um dos montes sobre o quais Roma foi erigida. O Aventino coube a Remo.

Cartago: Cidade no norte da África, atual Tunísia. Travou três guerras contra Roma – Guerras Púnicas – entre os séculos III e II a. C., até ser totalmente destruída. Fundada por colonos tírios que teriam em seu comando, segundo o mito, a rainha Dido.

Catábasis: Movimento ritualístico de descida aos Infernos, realizado por Enéias no Livro VI da Eneida.

Ganimedes: Jovem troiano de rara beleza, Þ lho de Tros, raptado por Zeus (Júpiter) para servir de escanção no Olimpo. Este rapto é um dos motivos por que Hera (Juno) tem raiva dos troianos e persegue Enéias.

Destinos Fechados: Diz-se do destino que será cumprido, sem que nada possa alterá-lo. Enéias chegará ao Lácio e fundará as bases da futura Roma. Ninguém pode alterar tal decisão, nem mesmo os deuses. Juno, por exemplo, o máximo que poderá fazer é retardar o acontecimento.

Jogos Fúnebres: Jogos realizados em homenagem a um herói morto. Estes jogos se dão no Livro V da Eneida, em homenagem a Anquises, pai de Enéias.

Lácio: Região na parte ocidental da Península Itálica, às margens do mar Tirreno e cortada pelo rio Tibre, aonde Enéias chega para fundar a nova Tróia, a futura Roma.

Líbia: Para a geograÞ a dos tempos de Virgílio, o norte da África era praticamente dividido entre a Líbia e o Egito. Quando Virgílio se refere à Líbia no Livro I da Eneida, devemos entender não a Líbia atual, mas a Tunísia, onde está situado o sítio arqueológico de Cartago.

Palatino: Um dos montes sobre os quais Roma foi erigida. O Palatino coube a Rômulo.

Parcas: Irmãs míticas que personiÞ cavam o destino. Eram conhecidas como Moiras pelos gregos e se chamavam Cloto, Láquesis e Átropos.

Penates: Deuses protetores do lar e da cidade. Quando Enéias é incumbido pelos deuses a fugir de Tróia, ele deverá levar consigo os Penates, necessários para a fundação da nova cidade.

Rito de Passagem: Rito obrigatório na formação do herói. Uma vez pronto, o herói poderá ser investido nessa nova condição. Após descer aos Infernos e fazer as alianças com Evandro e Tarcão, Enéias está pronto para receber as armas fabricadas por Vulcano.

Rito Iniciático: Rito que inicia o herói e o prepara para a sua condição Þ nal. Enéias tem que passar por todas as provações, para poder mudar de status e ser considerado o novo pai. Com a morte de Anquises e os jogos fúnebres em sua homenagem, Enéias está pronto para a descida aos Infernos.

Tibre: Rio que corta a cidade de Roma em duas partes. É às margens do Tibre que Enéias irá fundar a nova cidade, que dará origem a Roma.

Tírios: Colonos oriundos de Tiro, na Fenícia (atual Líbano) para o norte da África, onde ediÞ caram Cartago.

Vestal: Sacerdotisa da deusa Vesta, protetora do fogo sagrado. Às vestais se impunha a castidade.

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Exercícios

1. Leia atentamente o trecho abaixo e disserte sobre o que se pede:

“Houve uma cidade antiga, colonos tírios a ediÞ caram, Cartago, defronte da Itália e longe da foz do Tibre, abundante em riquezas e temível pelo seu ardor guerreiro; diz-se que Juno a amava mais do que todas as outras terras, mais do que a própria Samos. Lá, em Cartago, estavam suas armas, lá estava seu carro; já então a deusa tencionava não só favorecer aquele reino, mas também que ele dominasse os demais, se de algum modo os fados o permitissem. Ela, porém, ouvira que uma raça oriunda do sangue troiano um dia lançaria por terras as cidadelas tírias; ouvira que um povo, reinando ao longe e soberbo na guerra, viria para o excídio da Líbia: assim determinaram as Parcas. Satúrnia, isto temendo e lembrada da antiga guerra que dirigira, como primeira das deusas, junto de Tróia, a favor dos seus caros argivos, e também porque as causas da ira e os cruéis ressentimentos ainda não tinham abandonado sua memória, mas permaneciam gravados no fundo do coração o juízo de Páris e a afronta da sua beleza desprezada, e não só a geração odiosa dos troianos mas igualmente as honras do raptado Ganimedes; inß amada por esses ultrajes, afastava para longe do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do furor dos Dânaos e do implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados, andavam errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares. Tanto era pesada a tarefa de fundar a nação romana! (Eneida, Livro I, tradução de Tassilo Orpheu Spalding)

A que parte da Eneida se refere o trecho? Contextualize.1.2. Quais os dois povos diretamente envolvidos no trecho e quais seus

respectivos destinos?1.3. Por que Juno é chamada de Satúrnia?1.4. IdentiÞ que o povo que ela persegue e explique os motivos da

perseguição.

2. Com base na leitura do Livro I da Eneida, explique por que Enéias é um mito fundador.

3. Em que termos se dará a sucessão de Enéias?

4. Quando e de que forma se dará o surgimento de Roma?

5. Qual o prognóstico para a glória de Roma?

6. Que grande homem virá de Iulo, quais suas glórias e que período histórico virá em seguida, conduzido por outro grande homem?

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7. Por que o Livro I da Eneida pode ser chamado de proléptico? Dê exemplo.

8. O que é a estrutura triádica da Eneida?

9. Que deus protege Enéias na conÞ rmação de seu destino? Dê dois exemplos.

10. Explique o texto abaixo, contextualizando-o:“Tal é a minha vontade. Tempo virá, após decorridos muitos lustros, que a

casa de Assáraco oprimirá a Ftia e a ilustre Micenas, e dominará sobre a vencida Argos. Depois nascerá César, troiano de bela origem, que estenderá seu império até o Oceano e sua fama até os astros” (Livro I).

Textos

Depois de você ter assistido às aulas, lido os textos, participado das explicações e dos debates, tente fazer a leitura dos dois textos abaixo, com base na experiência adquirida da leitura do Clássico.

Lendo a IlíadaOlavo Bilac

Ei-lo, o poema dos assombros, céu cortadoDe relâmpagos, onde a alma potenteDe Homero vive, e vive eternizadoO espantoso poder da argiva gente.

Arde Tróia... De rastos passa atadoO herói ao carro do rival, e, ardente,Bate o sol sobre um mar ilimitadoDe capacetes e de sangue quente.

Mais que as armas, porém, mais que a batalha,Mais que os incêndios, brilha o amor que ateiaO ódio e entre os povos a discórdia espalha:

– Esse amor que ora ativa, ora asserenaA guerra, e o heróico Páris encadeiaAos curvos seios da formosa Helena.

(Obra reunida; organização e introdução de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.103)

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Os Lusíadas (Canto I, Estrofe 3)

Luís Vaz de Camões

Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que Þ zeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto um peito ilustre Lusitano,A quem Neptuno e Marte obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta.

(Obra completa; organização, introdução, comentários e anotações de Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963,

p. 9.)

CONCLUSÕES

Esperamos que durante o processo, possamos acompanhar sua evolução, caro aluno, com relação à assimilação dos valores do mundo clássico. É fundamental para uma discussão de uma aprendizagem efetiva que os que estão integrados a este estudo possam reconhecer a permanência dos elementos clássicos na nossa cultura. Consideramos que o conhecimento que foi posto à sua disposição é um caminho que lhe permitirá, caro Aluno, aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto. Estamos conscientes, no entanto, de que são necessárias mais leituras, por isto mesmo, estendemos a nossa bibliograÞ a com autores que consideramos básicos e incontornáveis. Acreditamos que os primeiros passos foram dados, os demais dependem agora da vontade, da necessidade e, claro, das condições oferecidas daqui por diante, para que se possa avançar nesse caminho. Por outro lado, temos a plena convicção de que os estudos do Clássico, mesmo que de forma introdutória, contribuirão sobremaneira para a formação do professor da área de Humanidades e, por conseguinte, para o aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem nesta área do conhecimento humano.

Bibliografi a

ALMEIDA. Zélia Cardoso de. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

ARISTÓTELES et alii. A poética clássica; tradução de Jaime Bruma. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e religião romana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991 (2 vol.).

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CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos?; tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

COLUTOS. O rapto de Helena; edição trilíngüe – grego, latim e português; tradução do grego de Fabrício Possebon, ensaio de Milton Marques Júnior e notas de Alcione Lucena de Albertim. João Pessoa (PB): Idéia; Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2005. *

DUMÉZIL, Georges. Mythe et épopée I. II. III. Paris: Gallimard, 1995.

ESCHYLE. Tragédies: Les suppliantes, Les perses, Les sept contre Thèbes, Prométhée enchaîné; texte établi et traduit par Paul Mazon. 2. éd. Paris: Les Belles Le res, 2002.

EURIPIDE. Hécube; texte établi par Louis Méridier; traduit par Nicole Loraux et François Rey; introduction et notes de Jean Alaux. Paris: Les Belles Le res, 2002.

EURIPIDE. Iphigénie à Aulis; texte établi et traduit par François Jouan. Paris: Les Belles Le res, 2002.

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana; tradução de Victor Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

GRIMAL, Pierre. La civilisation romaine. Paris: Flammarion, 1981 (este livro já se encontra traduzido para o português, editado pelas Edições 70 de Lisboa).

GRIMAL, Pierre. O teatro antigo; tradução de António M. Gomes da Silva. Lisboa: Edições 70, 1986.

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina; tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le bouclier; texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Le res, 1996, versos 90-201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses; estudo e tradução de Jaa Torrano. 6. ed (revisada e acrescida do original grego). São Paulo: Iluminuras, 2006.

HOMÈRE. Hymnes; texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles Le res, 1936.

HOMERO. Ilíada; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

HOMERO. Odisséia; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 5. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

MARQUES JÚNIOR, Milton e SOUZA, Erick France Meira de. O teatro da morte, da humilhação e da dor: análise e tradução do Canto XXII da Ilíada, de Homero; ensaio crítico de Milton Marques Júnior e tradução do grego de Erick France Meira de Souza. João Pessoa, Zarinha Centro de Cultura; Editora Universitária da UFPB, 2007.*

MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo; tradução de Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70, 1989.

OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles Le res, 1928 (4. vol).

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ROMILLY, Jaqueline. A tragédia grega; tradução Ivo Martinazzo. Brasília: UNB, 1998.

SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995.

TITE-LIVE. Histoire romaine I: la fondation de Rome; texte établi et traduit par Gaston Baillet, introduction et notes de Jean-Noël Robert. Paris: Les Belles Le res, 2005.

VERGÍLIO. Eneida; tradução e notas de Tassilo Orpheu Spalding. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris: Presses Universitaires de France, 2004. (Este livro encontra-se traduzido para o português)

VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et religion en Grèce ancienne. Paris: Seuil, 1990. (Este livro encontra-se traduzido para o português).

VIRGILE. Énéide; texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Belessort. 7. éd. Paris: Les Belles Le res, 1952 (2 v.).

VIRGÍLIO. Eneida – Canto IV: a morte de Dido; tradução de J. Laender; organização de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon; ensaios de Milton Marques Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e Leyla Thays Brito da Silva; comentários à tradução de Fabrício Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de Cultura/Editora Universitária da UFPB, 2006. *

* Estes livros podem ser adquiridos na Livraria do Zarinha Centro de Cultura, através do site www.zarinha.com.br

Filmografi a

Tróia: mito ou realidade. Eagle Media, 2004.

PETERSEN, Wolfgang. Tróia. Warner Bros., 2004.

CAMERINI, Mario. Ulisses. DVD Video, 2003 (1955).

KONCHALOVSKI, Andrei. Odisséia. DVD Video, s.d.

Sites na Internet para os textos clássicos

Biblioteca Augustana

www. -augsburg.de/~harsch/augusta.html

Perseus

www.perseus.tufts.edu/