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1 DANIELE TALITA FLORIDO VIEIRA MODOS DE EXPRESSÃO DO DISCURSO DIDÁTICO N‘OS TRABALHOS E OS DIAS’ DE HESÍODO. ARARAQUARA 2011

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DANIELE TALITA FLORIDO VIEIRA

MODOS DE EXPRESSO DO DISCURSO DIDTICO NOS TRABALHOS E OS DIAS DE HESODO.

ARARAQUARA 2011

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DANIELE TALITA FLORIDO VIEIRA

MODOS DE EXPRESSO DO DISCURSO DIDTICO NOS TRABALHOS E OS DIAS DE HESODO.

Dissertao apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Araraquara, Unesp, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras (rea de concentrao: Estudos Literrios). Linha de Pesquisa: Estudos Literrios Orientadora: Prof. Dr. Maria Celeste Consolin Dezotti. Bolsa: FAPESP

ARARAQUARA

2011

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Data da Qualificao: 27/10/2010 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador: Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti FCL/ UNESP - Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Flvio Ribeiro de Oliveira IEL/UNICAMP Campinas Membro Titular: Profa. Dra. Edvanda Bonavina da Rosa FCL/UNESP - Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Cincias e Letras Unesp Campus de Araraquara

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Aos meus avs, Miguel e Marlene.

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AGRADECIMENTOS

Agradeo especialmente minha orientadora, Prof. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti, por

toda a sua dedicao e carinho ao longo dessa minha caminhada. Agradeo por ela sempre ter

atendido s minhas solicitaes de encontro, proporcionando-me discusses prazerosas acerca

deste trabalho.

Ao meu marido, Diogo, pelo seu amor, apoio e pacincia em todos os momentos.

minha famlia, pelo incentivo constante.

Aos meus colegas, que afetivamente presenciaram essa etapa da minha vida. Agradeo pela

amizade e pelos inmeros momentos de descontrao.

Agradeo, tambm, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, FAPESP, pelo

auxlio financeiro.

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RESUMO

Esta dissertao de Mestrado intitulada Modos de expresso do discurso didtico nOs

trabalhos e os Dias de Hesodo prope a anlise da estrutura textual do poema hesidico, de

modo a descrever os recursos textuais usados pelo poeta para compor um texto de natureza

exortativa e didtica.

Com a finalidade de ensinar seu irmo Perses a viver honestamente, por meio dos frutos

do prprio trabalho, Hesodo escreve seu poema, discorrendo a respeito da justia de Zeus e da

dimenso religiosa do trabalho. Para isso, o poeta apropria-se de uma srie de expedientes

lingusticos que validam a classificao de seu poema como um discurso didtico. Entre eles: o

uso das narrativas mticas, que possuem um carter norteador; os versos que acionam a funo

conativa da linguagem, nos termos em que Jakobson a definiu (1973, p. 125), versos que so

dirigidos para uma segunda pessoa; o uso de formas verbais apropriadas ao aconselhamento

(como imperativos e infinitivos); a frequente apresentao de mximas que condensam um

ensinamento, muitas delas construdas com aoristos gnmicos; uma tipologia dos sujeitos com as

passagens que caracterizam o sujeito-didata, Hesodo, e as que caracterizam os sujeitos-

aprendizes, Perses e os reis de Ascra e assim por diante. A busca e a descrio desses expedientes

, precisamente, o que nos compete nesta pesquisa.

Palavras-chave: Hesodo; Os Trabalhos e os Dias; discurso didtico; enunciao.

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ABSTRACT

This Masters Degree dissertation entitled Manners of expression of the didactical

speech in Work and Days of Hesiod proposes the analysis of the textual structure in the hesiodic

poem, so as to describe the textual resources used by the poet to compose a text of exhorting and

didactic nature. With the aim of teaching his brother Perses to live honestly, by his own work,

Hesiod writes his poem, discoursing upon the justice of Zeus and of the religious dimension of

work. For this, the poet has appropriated a series of linguistics expedients that validate the

classification of his poem as a didactical speech. Among them: the use of mythical narratives

that have a guiding character; the verses that put in action the conative function of the language,

in the terms that Jakobson defined (1973, p. 125), verses that are directed to a second person; the

use of appropriated verbal forms for advising (as imperative and infinitive); the frequent

presentation of maxims that condense a teaching, many of them constructed with gnomic aorists;

a typology of the subjects with the passages that characterize the didactical-subject, Hesiod, and

the ones that characterize the apprentice-subject, Perses and the kings of Ascra and so forth. We

are precisely entitled to do the search and the description of these expedients in this research.

Keywords: Hesiod; Work and Days; didactical speech; enunciation.

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SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................p. 09

CAPTULO I

A FIGURA DE HESODO

1.1. Hesodo: uma apresentao............................................................................................p. 15

1.2. Os Trabalhos e os Dias: a unidade do poema.................................................................p. 24

1.3. Precedentes Orientais.....................................................................................................p. 30

CAPTULO II

CONSIDERAES SOBRE O DISCURSO DIDTICO

2.1. Discurso Didtico: uma categorizao............................................................................p. 38

2.3 O percurso do discurso didtico / A enunciao didtica...............................................p. 43

CAPTULO III

ANLISE DO POEMA

3.1. Verbos que acionam a funo conativa da linguagem.

Infinitivos imperativos. Alargamento do ouvinte................ .........................................p. 46

3.2. A construo dos sujeitos...............................................................................................p. 49

3.3. Uso da narrativa..............................................................................................................p. 54

3.4. Mximas e provrbios: alteridade e autoridade.............................. ...............................p. 63

CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................p. 79

REFERNCIAS.........................................................................................................................p.82

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INTRODUO

Esta pesquisa, de certa forma, j vem sendo realizada desde nossa graduao. Nesse

perodo, com o auxlio financeiro do PIBIC/CNPq, o nosso estudo ocupou-se da anlise da

natureza exemplar das narrativas mticas no conjunto do poema Os Trabalhos e os Dias, de

Hesodo, e, ao mesmo tempo, da traduo de alguns de seus versos, visto que, em lngua

portuguesa do Brasil, h apenas uma traduo parcial do poema hesidico (cf. Mary Lafer, 2002).

Enquanto analisvamos esse carter exemplar de seus relatos mticos, discorramos a respeito da

unidade do poema, uma vez que a sua estrutura aparentemente desconexa levou alguns estudiosos

a considerarem algumas de suas partes, sobretudo Os Dias (vv. 765-828), como no autnticas ou

interpolaes. Entretanto, ao considerarmos que as narrativas que compem a sua primeira parte

instalam, logo de incio, grandes temas que sero depois constantemente retomados no poema,

conseguimos sustentar os possveis vnculos entre essas narrativas e a parte final do poema.

A nossa traduo de servio compreende as seguintes passagens: I) (vv. 286-382): o

carter religioso do trabalho; II) (vv. 695-764): conselhos diversos a respeito da relao dos

homens com os deuses e dos homens entre si e III) (vv. 765 - 828): parte final dos Erga,

correspondente aos dias, na qual o poeta enumera os dias propcios e os nefastos s diversas

atividades. Durante o exerccio de traduo, o contato com as estruturas lingusticas do texto nos

permitiu verificar, ainda que de forma superficial, como a combinao dos recursos textuais do

poema hesidico marca uma inter-relao mestre/discpulo entre o locutor e os seus

destinatrios. Vimos que a combinao desses recursos legitima a categorizao desse poema

como pertencente ao gnero didtico.

Contudo, a leitura de estudos do poema e de manuais de literatura grega nos fez contatar

que, embora esse aspecto didtico da poesia hesidica seja reconhecido pela crtica, ele no to

explorado. Em geral, o que mais se comenta dOs Trabalhos e os Dias so questes relacionadas

ao seu contedo mtico, desenvolvido na sua primeira parte e que compreende o mito de Pandora

(v. 42-105), o mito das cinco idades (v. 106-201) e a fbula do falco e do rouxinol (v. 202-218).

Alm disso, o rtulo poesia didtica, de maneira geral, no vem questionado pelos helenistas.

H, porm, um helenista chamado Malcom Heath que, em seu artigo intitulado Hesiods

Didactic Poetry (1985), problematiza o conceito de poesia didtica. A preocupao do autor est

na aplicao do termo "didtico" para os poemas hesidicos, uma vez que, a seu ver, se trata de

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um termo ambguo, que carrega em si diferentes sentidos, podendo, ao mesmo tempo, significar:

til para instruo; destinado instruo (didtica formal) e com a finalidade de pretender

instruir (didtica final). O primeiro significado, para Heath (p. 253), meramente instrumental,

por isso, no merece a mesma ateno que o segundo e o terceiro.

Para tratar da diferena entre a didtica formal e a didtica final, Heath faz referncia

aos autores Lucrcio e Ovdio. Como diz o autor, a obra de ambos formalmente didtica.

Entretanto, enquanto Lucrcio, na obra Da natureza das coisas, adota uma postura de persuaso

filosfica, Ovdio, em Arte de Amar, adota uma postura de exposio dos princpios da seduo,

mas ningum supe que ele realmente escreveu seu poema com a inteno de instruir os jovens

de Roma naquela arte. (Heath, 1985, p. 255). Ou seja, o texto Da natureza das coisas, de

Lucrcio, alm de possuir uma estrutura formal didtica, carrega em si uma inteno doutrinria,

isto , uma inteno de convencimento do ouvinte em determinado assunto: a adeso filosofia

epicurista. J em Ovdio no h essa inteno, uma vez que a relao professor/aluno apenas

um artifcio literrio. Portanto, o poema de Lucrcio tem uma finalidade didtica, enquanto que

o aspecto didtico do poema de Ovdio apenas formal.

Percebemos, ento, que todo o questionamento de Heath est baseado na questo do

pblico do poema. Para o autor, um texto s pode ser considerado como possuidor de uma

finalidade didtica se o seu fim a instruo de um pblico. Do contrrio, o texto apenas

formalmente didtico.

Na Teogonia, de acordo com Heath, no h nenhuma pretenso explcita de instruo, j

que o poema nunca refere explicitamente o seu pblico. J nOs Trabalhos e os Dias, h uma

instncia instrutiva explcita em direo a Perses e aos reis. Entretanto, o autor afirma que isso

no o suficiente para responder questo da classificao final da poesia didtica de Hesodo,

pois, a seu ver, est claro que Perses e os reis so artifcios literrios (isso se a figura de Perses

no for totalmente ou parcialmente fictcia) (Heath, 1985, p. 254). Seriamos ento tentados a

dizer que, nos dois poemas, est implcita a pretenso de serem formalmente didticos. Heath,

porm, atenta para a dificuldade que essa afirmao acarreta, pois, para ele, o que pretendido ou

transmitido pela implicao depende de pressuposies partilhadas do autor e de seu pblico. Ele

diz que nenhuma cota do contedo implicado no texto deve ser altamente especulativa e o fato de

a poesia de Hesodo ser isolada no comeo da tradio potica grega, onde h poucas evidncias

de contexto histrico e social, faz com que a nossa habilidade em reconstruir seu horizonte de

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expectao seja duvidosa. E se, nessas circunstancias, ns colocamos em risco a suposio de que

os poemas hesidicos eram formalmente didticos (com uma pretenso implcita de se tencionar

instruir), estamos sendo influenciados pelos desenvolvimentos posteriores da tradio potica

grega, cujos trabalhos foram inquestionavelmente didticos. Portanto, Heath conclui que a

classificao formal e final da poesia de Hesodo problemtica e esse problema deve ser

deixado irresoluto por falta de evidncias concernentes ao seu contexto de origem (1985, p. 254).

Nesse ponto, achamos conveniente contrapor as idias de Heath com as reflexes de

Pietro Pucci, feitas em seu estudo Auteur et destinataires dans les Travaux dHsiod (1998). O

que mais nos interessa desse texto o exame feito, pelo autor, dos interlocutores que so

invocados no texto hesidico.

Segundo Pucci, h uma diferena entre narratrio e destinatrio. O narratrio o

interlocutor a respeito do qual se fala o texto e o destinatrio o interlocutor a quem a escuta

do texto destinada (1998, p. 200). A seu ver, para se fazer o exame dos interlocutores dOs

Trabalhos e os Dias, preciso levar em considerao o fato de este ser um texto apresentado a

um pblico. Como diz Pucci, essa obra e provavelmente todo o gnero literrio ao qual ela

pertence abre uma relao com seu pblico bem diferente da relao imposta pelos poemas

homricos.

O autor (1998, p. 200) afirma que, em Homero, o narrador conta a histria de narratrios

do passado a destinatrios precisos, que geralmente so descendentes desses narratrios. Como

exemplo, Ulisses representado pelo narrador da Odissia como o narratrio que se torna

narrador e que fala de suas prprias aventuras aos destinatrios, os chefes dos fecios, que esto

presentes no momento em que ele realiza o ato narrativo. J em Hesodo, os interlocutores so,

ao mesmo tempo, narratrios e destinatrios, uma vez que so contemporneos do poeta. Eles so

invocados no texto como se estivessem escutando o poeta, mesmo que essa presena seja

puramente fictcia.

Ademais, Pucci observa que o poema hesidico coloca em cena uma relao eu/tu, onde

o eu ensina e o tu permanece quieto porque a lio dada em um quadro enunciativo ficcional.

(1998, p. 200). Se assim no ocorresse, seria necessrio esperarmos possveis respostas da parte

de Perses e dos reis. E mesmo se o tu no fosse verdadeiramente presente, essa estrutura

enunciativa eu/tu funcionaria, pois, como diz Pucci (1998, p. 2001), muito improvvel que

Perses e os reis tenham ficado para ouvir versos instrutivos e agradveis, mas tambm

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grosseiramente polmicos contra eles. Para Pucci, essa situao enunciativa inscrita nOs

Trabalhos e os Dias tecnicamente aquela da escritura que permite a um texto direcionar-se a

destinatrios ausentes. Por conseqncia, todo mundo poderia sentir-se convidado a tornar-se o

destinatrio visado. A obra vai no sentido de torn-lo narratrio: de te fbula docet. (Pucci,

1998, p. 2001).

Somos, portanto, partidrios das idias de Pucci e contra a posio de Heath, pois, a

nosso ver, o helenista no levou em considerao que, embora os interlocutores Perses e os reis

de Ascra sejam, conforme o nosso posicionamento, apenas artifcios literrios, h um momento

no poema em que o seu contedo moral direcionado a um pblico de maior amplitude: os

ouvintes gerais do poema. Vemos, no texto, as marcas gramaticais da funo conativa da

linguagem, como os verbos no imperativo e o uso de vocativos que revelam uma ntida inteno

do emissor em influenciar o(s) seu(s) destinatrio(s). Enfim, a linguagem do poema est centrada

no destinatrio do texto. Alm disso, a presena de Perses e dos reis, como interlocutores

internos do poema, pode ser considerada to somente como um estratagema do poeta para

construir a sua pedagogia do exemplo. Quem praticasse todas as prescries hesidicas e

seguisse o seu exemplo de bom cidado, seria digno de ser imitado e admirado, teria uma

reputao de alto prestgio e gozaria da felicidade em sua plenitude, pois contaria com o

beneplcito das divindades. Do contrrio, quem seguisse o exemplo de Perses e dos reis de Ascra,

estaria negando os valores passados pelo mestre. Ademais, Heath no levou em considerao o

contedo moral encontrado nos textos de Hesodo, o qual o poeta intenta transmitir para seus

interlocutores atravs dos mitos e da fbula.

A nossa posio, portanto, est calcada nos aspectos concretos e textuais do poema, que

mostram essa inteno didtica da parte de Hesodo, cujo objetivo convencer o seu ouvinte e

torn-lo adepto de seus ensinamentos. Para ns, o poema de Hesodo no s possui uma estrutura

formal didtica, em que a combinao dos recursos textuais marca uma inter-relao

mestre/discpulo, como tambm carrega em si uma inteno doutrinria.

, portanto, a partir dessa discusso que comeamos o nosso trabalho. Nosso objetivo

fazer uma anlise do poema que ressalte no apenas a sua estrutura formal-didtica, mas tambm

a sua inteno doutrinria.

Como apoio terico, foi de fundamental importncia para a anlise de nosso corpus o

estudo de Roman Jakobson (1973) acerca das funes da linguagem. Desse estudo, interessam-

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nos, particularmente, as classificaes: funo potica; funo conativa e poesia de segunda

pessoa.

Focamo-nos tambm em estudos acerca do discurso didtico, como o de Eni Orlandi

(1987), que trata do percurso produzido pelo discurso pedaggico, e o de Jean Cristtus Portela

(2006), que prope um modelo de enunciao didtica.

Para a descrio da fbula O Falco e o Rouxinol e para o nosso entendimento do

estatuto fabular de todo contedo mtico do poema, adotamos como metodologia o modelo

proposto por Alceu Dias Lima (1984). Estudo pioneiro que descreve a estrutura da fbula como

um discurso constitudo de trs outros (um narrativo, um moral, articulados por um terceiro, o

metalingustico), o melhor modelo terico para anlise de fbulas e gneros afins, como a

parbola e o aplogo, por localizar a caracterstica essencial do gnero em sua instncia de

enunciao, mais precisamente na fora ilocucionria que comanda a enunciao do enunciado

narrativo.

E, por fim, para entendermos o funcionamento das mximas e preceitos e suas

implicaes no poema hesidico, utilizamos a teoria do provrbio proposta por Dominique

Maingueneau (1993). Tendo em vista a sua definio de provrbio como citao de autoridade,

buscamos analisar o uso das mximas hesidicas como mais um dos mecanismos pelos quais se

constri, no poema, a relao de ensino-aprendizagem, caracterstica central de um discurso

didtico. E, para a descrio dessas mximas, tomamos como modelo de anlise o estudo de

Andr Lardinois: Modern Paremiology and the use of gnomai in Homers ILIAD, 1997, em que o

autor analisa as mximas presentes na Iliada, levando em considerao os seus contextos social,

lingustico e narrativo.

Assim, dividimos a nossa dissertao da seguinte maneira: o primeiro captulo tem como

objetivo uma contextualizao histrica da obra a ser estudada e da figura de Hesodo. O

segundo captulo expe algumas teorias lingusticas que do conta do discurso e de seus

mecanismos. J no terceiro captulo, tem-se a anlise do poema, cujo objetivo mostrar de que

maneira a inter-relao entre os expedientes lingusticos utilizados pelo poeta marcam uma

relao caracterstica de discurso didtico.

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Acompanha o trabalho, como apndice, a nossa traduo dos versos 383 a 694 do poema

hesidico, completando, assim, a nossa traduo da poro do poema ainda no vertida para o

portugus.

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I. A FIGURA DE HESODO

1.1. Hesodo: uma apresentao

A tradio situa Hesodo no incio do perodo arcaico. Em geral, aceita-se como faixa de

tempo provvel para a sua existncia os sculos VIII e VII a. C. 1. Uma das poucas referncias

cronologia de Hesodo que circularam na literatura grega a de Herdoto (2. 53), que o apresenta

como contemporneo de Homero, dizendo que ambos os poetas viveram no mais que

quatrocentos anos antes de sua era.

H, ainda, outras trs referncias ao tempo de Hesodo no mundo grego, conforme aponta

o estudioso James Davies (1873, p. 2). A primeira delas uma informao encontrada na

escultura de Pros, que situava Hesodo 30 anos antes de Homero. A segunda a afirmao de

um historiador conterrneo do poeta, chamado Eforus, que mantinha uma maior antiguidade para

Hesodo em relao obra homrica. E, por fim, Xenfanes defendia a posteridade de Hesodo

em relao a Homero.

Em relao cronologia do poeta, existem argumentos como o de West (1978, p. 32) e o

de Easterling & Knox (1985, p. 93), que se prendem referncia de Hesodo aos jogos fnebres

em que ele teria participado, na Eubia, em honra de Anfidamas, que morrera em uma batalha

naval na Guerra Lelantina. Easterling & Knox, baseados em confirmaes arqueolgicas,

acreditam que essa guerra e a vitria de Hesodo pertencem ao fim do sc. VIII a.C. 2. Como

dizem os autores, essa guerra foi travada na Eubia entre as cidades Calcis e Eretria, por motivo

da posse de Lelanton, que situava-se entre elas. Tanto West (1978) quanto Easterling & Knox

(1985) acreditam que Hesodo teria ganhado esses jogos com o seu poema Teogonia e que o seu

prmio foi o trip que ele dedicara s Musas no Monte Helicon, conforme o trecho seguinte:

1 cf. Robert Aubreton (1956), James Davies (1873), Rocha Pereira (1980), Adrados (1988), Tandy e Neale (1996) e Nelson (1998). Jaeger (1936, p. 78), por sua vez, mais preciso e afirma que Os Erga apresenta a mais viva pintura da vida campestre da metrpole grega no final do sculo VIII. Lesky (1986, p. 116) assegura que bastante provvel que os poemas hesidicos pertenam aproximadamente ao ano 700 que, a seu ver, uma data muito prxima da origem das epopias homricas. J West (1999, p. 8) acredita que os poemas hesidicos so anteriores aos de Homero.

2 Stephanie Nelson (1998, p. 33) situa a Guerra Lelantina na faixa de tempo de 730 a 700 a.C.

16

,

,

.

655 :

:

.

,

. (v. 650-659)

(...) nunca percorri a barco o vasto mar, a no ser de ulis a Eubia, onde certa vez os aqueus, tendo permanecido durante o inverno, reuniram muita gente vinda da sagrada Hlade com destino a Tria de belas mulheres. L, eu, para o concurso do corajoso Anfidamas, passei rumo a Clcis. E muitos prmios, previamente anunciados, ofereceram os filhos do valoroso. Nesse lugar, afirmo que eu obtive um trip de asas, tendo vencido com um hino, o qual eu dediquei s Musas Heliconades. L, onde primeiro me encaminharam ao canto harmonioso.

West assegura, portanto, que o nascimento de Hesodo deve ter ocorrido entre 750 e 720

a. C.

Diante de todas essas afirmaes, notamos que o problema da cronologia hesidica carece

de preciso. Alm disso, observamos que muito rara uma referncia a Hesodo que no o

posicione em relao a Homero. Como assegura Davies (1873, p. 2), a tradio conspira em

atribuir a Hesodo uma data comum de Homero porque ela se prende ao famoso concurso

potico em que ambos, com suas artes, teriam disputado um prmio. Trata-se do concurso

relatado em um texto annimo, que nos chegou sob o nome de O Certame entre Homero e

Hesodo. Contudo, no existem provas concretas de que Hesodo realmente teria participado

dessa disputa.

Paira, ainda, entre os helenistas, outra dvida a respeito da figura de Hesodo: o

reconhecimento do poeta como autor das obras reunidas sob seu nome. Essa dvida decorre da

no existncia de provas precisas que atestem que essas obras teriam sido compostas por um

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nico poeta, ou por dois poetas ou por um grupo de poetas. Sendo assim, existem vrias

colocaes da crtica em relao autenticidade e cronologia de composio dessas obras.

Alm da Teogonia e dOs Trabalhos e os Dias, outros poemas nos chegaram sob o nome

de Hesodo, como O escudo de Hracles, Catlogo de mulheres, Preceitos de Quiron,

Astronomia, entre outros 3. Contudo, apenas a Teogonia e Os Trabalhos chegaram integralmente

at ns. Como diz Lesky (1986, p. 128), sob o nome de Hesodo circulou na Antiguidade uma

srie de obras de que conhecemos pouco mais que o ttulo. Do Catlogo de mulheres, o que nos

restou foram 56 versos, de incio perdido. 4

A maior parte dos helenistas situa a Teogonia como anterior aos Trabalhos, baseando-se

em uma informao dada pelo poeta, nos Erga, a um dado modificado em relao ao que foi

apresentado na Teogonia: trata-se da passagem em que Hesodo anuncia a alegoria das duas lutas

(v. 11-41), dizendo que agora No h origem nica de Lutas, mas sobre a terra duas so! 5.

Como diz Aubreton (1956, p. 10), h aqui uma demonstrao de que Hesodo mudou de opinio

em relao ao que tinha dito anteriormente. Alm dessa passagem, a histria de Prometeu e

Pandora tambm levou muitos estudiosos a defenderem a primazia da Teogonia, uma vez que,

nos Trabalhos, Hesodo mais conciso e passa por cima de muitas informaes do mito, como

3 cf. West, 1978, p. 22. 4 Os helenistas Aubreton (1956), Rocha Pereira (1980), Frazer (1983) e Adrados (1988) seguem a postura unitria, que defende a unidade autoral dos poemas. Alm disso, estabelecem que a Teogonia a obra mais antiga, seguida dos Trabalhos e do Catlogo que, segundo eles, uma continuao da Teogonia. Adrados (1988, p. 66), apesar de defender a unidade e a autenticidade dos poemas hesidicos, supe que os ttulos Os Trabalhos e os Dias e Teogonia no so originais, mas sim muito posteriores. James Davies (1873, p. 19-20) afirma que os Erga o mais incontestvel poema de Hesodo, alm disso, divide as obras que a tradio atribuiu a ele em trs classes de composio potica, cada uma delas sendo representada, respectivamente, por um poema: 1) didtica - Os trabalhos; 2) histrica e genealgica - Teogonia e 3) curtos poemas mticos - Escudo. Assim, pertenceriam primeira classe a Astronomia, os Preceitos de Quiron e a Ornithomanteia, ou Livro dos Augrios; segunda, Eoi, ou Catlogo de Mulheres, que, a seu ver, provavelmente o mesmo poema da Genealogia dos Heris, a Melampodia e o Egmios; e, por fim, terceira classe, pertencem s picas menores O casamento de Ceyx, A descida de Teseu ao Hades e o Epitalmio de Peleus e Ttis. Davies (p. 19-20) acrescenta, ainda, que o Escudo certamente de data e autoria questionvel porque, diferentemente dos Trabalhos e da Teogonia, que so do tipo do antigo dialeto pico elico-becio, o Escudo est mais perto do brao elico-asitico, usado por Homero, fato esse que lhe d uma maior antiguidade. Adrados (1988, p. 81) afirma que duvidosa a atribuio a Hesodo de toda essa produo, assegurando que apenas o Catlogo de mulheres e o Escudo tm alguns argumentos a seu favor, embora essas obras sejam consideradas geralmente como esprias. 5 Trad. de Mary Lafer, 2002, p. 21.

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por exemplo, o castigo de Prometeu. Sendo assim, os helenistas afirmam que Hesodo pressupe,

com essa passagem, o conhecimento da Teogonia. 6

Existem, ainda, os que colocam Os Trabalhos e os Dias antes da Teogonia. H, tambm,

aqueles que defendem a ideia de que as obras pertencem a autores diversos, bem como os que

duvidam da autenticidade da passagem dos Dias, que finaliza os Erga.

Jaeger (2010, p. 94) afirma ser a Teogonia a segunda grande obra do poeta. Lesky (1969,

p. 124-127) considera a existncia de interpolao nos Erga. Ele afirma que no lcito atribuir a

Hesodo tanto a segunda parte do poema (v. 385-828), na qual o discurso de Hesodo reduzido a

uma srie de conselhos, como a passagem que trata da eleio dos Dias (v. 765-828). Para o

helenista, aparece ali uma srie de indicaes que diferem substancialmente do resto, quanto

formulao e ao esprito de superstio. Alm de Lesky, Solmsen (1963) e Walter Marg (apud

Lardinois, 1998, p. 321), devido aparente heterogeneidade dos blocos que compem o poema,

consideram algumas passagens como no autnticas ou interpolaes.

J com relao aos Dias, Aurlio Prez Jimnez (1977, p. 105) concorda com a teoria que

elimina as linhas 810-21, mas defende a autenticidade do final do poema. Para o autor, nessas

linhas aparecem termos de numerao dos dias que no se ajustam a nenhum dos esquemas de

calendrio aplicados por Hesodo no restante do poema.

H, ainda, uma grande discusso a respeito da condio de Hesodo como poeta oral ou

no. Junto obra homrica, a poesia hesidica se insere no mbito da poesia pica e, como

Homero, Hesodo usou o dialeto homrico e os hexmetros datlicos, caractersticos da epopeia 7.

Alm disso, incorporou em suas obras procedimentos da composio oral semelhantes aos de

Homero, como os eptetos e expresses formulares. O uso desses procedimentos facilitava a

memorizao e auxiliava os poetas no momento da transmisso de seus poemas. Entretanto, o

que se discute a respeito dessa condio oral do poeta o fato de que, diferentemente dos poetas

orais da poca, Homero e Hesodo foram presenteados com o surgimento da escrita, fato que lhes

proporcionou o renome posterior. Mas, no se sabe ao certo se eles compuseram os seus poemas

oralmente e, em um momento posterior, esses poemas foram registrados por algum, ou se eles

6 Cf. Aubreton (1956); Frazer (1983); Easterling & Knox (1985); Athanassakins (2004).

7 Para Aubreton (1956), Lesky (1969) e Adrados (2001), h em Hesodo uma srie de traos prprios do tipo de composio oral comuns em Homero. Athanassakis (2004, p. 16) no duvida da condio de Hesodo como poeta oral, mas prefere no afirmar categoricamente que os seus poemas foram compostos oralmente stricto sensu.

19

mesmos j tinham o domnio da escrita. o que aponta West (apud Adrados, 1988, p. 80), ao

afirmar que o termo oralidade apresenta uma idia equvoca, uma vez que necessria a

distino entre a composio oral e o estilo com marcas de frmulas orais. Para o helenista, os

textos hesidicos no so de origem oral, a oralidade apenas uma caracterstica estilstica

adotada pelo poeta.8

Outra questo que divide a opinio entre os crticos a classificao de Hesodo como um

campons. Conforme aponta Nelson (1998, p. 35), alguns estudiosos preferem evitar o termo

campons por causa de seu carter depreciativo, cujos sentidos variam desde pobre, primitivo,

ignorante at dependente e injustiado. Entretanto, argumenta-se que essas no so as

caractersticas que Hesodo mostra de si, uma vez que ele possua um lote de terra, escravos, bois

e at mesmo um carro. Sendo assim, esses estudiosos preferem cham-lo de semi-aristocrata ou

de agricultor mediano 9.

Jaeger, por seu turno, prefere adotar o termo campons para o poeta becio, alegando

que, no tempo de Hesodo, o campo ainda no havia sido esmagado e dominado pela cidade. Para

ele:

A cultura feudal arcaica ainda no sinnimo de atraso espiritual, nem avaliada atravs dos moldes citadinos. Campons ainda no quer dizer inculto. As prprias cidades dos tempos antigos, principalmente na metrpole grega, so acima de tudo cidades rurais e continuam a s-lo mais tarde, na sua maioria. (2010, p. 88)

Edwards, em seu livro Hesiods Ascra (2004), discute bem essa questo. Com o objetivo

de verificar o contexto histrico em que as obras de Hesodo esto inseridas, o autor defende que

a Ascra dOs Trabalhos e os Dias representa uma forma muito menos complexa de comunidade

do que a plis de Homero. Trata-se, segundo o autor, de uma forma que preexistia plis

homrica e seus basiles e que continuou a coexistir com as novas pleis no perodo arcaico em

muitas partes da Grcia (p. 7). Esse tipo de comunidade, segundo Edwards, est muito distante

do que vem a ser uma comunidade campesina, uma vez que essa , necessariamente, baseada em

uma dinmica social caracterizada por uma hierarquia entre pobres vilarejos e a uma rica elite da

cidade. Para o autor, h sim, em Hesodo, uma oposio temtica entre vila e cidade, contudo o

8 M. L. West, , in I poemi epici rapsodic non homerici e la tradizione

orale, Padua, 1967, pg. 53-67.

9 cf. J. P. Barron e P.E. Easterling, 1985, p. 92-105.

20

contraste antes o do pobre com o rico e esse contraste est inteiramente fechado dentro dos

limites da cidade. Edwards (2004, p. 7) considera que a vila de Ascra, descrita nOs Trabalhos e

os Dias, permanece ainda autnoma e independente de Tspis e de seus reis. Na sua opinio,

portanto, Hesodo no um campons.

Existem, tambm, algumas passagens do poema hesidico que suscitaram especulaes

entre alguns helenistas, mas que no garantem veracidade, como por exemplo a passagem na qual

Hesodo aconselha que melhor no se ter esposa, pois, segundo o poeta, confiar em uma mulher

equivale a confiar em um ladro (Erga, v.373-375). Diante desse conselho, surge a questo: ser

que Hesodo foi casado? Um pouco mais adiante, nesse mesmo trecho (v. 378), Hesodo

aconselha que um nico filho seria a quantidade ideal para suceder o pai: Ser que Hesodo teve

um filho para lhe suceder? Outra passagem aquela em que Hesodo reprova o homem que sobe

no leito de seu irmo, s escondidas, e viola sua esposa (Erga, v. 328-329): Ser que Perses

violou sua possvel cunhada?

Diante de todas essas questes, percebemos que muitas das informaes dadas pela

tradio a respeito da figura do poeta mudam de um crtico para outro. fato que, articular sobre

a vida de um poeta do qual no temos maiores informaes, alm das que foram deixadas por

suas prprias obras, uma questo complexa e um tanto arriscada. Essa articulao se mostra

ainda mais perigosa, se levarmos em considerao a distncia temporal que nos separa dessas

obras e o fato de que elas so poesias e no autobiografias. Alm disso, necessrio

reconhecermos que, em se tratando de fico, Hesodo poderia estar usando a identidade

apresentada em seus poemas apenas como um artifcio literrio. Logo, essa figura de si que o

poeta nos apresenta pode ser tanto verdadeira quanto ficcional.

Sem dvida, para a anlise que pretendemos realizar, o que nos interessa investigar

Hesodo apenas como sujeito do discurso e no como a pessoa fsica que comps os poemas.

necessrio, ento, que faamos uma distino entre o autor e o sujeito que emerge de dentro do

poema. Entretanto, essa tarefa se torna difcil, sobretudo quando estamos diante de um poema de

cunho didtico, em que o poeta apresenta de forma marcante uma figura de si e constri todo

um aparato retrico que chega at a nos convencer de que ele possivelmente tenha existido. Isso

um sinal de uma tarefa retrica bem sucedida!

21

Todavia, como todo trabalho acadmico requer uma posio, tomamos como nossas as

palavras de Nelson (1998, p. 32) e conclumos que O Hesodo que estamos interessados em

examinar o Hesodo que o poeta pretendeu que ns vssemos, o Hesodo apresentado em seus

poemas. Alm disso, concordamos com a afirmao de Nelson (p. 32) de que qualquer

concluso sobre o poeta deve decorrer nica e exclusivamente de seus poemas, uma vez que eles

so tudo o que temos de mais concreto.

Sendo assim, passamos a descrever a figura de si que o poeta nos quis transmitir atravs

de seus poemas.

Na Teogonia (v. 22-23), o poeta introduz-se sob o nome de Hesodo e nos

conta que, no sop do Monte Helico, recebeu das Musas uma inspirao divina para compor

seus poemas. Outra referncia a essa inspirao divina encontrada nOs Trabalhos e os Dias (v.

646-659), quando o poeta nos diz que dedicara s Musas, no mesmo monte, um trip de asas -

, por elas terem-no encaminhado no canto harmonioso - .10

Ele ainda relata que esse trip foi o prmio conquistado por ele em um concurso de poesia, nos

jogos fnebres em honra do rei Anfidamas. Nesse concurso, Hesodo participara com um hino.

NOs Trabalhos e os Dias, Hesodo nos informa que seu pai era um agricultor que morava

em Cime, na sia Menor, e que vivia com dificuldade em uma pequena propriedade rural. A fim

de obter uma melhor qualidade de vida, viu-se na necessidade de emigrar para Ascra, na Becia,

lugar onde Hesodo viveu.

.

,

,

,

,

, , , . (Erga, v. 633-640)

Assim como o pai meu e teu, grande tolo Perses, navegava em barcos, beneficiado do justo meio de vida. Ele que, um dia aqui chegou aps cruzar muito mar,

10 Essa referncia inspirao divina em ambas as obras um dos motivos pelos quais se atribuiu a elas a mesma autoria.

22

abandonando a elica Cime, em negro navio, no fugindo da abundncia nem da riqueza e nem da opulncia, mas da m pobreza que Zeus aos homens proporciona; Estabeleceu-se perto do Helicon, em lamentvel aldeia, Ascra, m no inverno, terrvel no vero, jamais agradvel.11

Segundo Hesodo, depois da morte do pai, seu irmo Perses, tendo-se apoderado da parte

que lhe cabia da herana paterna, pretendia, ainda, apoderar-se da parte de Hesodo, subornando

os reis locais.

,

, . (Erga, v. 37-39) J dividimos a herana e tu de muito mais te apoderando levaste roubando e o fizeste tambm para seduzir reis comedores-de-presentes, que este litgio querem julgar.12 Essa a deixa que estimulou Hesodo a compor Os Trabalhos, em que intenta persuadir

Perses a viver honestamente, com os frutos do prprio trabalho, e no de maneira indecorosa,

oferecendo presentes aos reis em troca de benefcios.

Quanto navegao, Hesodo confessa no ter muita experincia:

,

,

,

, (). (Erga, v. 646-651) Se, ao direcionares a mente insensata ao comrcio, queres fugir das dvidas e da fome sem graa, mostrarei a ti as leis do rumorejante mar, embora no sendo especialista em navegao nem em navios. Pois, nunca percorri em barco o vasto mar, a no ser de ulis a Eubia, (...). 13

11 Trad. Nossa.

12 Trad. de Mary Lafer, 2002, p. 23.

13 Trad. Nossa

23

Essas so as informaes que, reais ou fictcias, emergem do poema. Todo esse tom

autobiogrfico do poema, todo o pano de fundo no qual ele se apia (o contexto entre o poeta e

seu irmo), bem como as personalidades do locutor e do interlocutor que nos so apresentadas,

so frutos da inteno do poeta real. Sendo assim, podemos consider-las como artifcios

literrios, em contraste com a tradio de helenistas que via o texto de Hesodo como um captulo

de sua biografia mesmo, como dados da realidade do homem Hesodo.

24

1.2. Os trabalhos e os Dias: a unidade do poema.

Constitudo de 823 versos, o poema de Hesodo tradicionalmente dividido em cinco

partes: (i) promio e relatos mticos (v. 1-382) (cf. Mary Lafer, 2002), (ii) o trabalho agrcola (v.

383-617), (iii) a prtica da navegao (v. 618-694), (iv) conselhos diversos (695-764) e, (v) os

dias (v. 765-828).

A estrutura aparentemente desconexa das partes levou alguns estudiosos, como Solmsen

(1963), Lesky (1969), Walter Marg (apud Lardinois, 1998), entre outros, a considerar algumas

partes, sobretudo os dias, como no autnticas ou interpolaes.

Alinhando-nos, porm, aos estudiosos que defendem a unidade textual do poema,

partimos das consideraes de Jaeger (2010, p. 89) para quem no apenas a fbula do

falco e do rouxinol que ainos. A histria de Prometeu e o mito das idades do mundo so

verdadeiros ainoi tambm. para analisar as vinculaes dessas narrativas com o restante do

poema. Visto que ainos o mais antigo termo grego para fbula, constata-se que, para Jaeger,

todas essas narrativas que abrem o poema teriam o estatuto de fbulas: seriam, pois, narrativas

instrumentais, enunciadas para dizer uma outra coisa alm delas mesmas. Embora no se estenda

sobre a vinculao textual delas com os versos sequenciais, Jaeger (2010, p. 87) defende a coeso

estrutural do poema ao afirmar que os Erga formam uma grande e singular admoestao e um

discurso didtico e (...) derivam diretamente, no fundo e na forma, dos discursos da epopeia

homrica. Em nota, esclarece tal derivao: um nico discurso emancipado e ampliado at

converter-se em epopeia de carter exortativo, aparentando-se ao longo discurso que Fnix

profere a Aquiles, no canto IX da Ilada, a fim de exort-lo a voltar para o campo de batalha.

A comear, podemos dizer que a finalidade do mito de Prometeu e Pandora (v. 42- 105)

foi explicar que a insolncia (hbris) contra deuses resultou na criao de Pandora e, a partir da,

o trabalho e a procriao tornaram-se obrigatrios para a preservao da humanidade. Depois,

com a mesma finalidade de mostrar a imposio do trabalho para os homens, Hesodo recorre, no

mito das raas, decadncia da humanidade, que se torna cada vez mais mpia e desrespeitosa

com os deuses, ao ponto de chegar idade de ferro, em que o poeta lamenta encontrar-se, em que

os bens e os males encontram-se misturados. Agora cabe ao homem decidir qual caminho quer

seguir, se o do trabalho e da piedade para com os deuses, ou o caminho da ociosidade e da

desmedida. A seguir, Hesodo narra a fbula do falco e do rouxinol para falar da Justia de Zeus.

25

A figura do gavio prepotente e poderoso simboliza os reis que, no contexto hesidico, serviam-

se de seus poderes para abater os fracos e impor-lhes suas leis, enquanto que o poeta

simbolizado pelo humilde rouxinol. Est claro que o intuito do poeta dizer, por meio dessa

fbula, que a fora e o poder no os isentam, na condio de juzes, de pautar suas sentenas pela

justia divina.

Para Hesodo, portanto, o trabalho a fonte da felicidade humana, pois, embora seja

penoso, o verdadeiro caminho para se fugir da misria. E Zeus pune os injustos que querem

obter a riqueza pela violncia, desrespeitando a lei divina.

Esses grandes temas desenvolvidos nos relatos mticos so retomados nos versos

posteriores. Na segunda parte do poema (v. 383-617), dedicada aos trabalhos agrcolas, o poeta

procura mostrar que a nica forma justa de se adquirir riqueza por meio do trabalho, sobretudo

da agricultura. Sua preocupao maior ensinar aos seus interlocutores a poca em que os

grandes trabalhos devem ser feitos; seguem-se, ainda, conselhos tcnicos relativos aos

instrumentos necessrios lavoura. Na terceira parte (v. 618-694), o foco a prtica da

navegao para a realizao do comrcio martimo, outra forma digna de garantir subsistncia.

Nos conselhos morais e religiosos (v. 695-764), so dadas vrias advertncias relativas escolha

da esposa, ao convvio com os amigos, preservao da sade e da boa reputao etc. E, alm

disso, so mencionadas as prticas que podem tanto provocar a clera dos deuses como manchar

a reputao dos homens. Depois, segue-se a indicao dos dias favorveis para o exerccio de

algumas atividades essenciais (v. 765-828) para a sobrevivncia humana, como o casamento, a

procriao, o cuidado dos animais, a semeadura e o cultivo de plantas.

Sendo assim, ao considerarmos que as narrativas da primeira parte do poema instalam,

logo de incio, grandes temas que sero depois constantemente retomados, conseguimos sustentar

a continuidade do pensamento do poeta e mostrar os possveis vnculos entre essas narrativas e a

parte final do poema. Assim, Trabalho e Justia no so apenas os temas dessas primeiras

narrativas, mas, antes, os temas centrais do poema hesidico como um todo, pois so eles que

justificam todos os conselhos que o poeta apresenta no decorrer da obra. Na tica de Hesodo,

Trabalho e Justia so os fundamentos que devem reger o comportamento humano.

Para o presente tpico, foi de grande importncia o estudo de Andr Lardinois (1998),

How the days fit the works in Hesods Works and Days. Nesse estudo, o autor sustenta a

26

autenticidade de os dias, demonstrando a conexo dessa passagem com os outros temas do

poema.

Para Lardinois, a seo final dos dias crucial para o nosso entendimento do poema. Em

sua anlise, os dias referem-se aos temas que so tratados mais completamente nas primeiras

partes do poema, tanto como as primeiras partes j aludem idia de que os humanos tm que

viver dia aps dia. Desse modo, os vrios temas do poema, assim como as esferas cosmolgicas

que eles representam, esto interconectados (p. 319).

Essa ideia de que a condio humana governada pelos dias o que o instiga a encontrar

referncias diretas aos dias na primeira parte do poema. A primeira meno da palavra dia

encontra-se antes de Hesodo comear a contar a histria de Prometeu. Essa passagem, segundo

Lardinois (1998, p. 325), pode ser chamada de clmax temtico, j que ela traz reunidos, em

poucas linhas, os principais temas do poema. O verso 43 em um s dia

trabalharias traz em si dois conceitos justapostos que mais tarde constituiriam o ttulo do

poema. Somos informados, aqui, de que a necessidade de se viver com os frutos do prprio

trabalho requer que os humanos trabalhem mais que apenas um dia.

Primeiramente, no mito de Prometeu e Pandora, os humanos padecem com as doenas

que os assombram de dia e de noite, por causa da abertura do jarro. Como punio pelo roubo

do fogo por Prometeu, Zeus estabeleceu os dias e as noites durante os quais esses males poderiam

incomodar os seres humanos. Sendo assim, tal como essas doenas, o ritmo dos dias parte da

condio humana. Lardinois (p.326) afirma que essa passagem do mito de Prometeu e Pandora

tambm pode ser considerada como um clmax temtico, pois ela menciona: terra (), lugar

de agricultura (cf. 32, 232), e mar (), o lugar para a navegao (cf. 666, 681).

No mito das Cinco Idades no h nenhuma meno ao dia ou noite na exposio das

primeiras quatro idades. Entretanto, quando Hesodo chega idade presente, ele diz:

Pois agora a raa de ferro e nunca durante o dia cessaro de labutar e penar e nem noite de se destruir (v. 176-78)

Logo, h novamente uma aluso ao fato de que a condio humana governada pelos

dias.

27

A passagem seguinte (v. 381- 413) associa o ritmo dos dias com a agricultura e a presente

idade de ferro. Os dias so medidos pelo surgimento e posio das Pliades, que so calculados

por sua vez pelos dias: elas ficam escondidas por 40 dias e 40 noites.

Alm dessas passagens, importante ressaltarmos que o calendrio agrcola comea e

termina no outono. Outubro o tempo propcio para se cortar a madeira. Como diz Lardinois

(p.328), aqui ns no somos apenas lembrados do modelo atual dos dias, que traz Srius e o

tempo propcio para se cortar a madeira, mas tambm do ritmo da noite e dia e das misrias que

os acompanham.

No almanaque agrcola (414-617) e na parte da navegao (618-94), os dias marcam as

estaes nos calendrios e quando o trabalho tem que ser feito. Entretanto, h uma estao que

no marcada por uma referncia aos dias: o perodo do auge do vero (582-96). Esse , segundo

Lardinois, o perodo do ano em que o agricultor pode descansar (1998, p. 329):

Os dias durante o poema so associados ao trabalho e o trabalho aos dias; quando no h trabalho, como no vero ou na Idade de Ouro, no h necessidade de se contar os dias tambm. (Trad. nossa)14

interessante notarmos que a nfase dada por Hesodo parte da navegao (618-94)

est no perodo propcio para a prtica dessa atividade e a passagem termina com a afirmao de

que a escolha do momento certo em todas as coisas a melhor.

J na segunda parte do poema, na seo dos dias (v. 765-828), os trabalhos so fixados em

seus dias apropriados. Hesodo comea seu calendrio com o 30 dia (), dizendo que

esse o melhor dia do ms para inspecionar os trabalhos e compartilhar a subsistncia. A

escolha do poeta por comear o seu calendrio com esse dia, segundo Lardinois (p.330), faz

sentido uma vez que isso permite a ele aludir aos dois temas que so marcantes nas primeiras

partes do poema. Logo, essa passagem outro clmax temtico, pois ela sumariza e justape

alguns dos maiores temas do poema.

Alm disso, aparece nessa segunda parte uma srie de atividades que j foram referidas

anteriormente no poema.

14

Days throughout the poem are associated with work and work with days; when there is no work, as in Summer or in the Golden Age, there is no need to count the days either.

28

H vrios trechos, na primeira parte do poema, que nos mostram que necessrio dar aos

deuses os seus devidos sacrifcios. E, aqui, no diferente, pois na seo dos dias, os deuses

tambm so prestigiados com uma lista dos dias sagrados.

Em primeiro lugar, o primeiro dia do ms, o quarto e o stimo, que um dia sagrado, pois, nele, Leto pariu Apolo, de urea espada. (vv. 770 771)

Ademais, no verso 773, na passagem de Os dias, h uma referncia aos trabalhos dos

mortais ( ). Nos versos seguintes, esses trabalhos so especificados: tosamento de

ovelhas (v.775); colheita de gros ou uvas (v. 775) e a tecelagem (v. 778-779). Na primeira parte

do poema, na passagem em que o poeta articula um discurso contra os reis, que proferiam

sentenas torcidas, a l mencionada no verso 234, ovelhas de plo espesso quase sucumbem

sob sua l, e nos versos 516-517, na parte em que o poeta trata dos trabalhos agrcolas, a l

novamente mencionada: mas no s ovelhas, porque abundantes so as suas ls. O gro e a uva

so referidos respectivamente em 597-608 e 609-17, na seo do trabalho agrcola, e a tecelagem

mencionada como parte do trabalho da mulher na criao de Pandora, na passagem do mito de

Prometeu e Pandora (v. 42-105), quando Zeus ordenou que Atena ensinasse a Pandora os

trabalhos, o polidedleo tecido tecer (v. 64-65).

No verso 781a, Hesodo aconselha que o dcimo terceiro dia do ms no bom para a

semeadura. Essa atividade primeiramente referida no verso 22, quando o poeta conta a alegoria

das duas lutas: Pois um sente desejo de trabalho tendo visto / o outro rico apressado em plantar,

semear / e a casa beneficiar.

Nesses versos, h tambm a meno plantao, como em 781b, O sexto dia da metade

do ms inoportuno para as plantas.

A procriao, constantemente mencionada nOs dias (v. 783, 785, 788, 792, 794, 812-13),

tambm citada na primeira parte: mulheres parem crianas que se assemelham aos pais (v.

235).

No verso 784, Hesodo recomenda que o sexto dia no favorvel para a moa contrair

matrimnio. Mas, no quarto dia (v. 800), bom que um varo conduza uma esposa para casa.

Referncias ao casamento so dadas nos versos 695, 705 e na histria de Prometeu, quando

Pandora enviada a Epimeteu.

29

Alm dessas atividades, vrias outras so mencionadas em ambas as partes do poema,

como os augrios, os juramentos, a debulhao dos gros, a navegao, entre outras.

Para finalizar, possvel constatar ainda que, como disse Lardinois (1998, p. 331), o

termo grego , do verso 826, pode tanto referir-se a cada um dos dias mencionados pelo

poeta, como a cada coisa proclamada por Hesodo nOs Trabalhos e os Dias. Ento, somos

levados a afirmar que esse o ltimo clmax temtico do poema. E, nos dois ltimos versos,

Hesodo faz sua prpria concluso de todo o seu ensinamento, reiterando que mister que os

homens trabalhem sem culpa frente aos imortais, [...] evitando transgresses, isto , praticando

a Justia.

Portanto, a partir de todas essas observaes, podemos concluir que h muitos indcios

que corroboram a unidade do poema hesidico e a busca desses indcios foi o objetivo desse

tpico, pois a nosso ver, , em especial, a discusso sobre o trabalho, sua origem e significado

para os homens, feita na primeira parte do poema, que justificar a reunio, na segunda parte, de

preceitos prticos sobre a vida no campo.

30

1.3. Precedentes Orientais: a Literatura Sapiencial

bem consensual entre os helenistas a ideia de que Hesodo teve como fonte para compor

seus poemas alguns precedentes de origem oriental. Entre eles: as cosmogonias-teogonias de

textos hititas, hurritas, babilnios, cananitas, etc; as poesias de conselhos, instrues e provrbios;

os calendrios e os dias, variantes do catlogo.

A maneira como os mitos e lendas do oriente chegaram at Hesodo outro assunto muito

comentado pelos estudiosos. Lesky (1969, p. 119) e Rocha Pereira (1980, p.130) apresentam duas

possibilidades: ou que o conhecimento tivesse vindo atravs do pai de Hesodo, originrio da

sia Menor, ou que se tratasse de mitos transmitidos pelos fencios e divulgados na Becia. J

Adrados (1988, p. 75) diz que esses precedentes chegaram at Hesodo atravs da literatura

grega, possivelmente oral, em parte dependente dela e, em parte, de razes indgenas.

O estudioso que mais se debruou sobre o tema da influncia oriental na obra de Hesodo

foi Martin West, nas introdues de suas respectivas edies crticas Theogony and Works and

Days (1988) e Hesiod Works & Days (1978).

Em Theogony and Works and Days (1988, p 17), West diz que Hesodo viveu em um

perodo em que a Grcia estava aberta para influncias orientais de muitos tipos. Tal afirmao

justifica o fato de os poemas hesidicos possurem paralelos muito prximos aos textos que

pertencem s tradies sumrias, babilnicas, hebraicas e egpcias da literatura sapiencial de

aproximadamente 2500 a. C.

O autor, ento, nos fornece as caractersticas principais que todos esses textos possuem

em comum. Geralmente, as instrues encontradas originam-se de uma vtima de injustia e so

misturadas com censura e admoestao. O interlocutor sempre algum carente de correo, e

no simplesmente uma pessoa inexperiente necessitando de orientao (1988, p. 16).

Outro ponto de contato, apontado por West, o uso da fbula animal. Como diz o autor,

as fbulas tiveram uma longa histria no Oriente, comeando com os sumrios do 3 Milnio.

Para ele, foi certamente do Levante que elas chegaram Grcia.

Alm da fbula, West afirma que os motivos das sucessivas idades do mundo, o declnio

das condies paradisacas e da virtude perfeita e o simbolismo metlico tambm possuem

paralelos com textos orientais, especificamente com textos mesopotmicos, judaicos, persas e

31

indianos. O calendrio dos dias foi tambm um tipo de superstio atestado na Mesopotmia e no

Egito (1988, p. 16-17).

J em Hesiod Works & Days (1978), West nos oferece uma apresentao panormica de

vrios desses trabalhos de exortao e instruo que foram encontrados no antigo Oriente.

O primeiro deles, Instrues de uruppak, poema sumrio de aproximadamente 250

linhas, um dos mais velhos poemas conhecidos do mundo. Segundo West (1978, p. 3), seus

fragmentos foram escritos em 2500 a. C. Esse texto contm conselhos que supostamente foram

dados por um sbio do passado distante, antes do Dilvio, a seu filho Ziusudra. Os preceitos

dados pelo sbio dizem respeito compra de um boi ou um asno, locao de um campo ou uma

casa, e ao envolvimento em disputas, roubos, assassinatos, namoros, transgresses, raptos e

perjrios. Alm desses preceitos, algo parecido com uma fbula utilizado. Seus versos iniciais

so os seguintes:

Meu filho, deixe-me dar instrues a voc, Voc deve prestar ateno nelas! (West, 1978, p. 4)

West (1978, p. 4) atenta para o fato de que existe uma variante notvel no verso 212 de

uma cpia fragmentria que, ao invs de meu filho, apresenta meu rei, o que parece ser uma

adaptao do trabalho como uma instruo de um rei por seu vizir.

O segundo trabalho fragmentrio que contm admoestaes morais e ticas, apontado por

West (1978, p. 5), uma coletnea de instrues tcnicas, chamada Instrues de Ninurta, que

data da primeira metade do segundo milnio. Trata-se de um texto de 107 linhas, cujos preceitos

cobrem as operaes agrcolas de um ano inteiro. West observa que, no fim do texto, h uma

subscrio:

Instrues de Ninurta, o filho de Enlil. Oh Ninurta, fidedigno agricultor de Enlil. Seu louvor bom! (West, 1978, p. 5)

Conselhos de Sabedoria mais um desses trabalhos de exortao encontrados no Oriente.

De acordo com West (1978, p.6), data talvez do perodo de 1500 a 1200 a. C. Seu comeo

perdido. No se sabe quem o conselheiro. Entretanto, uma passagem do texto sugere que seja o

vizir do rei. Seus conselhos so do tipo: evitar ms companhias; evitar falas imprprias e

32

disputas; ser bondoso para com os necessitados; as desvantagens de casar escravos ou prostitutas;

as tentaes a que um vizir exposto; adorar regularmente os deuses; e ter transaes honestas

com os amigos. Alm desses conselhos, o texto contm adgios e advertncias da ira divina e

outras conseqncias indesejveis provocadas pelo erro. West diz que o tom e a maneira adotados

nesse texto fazem lembrar vrias partes dOs Trabalhos e os Dias (1978, p. 6).

J os textos babilnicos de Ras Shamra e Boghazky, segundo West (1978, p. 6), contm

instrues de um ub-awlum para seu filho mais velho Zurranku. O texto comea assim: Escuta

o conselho de ub-awlum. (West, 1978, p. 6)

Suas exortaes so do tipo: evitar o abuso; no deixar a mulher com os afazeres

financeiros; a escolha da esposa, de um boi ou de um escravo.

Outro texto babilnico, que data de 1000-700 a. C., chamado de Conselhos a um

Prncipe. West diz que esse trabalho consiste em uma srie de advertncias do que ir resultar se

um rei cometer aes opressivas e imprudentes. Suas sentenas so do tipo: Se A, ento B que,

de acordo com o autor, um estilo muito usado na interpretao de pressgios. Como exemplo, o

texto informa que se o rei no prestar ateno justia, sua terra ser rebelde contra ele. (West,

1978, p. 7).

Passando ento para a tradio egpcia da literatura sapiencial, West assegura que a

Instruo representa um dos principais gneros literrios egpcios do Mdio Imprio. Ele diz que

esse gnero, quase sempre, toma a forma de uma srie de admoestaes que supostamente foram

dadas por um homem a seu filho em alguma idade passada e, geralmente, as circunstncias so

explicadas em uma introduo narrativa (1978, p. 8).

O primeiro texto, Instruo de Ptahhotep, uma composio de 647 versos. West supe

que seja uma instruo dada por um vizir do rei que viveu no sculo XXV a. C. Esse vizir tinha

110 anos e queria passar para seu filho os frutos de sua longa experincia. O subttulo do texto

diz que Ptahhotep est instruindo um ignorante. Os assuntos abordados so os seguintes:

comportamentos em banquetes; evitar mulheres perigosas; no ser cobioso em uma diviso e a

conduta ideal em uma relao de amizades. Depois, h um extenso eplogo em que o vizir

enfatiza as vantagens de se prestar ateno a seus conselhos.

West (1978, p. 10) tambm chama ateno para o fato de que, no segundo Milnio,

existiram vrios textos em que os escribas tomavam a posio de instrutores. Um exemplo o

33

texto Instruo Educacional de Ani, cujos conselhos esto relacionados discrio, ao

casamento, ao cumprimento religioso, moderao, gratido aos pais etc.

Havia tambm um exerccio escolar muito comum no sculo XIII a. C. Esse exerccio, de

acordo com West (1978, p. 11), consistia em o aluno passar a limpo textos curtos que vinham de

seus tutores, que os exortavam a serem escribas diligentes. Em geral, eram descritas as

recompensas da profisso de um escriba e as punies aplicadas por causa da ociosidade. s

vezes, esses textos traziam acusaes de muitas falhas desses alunos, para as quais eles eram

advertidos.

Como observa West (1978, p.12), o desenvolvimento do gnero Instruo, no Egito,

durou cerca de 2000 anos. Entretanto, mesmo em face desse longo perodo, os textos possuem

caractersticas em comum que so imutveis. Geralmente so conselhos e exortaes

relacionados conduta, suportados por declaraes e clichs gerais, e colocados em uma

narrativa mais ou menos fictcia, composta por ensinamentos dados de uma pessoa para seu filho.

No h o uso de mitos ou fbulas e, em geral, h pouca variedade de tratamento. O autor tambm

afirma que, nesses textos, no encontramos instrues tcnicas detalhadas e o interlocutor

apenas aconselhado no qu fazer e no como fazer.

Depois de abordar a tradio egpicia da literatura sapiencial, West faz tambm uma

apresentao do material didtico-moral encontrado em outras verses e em outras lnguas.

Devido ao fato de esse material ser muito grande, uma vez que abarca manuscritos que datam do

sculo V a. C. at o sculo XIX d. C., citaremos apenas os trs trabalhos que cremos serem os

mais relevantes para o momento: A histria de Ahiqar, Provrbios de Salomo e o Livro de

Eclesiastes.

A histria de Ahiqar uma composio do sculo VI a. C. Segundo West (1978, p. 13), o

romance, com o cenrio histrico do sculo stimo da Assria, conta a histria de um velho e

prudente escriba chamado Ahiqar, vizir de Senacherib, que foi falsamente acusado de traio por

seu sobrinho e filho adotivo Nadin, para quem ele j tinha um alto cargo garantido. Nadim

admoestado por Ahiqar com uma longa srie de preceitos misturados com adgios e fbulas

populares.

J o Livro de Provrbios ou Provrbios de Salomo, para West (1978, p. 14), a

sobrevivncia mais antiga da poesia sapiencial hebraica. Alm das gnomas, esse livro contm um

longo sermo articulado em louvor sabedoria. A composio desse trabalho assemelha-se do

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Livro de Eclesiastes, do sculo II a. C., composto por Jesus bem Sira, que o dedicou a seus filhos

(3:1, cf. West, p. 14) ou filho (2:1, cf. West, p. 14). Tanto no Livro de Provrbios quanto no

Livro de Eclesiastes h um extenso louvor sabedoria.

Depois dessa ampla apresentao dos materiais didticos encontrados no Oriente, West

aborda os textos hesidicos. Para o autor, alm dOs Trabalhos e os Dias, outros trs poemas

didticos foram atribudos a Hesodo: Grandes trabalhos; Preceitos de Quiron e Astronomia

(1978, p. 22). Grandes trabalhos ocupa-se com tarefas agrcolas, como os Trabalhos e os Dias.

Alm disso, contm tambm conselhos morais e talvez conselhos de conduta social. (West,

1978, p. 23)

J os Preceitos de Quiron parece ser uma coletnea de ensinamentos dados pelo prudente

Centauro ao menino Aquiles. O poema no possui um promio narrativo e comea com mximas

(fr. 283, cf. West, p.22). Nele, Aquiles recebe a ordem de dar a honra devida aos deuses e a seus

pais. Ademais, o poema parece tambm ter tido conselhos relacionados a tarefas prticas.

Astronomia, segundo West (1978, p. 23), um trabalho de um tipo mais especializado,

que trata da forma das constelaes e seus tempos de nascer e se pr, como tambm dos mitos

associados a elas.

Jaeger faz referncia a esse intuito educativo do poeta dizendo que a que Hesodo

prende a verdadeira raiz de sua verdade. Como diz o autor, Hesodo encontrou na vontade

proftica de se converter em mestre de seu povo justificativa para a sua misso potica (Jaeger,

2010, p. 97).

Sinclair (1966, p. 26), por sua vez, afirma que Hesodo considerado o civilizador da

humanidade no porque ensinou ao homem coisas sobre a agricultura ou sobre a navegao ou

sobre os dias oportunos e inoportunos para as atividades. Para o autor, essas coisas representam

um estado de civilizao j atingido e no h nenhuma contribuio de Hesodo para esse avano.

Sua contribuio para ser encontrada no fato de que ele deu expresso a ideias e princpios no

completamente imaginados ou praticados anteriormente.

Calhoum (apud Sinclair, 1966, p. 30) refere-se aos Erga como a gnese da literatura

poltica, pois, a seu ver, pela primeira vez, um autor aborda os problemas sociais e polticos de

seus dias, apresentando uma rigorosa denncia das coisas como elas so e um programa de

reforma.

35

Essa preocupao poltica de Hesodo exerceu influncias sobre inmeros poetas

posteriores, tanto gregos como romanos, contribuindo para o nascimento de um gnero de poesia

conhecido como poesia gnmica.

A ttulo de ilustrao, selecionamos para leitura os poemas de dois desses poetas, Tegnis

de Megara e Slon de Atenas, que viveram na Grcia durante a poca Arcaica, sc. VIII ao VI

a.C, nos quais se podem detectar algumas afinidades com o pensamento tico de Hesodo.

Tegnis, devido ao carter gnmico de suas poesias, um dos poetas elegacos cuja

influncia de Hesodo mais considervel. O poeta viveu em um perodo marcado por mudanas

econmicas e sociais que abalaram a aristocracia na Grcia. Com isso, procurava preservar o seu

pupilo Cirno contra a violncia dos homens maus. Os conselhos de Tegnis a Cirno so muito

parecidos aos que Hesodo oferece a Perses. Tegnis procurava, sobretudo, tornar Cirno um

homem bom.

Prefira levar uma vida piedosa com poucos bens, a enriquecer injustamente adquirindo bens. Na justia est toda a excelncia, e todo homem, Cirno, sendo justo, bom. (Fr. 8. 145 148)15.

A poesia de Slon tambm marcada por esse carter parentico. Em geral, suas elegias

possuem um tom exortativo e admoestador:

Riquezas desejo ter; adquiri-las injustamente eu no quero; em todo caso depois vem a justia. A riqueza que os deuses do acompanha o homem, slida desde a base mais profunda at o cimo;

aquela que os homens buscam com violncia no vem em boa ordem; obedecendo a aes injustas

segue sem querer, e, rapidamente, se lhe junta a desgraa. (Elegia s Musas, vv. 7-13)16

A ttulo de curiosidade, registramos que Sinclair (1966, p. 14) faz uma comparao entre

os Erga de Hesodo e as Epstolas do poeta romano Horcio, dizendo que esses textos possuem o

mesmo tipo de composio: uma epstola didtica e exortativa; ambos usaram o mtodo gnmico

e, em ambos, h um elemento autobiogrfico.

15 Trad. de ISHIZUKA, V. M, 2002, p. 62

16 Trad. de BARROS, G. N. M., 1999

36

Quem se debrua sobre o tema da tradio da poesia didtica grega e romana o

estudioso Peter Toohey. Em seu estudo Epic Lessons. An introduction to ancient didatic poetry

(1996), o autor busca as caractersticas chaves dessa poesia. Para tanto, ele articula sobre uma

possvel arqueologia da esttica didtica, sugerindo que ela tenha passado por seis fases de

evoluo no perodo greco-romano.

Ao desenvolver esse esquema, o autor faz um trabalho comparativo e busca uma

regularidade entre esse grupo de poemas, cujas caractersticas os tornam poesias didticas. Esse

grupo compreende os trabalhos dos seguintes poetas: Hesodo, Xenfanes, Parmnides,

Empdocles, Arato, Nicandro, Ccero, Lucrcio, Virglio, Ovdio e Horcio.

Segundo o autor, todos esses poetas, em seus poemas didticos, apresentam alguns traos

comuns. Entre eles (1996, p. 15):

1) Uma voz forte, singular e persuasiva. Segundo o autor, a poesia didtica requer a

presena de uma nica voz ensinando, direcionada a um destinatrio ou destinatrios implcitos.

Para Toohey (1996, p. 15), em todos os aspectos, o poema Os Trabalhos e os Dias, de Hesodo,

atuou como uma marca de referncia pica didtica posterior, inclusive na presena dessa voz e

do destinatrio. Alm disso, ele afirma que o tom da poesia hesidica um tom elevado, assim

como ocorre em todos os outros poemas didticos por ele analisados.

2) Um assunto atraente e sensacional. Para exemplificar este trao, Toohey (1996, p. 17)

faz referncia ao atraente tema do sistema csmico que aparece em Empdocles, onde h um

conflito entre o Amor e a Luta. Esse conflito altera a balana entre as quatro bases do mundo

material: terra, ar, fogo e gua. H uma adequao da obra hesidica a esse requisito. A nosso

ver, o conflito familiar entre Hesodo e seu irmo Perses, por si s, j pode ser considerado como

um assunto atraente e tambm sensacional.

3) Marcada variedade na narrativa, no tipo textual, genrico e tambm discursivo. Aqui,

o autor refere-se a um outro aspecto do poema de Hesodo que prottipo da literatura didtica: o

uso do hexmetro datlico. Segundo Toohey, a maioria dos poemas didticos subsequentes a

Hesodo adotar isso como seu modelo e, sendo assim, Hesodo novamente se torna uma marca

de referncia. (1996, p. 23).

37

Alm do uso do hexmetro datlico, o autor aponta como uma marca distintiva destes

poemas o uso de painis ilustrativos, ou seja, das narrativas mticas que funcionam como uma

ilustrao para o aprendiz. O autor exemplifica o uso destes painis ilustrativos com as trs

narrativas mticas que aparecem no poema Os trabalhos e os Dias: o mito de Prometeu e

Pandora, 106-201; o mito das Cinco Idades, 202-12 e a fbula do falco e do rouxinol. (1996, p.

23).

Toohey tambm menciona o fato de Hesodo variar o seu discurso com frequncia,

alterando, com facilidade retrica, entre um discurso baseado no smbolo, na narrativa, nas

parneses, nas gnomas ou na simples instruo (1996, p. 17).

4) Simplicidade conceitual. O autor exemplifica este trao com a simplicidade conceitual

existente nas Gergicas, de Virglio, um poema de quatro livros que versa sobre a manuteno

agrcola. Com relao simplicidade conceitual, ao pensarmos nas obras de Hesodo, podemos

dizer que a forma como ele aborda os temas da agricultura e da navegao nos deixa claro que,

embora ele tenha um certo conhecimento sobre o assunto, ele no um especialista em

navegao. Ele mesmo confessa sua inexperincia com a navegao nos versos 649 a 651:

mostrarei a ti as leis do rumorejante mar, embora no sendo especialista em navegao nem em navios. Pois, nunca percorri em barco o vasto mar, a no ser de ulis a Eubia, (...). 17

E, por fim, Toohey recorre a um outro ponto comum entre estes textos: 5) a extenso.

Segundo Toohey, a extenso de 828 versos do poema Os Trabalhos e os Dias, de Hesodo,

representa uma mdia do que pareceu se tornar um modelo para um livro de versos didticos.

Parmnides, Empdocles, Aratus, Nicander, segundo Toohey (1996, p. 26), todos produziram

poemas didticos de extenso comparvel a Hesodo.

17 Trad. Nossa

38

II. CONSIDERAES SOBRE O DISCURSO DIDTICO

Dada a natureza deste trabalho voltado para o exame da estrutura discursiva do poema de

Hesodo, ser necessrio operarmos com os conceitos da teoria da enunciao, os quais abarcam

as estratgias enunciativas e discursivas que tornam possvel o processo de comunicao e que

do sentido ao discurso.

imprescindvel, tambm, que trilhemos pelo campo terico que d conta

especificamente do discurso didtico, alvo de nossa investigao.

2.1. Discurso Didtico: uma categorizao

Para tratarmos especificamente do discurso didtico necessrio que adentremos no

campo das tipologias de discursos, ou como preferem alguns, na questo dos gneros do

discurso.

Quando se fala em tipos, se fala em classes, em grupos, em diviso. A

preocupao com as tipologias no , de fato, algo novo. O termo tipologia, designando um

estudo sistemtico de tipos, pode ser aplicado em diversas disciplinas: na arquitetura, na

medicina, na biologia etc. Em nosso caso, nos estudos da linguagem, o termo sempre ocupou um

lugar privilegiado. desde a Antiguidade que existe a preocupao com a classificao dos

diferentes tipos de discursos. Como exemplo, Aristteles ([384-322], 2005, Retrica, Livro I,

cap. 3) dizia que, quando um discurso abordado, trs fatores importantes devem ser levados em

considerao: (1358 ab),

em outras palavras:

(1356 a).

Atualmente, h uma enorme gama de estudos lingusticos que se debruam sobre este

tema e que buscam entender quais so os princpios que regem a organizao dos diferentes tipos

de discurso. Entre eles, podemos citar as tipologias funcionais que, baseadas a princpio na teoria

das funes da linguagem de Jakobson, focam a funo dos discursos; as tipologias cognitivas,

cujo representante seria Jean Michel Adam; as tipologias scio-interacionistas, a respeito das

quais Bakhtin foi um dos principais articuladores e assim por diante.

39

Alm dessa variedade de teorias, no poderamos deixar de falar da Anlise do Discurso,

teoria que surge na Frana, no final dos anos 60, na ocasio em que as cincias humanas

comearam a questionar os paradigmas estruturais (Gregolin, 2003). o momento da chamada

Crise Epistemolgica da Lingustica (2003, p. 24), em que o corte saussuriano, que tomava

apenas a como objeto de estudo, passou a ser questionado pelos estudiosos. So

principalmente os estudos da semntica que vm perturbar essa tese, pois passou-se a defender

que o sentido cultural e histrico. Para apreend-lo seria preciso levar em conta o sujeito e a

situao de uso. Segundo Gregolin (2003, p. 21), essas mudanas tornaram possvel o

desenvolvimento de uma teoria da enunciao e provocaram o aparecimento de uma Lingustica

que se ocupar do discurso.

Portanto, adotando a definio de discurso como sendo toda atividade comunicativa,

produtora de sentidos, ou melhor, de efeitos de sentidos, entre interlocutores (sujeitos situados

social e historicamente) nas suas relaes interacionais. (BRANDO, sd, p. 2), conclumos que,

para que um discurso seja compreendido em toda a sua complexidade, faz-se necessria uma

abordagem que leve em conta as condies de sua produo, ou seja, a situao de enunciao, os

interlocutores e o contexto histrico social no qual este discurso foi produzido.

Embora seja com Benveniste e depois com Bakhtin que a teoria da enunciao ganha o

seu verdadeiro impulso, pois so eles os tericos que se propuseram de fato a estudar a

subjetividade na lngua, pode-se dizer que um dos primeiros linguistas a pensar na questo da

enunciao foi o russo Roman Jakobson. O seu esquema das funes da linguagem pode ser

considerado como uma das primeiras sistematizaes sobre o lugar do sujeito na linguagem, pois,

quando falamos em uma mensagem que enviada por um emissor para um receptor, estamos

falando de um processo de comunicao que envolve sujeitos falantes, em um determinado

tempo e espao.

Bakhtin, por sua vez, sempre considerando o enunciado como fruto da interao social,

desenvolve sua pesquisa buscando compreender a diversidade das atividades sociais exercidas

por diferentes grupos e, por conseguinte, a diversidade das produes de linguagem relacionadas

a essas atividades. Em sua obra A esttica da criao verbal (1997, p. 279), faz o seguinte

caminho para definir os gneros do discurso:

40

A utilizao da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e nicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condies especficas e as finalidades de cada uma dessas esferas, no s por seu contedo (temtico) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleo operada nos recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais -, mas tambm, e sobretudo, por sua construo composicional. Esses trs elementos (contedo temtico, estilo e construo composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles so marcados pela especificidade de uma esfera de comunicao (...) cada esfera de utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis de enunciados, sendo isso que denominamos gneros do discurso.

No trecho acima, percebemos que o autor molda o seu argumento baseado em trs

conceitos pilares: lngua, enunciado e gneros do discurso. Para Bakhtin, no processo de

comunicao, estes trs conceitos so indissociveis. Logo, podemos dizer que os sujeitos-

falantes a todo o momento se utilizam de gneros do discurso em suas comunicaes, ou seja,

cada uma das vrias atividades humanas utiliza-se de um gnero apropriado s suas

especificidades. Cada gnero, portanto, ser relativamente estvel do ponto de vista temtico,

composicional e estilstico.

E, sendo tambm a literatura uma forma de linguagem, assim como todo o processo de

comunicao, podemos afirmar que toda obra literria pertence a um determinado gnero.

Segundo Jauss (1970, apud LIMA 1983, p. 268), dizer isto implica afirmar que toda obra supe

o horizonte de uma expectativa, ou seja, um conjunto de regras preexistentes para orientar a

compreenso do leitor (do pblico) e permitir-lhe uma recepo apreciativa. Para Lima (1983,

p. 268), o gnero (...) forma a camada de redundncia necessria para que o receptor tenha

condies de receber e dar lugar a uma certa obra.

Essa questo da recepo de um texto a ancoragem apropriada para adentrarmos no

terreno do discurso didtico. O nosso exerccio agora o de pensar qual o horizonte de

expectativa do discurso que se pretende didtico.

Quando falamos em didtica, o que em primeiro lugar vem em nossa mente um

contexto de ensino-aprendizagem. O termo didtica tem origem grega e da famlia do verbo

, cujo sentido principal fazer aprender, ensinar, instruir.

41

Levando em considerao todo o trabalho panormico de West, ao apresentar-nos a

tradio da literatura sapiencial do Oriente, podemos perceber que o ponto comum entre todos

aqueles trabalhos encontra-se na relao docente-discente que se estabelece entre os enunciadores

e seus respectivos destinatrios. claro que todo texto pressupe a presena de um enunciador e

a de um destinatrio. Contudo, um texto didtico propriamente dito apresenta essa inter-relao

de forma peculiar. Ele implica a presena de um enunciador dotado de uma autoridade discursiva

que legitime a sua condio de mestre, possuidor do saber. Por outro lado, implica tambm a

presena de um destinatrio que assuma a posio de um discpulo, aquele que assimilar o

saber transmitido pelo mestre.

Podemos dizer, portanto, que essa relao de ensino-aprendizagem a primeira coisa que

se espera de uma obra didtica, isto , uma das regras que orientam a compreenso do

pblico. O pblico tambm pressupe que todo mestre j tenha sido anteriormente exposto ao

conhecimento e que, agora, o seu trabalho o de pass-lo adiante. E esse trabalho no nada

mais nada menos que um processo no qual o mestre age intencionalmente sobre os seus alunos. O

propsito do mestre o de interferir no comportamento de seus alunos. por esse motivo que o

discurso didtico caracterizado pelos estudiosos (cf. a seguir) como um discurso autoritrio.

um discurso de quem ordena.

Alm dessa relao, outros aspectos podem ser levados em conta tendo em vista o

horizonte de expectativa que um texto produz. Toda mensagem, alm de sua intencionalidade,

dotada de um contedo especfico, isto , de um objeto de discurso. No caso do discurso didtico,

o que habitualmente se espera que esse contedo seja um ensinamento, um saber, uma

informao, uma instruo. Nota-se que, nesse discurso, h um vnculo muito forte entre

intencionalidade e contedo, pois ele tem a pretenso de transmitir informaes.

Outra questo que se espera de uma situao didtica a questo das estratgias

metodolgicas. Como o professor faz para transmitir o seu contedo? Qual a maneira pela qual

esse contedo recortado? Como o professor organiza e encadeia os seus conceitos? Mais

precisamente, de que maneira um professor consegue promover a aprendizagem de seus alunos?

Essas so as caractersticas bsicas que julgamos constituir o horizonte de expectativa

de um discurso didtico. A seguir, apresentaremos dois estudos sobre esse tipo de discurso, que

42

serviro de fundamentao terica essa nossa reflexo. No primeiro deles, A linguagem e seu

funcionamento: As formas do discurso (1987), a autora Eni Orlandi estabelece o percurso pelo

qual todo discurso didtico submetido. J no segundo, A enunciao didtica: o leitor

enunciatrio dos manuais brasileiros de semitica (2006), Jean Cristus Portela discorre a

respeito da enunciao didtica e da construo dos sujeitos no discurso didtico. Os princpios

dessas duas propostas nortearo a nossa anlise do poema de Hesodo.

43

2.3. O percurso do discurso didtico / A enunciao didtica

Para tratar do caminho percorrido pelo discurso pedaggico, Eni Orlandi, em sua obra A

linguagem e seu funcionamento: As formas do discurso (1987), prope a existncia de trs tipos

de discurso: o discurso ldico, o discurso polissmico e o discurso autoritrio. A seu ver, o

discurso pedaggico teria o funcionamento que caracteriza o discurso autoritrio (p. 15).

Antes de discorrer a respeito desses trs tipos de discurso, ela assegura que h dois

processos constitutivos da tenso que o texto produz. O primeiro processo, o parafrsico,

ocorre quando h um retorno constante a um mesmo dizer segmentado; o segundo, o polissmico,

se d quando h uma tenso que aponta para o rompimento. Depois, Orlandi esclarece que a

polissemia um processo que representa a tenso constante estabelecida pela tenso entre

homem e mundo; manifestao da prtica e do referente na linguagem. Assim, o discurso se

forma a partir da tenso entre parfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o texto e

o contexto histrico-social (1987, p. 27). Sendo assim, no discurso ldico, h uma expanso da

polissemia porquanto o seu referente est exposto presena de interlocutores. No discurso

polissmico, a polissemia controlada visto que os interlocutores procuram direcionar, cada um

por si, o referente do discurso. J no discurso autoritrio, h uma conteno da polissemia, pois

o agente do discurso se pretende nico e oculta o referente pelo dizer; no h realmente

interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida (o exagero a

ordem no sentido em que se diz isso uma ordem, em que o sujeito passa a instrumento de

comando) (1987, p. 27). Dentre esses discursos, o do tipo autoritrio foi o objeto de nossa

investigao, pois nele que, segundo Orlandi, se insere o discurso pedaggico.

Enquanto discurso autoritrio, o discurso pedaggico aparece como discurso do poder, isto , como em R. Barthes, o discurso que cria a noo de erro e, portanto, o sentimento de culpa, falando nesse discurso, uma voz segura e auto-sufuciente. (Orlandi, 1987, p. 17)

Em um esquema (1987, p. 16), a autora explica como se constitui o percurso da

comunicao pedaggica:

44

Quem Ensina O Qu Para Quem Onde

Imagem do

Professor

Inculca Imagem do referente

Metalinguagem

(Cincia/Fato)

Imagem do aluno

Escola

Aparelho

Ideolgico

Conforme diz a autora, ensinar aparece como inculcar, porque se trata de uma atividade

muito maior do que apenas informar, explicar, influenciar ou persuadir. Enquanto o aluno for

aluno, algum resolve o que ele deve aprender, ele ainda no sabe o que verdadeiramente lhe

interessa. Isso a inculcao (1987, p. 17). Orlandi acrescenta, ainda, que o discurso

pedaggico caracterizado por quebrar as leis do discurso (lei do interesse e lei da utilidade),

pois estabelecida nele uma relao hierrquica entre quem ordena e quem obedece; quem

interroga e quem responde; quem ensina e quem aprende.

A quebra destas leis garantida pela hierarquia validada em qualquer situao de ensino-

aprendizagem. O professor, servindo-se da autoridade que lhe garantida, cria uma lgica

diferente daquela que comum nos outros tipos de discurso. Isso pode ser explicvel pelo fato de

o contedo referencial do discurso pedaggico ser substitudo por contedos ideolgicos,

seguindo-se a lgica do porque . Esse fato o que a autora chama de estabelecimento da

cientificidade do discurso pedaggico. Para Orlandi, esse estabelecimento ocorre atravs de

dois pontos: da metalinguagem e do professor-cientista. Atravs da metalinguagem, o que se

visa a construo da via cientfica do saber que se ope ao senso comum, isto , constri-se a o

reino da objetividade do sistema. J o professor se apropria do cientista e, conforme diz a

autora, se confunde com ele sem que se explicite sua voz de mediador. Ocorre, ento, um

apagamento do modo pelo qual esse professor apropriou-se do conhecimento do cientista,

tornando-se ele prprio possuidor daquele conhecimento. A voz do saber fala no professor

(1987, p. 19). Para Orlandi, ento, o aluno o que no sabe e o professor aquele que tem a

posse do saber.

Jean Cristus Portela, em seu estudo A enunciao didtica: o leitor enunciatrio dos

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manuais brasileiros de semitica (2006), entende a didtica como um fazer saber que se realiza

ao longo de uma experincia intersubjetiva, entre um sujeito didata e um sujeito aprendiz (p. 11).

Esse sujeito didata possui uma intencionalidade didtica (p. 25). Segundo o autor, quem fala e

para quem se fala o que determina o como se fala, ou seja, determina como o texto diz o que diz

(p. 15).

Outra caracterstica do discurso didtico , de acordo com Greimas (apud Portela, 2006, p.

22), a competencializao, pois esse discurso prev um aumento desejado e programado da

competncia do leitor em um determinado domnio: o que permite distinguir a didtica no

mbito dos outros discursos persuasivos. (p. 12).

O autor tambm entra na questo da tipologia do sujeito aprendiz (2006). Citando

Greimas e Fontanille, ele afirma que o discurso didtico est fundado sobre a negao do saber de

q