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FUNDAÇÃO FACULDADES INTEGRADAS DE ENSINO SUPERIOR DO MUNÍCIPIO DE LINHARES – FACELI MARIA DA PENHA DOS ANJOS ALVES A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO NEOCONSTITUCIONALISMO 9

monografia

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FUNDAÇÃO FACULDADES INTEGRADAS DE ENSINO SUPERIOR DO

MUNÍCIPIO DE LINHARES – FACELI

MARIA DA PENHA DOS ANJOS ALVES

A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO

NEOCONSTITUCIONALISMO

LINHARES

2009

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MARIA DA PENHA DOS ANJOS ALVES

A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO

NEOCONSTITUCIONALISMO

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Fundação Faculdades Integradas de Ensino Superior do Município de Linhares - FACELI, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Msc. Antônio Bezerra Neto.

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LINHARES

2009

MARIA DA PENHA DOS ANJOS ALVES

A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO

NEOCONSTITUCIONALISMO

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Fundação Faculdades Integradas de Ensino Superior do Município de Linhares - FACELI, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovada em 26 de novembro de 2009.

COMISSÃO EXAMINADORA

__________________________________________________

Professor. Msc. Antônio Bezerra NetoFundação Faculdades Integradas de Ensino Superior do Município de LinharesOrientador

__________________________________________________

Professor (a) Msc. Zilda Maria Fantin MoreiraFundação Faculdades Integradas de Ensino Superior do Município de Linhares

__________________________________________________

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Professor (a) Msc. Jaqueline RochaFundação Faculdades Integradas de Ensino Superior do Município de Linhares

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A memória da minha mãe, Maria da Penha, que me deixou um

legado impossível de ser-me arrancado: A educação.

A Gabryel, Gustavo e Luciano, razão precípua da minha

condição de existência que me fizeram sentir a essência da

vida que é saber amar.

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Agradeço com todo o meu coração ao meu amado Deus,

Jeová, que me concedera gratuitamente todas as coisas

pedidas, sem nada exigir em troca a não ser o meu amor.

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“É inútil dizer que nos encontramos aqui numa estrada

desconhecida; e, além do mais, numa estrada pela qual

trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os

que enxergam com clareza mas têm os pés presos, e os que

poderiam ter pés livres mas têm os olhos vendados”.

Norberto Bobbio, em a Era dos Direitos.

RESUMO

Este trabalho analisa, à luz do Neoconstitucionalismo, a questão da religião das

Testemunhas de Jeová que se recusam a receber transfusões de sangue por

questões unicamente religiosas. Demonstra que tal recusa é uma expressão do culto

religioso que professam e, portanto, um direito fundamental assegurado pela

Constituição Brasileira de 1988, que deve ser respeitado pelo aplicador do direito ao

decidir o caso concreto, utilizando-se dos princípios da razoabilidade,

proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, autodeterminação bem como do

direito à liberdade religiosa e a privacidade, levando-se em conta a existência de

medicamentos e técnicas alternativas ao uso medicinal do sangue. Os resultados

levam a concluir que, na recusa à transfusão de sangue, por parte das Testemunhas

de Jeová, não existe colisão entre o Direito à vida e o Direito à liberdade religiosa,

sendo que a decisão que autoriza a transfusão de sangue em paciente Testemunha

de Jeová, mesmo após sua declaração de vontade expressa, firmada em documento

legalmente válido é uma grave violação de direitos humanos fundamentais. A

pesquisa exploratória e o método dedutivo norteiam o estudo permitindo que com

argumentação eficiente se atinja a conclusão almejada. É o início de uma

caminhada que objetiva eliminar a discriminação e o preconceito velado introduzido

na sociedade por meio de reportagens de cunho depreciativo acerca da atitude das

Testemunhas de Jeová.

Palavras-Chave: Testemunhas de Jeová. Transfusão de Sangue. Tratamentos

Alternativos. Neoconstitucionalismo. Pós-positivismo. Proporcionalidade. Razoabili-

dade. Direitos Humanos. Dignidade Humana.

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ABSTRACT

Reviews the light of Neoconstitucionalismo the issue of religion of Jehovah's wit-

nesses who are refusing to receive blood transfusions, religious matters only.Demon-

strates dab such refusal is an expression of religious cults dab profess and, there-

fore, fundamental right guaranteed by the Brazilian Constitution of 1988, which must

be respected by the applicator this to decide the case using the principles of fairness

algorithms, proportionality, human dignity, self-determination and the right to religious

freedom and privacy, taking into account the existence of medicines and medical

technical alternatives to the use of blood. The results that the refusal to blood transfu-

sion by Jehovah's witnesses not the collision between the right to life and the right to

religious freedom, and the decision authorising the blood transfusion Jehovah wit-

ness in patient, even after their Declaration of intention expressed, firmed in docu-

ment legally valid is a serious violation of fundamental human rights.Exploratory re-

search and deductive guided study allowing with arguments efficient reaches the

conclusion. Is the beginning of the hiking Parker delete discrimination and prejudice

veiled introduced in society through reportage imprint derogatory about the attitude of

the Jehovah's witnesses.

Keywords: Jehovah's witnesses. Blood transfusion. Alternative treatments. Neocon-

stitucionalismo. Post-graduate positivism. Proportionality. Reasonableness. Human

rights. Human dignity.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................9

2 OS VÁRIOS CONCEITOS RELIGIOSOS E OS DILEMAS DO MUNDO

MODERNO.................................................................................................................13

2.1 SENTIMENTO DE RELIGIOSIDADE NA CONTEMPORANEIDADE..................13

2. 2 A RELIGIÃO NA MODERNA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.................15

3 A EXPRESSÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA MANIFESTADA NOS MUITOS

CONCEITOS DOUTRINAIS DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ...............................18

3.1 A SAGRAÇÃO DO SANGUE PARA O UNIVERSO DOS ADEPTOS DAS

PRÁTICAS DOUTRINAIS DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ...................................18

3.2 TRATAMENTOS ALTERNATIVOS À TRANSFUSÃO DE SAGUE....................23

4 NEOCONSTITUCIONALISMO – UMA PREMISSA ATUAL QUE DEVE SER

SENTIDA PELO APLICADOR DO DIREITO DIANTE DO CASO CONCRETO.......32

4.1 OS NOVOS RUMOS DA HERMENÊUTICA JURÍDICA E A APLICAÇÃO DO

DIREITO NA MODERNIDADE...................................................................................32

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4.2 A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO NEOCONSTITUCIONALISMO..................39

5 CONCLUSÃO.........................................................................................................47

6 REFERÊNCIAS.......................................................................................................50

1 INTRODUÇÃO

O tema em foco suscita uma questão relevante no contexto da sociedade moderna,

o grupo religioso denominado Testemunhas de Jeová se recusa terminantemente a

receber transfusões de sangue, mesmo sob a alegação médica de iminente risco de

morte. Tal recusa desperta, não raro, a atenção da mídia que, na maioria das vezes,

de forma sensacionalista, veicula informações incompletas, fazendo surgir em

determinada parcela da sociedade, certa repulsa por esse grupo religioso, rotulado

como fanático, suicida, assassino de crianças e outros termos pejorativos e de

cunho preconceituoso.

Tal visão preconceituosa é equivocada, pois as Testemunhas de Jeová esperam

que se lhes administrem alternativas médicas e tratamentos sem sangue que

consideram seguras e eficazes e que são aceitáveis do seu ponto de vista religioso.

Elas prezam a vida, e sua firme posição contra o uso inadequado do sangue não

significa que, em caso de iminente risco de morte ensejado pela necessidade de

transfundir sangue, ficarão inertes esperando que o pior aconteça, tanto é que têm

promovido o progresso científico de modo que a comunidade médica em geral já

reconhece que a atitude das Testemunhas de Jeová permitiu grandes avanços nas

descobertas e aprimoramentos de técnicas alternativas ao uso do sangue.

As Testemunhas de Jeová defendem suas crenças de maneira respeitosa,

buscando, junto aos médicos, uma solução alternativa ao uso do sangue que

conduza a um resultado positivo e satisfatório para o médico e o paciente, e que se

harmonize com suas crenças.

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Assim, cumpre aos detentores do saber jurídico empreender esforços a fim de

fomentar discussões acerca dos valores que tal questão encerra, pois, sendo o

Direito uma ciência social com bases filosófica, sociológica, ética e moral, cabe a

seus operadores acirrar as discussões acerca de fatos sociais relevantes para a

comunidade em geral, fornecendo soluções coerentes aos conflitos de interesses

fundamentais, garantindo a concretização dos direitos das minorias, como ocorre no

caso das Testemunhas de Jeová.

Com isso em mente, a seguinte problemática é suscitada a nortear o presente

estudo: O paciente que recusa transfusão de sangue com base em princípios

religiosos, mesmo em iminente risco de morte, encontra respaldo na legislação

brasileira? Além disso, como o poder judiciário lida com a recusa da Associação das

Testemunhas Cristãs de Jeová de recusar tratamento médico à base de sangue?

Neste ínterim, tem-se a acanhada ambição de provar que a recusa à transfusão de

sangue, por parte das Testemunhas de Jeová, encontra respaldo na Constituição

Federal de 1988 e em todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo totalmente

ilegal, imoral e inadequada, a decisão que autoriza a transfusão forçada em paciente

Testemunha de Jeová, mesmo após sua declaração de vontade expressa em

documento legalmente válido. Esse é, em princípio, o objetivo do presente estudo.

Ressalta-se que muito embora haja aqueles que rejeitam as transfusões por outros

motivos, as Testemunhas de Jeová o fazem por uma questão estritamente religiosa.

Sua consciência treinada pela bíblia não lhes permite violar leis, decretos e

princípios promulgados por Deus. Têm bem arraigado valores morais, religiosos e

éticos ao qual se apegam firmemente.

Pretende-se ainda tecer uma formulação teórica, sob o prisma do

Neoconstitucionalismo, que permita solucionar os conflitos de interesses

fundamentais envolvidos na questão das Testemunhas de Jeová de recusar a

transfusão de sangue mesmo sob alegação médica de iminente risco de morte.

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Para tanto recorrer-se-á ao método dedutivo, visando ao caminho das

consequências, pois, segundo Pádua (2000, p. 46) “(...) uma cadeia de raciocínios

em conexão descendente, ou seja, do geral para o particular, leva à conclusão”.

Com esse método, partindo-se de teorias e leis gerais, pode-se chegar à

determinação ou previsão de fenômeno ou fatos particulares. Assim, urge percorrer

caminhos fundamentais como os do pós-positivismo, passando pelos princípios da

ponderação de interesses fundamentais, da razoabilidade, da proporcionalidade, da

dignidade da pessoa humana, da liberdade religiosa, o direito à privacidade e à

autodeterminação bem como à existência de técnicas e medicamentos alternativos,

ao uso do sangue, de forma a demonstrar que a recusa das Testemunhas de Jeová

não se encontra em rota de colisão com o direito à vida e a decisão judicial que

permite a transfusão forçada, sob essa alegação, constitui-se em grave agressão

aos direitos humanos fundamentais tutelados na Constituição Federal de 1988.

Anseia-se, ainda que de forma modesta e mesmo que em pequena escala,

possibilitar uma visão menos preconceituosa por parte de acadêmicos das cadeiras

de medicina, enfermagem, serviço social, direito, bem como da comunidade médica,

jurídica e da sociedade em geral acerca do assunto, a fim de tornar possível a

concretização do direito de que é detentora essa pequena parcela da sociedade, a

saber, de ter respeitado e atendido sua súplica pelo direito a expressar sua liberdade

de culto também na escolha de tratamento médico.

Tais pretensões surgiram a partir das seguintes hipóteses previamente

estabelecidas:

O artigo 5º da Constituição de 1988 permite uma interpretação favorável à

organização das Testemunhas Cristãs de Jeová frente à decisão de não aceitar

transfusões de sangue com base em princípios religiosos.

O Neoconstitucionalismo é uma premissa atual que deve ser sentida pelo poder

judiciário ao decidir o caso concreto.

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A decisão que obriga a transfusão em paciente Testemunha de Jeová é uma

gravíssima violação de direitos humanos fundamentais.

A fim de restar comprovada a veracidade de tais afirmativas no primeiro capítulo é

suscitada a importância que o sentimento de religiosidade e a religião simbolizam

para o indivíduo, bem como o tratamento constitucional dado ao tema. Já no

segundo capítulo destaca-se a relevância da questão da santidade do sangue para

os adeptos da religião das Testemunhas de Jeová bem como a existência de

medicamentos e técnicas que substituem o uso medicinal do sangue. O terceiro

capítulo analisa o caso das Testemunhas de Jeová sob a ótica

Neoconstitucionalista, o leva a concluir que inexiste, neste caso específico, colisão

entre o direito à vida e à liberdade religiosa.

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2 OS VÁRIOS CONCEITOS RELIGIOSOS E OS DILEMAS DO MUNDO

MODERNO

2.1 O SENTIMENTO DE RELIGIOSIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Nas ultimas décadas a humanidade assistiu impressionada a inúmeras

transformações. Em todos os campos e áreas o saber humano tem evoluído e

descobertas cada vez mais incríveis têm sido feitas pelo homem em diversos

campos, tais como a produção de alimentos geneticamente modificados

(transgênicos), a clonagem de animais, o uso medicinal do sangue, o uso de células

tronco embrionárias, entre outros. Entretanto, apesar dos benefícios trazidos por

algumas dessas descobertas, como a sociedade humana esta estruturada sobre

princípios de moral, ética e religiosidade, surgem questionamentos acerca da

possibilidade de sua concretização sem que se violem preceitos morais e éticos

milenarmente inseridos na sociedade. Ademais o mundo moderno, com toda a sua

tecnologia, tem produzido cada vez mais catástrofes, e questões ainda mais

polêmicas têm gerado discussões e desentendimentos entre diversos segmentos da

sociedade. No Brasil especula-se acerca da possibilidade de autorização da lei para

práticas condenáveis do ponto de vista religioso tais como a legalização ou a

liberação do uso de drogas e entorpecentes, o reconhecimento da união

homoafetiva, a legalização da prática de aborto, a eutanásia e a pena de morte.

Tais dilemas, consequência de uma sociedade dita desenvolvida e politizada, trazem

à baila uma questão fundamental acerca do modo como o “Originador” da vida

encara tais questões. Será que com a evolução da sociedade Deus mudou o seu

conceito sobre a vida, a moralidade, a fé, a obediência e ao uso correto do sangue?

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Na Bíblia Sagrada (1984, p. 1280), Deus fornece a resposta em Malaquias 3:6 “Pois

eu sou Jeová; não mudei”.

A história é marcadamente interessante diante dos fatos que se acumulam na

chamada “trajetória” humana.

O Holocausto (entenda-se por Holocausto o termo utilizado, após a Segunda Guerra

Mundial, especificamente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas que

faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista fundado

por Adolf Hitler) e a destruição das sinagogas, em toda a Alemanha, foram

praticados em nome de Deus. Israelenses e Palestinos lutam há muitos anos pelo

controle da Cidade de Jerusalém, e se matam em nome da Fé. Os Talibãs e seus

“fanáticos suicidas” praticam o terrorismo em grande parte do Mundo, para

exterminar os “infiéis” cometem todo tipo de atrocidade como, por exemplo, o

atentado de 11 de Setembro, supostamente praticado também por “ordem de Deus”

(LIMA, 2009, p. 1).

Esses são apenas alguns exemplos de que o sentimento de religiosidade às vezes

pode refletir negativamente na sociedade e trazer conseqüências desastrosas,

durante um discurso do Raichsteg em 1936, Adolf Hitler ao tentar justificar o

massacre dos Judeus declarou o seguinte “Acredito hoje que estou agindo de

acordo com o Criador Todo-Poderoso. Ao repelir os Judeus, estou lutando pelo

trabalho do Senhor” (LIMA, 2009, p. 1).

A despeito disso, porém o sentimento de religiosidade também é capaz de produzir

resultados positivos, como por exemplo, a ajuda humanitária prestada por

organizações religiosas a população de Santa Catarina durante o período de cheias

que assolaram o estado no ano de 2008.

A própria definição de religião indica que o sentimento de religiosidade se reflete de

maneira diversificada em cada individuo tendo em vista seu caráter subjetivo.

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Ferreira (1999 p. 1737) define religião como sendo “a crença na existência de uma

força ou forças sobrenaturais, consideradas como criadoras do universo, e que

como tal devem ser adoradas e obedecidas”. (grifo nosso).

Juridicamente “a religião é um complexo de princípios que dirigem os pensamentos,

ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o

dogma, a moral, a liturgia e o culto” (MORAES, 2002, p. 73).

Jean Rivero (apud LEIRIA, 2009, p. 5), lança luz sobre a definição do que seja

religião:

(A religião) afirma a existência de realidades sobrenaturais, a propósito das quais o homem está em situação de dependência: a religião organiza as relações que esta dependência postula. O crente adere a esta informação, aceita esta organização de suas relações com o sobrenatural. Em vista disso, sua adesão transborda largamente a simples profissão de uma opinião num outro domínio, pois ela comporta não uma mera preferência pessoal e subjetiva, mas a crença numa realidade considerada como objetiva transcendente e superior a todas as outras. Enfim, a religião, e notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total. Na medida em que elas lhe fornecem uma explicação global do seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação. Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre toda ordem humana, conduzem cada crente consequente consigo mesmo a preferir, em caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta.

Tais definições indicam a importância da religião para o individuo que busca se

orientar pelos dogmas e crenças que livremente escolhe e decide professar,

passando a viver de acordo com os princípios morais e éticos por ela delineados.

Dessa forma a religião nada mais é do que um modo de vida que cada um elege a

fim de se deixar guiar e obedecer.

2.2 A RELIGIÃO NA MODERNA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A analítica Constituição Federal Brasileira assegura o direito a liberdade de crença

no artigo 5º, entre os Direitos e Garantias Fundamentais, está entre os direitos de

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primeira dimensão ou direitos da liberdade (BONAVIDES, 2008, p. 563), que permite

ao individuo o seu pleno exercício sem a intervenção do Estado, “(...) enquanto não

for contrário à ordem, tranqüilidade, e sossego públicos, bem como compatível com

os bons costumes” (MORAES, 2002, p. 75).

O artigo 5º da Carta de 1988 no inciso VI consagra a liberdade de consciência e de

crença o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas

liturgias, já o inciso VII garante a assistência religiosa nas entidades civis e militares

de internação coletiva e o VIII assegura a não-privação de direitos por motivo de

crença religiosa, convicção filosófica ou política. A Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada sob a proteção de Deus, conforme

descrito em seu preâmbulo, apesar de o constituinte declarar o Brasil um Estado

laico ou leigo (sem religião oficial), o que indica que os valores espirituais religiosos

também constituem a base da República do Estado Brasileiro. De sorte, a idéia de

uma Constituição secular em plenitude ainda não faz parte de nossas tradições.

(BRASIL, 1988, p)

Na visão de José Afonso da Silva (2001, p. 251-254) a liberdade religiosa se inclui

entre as liberdades espirituais e subdivide-se em:

a) Liberdade de crença, que garante a liberdade de escolha da religião, a liberdade

de aderir a qualquer organização religiosa, o direito a mudar de religião ou ainda a

liberdade não seguir religião alguma;

b) Liberdade de culto, que consiste no direito ao pleno exercício, sem

condicionantes, da fé professada. É a liberdade de expressar em casa ou em público

as tradições, cerimônias, princípios, e ritos da religião escolhida;

c) Liberdade de organização religiosa, que diz respeito à possibilidade de

estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado.

Ainda Sobre a Liberdade Religiosa Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1994, p. 20)

destaca:

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Tenha se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se explicita a liberdade... Mais do que isto, é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é ele a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade.

E Celso Ribeiro Bastos, lançando luz aos aspectos que tal liberdade encerra afirma

que (BASTOS, 2002, p. 187):

A religião não pode contentar-se com sua dimensão espiritual, isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai procurar uma externação (...) Poder-se-ia inserir, dentro da liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem qualquer opção religiosa do indivíduo. O culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida, independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

Assim, a liberdade de religião se resume ao direito de crer naquilo que a consciência

auto determina, a exercer os preceitos dessa auto determinação e externá-la por

meio de cultos religiosos e suas liturgias, da literatura, da musica ou da escolha de

tratamentos médicos.

Em relação a esse último aspecto o desenvolvimento desta atividade científica trará

a lume algumas respostas fundamentais, já que a proposição é parte da

problematização.

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3 A EXPRESSÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA MANIFESTADA NOS

MUITOS CONCEITOS DOUTRINAIS DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

3.1 A SAGRAÇÃO DO SANGUE PARA O UNIVERSO DOS ADEPTOS DAS

PRÁTICAS DOUTRINAIS DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

Segundo o livro Raciocínios a base das escrituras (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA

1989, p.384-393), publicado pelas Testemunhas de Jeová, a história moderna desse

grupo religioso iniciou-se com a formação de um grupo de estudo bíblico em

Allegheny, Pensilvânia, EUA, nos primórdios da década de 1870. No começo, eram

conhecidas apenas como Estudantes da Bíblia, mas, em 1931, adotaram o nome

bíblico de Testemunhas de Jeová. Suas crenças e seus métodos não são novos,

são antes uma restauração do cristianismo do primeiro século.

A revista A Sentinela de 15 de abril de 1975 páginas 245 a 247 declara o seguinte a

respeito das Testemunhas de Jeová:

(...) reconhecem que o cristianismo não e apenas uma crença — mas que é um modo de vida. Na realidade, nos tempos apostólicos, o cristianismo foi chamado de “O Caminho”. (...) Todos os princípios excelentes da Bíblia precisam ser aplicados na vida do cristão, no lar, no negócio — em todas as ocasiões. (...) Em suma, as Testemunhas de Jeová são diferentes em que se apegam de perto aos ensinos da Bíblia. Rejeitam a filosofia mundana e as tradições da cristandade. (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA 1975, p.245-247)

Os que professam a religião das Testemunhas de Jeová praticam suas crenças na

vida diária, obedecer às leis Deus passa a fazer parte de sua rotina, daí

considerarem sua religião um “modo de vida”. Aqueles que se desviam deste

caminho, insistindo em violar as leis justas de Deus por imoralidade, furto, calúnias,

ensino de doutrinas falsas, causar divisões ou seitas, são expulsos de suas

congregações.

Curioso ressaltar que as Testemunhas de Jeová não professam a doutrina da

imortalidade da alma, do Inferno de fogo, bem como a existência de uma Trindade,

dentre os principais ensinamentos doutrinais deste grupo religioso destaca-se a

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crença na santidade do sangue, para elas introduzir sangue no corpo pela boca ou

pelas veias viola as leis de Deus.

Tal doutrina se baseia em passagens bíblicas tais como a registrada no livro de

Gênesis, capitulo 9 versículos 3 e 4 (BÍBLIA SAGRADA, 1984 p. 118) onde após o

dilúvio global, quando Deus permitiu aos humanos comer carne deu também a

seguinte ordem a Noé sua família: “Todo animal movente que está vivo pode servir-

vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo.

Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer”.

A lei dada ao povo Hebreu exprimia um mandamento similar. Em Levítico capítulo

17 versículo 14 (BÍBLIA SAGRADA, 1984 p. 118) está registrado a seguinte

passagem:

Pois a alma de todo tipo de carne é seu sangue pela alma nele. Por conseguinte, eu disse aos filhos de Israel: “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado [da vida].”

Segundo crêem as Testemunhas de Jeová, conforme descrito em um folheto

intitulado “As Testemunhas de Jeová e a Questão do Sangue” (ASSOCIAÇÃO

TORRE DE VIGIA, 1977, p. 6).

(...) este regulamento divino não era simples restrição dietética, tal como o conselho dum médico a um paciente para que evite o sal ou as gorduras. O “Criador” vinculou ao sangue um princípio moral de suma importância. Ao derramar todo o sangue que pudesse ser razoavelmente escoado, Noé e seus descendentes manifestariam seu respeito pelo fato de que a vida procedia do Criador e dependia dele.

Sobre a aplicação desta lei divina se estender ao uso do sangue humano o folheto

citado (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 9) prossegue:

Será que o mesmo princípio se aplicaria ao sangue humano? Sim, com ainda maior força. Pois Deus prosseguiu dizendo a Noé: “Além disso, exigirei de volta vosso sangue das vossas almas (...) Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue, pois à imagem de Deus fez ele o homem.” (...) se o sangue animal tinha significado sagrado para Deus, obviamente o sangue humano tinha um significado sagrado de ainda maior valor.

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Ainda explicando sobre a possibilidade de esta lei se aplicar ao sangue de humanos

o folheto citado (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 10) afirma que é

perfeitamente compreensível visto que a lei de Deus proibia o consumo de “sangue

de qualquer tipo de carne”.

Alguns questionam a validade e aplicabilidade desta lei em nossos dias, até mesmo

pelo fato de que existem instituições religiosas que apóiam as transfusões e

incentivam a doação de sangue, para as Testemunhas de Jeová, porém existe base

para se crer que ela continua em vigor conforme descreve o folheto As Testemunhas

de Jeová e a Questão do Sangue (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p. 7):

Muitos peritos bíblicos reconhecem que Deus delineou aqui um regulamento que se aplicava, não apenas a Noé e sua família achegada, mas a toda a humanidade desde esse tempo — em realidade, todos os que vivem desde o Dilúvio pertencem à família de Noé. Por exemplo, João Calvino, teólogo e reformador, reconheceu quanto à proibição do sangue que “esta lei foi dada ao mundo inteiro, logo depois do dilúvio”. E Gerhard Von Rad, professor da Universidade de Heidelberg, refere-se a Gênesis 9:3, 4, como “um estatuto para toda a humanidade”, porque toda a humanidade descende de Noé.

Sim, para as Testemunhas de Jeová toda humanidade descende do patriarca Noé e,

portanto, está sujeita a lei que lhe fora dada. Existe, porém, ainda uma questão a ser

respondida. A morte sacrificial de Cristo não teria posto fim a obrigatoriedade de

observância às leis do Velho Testamento?

De acordo com a crença das Testemunhas de Jeová após a morte sacrificial de

Jesus Cristo os adoradores verdadeiros não mais estavam obrigados a cumprir a lei

mosaica. Assim as restrições dietéticas da Lei dada ao povo Judeu, tais como as

que proibiam comer gordura ou a carne de certos animais, não eram mais

obrigatórias, entretanto, segundo descrito no folheto As Testemunhas de Jeová e a

Questão do Sangue (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977, p.11) em 49 da era

cristã, surgiu uma controvérsia entre os cristãos do primeiro século quanto a se os

não-judeus que se convertessem ao cristianismo teriam ou não que ser

circuncidados, tal polemica foi resolvida durante uma conferência dos apóstolos e

anciãos de Jerusalém, que serviam como o corpo central de anciãos para todos os

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cristãos. Este concílio apostólico decidiu que os não-judeus que aceitaram o

cristianismo não tinham de ser circuncidados.

Ainda durante a discussão, Tiago, meio-irmão de Jesus, trouxe à atenção do concílio

outras coisas essenciais que ele julgou importante que incluíssem em sua decisão

em sua declaração ele se referiu aos escritos de Moisés, que revelavam que,

mesmo antes de ser dada a Lei, Deus desaprovava as relações sexuais imorais, a

idolatria e o comer sangue, o que incluiria comer a carne, que continha sangue, de

animais estrangulados. Assim a decisão proferida pelo concilio nesta convenção foi

enviada por carta a todas as igrejas cristãs do primeiro século. O seu conteúdo foi

registrado no livro bíblico de Atos no capitulo 15, versículos 28 e 29(BÍBLIA

SAGRADA, 1984, p. 1988).

“Pareceu bem ao espírito santo e a nós mesmos não vos acrescentar nenhum fardo adicional, exceto as seguintes coisas necessárias: de vos absterdes de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação. Se vos guardardes cuidadosamente destas coisas, prosperareis.”

Que é a base principal da crença das Testemunhas de Jeová na atualidade, para

elas tal questão não fosse tão importante para Deus, não estaria repetida tantas

vezes nas Escrituras Sagradas. Conforme declaram não se trata de opinião pessoal,

pois, muito embora os cristãos não estivessem sob a lei mosaica era necessário

abster-se de sangue, e tal decisão fora tomada em harmonia com o Espírito Santo

de Deus. Assim estão resolutas de que (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1977,

p.17):

Sob a orientação do espírito santo, o concílio apostólico decretou que os cristãos que desejam ter a aprovação de Deus têm de ‘abster-se do sangue’, como Deus exige desde os dias de Noé. Este conceito bíblico era aceito e seguido pelos cristãos primitivos, mesmo quando fazê-lo lhes custava a vida. E, através dos séculos, tal requisito tem sido reconhecido como “necessário” para os cristãos. Assim, a determinação das Testemunhas de Jeová de abster-se do sangue se baseia na Palavra de Deus, a Bíblia, e é apoiada pelos muitos precedentes na história do cristianismo.

As Testemunhas de Jeová salientam que as pessoas que reconhecem sua

dependência do “Criador” e “Dador da Vida” devem estar determinadas a obedecer

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Page 23: monografia

às suas ordens. Esta é a posição firme que assume este grupo religioso, que hoje

ascende a 7.124.443 de seguidores em 236 países, conforme Anuário

(ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 2009 p. 102). Estão plenamente convictas de

que é correto obedecer à lei de Deus que ordena a abstenção do sangue. De acordo

com suas próprias convicções sustentam que não seguem um capricho pessoal ou

algum conceito fanático e sem base e que por obediência à autoridade suprema do

universo, Jeová é que se recusam a introduzir sangue em seus sistemas, quer seja

por meio de ingestão ou transfusão.

Portanto a questão do sangue para as Testemunhas de Jeová encerra os princípios

mais fundamentais sobre os quais elas, como cristãos, baseiam sua vida, segundo

afirmam o que está em jogo é sua relação com seu Criador e Deus e crêem de todo

o coração que macular esta relação é pior que a própria morte. Foi assim que se deu

no caso de Adrian, um jovem Testemunha de Jeová, de 14 anos do Canadá, que

teve sua história publicada na Revista Despertai! De 22 de maio de 1994,

diagnosticado com leucemia ele recusou ser tratado com sangue, defendo sua

posição escreveu o seguinte ao juiz da Suprema Corte de Terra Nova, Canadá:

A pessoa medita muito sobre as coisas quando está doente, e quando está com câncer, a pessoa sabe que pode morrer e pensa nisso. Eu não concordo em receber sangue, ou em permitir que seja usado; de modo algum. Sei que posso morrer se não for usado sangue. Mas minha decisão é esta. Ninguém me forçou a isso. Penso que se me for dado sangue isso seria como que me violentar, molestar meu corpo. Rejeito meu corpo nessas condições. Não posso pagar esse preço. Não desejo tratamento algum que use sangue, nem mesmo que inclua essa possibilidade. Resistirei ao uso de sangue. Por favor, respeitem a mim e a minha vontade. (DESPERTAI!, p. 7)

As Testemunhas de Jeová estão convictas de que a obediência às orientações de

seu “Criador” é para o seu bem duradouro. Têm plena confiança nas palavras de

Jesus no evangelho de João capítulo 11 versículo 25 “Eu sou a ressurreição e a

vida. Quem exercer fé em mim, ainda que morra, passará a viver.”

Por isso, mesmo que o custo imediato de sua decisão seja a perda da vida atual,

tais cristãos estão resolvidos a manterem a sua integridade e obediência naquilo que

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Page 24: monografia

acreditam ser um “decreto divino”, e que faz parte de suas doutrinas e do culto

religioso que professam.

3.2 TRATAMENTOS ALTERNATIVOS A TRANSFUSÃO DE SANGUE

O fato de as Testemunhas de Jeová manter sua posição firme contra o uso do

sangue não significa que são fanáticas ou suicidas, pelo contrário, respeitam a vida

como sendo um bem supremo, um presente dado pelo “Criador” e por isso procuram

preservar ao máximo esta dádiva que receberam. Assim diante dos avanços que a

tecnologia coloca a sua disposição este grupo religioso se engajou na luta junto a

médicos e cientistas na busca por medicamentos e técnicas que pudessem substituir

o uso medicinal do sangue, afim de que pudessem encontrar uma terapia que se

harmonizasse com sua doutrina, de sagração do sangue.

Seu objetivo é permitir a manutenção da vida sem violar a santidade do sangue além

de proteger-se dos riscos inerentes a transfusões de sangue. Com bom alvitre a

comunidade médica tem colaborado com as Testemunhas de Jeová, e se

empenhado em encontrar substitutos para o sangue.

Acredita-se que o sangue não deve ser a primeira alternativa utilizada pelo médico

para repor a perda sanguínea, tendo em vista os fatores de risco envolvidos em uma

transfusão. Segundo a MSD Brasil (acesso em 04-09-2009):

As reações mais comuns são a febre e as reações alérgicas (hipersensibilidade), que ocorrem em aproximadamente 1 a 2% das transfusões. Os sintomas incluem o prurido, a erupção cutânea, o edema, a tontura, a febre e a cefaléia. São sintomas menos comuns: dificuldades respiratórias, chiados e espasmos musculares.

As reações mais graves são as imediatas imunológicas do tipo hemolíticas, cujos

sinais são inquietação, tremores, febre, vômitos, salivação, taquipnéia, taquicardia e

convulsões.

Apesar da tipagem cuidadosa e do teste de compatibilidade, ainda existem incompatibilidades que acarretam a destruição dos eritrócitos transfundidos logo após a realização do procedimento (reação hemolítica). Geralmente, a

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Page 25: monografia

reação inicia como um mal-estar generalizado ou uma ansiedade durante ou imediatamente após a transfusão. Algumas vezes, o indivíduo pode apresentar dificuldade respiratória, pressão torácica, rubor e dorsalgia intensa. (MSD BRASIL, acesso em 04-09-2009)

Pode ocorrer o fenômeno denominado doença do enxerto-versus-hospedeiro. Nessa

doença, os tecidos do receptor (hospedeiro) são atacados pelos leucócitos do

doador (enxerto). Os sintomas incluem a febre, erupção cutânea, a hipotensão

arterial, a destruição de tecidos e o choque. (MSD BRASIL, acesso em 04-09-2009)

Estes numerosos tipos de reações transfusionais são deveras graves, pois podem

provocar a morte.

Além das possíveis reações infecciosas pesquisas recentes mostram que o perigo

maior encontra-se ma própria transfusão de sangue uma reportagem publicada em

24 de abril de 2008 no Diário da Saúde com o tema “Médicos questionam benefícios

da transfusão de sangue” (acesso em 05-11-2009), destacou que nos últimos 10

anos, uma série de estudos descobriu que, muito longe de salvar vidas, as

transfusões de sangue podem efetivamente colocar em risco a vida dos pacientes.

Agora, um grupo de cirurgiões e anestesistas está questionando se o procedimento

deve ser realmente adotado livremente como acontece hoje. O Dr. James Isbister,

do Royal North Shore Hospital, na Austrália lembrou que "Normalmente, quando há

uma incerteza clínica sobre um tratamento, você não o administra, mas nós

continuamos aplicando a transfusão”. A reportagem enfatiza que um estudo avaliou

uma série de outras pesquisas médicas já publicadas, mostrando que o problema

não está com o grandemente propalado risco de se contrair uma infecção, ou

doenças como a AIDS ou a hepatite - o maior problema está no próprio sangue, as

pesquisas apontam que os fatores de risco estão relacionados a alterações químicas

no sangue já envelhecido, seu impacto sobre o sistema imunológico e a capacidade

do sangue em transportar oxigênio.

Várias das pesquisas revisadas apontam que as transfusões de sangue,

particularmente as que contêm glóbulos vermelhos, estão ligadas a altas taxas de

mortalidade em pacientes que tiveram um ataque cardíaco, que passaram por

cirurgias cardíacas ou que estão em estado crítico.

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Page 26: monografia

Segundo conclusão obtida por meio do novo estudo coordenado por médicos

ingleses, não há nenhuma pesquisa que demonstre que a transfusão de sangue seja

benéfica.

A reportagem assinala a existência de riscos maiores que o de infecções:

Um estudo mais recente descobriu que, em pacientes que sofreram ataques cardíacos, apresentando hematócritos acima de 25%, uma transfusão de sangue está associada com um risco de morte três vezes maior ou com um segundo ataque cardíaco num intervalo de 30 dias. Para quase 9.000 pacientes que sofreram cirurgias cardíacas na Inglaterra entre 1996 e 2003, receber uma transfusão de glóbulos vermelhos está associado com um risco três vezes maior de morrer dentro de um ano, e um risco quase seis vezes maior de morrer em até 30 dias depois da cirurgia. As transfusões de sangue também estão associadas a mais infecções e altas taxas de incidência de derrames cerebrais, ataques cardíacos e falhas nos rins - complicações normalmente associadas a uma falta de oxigênio nos tecidos (DIÁRIO DA SAÚDE, 2009 P. 1).

De fato a revista Como pode o Sangue Salvar a Sua Vida (ASSOCIAÇÃO TORRE

DE VIGIA, 1989, p. 8), publicada pelas Testemunhas de Jeová, divulgou que um

estudo realizado na França concluiu o seguinte:

Uma avaliação franca dos fatos prova que a transfusão de sangue deve honestamente ser considerada como um processo que envolve considerável perigo e até mesmo como sendo potencialmente letal. O Dr. C. Ropartz, Diretor do Departamento Central de Transfusões em Ruão, França, comentou que “um frasco de sangue é uma bomba”. Visto que os resultados perigosos talvez não surjam senão depois de certo tempo, acrescentou ele, “ademais, pode também ser uma bomba-relógio para o paciente”.

Além disso, os testes realizados nos sangues doados por voluntários não são

suficientes para detectar todas as possíveis contaminações conforme afirma certo

dirigente da Cruz Vermelha Americana:

O mais preocupante é que os testes realizados nos bancos de sangue não geram a segurança que muitos pacientes imaginam ter. (...) Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado. (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA 1990 p.10)

Com efeito, a posição firme adotada pelas Testemunhas de Jeová resultou no

surgimento de diversos tratamentos alternativos a transfusão de sangue, o que tem

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Page 27: monografia

beneficiado não só a elas como também pessoas da população em geral que

desejam um tratamento médico seguro e eficaz.

Muitos médicos reconhecem que a recusa das Testemunhas de Jeová contribuiu

significativamente para este avanço e aceitam de bom grado realizar cirurgias

complexas sem uso de sangue. Ao contrário, porém, a intolerância religiosa de

alguns e o preconceito de outros faz com que vez por outra surja na mídia

sensacionalista reportagens de cunho depreciativo quanto à posição das

Testemunhas de Jeová, fazendo crer a população leiga que a transfusão de sangue

é o único meio hábil, seguro e eficaz, para salvar a vida em caso de perda

significativa de sangue. Contudo não é o que se depreende do estudo realizado

pelos que desejam esclarecimento acerca da polêmica que tal questão encerra.

A transferência de sangue ou de um de seus componentes de um indivíduo a outro

são realizadas para aumentar a capacidade do sangue de transportar oxigênio, para

restaurar o volume sangüíneo do organismo, para melhorar a imunidade ou para

corrigir distúrbios da coagulação. Dessa forma empreendeu-se uma busca por

componentes capazes de realizar tais funções vitais de modo eficaz, bem como de

técnicas que impedissem a perda significativa de sangue durante cirurgias de alto

risco.

Sobre tais alternativas uma série de vídeos intitulada Alternativas a Transfusão de

sangue Série de Documentários, feito pelas Testemunhas de Jeová, aborda várias

medicações, tratamentos e técnicas cirúrgicas capazes de realizar tais intentos,

algumas simples e de baixo custo. Dentre as alternativas mencionadas destaca-se o

uso da Eritropoetina Humana Recombinante, que é uma forma biossintética de um

hormônio humano natural que estimula a medula óssea a produzir hemácias. A

Eritropoetina pode ser administrada antes, durante ou depois do tratamento ou

cirurgia, bem como para pacientes com câncer que recebem quimioterapia ou para

tratar pacientes anêmicos portadores de insuficiência renal crônica. Para dar suporte

a produção de hemácias produzidas pela Eritropoetina é feita a aplicação de ferro e

hematínicos.(VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)

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Page 28: monografia

Para estimular a produção de plaquetas, essenciais ao processo de coagulação do

sangue, utiliza-se a Interleucina-11 Recombinante, uma forma geneticamente

produzida, de um hormônio humano. O Ácido Aminocapróico e Tranexâmico são

muito úteis para estimular a coagulação inibindo ou cessando a decomposição dos

coágulos sangüíneos, ou fibrinólise, tais compostos se mostraram eficazes em casos

de hemorragia sendo amplamente utilizados em cirurgias cardíacas, oncologia,

obstetrícia, ginecologia, transplantes, cirurgias ortopédicas, traumas e em distúrbios

hematológicos. .(VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)

Para diminuir a perda de sangue, adesivos teciduais, tais como a cola de fibrina, são

utilizados para selar superfícies das feridas cirúrgicas de modo a reduzir o

sangramento pós-operatório.

Quando a perda de plasma é excessiva são utilizados os chamados expansores do

volume do plasma, que são os cristalóides, dentre os quais menciona-se a solução

salina, lactato de ringer e a solução salina hipertônica, esses fluidos intravenosos

compostos de água, com vários sais e açucares têm a função de manter o volume

circulatório do sangue no corpo. De forma similar, os colóides, que são fluidos

compostos de água misturada com partículas bem diminutas de proteínas, mantêm

os níveis de proteína sanguínea, estabilizando o equilíbrio dos fluidos e o volume

circulatório do sangue no corpo. Os colóides mais utilizados são o Pentastarch,

Hetastarch (Hidroxietila de amido) e o Dextran. .(VÍDEO, ALTERNATIVAS A

TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)

Sobre técnicas utilizadas durante as cirurgias destaca-se o uso de instrumentos

cirúrgicos hemostáticos eficazes tanto em cirurgias convencionais a céu aberto

como na cirurgia minimamente invasiva. Quando utilizados com habilidade reduzem

o sangramento, facilitam o manejo dos tecidos, e permitem que haja maior

visibilidade, graças a um campo cirúrgico mais seco, o que pode abreviar o tempo

cirúrgico bem como reduzir a exposição da equipe médica ao sangue. Dentre os

referidos instrumentos podemos destacar o eletrocautério, lasers e o coagulador

com raio de argônio. Este último causa um trauma mínimo aos tecidos, coagula os

vasos grandes e reduz o risco de hemorragia pós-operatória. O fluxo de argônio, por

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Page 29: monografia

ser um gás incolor, inodoro e inativo, facilita a coagulação controlada por uma área

mais ampla, acentua a visibilidade no campo cirúrgico, diminui o manejo de tecidos

bem como a exposição do médico ao sangue através de rupturas das luvas ou furo

de agulhas. (VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)

O vídeo mostra que existem ainda disponível, para pacientes com múltiplos

ferimentos, os equipamentos de Recuperação intra-operatória de sangue. Este

equipamento é capaz de recuperar parte do sangue derramado lavando-o ou

filtrando-o sendo posteriormente reinfundido no paciente.

Explicando o funcionamento de tal equipamento o vídeo Estratégias Alternativas a

Transfusão, feito pelas Testemunhas de Jeová menciona que o sangue pode ser

desviado do paciente para um aparelho de hemodiálise ou para uma bomba

coração-pulmão. O sangue flui para fora através de um tubo até o órgão artificial que

o bombeia e filtra (ou oxigena) e daí volta para o sistema circulatório do paciente. Há

também instrumentos para a Recuperação pós-operatória do sangue (tubo de

drenagem, no qual o sangue derramado é processado e devolvido ao paciente).

Este processo de Hemodiluição, quando é usado um circuito fechado e não se faz

coleta de sangue pré – operatório é aceitável para muitas Testemunhas de Jeová.

(VÍDEO, ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)

Existem ainda outros meios aptos a permitir que se descarte totalmente o uso de

sangue em uma cirurgia como, por exemplo, o uso do aparelho coração-pulmão, a

técnica de resfriar o paciente para reduzir a necessidade de oxigênio durante a

cirurgia, a anestesia hipotensiva, a terapia para melhorar a coagulação sanguínea e

a desmopressina, usada para abreviar o tempo de sangramento, todas

perfeitamente demonstradas na série de vídeos mencionada. (VÍDEO,

ALTERNATIVAS A TRANSFUSÃO DE SANGUE, 2004)

É inegável o fato de que há uma enorme variedade de tratamentos e métodos

isentos de sangue que podem e devem ser utilizados para garantir às Testemunhas

de Jeová o livre exercício de sua liberdade de crença e culto religioso, não se

justifica, portanto, a decisão precipitada que obriga a transfusão de sangue em

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Page 30: monografia

paciente Testemunha de Jeová, conforme exposição brilhante no voto vencido do

Desembargador Marcos Antônio Ibrahim no Agravo de Instrumento n.º

2004.002.13229, julgado em 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de

Justiça do RJ:

O direito à vida não se resume ao viver (...) O Direito à vida diz respeito ao modo de viver, a dignidade do viver. Só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo. Sem considerar os aspectos morais, religiosos, psicológicos e, especialmente, filosóficos que tão grave questão encerra. A liberdade de alguém admitir, ou não, receber sangue, um tecido vivo, de outra (e desconhecida) pessoa.

Ora, se a religião é considerada pelas Testemunhas de Jeová como um modo de

vida elas se reservam ao direito de exercer a liberdade de escolher o tratamento de

saúde que julgam ser o mais adequado as suas crenças e não permitem que outros,

quer sejam médicos ou juristas, o façam em seu lugar, portanto a decisão que viola

tal escolha compreende uma gravíssima violação do direito a liberdade assegurada

pela Constituição de 1988 que garante ao individuo o pleno domínio de si mesmo e

dos atos dirigidos a seu próprio corpo.

De fato conforme salienta Paulo Bonavides (2008, p. 653,654):

Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade, têm por titular o individuo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são os direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. (...) São por igual direitos que valorizam primeiro o homem singular, o homem das liberdades abstratas, homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais individual.

Para José Afonso da Silva (2001, p. 236), “numa sociedade onde há leis, a liberdade

não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer, e a não ser

constrangido a fazer o que não se deve querer.” ele afirma que a definição de

liberdade que parece mais aceitável é a que consta da Declaração de 1978, a saber,

que “a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem”.

E mais ainda (SILVA, 2001, p. 236):

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Page 31: monografia

O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. (...) “a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal”. (...) liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal.

Pode-se, portanto afirmar que a atitude das Testemunhas de Jeová referente à

questão do sangue é legitima diante do conceito filosófico de liberdade, pois a sua

autodeterminação envolve apenas sua vida privada não violando direito alheio, tal

recusa visa única e exclusivamente manter uma boa relação pessoal com seu Deus,

para elas esta é a realização da verdadeira felicidade. Aliás, a respeito do direito a

privacidade, intrinsecamente ligado ao conceito de liberdade, Manoel Gonçalves

Ferreira Filho (1994, p. 6) aduz o seguinte:

O direito à privacidade é dos que reclamam a não-interferência, a não-ingerência, a não-intromissão, seja do Estado, seja de todo o grupo social, seja de qualquer outro indivíduo. Nisto, ele coincide com as liberdades públicas clássicas que impõem um não fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular que não pode ser violada por quem quer que seja. Reflete ela a dignidade humana cuja primeira e principal expressão é a liberdade. Dela decorre que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida (...) desde que não fira o direito de outrem.

O fato é que a decisão referente à escolha de determinado tratamento médico é uma

faculdade que diz respeito privativamente ao paciente de modo que a transfusão de

sangue realizada a força, com respaldo em liminar obtida em atendimento a pedido

do médico ou do hospital agride a intimidade, a liberdade, a vida privada e é em si

mesma uma afronta a dignidade da pessoa humana. O que encontra reforço nas

palavras do renomado jurista Celso Ribeiro Bastos (2000, p. 19):

Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos.

Portanto não se justifica a transfusão de sangue forçada em Testemunhas de Jeová

pelo fato de existirem, como já salientado, dezenas de tratamentos alternativos ao

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Page 32: monografia

uso do sangue, bem como técnicas cirúrgicas que auxiliam na redução da perda do

plasma durante cirurgias complexas.

É inconcebível que diante dos avanços no campo da medicina, a afirmativa de que o

sangue é a única e última opção disponível e eficaz para salvar a vida do paciente

que sofreu hemorragia, seja provada verossímil.

Ademais, tal interferência sendo irreversível é uma afronta ao direito do paciente de

auto determinar-se. Além de uma ignominiosa transgressão a dignidade da pessoa

humana, visto que para as Testemunhas de Jeová, sua dignidade se resume em

manter a fidelidade e a obediência às leis e princípios de moral estabelecidas na

bíblia pelo “Criador”, dentre as quais destacam a santidade do sangue.

A veracidade desta afirmativa encontra-se nas palavras de Adrian, citado

anteriormente, “Penso que se me for dado sangue isso seria como que me violentar,

molestar meu corpo. Rejeito meu corpo nessas condições. Não posso pagar esse

preço. Por favor, respeitem a mim e a minha vontade.”

Sim, no universo de um adepto das práticas doutrinais das Testemunhas de Jeová

receber sangue por meio de uma transfusão forçada seria algo mais terrível que a

própria morte, apenas para dimensionar o dano subjetivo que tal procedimento

acarretaria pode-se compará-lo ao sofrimento de uma virgem vitima de estupro, ou

de um jovem varão que teve a virilidade maculada pela prática de atentado violento

ao pudor ou ao sofrimento de pais que tiveram filhos (algumas vitimas com apenas

meses de idade) vitimas da pedofilia. Resultaria em uma vida sem dignidade pelo

resto de seus dias.

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Page 33: monografia

4 NEOCONSTITUCIONALISMO – UMA PREMISSA ATUAL QUE DEVE SER SENTIDA PELO APLICADOR DO DIREITO DIANTE DO CASO CONCRETO

4.1 OS NOVOS RUMOS DA HERMENÊUTICA JURÍDICA E A APLICAÇÃO DO

DIREITO NA MODERNIDADE

A fim de relacionar Neoconstitucionalismo com o caso das Testemunhas de Jeová

urge definir o termo de modo a permitir ao leitor uma compreensão do que se

pretende. Assim Luis Roberto Barroso no prefácio da obra de Gustavo Binenbojm,

traz a lume um conceito de Neoconstitucionalismo:

O fenômeno do Neoconstitucionalismo tem como marco filosófico o pós-positivismo, como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, após a 2ª Guerra Mundial, onde, no caso brasileiro, ocorreu com a redemocratização institucionalizada pela Constituição de 1988 e, como marco teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação.

Segundo Sarmento (2002, p. 69) o Neoconstitucionalismo busca equilibrar as

relações em uma sociedade pluralista, em que não raro observa-se o choque entre

as concepções individualista e coletiva.

Trata-se de uma era em que se vê prevalecer o “personalismo”, doutrina filosófica desenvolvida pelo francês Emmanuel Mournier a partir da década de 1930, pela qual se busca uma solução de compromisso entre as concepções individualista e coletiva, principalmente no contexto contemporâneo, onde não mais se concebe o homem como um ser sem raízes que cuida de forma egoística de seus interesses em uma sociedade caracterizada pela individualidade, como também não mais concebe a visão oposta de sua trans-personalidade nos moldes de uma visão organicista, que vê o homem como uma parte de um todo social, cujos interesses individuais devem ser sacrificados em beneficio da coletividade.

De modo que se pode afirmar que o Neoconstitucionalismo está relacionado à

reforma por que passou o constitucionalismo na segunda metade do século XX, que

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Page 34: monografia

elevou o status das constituições dos Estados, dando-lhes força normativa e

garantindo a realização dos direitos humanos por meio da elevação dos princípios e

dos direitos e garantias fundamentais a órbita constitucional. E que de acordo com a

definição proposta por Barroso possui três marcos fundamentais um filosófico sendo

este o pós-positivismo, um histórico que seria a formação do estado constitucional

de direito, que no Brasil se inicia com a promulgação da Constituição Federal de

1988 e por último um marco teórico que seria um conjunto de novas práticas

incluindo o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional,

que abarcam novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos

fundamentais, a ponderação e a argumentação. Tais construções inovadoras

marcam a reconstitucionalização do Brasil que tem como ponto de partida a

Constituição Cidadã de 1988.

No ambiente que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial o direito como se

apresentava no positivismo jurídico que, segundo Barroso, empenhava-se no

desenvolvimento de idéias e de conceitos dogmáticos em busca de uma

cientificidade anunciada que reduzia o direito ao conjunto de normas em vigor

considerando-o um sistema perfeito (BARROSO, 2004 p. 324), já não servia aos

interesses da coletividade tendo em vista que eivados de legalidade surgiram

movimentos Totalitários, tais como o Nazismo (na Alemanha) e o Fascismo (na

Itália), que promoveram a barbárie e uma política de intolerância por meio de leis

perfeitamente válidas. Por isso (BARROSO, 2004, p. 325):

(...) o fracasso político do positivismo abriu caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, principio e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais.

Dessa forma o Neoconstitucionalismo procura reaproximar o direito da ética e da

moral, dando aos valores, naturalmente arraigados no homem, status normativo,

para tanto, (BARROSO, 2004 p. 326):

Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios,

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Page 35: monografia

que passam a estar abrigados na Constituição, explicita ou implicitamente. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, e da reserva de justiça.

Assim não mais é possível vislumbrar o Direito como um conjunto de leis genérica e

abstrata, como no positivismo clássico, tendo em vista que a coletividade é formada

por pessoas e classes sociais diferentes, com necessidades e desejos diferentes, de

modo que é necessário resgatar a substância da lei e encontrar os instrumentos

aptos a conferir limitação e conformação aos princípios de justiça. Desta feita, ao

conferir plena eficácia normativa aos princípios, a lei perde seu posto de

supremacia, e agora se encontra subordinada a Constituição, estas deixaram de ser

flexíveis e tornaram-se rígidas, no sentido de escritas e não passíveis de

modificação pela legislação ordinária.

O fato de a lei encontrar limites nos princípios constitucionais significa que ela não

possui apenas legitimação formal, antes de tudo encontra - se vinculada aos direitos

contidos na constituição. Devendo estar de acordo com os direitos fundamentais.

Essa transformação deixa a cargo do jurista a tarefa de compreender a lei à luz dos

princípios constitucionais e dos direitos fundamentais. (MARINONI, 2008, p. 43 - 48)

Cumpre salientar, nesta nova construção jurídica, a diferença qualitativa entre regra

e princípio. Para Barroso (2004, p. 328), que abstrai sua formulação dos conceitos

de Ronald Dworkin e Roberto Alexy, regras são proposições normativas aplicáveis

sob forma de tudo ou nada, assim se os fatos previstos na norma ocorreram, ela

deve incidir de modo direito e automático, produzindo seus efeitos. Dessa forma

uma regra só deixará de ser aplicada na hipótese de fato que observa se for

invalida, se houver outra mais especifica ou se não estiver em vigor. A regra se

aplica mediante subsunção. Já os princípios são dotados de uma carga valorativa

maior, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada

direção a seguir. E como não poderia deixar de ser, existem princípios que abrigam

decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. É a chamada

colisão de princípios, e sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou

nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão

43

Page 36: monografia

de peso ou importância, de modo que diante dos elementos do caso concreto, o

interprete deve fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com

antagonismos inevitáveis. A aplicação dos princípios se dá mediante ponderação.

Segundo Barroso, (2004, p. 330) ponderação de valores ou ponderação de

interesses:

É a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se a vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. O legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo. Não há aqui superioridade formal de nenhum dos princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor atende ao ideário constitucional na situação apreciada.

De acordo com Ana Paula Barcellos, (2002, p. 296) a técnica da ponderação

desponta como um método alternativo à subsunção destinada a oferecer

logicamente, uma solução adequada a um determinado fato, a partir da incidência

de um enunciado normativo (premissa maior), sobre um fato hipoteticamente

relevante (premissa menor).

Barroso (2004, p. 358) descreve a ponderação de forma simplificada em três etapas

a serem percorridas pelo interprete.

Segundo ele na primeira etapa, o interprete deverá detectar no sistema as normas

relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. Nesta

fase os diversos fundamentos normativos são agrupados em função da solução que

estejam sugerindo, assim aqueles que estiverem indicando a mesma solução ao

caso devem formar um conjunto de argumentos. Na fase seguinte examinam-se os

fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos

normativos. Na terceira etapa, dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e

a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma

conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos

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Page 37: monografia

elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no

caso, ademais é preciso verificar com que intensidade esse grupo de normas deve

prevalecer em detrimento dos demais, ou seja, sendo possível graduar a intensidade

da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau de aplicação

adequado. Esse processo é realizado por meio do princípio da proporcionalidade.

(BARROSO, 2004, p. 358 -360).

Com este método de interpretação objetiva-se a concretização dos direitos e

garantias individuais, direitos difusos e coletivos bem como dos direitos humanos

universais, e com ele emergem dois princípios fundamentais de interesse ao caso

em análise, o principio da razoabilidade e o da dignidade da pessoa humana.

Sobre o principio constitucional da proporcionalidade Paulo Bonavides (2008, p. 399)

apresenta as seguintes considerações:

A adoção do principio da proporcionalidade representa talvez a nota mais distintiva do segundo Estado de Direito, o qual com a aplicação desse princípio saiu admiravelmente fortalecido. (...) Contribuiu o princípio para conciliar o direito formal com o direito material em ordem e prover exigências de transformações sociais extremamente velozes, e doutra parte juridicamente incontroláveis caso faltasse a presteza do novo axioma constitucional.

Para Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2004 p. 224) o principio da

proporcionalidade deve ser visto como um parâmetro de valoração dos atos do

poder público para aferir se eles estão informados pelo valor justiça, que é finalidade

precípua de todo o ordenamento jurídico.

A proporcionalidade é, segundo Bonavides (2008, p. 397, 398) governada por três

subprincípios, o primeiro, adequação, sugere que um princípio deva ser aplicado a

uma situação quando for adequado para ela, quando o valor que está sendo

discutido ou que se busca promover esteja presente na situação em análise. Do

segundo, necessidade se depreende que a medida não há de exceder os limites

indispensáveis à conservação do fim legitimo que se pretende atingir, sendo que

para ser admissível a medida deve ser necessária. Assim de todas as medidas que

servem à obtenção do fim deve-se escolher aquela menos nociva aos interesses do

45

Page 38: monografia

cidadão. E por último, e não menos importante, a proporcionalidade em sentido

estrito é o elemento de concretização da proporcionalidade. Aqui se verifica que os

ganhos devem sempre superar as perdas, a proporção adequada se torna condição

de legalidade, e a escolha recai sobre o meio que, no caso concreto, levarem mais

em conta os interesses em jogo. Por exemplo, num conflito entre os princípios A e B

vindo o primeiro a prevalecer sobre o segundo entende-se que a realização de A em

detrimento de B leva a um resultado melhor do que se ocorresse o inverso.

O princípio da proporcionalidade emerge no direito brasileiro como o fim de

equilibrar a colisão entre princípios fundamentais, será utilizado pelo operador do

direito na ponderação dos valores que deverão prevalecer no caso concreto,

levando a uma harmonização de tais valores com o fim precípuo de atingir o respeito

e a proteção da dignidade humana, realizando-se assim a justiça. Como assevera

Ingo Wolfgang Sarlet, (2005, p. 32) ele é o "fio condutor de toda a ordem

constitucional".

Acerca do principio da dignidade humana Luís Roberto Barroso (2004, p. 334)

discorre da seguinte forma:

O principio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito a criação, independente da crença que se professe quanto a sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a esse princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do novo tempo. Ele representa o fim da intolerância, da discriminação, da exclusão social da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar.

Ele assevera que (BARROSO, 2004, p 335):

Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do principio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade.

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Page 39: monografia

Ingo Wolfgang Sarlet diz que (SARLET, 2004, p. 47):

(...) a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional de dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos por parte de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção.

Sobre o tema, enfatiza Alexandre de Moraes (2002, p. 50) que:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Neste ínterim, diante do cenário mundial, pautado neste novo modelo constitucional,

é imprescindível ressaltar as palavras de Daniel Sarmento (2002, p. 69),

O homem pós-moderno, dentro da concepção pós-positivista é um valor em si mesmo superior ao Estado e a qualquer organização social que se integre, embora seja um ser real que concretamente está situado historicamente e geograficamente e que compartilha dos valores e das tradições com aqueles com os quais convive. É o homem que não apenas vive, mas convive.

Posto isso, no caso especifico das Testemunhas de Jeová e sua crença na

santidade do sangue e por conseqüência sua posição contrária à transfusão de

sangue é possível, a luz das modernas interpretações constitucionais, a realização

de seu direito fundamental de liberdade de culto, consciência e crença religiosa,

tendo em vista a existência de alternativas seguras e eficazes ao uso do sangue,

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Page 40: monografia

preservando-lhes a dignidade da pessoa humana, e realizando-se a justiça no caso

concreto, como se pretende demonstrar a seguir.

4.2 A RECUSA NA ACEITAÇÃO DA TRANSFUSÃO DE SANGUE: O CASO DAS

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À LUZ DO NEOCONSTITUCIONALISMO

A evolução do pensamento jurídico acerca do valor do indivíduo no seio da

sociedade fruto de um estudo amadurecido pelas discussões e reflexões de

doutrinadores e estudiosos da área jurídica, especialmente acerca dos direitos

humanos fundamentais, que ascendeu no cenário mundial após o fim da Segunda

Guerra Mundial, em que se tornou evidente que a vida e a dignidade do ser humano

no modelo em que o direito se assentava não possuía a proteção necessária para

evitar o arbítrio do Estado, permite que hoje se possa asseverar sem reservas que a

decisão judicial que obriga o paciente Testemunha de Jeová a se sujeitar a uma

transfusão de sangue contra a sua manifestação de vontade expressa em

documento escrito quando ainda consciente configura-se em um abuso de poder do

Estado, em grave desrespeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa

humana, da liberdade de consciência e crença e culto religioso bem como do direito

a privacidade. Vale ainda a ressalva de que a decisão quando proferida ao escopo

de se proteger o direito a vida carece de fundamento tendo em vista a existência de

técnicas e tratamentos alternativos ao uso medicinal do sangue, considerados até

mesmo mais eficientes e isentos de riscos como os passíveis de ocorrer em uma

transfusão sanguínea.

Ademais toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado

por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e acessível a todos

livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de (...) religião,

bem como a garantia de que nas consultas, nos procedimentos diagnósticos,

preventivos, cirúrgicos, terapêuticos e internações, o respeito aos seus valores

éticos, culturais e religiosos. (BRASIL, PORTARIA 1.820 de 13-08-2009

MINISTÉRIO DA SAÚDE)

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Page 41: monografia

O que se pretende no caso das Testemunhas de Jeová, ao contrário do que se

veicula não é a escolha entre vida e religião e sim entre um tratamento específico (a

transfusão de Sangue) e outro que lhes dêem a possibilidade de preservar sua

consciência religiosa fundada na doutrina bíblica da santidade do sangue. Tal

assertiva encontra-se balizada nas palavras de Celso Ribeiro Bastos. (2000, p.4)

Tal direito de escolha foi recentemente ratificado pela portaria ministerial número

1820 de 13 de agosto de 2009, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos

e deveres dos usuários da saúde. No artigo 5º, caput e inciso V assegura-se que

toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os

serviços de saúde, garantindo-lhe o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a

quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, considerando

que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer instante,

por decisão livre e esclarecida.

Ademais, conforme salienta Cláudio da Silva Leiria (2009, p. 15), o direito vida

dentro do ordenamento jurídico brasileiro não é absoluto, já que se admite matar em

legítima defesa e estado de necessidade, permite-se o aborto, considerado

infanticídio para as Testemunhas de Jeová, em determinadas condições e é

autorizada a pena de morte em caso de guerra declarada. Segundo ele o direito a

vida encontra limites no princípio da dignidade da pessoa humana de fato “é a

dignidade da pessoa humana – e não a vida – um dos fundamentos da república”.

Conforme se verifica na Constituição de 1988, no artigo 1º, caput, e inciso III.

Como já salientado anteriormente para uma Testemunha de Jeová, a transfusão

forçada equivale a violentá-lo, não apenas ao seu corpo, como também na sua

dignidade, na sua espiritualidade, no seu modo de vida.

De forma que ao se deparar com o caso das Testemunhas de Jeová o aplicador do

direito ao decidir o caso concreto equivoca-se ao sopesar, sob o manto da

ponderação de interesses, bem como da proporcionalidade, o princípio da liberdade

religiosa com o direito a vida, pois fazendo assim chegará a uma falsa conclusão de

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Page 42: monografia

que o direito a vida em detrimento da liberdade religiosa é a solução válida para o

caso das Testemunhas de Jeová.

Para uma conclusão realmente apropriada a luz dos princípios informadores do

Neoconstitucionalismo cabe ao operador do direito levar em conta que “não há

colisão de direitos fundamentais (direito a vida X direito de liberdade religiosa), mas

sim concorrência de direitos fundamentais, pois a conduta sujeita-se ao regime de

dois direitos fundamentais de um só e mesmo titular.” (LEIRIA, 2009, p. 4)

Deve ainda, relacionar o caso à existência de alternativas à transfusão de sangue,

por certo Bastos (2000, p. 8) aponta o seguinte:

(...) não se pode ver na recusa consciente das Testemunhas de Jeová em receber sangue uma forma de suicídio. Não se está aqui fazendo apologia ao “direito à morte”. Pelo contrário, esses fiéis prezam por demais a vida. Tanto é que procuram preservá-la, dirigindo-se aos hospitais, sendo devidamente examinados e diagnosticados por médicos, quando se encontram enfermos. Todos aceitam a grande maioria dos tratamentos médicos existentes, sendo que a única ressalva consiste no transfundir sangue.

Dando margem para a interpretação que realmente levará a uma conclusão verídica

o autor arremata dizendo que:

(...) essa “recusa” também pode ser vista de outro modo: como um direito de escolher um tratamento isento de sangue. É este direito de escolha que se está discutindo aqui, e que deve ser reconhecido a todo e qualquer paciente, devendo o profissional da medicina levá-lo em consideração (...). Em suma, aqueles que aderem à orientação das Testemunhas de Jeová também pretendem, como todas as pessoas, continuar vivos. Apenas ocorre que também objetivam uma vida em paz consigo mesmo, sem que sua posição religiosa reste maculada.

Ademais sobre o direito a vida Pedro Lenza (2008, p. 595) faz a seguinte reflexão:

“O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito

de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como

também o direito de ter uma vida digna”. (grifo nosso). José Afonso da Silva

(2001, p. 201) permite vislumbra os aspectos intrínsecos da vida humana afirmando

que: “A vida humana, que é objeto do direito assegurado no art. 5°, caput, integra-se

de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais)”. Destaca ainda

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Page 43: monografia

os aspectos subjetivos que tal direito encerra ao dizer que “a vida é intimidade

conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesmo, um assistir a si mesmo, e

um tomar posição de si mesmo”

Celso Ribeiro Bastos (2000, p. 9) assinala que o direito a vida está atrelado à idéia

de dignidade da pessoa humana e que no Brasil por força do art. 1º, inciso III da

Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988, P.), pode-se buscar como fundamento

da tutela estatal tanto um quanto o outro. Citando Fernando Ferreira dos Santos ele

situa a origem do conceito de pessoa e de dignidade ao surgimento do Cristianismo

de modo que:

Não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem, para a filosofia grega, era um animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado, que estava em íntima conexão com o Cosmos, com a natureza [...]. O conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos. [...]A proclamação do valor distinto da pessoa humana terá como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem, o reconhecimento de que, na vida social, ele, homem, não se confunde com a vida do Estado, além de provocar um deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e autoridade.

Assim o bem jurídico do direito a vida deve necessariamente pautar-se em garantir a

inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.

Assim a despeito do que conclui a maioria das decisões proferidas pelos tribunais

brasileiros a recusa das Testemunhas de Jeová não se constitui em afronta ao

direito a vida antes é um exercício ao direito de escolha ao melhor tratamento de

saúde, e, por conseguinte a uma vida digna, conforme garantia constitucional

expressa.

De modo que é posto o seguinte:

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Page 44: monografia

Em decisão proferida no Agravo de Instrumento nº. 2004.002.13229, julgado no dia

05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ, que negou

provimento ao recurso da agravante e autorizou a transfusão sangue com

fundamento em iminente risco de vida e ignorou a existência de tratamentos

alternativos disponíveis para sanar a enfermidade do paciente, fica evidente a

carência de argumentos que balizam a decisão que negou provimento ao recurso.

Aqui se tem a sensação que o despreparo e falta de conhecimento técnico dos

médicos acerca da eficácia dos tratamentos alternativos, utilizados no mundo inteiro

em procedimentos de alto risco é gritante. Aliás, no voto vencido proferido pelo

Desembargador Marcos Antonio Ibraim, percebe-se certa indignação diante da frágil

argumentação de violou direitos humanos fundamentais do paciente.

A decisão agravada, coonestada pelo entendimento da maioria, golpeou fundo, data máxima vênia, a dignidade humana da paciente que tem direito, legal e constitucionalmente garantido, a se recusar a receber tratamento desse jaez. (...). li e reli os autos e neles não se vê qualquer prova convincente de que se está diante de imediato risco de morte do paciente e mesmo a resposta que muito prudentemente, exigiu o iminente relator, sobre a possibilidade de terapias alternativas, foi respondida de forma evasiva pela médica, que afirmou que não há outra alternativa mais eficaz que a transfusão. Ora então há alternativa. (grifo nosso) (Agravo de Instrumento nº. 2004.002.13229, julgado no dia 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ)

Ora diante das inúmeras possibilidades que o avanço tecnológico e cientifico tem

colocado a disposição da sociedade, especialmente no campo da medicina,

somente e ignorância e falta de preparo de um profissional da área medica poderia

afirmar, sem titubear, que exista uma e somente uma alternativa para manutenção

da vida diante de uma enfermidade. Ademais é cediço que vez por outra pacientes

desenganados por médicos despreparados diante de um quadro que afirmam se

irreversível do seu ponto de vista acabam por ter uma súbita e repentina

recuperação. Desta feita é inadmissível que sirva de base para decisões envolvendo

questões tão importantes e fundamentais o argumento de iminente risco de morte,

caso não seja levado a cabo intervenção cirúrgica com uso de sangue humano.

De outra parte Leiria (2009, p. 26) menciona decisão proferida pelo juiz Renato Luís

Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, nos autos

do processo 024.08.997938-9, que indeferiu um pedido de alvará feito pelo Hospital

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Page 45: monografia

Odilon Behrens, requerendo autorização para fazer uma transfusão de sangue em

uma paciente que pertencia à religião Testemunhas de Jeová, que não aceitava a

transfusão, mesmo ciente do risco de vida que corria. Após passar por uma cirurgia,

a paciente apresentava queda progressiva dos níveis de hemoglobina. Ele relata da

seguinte forma o que a decisão proferida:

O magistrado assinalou que as autoridades públicas e o médico tem o poder e o dever de salvar a vida do paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição. ‘Entretanto’, salientou, ‘estando a paciente consciente, e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana’. O juiz referiu que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer tratamento clínico. A restrição diz respeito a qualquer tratamento que envolva a transfusão de sangue, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento. Em trecho lapidar, o magistrado mencionou que no seu entendimento, resguardar o direito à vida implica, também, preservar os valores morais, espirituais e psicológicos’. O Dr. Dresch citou que, embora não fosse lícito à parte atentar contra a própria vida, a Constituição, em seu art. 5º, inciso IV, assegura, também, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos. O juiz referiu que o recebimento do sangue pelo seguidor da corrente religiosa ‘o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar, que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes’. Em razão disso, e pela informação de que a paciente se encontrava lúcida, o juiz não autorizou a realização da transfusão de sangue, que estava sendo recusada por motivos religiosos: ‘Desta forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão’, concluiu o juiz.

De modo similar o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu que é possível

que uma Testemunha de Jeová não seja judicialmente obrigada pelo Estado a

realizar transfusão de sangue, quando existem outras técnicas alternativas

disponíveis para a serem utilizadas, como mostra o seguinte acórdão com o voto do

Desembargador Alberto Vilas Boas:

EMENTA: PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

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Page 46: monografia

LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)

É, portanto, imprescindível que se esgotem as possibilidades alternativas conforme

delineado pelo o iminente desembargador Alberto Vilas Boas no voto proferido na

decisão supra, antes de se afirmar que o sangue é o único meio apto a preservar a

vida do paciente.

Por certo, reputo indispensável que sejam exauridos os procedimentos clínicos disponíveis perante a unidade hospitalar na qual se encontre internado o recorrente para obviar a transfusão de sangue no âmbito do tratamento quimioterápico. Consoante se observa dos autos, existem alternativas outras que podem contribuir para evitar que a transfusão de sangue seja utilizada como primeiro e último recurso quando o sistema imunológico do paciente exige alguma espécie de intervenção imediata. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)

Sabiamente ele faz a correlação entre a o caso das Testemunhas de Jeová e o

principio da dignidade da pessoa humana:

Aparentemente, o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. Faço esta observação, porquanto a recepção de sangue pelo seguidor da corrente religiosa Testemunhas de Jeová o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes. Cria-se, portanto, um ambiente no qual a pessoa é tida como religiosamente indigna e que não merece a necessária acolhida em seu meio, como descrito em doutrina. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)

Por fim faz correta aplicação do princípio da proporcionalidade e da ponderação

diante do caso concreto:

É necessário, portanto, que se encontre uma solução que sopese o direito à vida e à autodeterminação que, no caso em julgamento, abrange o direito

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Page 47: monografia

do agravante de buscar a concretização de sua convicção religiosa, desde que se encontre em estado de lucidez que autorize concluir que sua recusa é legítima. É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clínico. (AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - MG)

Conforme demonstrado, relacionando a recusa à transfusão de sangue por motivo

de crença de religiosa, como ocorre com as Testemunhas de Jeová, a todos os

aspectos que tal questão encerra, a saber, a preservação da dignidade humana, o

direito a autodeterminação, a existência de tratamentos alternativos ao uso do

sangue, o direito a liberdade de consciência, crença e culto religioso é possível se

chegar a uma decisão que permita equilibrar o direito a vida ao direito a liberdade

religiosa.

Por meio do princípio constitucional da proporcionalidade e pelo postulado da

dignidade da pessoa humana, conforme todo o exposto, a decisão que permite a

transfusão de sangue forçada em pacientes Testemunhas de Jeová como a que

ocorreu com Ana Paz do Rosário, em Porto Rico, no ano de 1976, quando a mesma

aceitou submeter-se a uma cirurgia com a ressalva de que fosse realizada sem

sangue, mas que, porém, acabou sendo amarrada por policiais e enfermeiras, que

estavam munidos de uma ordem judicial autorizando a transfusão, é inadmissível do

ponto de vista da Constituição Federal de 1988. (SÁ, 2009, p. 325)

Ressalte-se que Ana, após receber a transfusão entrou em choque e morreu, sem

ter tido o direito a ver respeitada sua vontade dirigida a seu próprio corpo, e que lhe

conferiria a dignidade almejada.

Levando-se em conta os interesses em jogo no caso das Testemunhas de Jeová, a

proporção adequada ao caso concreto certamente não é aquela que condena o

paciente a uma vida indigna, excluído de seus pares, e violentado na sua essência.

Pelo que se infere de tal princípio informador dessa nova era do constitucionalismo

brasileiro, sopesar direito a vida X liberdade religiosa é comparado a assimilar um

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Page 48: monografia

elefante a uma formiga, pois o direito a vida sempre esmagará o direito a liberdade

religiosa, posto que a vida tem valor superior para o individuo, mesmo aqueles que,

por meio da sua fé, consideram a morte apenas a uma passagem para outra vida,

uma vida inclusive superior, imortal, no céu ao lado de Cristo, sem sofrimento, sem

angustias, e sem as dores que este mundo, dominado pelo egoísmo e pela

prepotência dos homens, tem causado a toda humanidade, se recusam a aceitar a

interrupção súbita da vida, não desejam absolutamente a morte, as Testemunhas de

Jeová também não desejam morrer, desejam viver, mas viver com dignidade.

5 CONCLUSÃO

Médicos e cientistas abalizados de várias partes do mundo reconhecem hoje, que o

uso terapêutico do sangue nuca atingiu os objetivos para o qual fora indicado pelo

contrário pesquisas mostram que ele pode se tornar um veneno mortal, dentro do

organismo do receptor. A medicina oferece mecanismos que podem descartar a

bolsa sanguínea, como por exemplo, o aparelho Cell save (salvador de células), que

aspira o sangue do ferido, limpa e devolve a substância purificada ao paciente, esse

aparelho permite que paciente receba o próprio sangue, sem necessidade de

doação por terceiros, outra opção são as cirurgias minimamente invasivas por

laparoscopia, em que não há grandes cortes nem sangramento, apenas pequenos

furos em pontos estratégicos, capazes de atingir órgãos como fígado, rins, pulmões

e até coração. O uso de tais alternativas médicas às transfusões de sangue é cada

vez mais comum o que demonstra que atender ao caso das Testemunhas de Jeová

não é algo fora da realidade.

Para tornar as alternativas ao sangue amplamente difundidas, as Testemunhas de

Jeová organizaram uma rede de âmbito internacional chamada Comissão de

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Ligação com Hospitais (COLIH), que atuam em 236 países e territórios auxiliando na

transferência de pacientes para hospitais ou equipes médicas que usam alternativas

às transfusões de sangue. Também fazem trabalho de esclarecimento junto aos

profissionais de saúde quanto a esses tratamentos alternativos, bem como em

relação aos riscos das transfusões de sangue, promovem ainda um intercambio de

informações entre médicos especializados em tratamento sem sangue e os que não

dominam tais técnicas, facilitam o acesso de hospitais e equipes médicas aos

medicamentos e máquinas que possibilitam o descarte do uso de sangue. Com isso

esperam desfazer alguns preconceitos e tornar a relação médico-paciente mais

cooperativa e menos dolorosa possível.

Entretanto a legislação brasileira deixa brechas para o conflito entre médicos e

Testemunhas de Jeová. O Código de Ética Médica, de 1981, manda que a vontade

do paciente deva ser respeitada desde que não comprometa a vida dele. No Novo

Código Civil, de 2002, consta que o paciente tem total autonomia para recusar

procedimentos mesmo depois de informado das consequências. Já o Código Penal,

de 1940, estabelece que, em risco de morte, o médico pode e deve adotar

procedimento médico ou cirúrgico necessário sem consentimento do doente ou seu

representante legal. A portaria do Ministério da Saúde nº 1820 de 13/08/2009,

garante o direito de escolha ao paciente a tratamento de saúde devendo ser

informado das alternativas existentes podendo recusar qualquer delas. A

Constituição garante o direito à liberdade de crença e culto religioso, assegura ainda

o direito à privacidade tendo como fundamento a dignidade humana.

A fim de resolver o conflito resultante das disparidades legislativas existentes no

ordenamento jurídico brasileiro, o Neoconstitucionalismo emerge no cenário

nacional, com advento da Constituição Federal de 1988, trazendo os mecanismos

que possibilitam aplicar a justiça ao caso concreto.

Aplicando ao caso das Testemunhas de Jeová a ponderação de interesses

fundamentais, o principio da razoabilidade e da proporcionalidade é possível,

conectar o direito a ética e a moral e efetivar a justiça possibilitando que aquele que

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recusa transfusão de sangue por motivos religiosos não seja privado da sua

dignidade por meio da invasão que tal decisão representa.

Ademais tal recusa não representa absolutamente, uma afronta ao direito à vida e

sim o exercício do direito a escolha entre e outro tratamento de saúde. Fica claro,

portanto, que neste aspecto, muitos médicos preferem a “lei do menor esforço”, já

que tratamento médico sem sangue exige técnica, exatidão, cuidado meticuloso,

tempo, preparo e aperfeiçoamento das técnicas tradicionais, atributos que muitas

vezes estes não dominam. Percebe-se ainda que o Estado, a despeito da sua

função de ofertar saúde de qualidade, não disponibiliza os recursos necessários a

fim de que o médico, no exercício da sua profissão possa indicar ao paciente as

opções compatíveis com a consciência religiosa por meio da qual se orienta.

Certo é que ao invés de oferecer os mecanismos que possibilitem a realização dos

direitos do paciente Testemunha de Jeová o Estado lhe tem infligido a punição de

viver sem dignidade, despindo-o de seus valores morais, éticos e religiosos, através

de decisões judiciais autorizando a realização forçada de transfusão de sangue, o

que representa, no limiar deste século XXI, uma ignominiosa violação dos princípios

de justiça e dignidade humana que rege o ordenamento jurídico brasileiro.

Com tal visão, totalmente despida de preconceito, almeja-se desfazer alguns mitos e

destacar, para a sociedade a relevância do tema para as Testemunhas de Jeová,

despertando nos operadores do direito o desejo em colaborar para que se realize o

seu desejo qual seja preservar sua relação com o “Todo Poderoso”, Deus Jeová, por

meio da obediência as suas leis que é uma expressão do seu amor abnegado.

Contudo o assunto não se esgota ficando a cargo dos detentores do saber jurídico

discorrer sobre o tema enfocando novos pontos de vista, como por exemplo, sob a

ótica do profissional da medicina que não raro se confronta com os dilemas

provocados pelos desafios de sua profissão, bem como o dever do Estado de prover

tratamento de saúde de qualidade disponibilizando os recursos necessários afim de

que se realize a vontade do paciente, podendo até mesmo utilizar o direito

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comparado, tendo em vista que nos Estados Unidos e na Europa o que prevalece

nestes casos e a escolha e o direito do paciente.

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