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MARSHALL SAHLINS CULTURA NA PRÁTICA Tradução Vera Ribeiro EDITORA UFR] 2004

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MARSHALL SAHLINS

CULTURA NA PRÁTICA

Tradução

Vera Ribeiro

EDITORA UFR]2004

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO,

GRANDE-HOMEM, CHEFE:

tipos políticos na Melanésia e na Polinésia*

Atentos a seus próprios objetivos de vida, os povos nativos das ilhasdo Pacífico oferecem aos antropólogos, de modo não intencional, uma

generosa dádiva científica: uma extensa série de experimentos de adaptação

cultural e desenvolvimento evolutivo.' Eles compactaram suas instituiçõesdentro dos limites de inférteis atóis de coral, expandiram-nas em ilhas vul-

cânicas e criaram, com os meios que a história lhes deu, culturas adapta-

das aos desertos da Austrália, às montanhas e às áreas costeiras quentes daNova Guiné e às florestas tropicais das ilhas Salomão. Desde os aborígines

australianos, cuja vida de caçadores e coletores reproduz em linhas geraisa vida cultural do Paleolítico tardio, até as grandes chefias do Havaí, onde

a sociedade se aproximou dos níveis formadores das antigas civilizações do

Crescente Fértil, quase todas as fases gerais do progresso da cultura primitiva

são exemplificadas.Ali onde a cultura faz assim seus experimentos, a antropologia encontra

seus laboratórios - tece suas cornparações.ê

* Originalmente publicado em Comparative Studies in Society and History, v. 5,n. 3, 1963.

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o CULTURA NA PRÁTICA

No Pacífico meridional e oriental, duas províncias culturais contrastantes

despertam, há muito tempo, o interesse antropológico: a Melanésia, que

inclui a Nova Guiné, o arquipélago de Bismarck, as ilhas Salomão e algunsgrupos de ilhas a leste de Fiji; e a Polinésia, composta, em sua maior parte,

da constelação triangular de terras entre a Nova Zelândia, a ilha de Páscoa

e as ilhas do Havaí. Dentro e ao redor de Fiji, a Melanésia e a Polinésia trans-

mudam-se culturalmente uma na outra, mas, a oeste e a leste de sua inter-

secção, essas duas áreas apresentam amplos contrastes em vários setores: na

religião, na arte, nos grupos de parentesco, na economia e na organização

política. As diferenças são ainda mais notáveis em virtude das semelhanças

subjacentes das quais emergem. Tanto a Melanésia quanto a Polinésia são

regiões agrícolas onde, desde longa data, se cultivam várias lavouras - comoas de inhame, taro, fruta-pão, banana e coco - com técnicas semelhantes.

Aliás, alguns estudos lingüísticos e arqueológicos recentemente apresenta-

dos sugerem que, durante o primeiro milênio a.C.,3 as culturas polinésiasse originaram de um foco na Melanésia oriental. Entretanto, nos anais antro-

pológicos, os polinésios tornaram-se famosos pelas elaboradas formas de

hierarquia e chefia, enquanto a maioria das sociedades melanésias inter-

rompeu o avanço nessa frente em níveis mais rudimentares.É obviamente inexato, contudo, estabelecer o contraste político em

termos genéricos de áreas culturais. Na Polinésia, algumas das ilhas (como o

Havaí, as ilhas da Sociedade e Tonga) desenvolveram um ímpeto políticosem paralelo. E nem todas as sociedades melanésias, por outro lado, foram

cerceadas e truncadas em sua evolução. Na Nova Guiné e nas áreas próximasda Melanésia ocidental, são numerosos os grupos políticos pequenos e

frouxamente organizados, mas, na Melanésia oriental (Nova Caledônia e

Fiji, por exemplo), aproximações políticas da condição polinésia tornam-secomuns. No Pacífico meridional, o que se observa no desenvolvimento po-

lítico é mais uma rampa ascendente, de oeste para leste, do que uma progres-são quantitativa em degraus." É muito revelado r, entretanto, comparar os

extremos desse continuum - o subdesenvolvimento da Melanésia ociden-

tal e as grandes chefaturas da Polinésia. Embora essa comparação não esgote

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as variações evolutivas, ela estabelece razoavelmente bem o âmbito das con-

quistas políticas globais desse filo cultural do Pacífico.

Mensurável em diversas dimensões, o contraste entre as sociedades

desenvolvidas da Polinésia e as subdesenvolvidas da Melanésia impressiona

imediatamente pelas diferenças de escala. H. Ian Hogbin e Camilla Wedgwood

concluíram, com base num levantamento de sociedades melanésias (sobretudo

da Melanésia ocidental), que os corpos políticos independentes e ordenadosda região incluem, geralmente, de setenta a trezentas pessoas; trabalhos mais

recentes, feitos nos planaltos da Nova Guiné, sugerem grupos políticos de

até mil pessoas e, vez por outra, de alguns milhares delas (Hogbin e Wedgwood,1952-1953, 1953-1954).5 Na Polinésia, porém, os domínios com dois ou

três mil habitantes são corriqueiros, enquanto as chefaturas mais adiantadas,

como as de Tonga ou do Havaí, podem ter dez mil e até dezenas de milhares."

Variando paralelamente a essas diferenças no tamanho da unidade política,

temos as diferenças de extensão territorial: desde algumas milhas quadradas,

na parte ocidental da Melanésia, até dezenas ou mesmo centenas de milhas

quadradas, na Polinésia.

O avanço polinésio na escala política, em relação à Melanésia, foi res-

paldado pelo avanço na estrutura política. A Melanésia apresenta uma vasta

gama de formas sociopolíticas: a organização política baseia-se em grupos

de descendência patrilinear, enquanto, na Polinésia, ela se baseia em grupos

cognáticos, ou em clubes masculinos que recrutam membros da vizinhança,

ou em sociedades cerimoniais secretas, ou ainda, quem sabe, em alguma

combinação desses princípios estruturais. Mesmo assim, é possível discernirum plano geral. A "tribo" característica da Melanésia ocidental, isto é, a entidade

étnico-cultural, compõe-se de muitos grupos autônomos residenciais e de

parentesco. Correspondendo, no espaço, a um pequeno vilarejo ou a um

aglomerado local de aldeolas, cada um desses grupos é uma cópia dos demais

em sua organização, cada qual tende a ser economicamente autônomo, e

todos são equivalentes uns aos outros em status político. O plano tribal

melanésio é constituído de segmentos politicamente não integrados - é

segmentar. Mas a geometria política da Polinésia é piramidal. Os grupos

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locais da ordem das comunidades melanésias autônomas aparecem na Polinésiacomo subdivisões de um corpo político mais inclusivo. As unidades menoresintegram-se nas maiores por meio de um sistema de hierarquia intergrupal, e

a rede dos chefes representativos das subdivisões corresponde a uma estruturapolítica de coordenação. Assim, ao contrário do esquema melanésio de blocos

políticos pequenos, separados e iguais, a constituição política polinésia é umavasta pirâmide de grupos, encimada pela família e pelos seguidores de um

chefe supremo. (Freqüentemente, mas nem sempre, esse desfecho polinésioé facilitado pelo desenvolvimento de linhagens hierarquicamente ordenadas.

Chamada de clã cônico por Kirchhoff, de ramagem por Firth, em certa época,

e de linhagem de status por Goldman, a linhagem hierarquizada polinésia éidêntica, em princípio, ao chamado sistema obok, largamente distribuído na

Ásia Central, e é pelo menos análoga ao clã escocês, ao clã chinês, a certos

sistemas de linhagem banto da África Central, aos grupos domiciliares [house-groups] dos índios da Costa Noroeste e talvez até às "tribos" dos israelitas

(Kirchhoff, 1955; Firth, 1957; L Goldman, 1957; Bacon, 1958; Fried, 1957).

A graduação hierárquica genealógica é seu traço característico: os mem-bros de uma mesma unidade de descendência são ordenados de acordo com

a distância genealógica do ancestral comum; linhas do mesmo grupo tor-

nam-se ramos superiores, seniores, e inferiores, cadetes, com base nesse princí-

pio; os grupos de linhagens aparentadas são relativamente hierarquizados,

novamente de acordo com a prioridade genealógica.)Eis um outro critério do avanço político polinésio: o desempenho his-

tórico. Quase todos os povos nativos do Pacífico Sul foram confrontadoscom uma intensa pressão cultural européia no fim do século XVIII e duranteo século XIX. No entanto, apenas os havaianos, os taitianos, os tonganeses e,

em menor grau, os fijianos defenderam-se com sucesso, desenvolvendo co-

mo contrapeso Estados nativos. De organização rematada, com governos pú-blicos e legislação pública, monarcas e impostos, ministros e funcionários su-

balternos, esses Estados oitocentistas são um testemunho do talento políticopolinésio, e do nível e do potencial das realizações políticas indígenas.

Embutido nas enormes diferenças de escala política, estrutura e desem-

penho, há um contraste mais pessoal, referente à natureza da liderança. Um

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tipo historicamente específico de figura de líder, o "grande-homem", como

costuma ser localmente denominado, aparece nos contextos subdesenvolvidosda Melanésia. Um outro tipo, o chefe propriamente dito, associa-se ao avanço

polinésio." Ora, ocorre que esses são tipos sociológicos distintos, ou seja, as di-

ferenças de poder, privilégios, direitos, deveres e obrigações entre os grandes-

homens melanésios e os chefes polinésios são indicadas pelos contextos so-cietários divergentes em que eles operam. Todavia, as distinções institucionais

não podem deixar de manifestar-se também em diferenças de postura e caráter,aparência e estilo - numa palavra, de personalidade. Talvez começar com um

esboço calcado em impressões gerais da dimensão humana do contraste sejauma boa maneira de dar início à comparação sociológica mais rigorosa da

liderança. Neste ponto, parece-me útil aplicar caracterizações - ou serão cari-

caturas? - de nossa própria história aos grandes-homens e aos chefes, por mais

que isso não faça justiça aos antecedentes historicamente incomparáveis dosmelanésios e polinésios. O grande-homem melanésio parece inteiramente

burguês, fazendo lembrar muito o indivíduo rude e empreendedor que en-contramos em nossa própria herança. Ele combina um interesse ostensivo

pelo bem-estar geral com uma dose mais profunda de astúcia egoísta e cál-

culo econômico. Seu olhar, como talvez dissesse Veblen, volta-se com fixidez

para a grande oportunidade. Cada um de seus atos públicos é destinado aestabelecer uma comparação competitiva e hostil com os outros, a exibir umaposição superior à das massas, que é produto de sua criação pessoal. A cari-

catura histórica do chefe polinésio, entretanto, é mais feudal do que capi-

talista. Sua aparência e seu porte são quase régios; é muito provável que elesimplesmente seja um grande-homem - "não está vendo que ele é um chefe?

Vê como ele é grande?" (Gifford, 1929, p. 124). Em cada um de seus atos pú-

blicos há uma exibição dos requintes de sua formação e, em suas maneiras,

há sempre a noblesse oblige do verdadeiro pedigree e do direito incontestávelà dominação. Sendo sua posição menos uma conquista pessoal do que algoque por justiça lhe é socialmente devido, ele pode se dar ao luxo de ser - e é

- um chefe até o último fio de cabelo.

Nas diversas tribos melanésias em que os grandes-homens foram

submetidos ao escrutínio antropológico, diferenças culturais locais modificam

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a expressão de seus poderes pessoais." Mas a qualidade indicativa da auto-ridade do grande-homem é a mesma em toda parte: é o poder pessoal Osgrandes-homens não são empossados; não são sucessores nem instaladosem posições existentes de liderança em grupos políticos determinados. Aocontrário, a conquista do status de grande-homem é produto de uma sériede atos que elevam a pessoa acima da horda comum e atraem para ela umcírculo leal de homens menores. Não é exato falar de "grande-homem" comoum título político, pois ele é apenas uma posição reconhecida nas relaçõesinterpessoais - um "príncipe entre os homens", por assim dizer, em contrastecom "O Príncipe dos Dinamarqueses". Em determinadas tribos da Mela-nésia, a expressão pode ser "homem de importâncià' ou "homem de renome","h' ""h d "l ' de " d h "ornem rico e generoso ou ornem o centro ,a em e gran e- ornem.

Implícita nessa série de expressões, encontra-se uma espécie de bila-teralidade da autoridade, uma divisão do campo de influência do grande-homem em dois setores distintos. "Homem do centro" conota, particular-mente, um aglomerado de seguidores reunidos em torno de um eixo in-fluente. No plano social, implica a divisão da tribo em grupos políticos ex-clusivos, dominados por personalidades ilustres. Para o seu próprio grupo, o

grande-homem apresenta este tipo de imagem:

O lugar do líder no grupo distrital (do norte de Malaita) é bemresumido por seu título, que poderia traduzir-se por "homem docentro". (...) Ele é como uma figueira-de-bengala, explicam osnativos, a qual, apesar de ser a maior e mais alta árvore da floresta,continua a ser uma árvore como as outras. Entretanto, justamentepor ultrapassar todas as demais, a figueira-de-bengala serve desuporte para mais cipós e trepadeiras, fornece mais alimento aospássaros e oferece melhor proteção contra o sol e a chuva. (Hogbin,1943-1944, p. 258)

Mas "homem de renome" conota um campo tribal maior, no qual ohomem é menos um líder do que uma espécie de herói. Esse é o lado dogrande-homem voltado para fora de sua própria facção, referente a seu statusentre alguns ou todos os outros aglomerados políticos da tribo. A esferapolítica do grande-homem divide-se num pequeno setor interno compostode seus satélites pessoais - raramente mais de oitenta homens - e num setor

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externo muito maior, constituindo a galáxia tribal de muitas constelaçõessemelhantes.

Ao passar do setor interno para o externo, o poder do grande-homemsofre uma mudança qualitativa. Dentro de sua facção, o líder melanésio temuma verdadeira capacidade de comando, mas, fora dela, apenas prestígio e

influência indireta. Não é que o homem do centro dirija sua facção pelaforça física, mas seus seguidores sentem-se obrigados a obedecer a ele, que

em geral consegue o que quer- fazendo-lhes sermões - por meio da persuasãoverbal pública. As órbitas das pessoas de fora, entretanto, são determinadas

por seus próprios homens do centro. "Faça você mesmo. Não sou um jogueteseu" - seria a resposta típica a uma ordem dada por um homem do centro a

alguém de fora, entre os siuai (Oliver, 1955, p. 408).9 Essa fragmentação daverdadeira autoridade traz dificuldades políticas especiais, particularmente na

organização de grandes massas de pessoas para a consecução de objetivoscoletivos como guerra ou cerimônias. Os grandes-homens instigam realmente

a ação das massas, mas apenas por meio do estabelecimento de uma amplafama e de relações pessoais especiais de coerção ou reciprocidade com outros

homens do centro.Nessas sociedades melanésias, a maior parte da política é politica-

gem pessoal e, normalmente, o tamanho da facção do líder e a extensão deseu prestígio são estabelecidos pela competição com outros homens ambi-

ciosos. Pouca ou nenhuma autoridade é conferida por atribuição social: aliderança é uma criação - uma criação de seguidores. "Os seguidores", comofoi escrito sobre os kapauku da Nova Guiné, "têm relações variadas com o

líder. Sua obediência às decisões do chefe é causada por motivações querefletem suas relações particulares com o líder" (Pospisil, 1958, p. 81). Assim,

um homem tem de estar preparado para demonstrar possuir as aptidões que

despertam respeito - poderes mágicos, mestria na horticultura, domínio doestilo oratório e, talvez, bravura na guerra e nos conflitos. 10 Geralmente deci-siva é a exibição das habilidades e esforços pessoais num determinado sentido:

na acumulação de bens, quase sempre porcos, moedas de conchas e alimentosvegetais, e na distribuição deles de maneira que lhe proporcionem prestígiopela generosidade desprendida, se não pela compaixão. A facção se desenvolve

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por meio do auxílio privado informal às pessoas de um lugar. A posição e orenome na tribo são desenvolvidos por grandes doações públicas patrocinadaspelo grande-homem em ascensão, muitas vezes em benefício de sua facção e

dele mesmo. Em diversas tribos da Melanésia, a distribuição pública geradora

de prestígio pode aparecer como uma parte de uma troca atrasada de porcos

entre grupos associados de parentesco; uma recompensa matrimonial dada

aos parentes da noiva; um conjunto de festas ligadas à construção da residênciado grande-homem, ou de um clube para ele e sua facção, ou ainda a compra

de posições superiores em sociedades secretas; o patrocínio de uma cerimônia

religiosa; o pagamento de subsídios e indenizações a aliados militares; ou,talvez, a doação seja um desafio cerimonial feito a outro líder, na tentativa de

dar mais do que ele e, portanto, superar sua posição (um potlatch).A formação da facção, entretanto, é a verdadeira obra do grande-homem

melanésio. É essencial estabelecer relações de lealdade e obrigação com váriaspessoas, de tal modo que a produção delas possa ser mobilizada para uma

distribuição externa geradora de prestígio. Quanto maior a facção, maior o

renome; uma vez gerado o impulso na distribuição externa, o inverso tambémpode ser verdadeiro. Qualquer homem ambicioso, capaz de reunir um grupode seguidores, pode iniciar uma carreira social. No início, o grande-homem

em ascensão depende necessariamente de um pequeno núcleo de seguidores,

sobretudo membros de seu grupo doméstico e seus parentes mais próximos.Essas são pessoas que ele pode dominar economicamente: ele capitaliza, em

primeiro lugar, as obrigações de parentesco, por meio do aprimoramento darelação de reciprocidade apropriada entre parentes próximos. Numa fase

inicial, muitas vezes torna-se necessário aumentar o próprio grupo doméstico.O líder em ascensão esforça-se ao máximo por incorporar em sua família

vários tipos de "extraviados" - pessoas sem respaldo familiar próprio, como

viúvas e órfãos. Esposas adicionais são especialmente úteis. Havendo mais

mulheres no cultivo da terra, há mais alimento para os porcos e maisporqueiras. Falando em inglês pidgin, um papua de Kiwai assim se expressou,

quando, de modo pitoresco, enumerou para um antropólogo as vantagens

econômicas e políticas da poligamia: "Outra mulher vai para horta, outra

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HOMEM POBRE, liOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE o

mulher pega lenha, outra mulher vai pegar peixe, outra mulher cozinha paraele - marido chama porção de gente, diz vem kaikai (isto é, venham come~

(Landtrnan, 1927, p. 168). Aliás, cada novo casamento cria, para o grande-Jhomem, um conjunto adicional de afins dos quais ele pode cobrar favoreseconômicos. Por último, a carreira do líder mantém sua ascensão quando

ele é capaz de vincular à sua facção outros homens e suas famílias, atrelando

a produção desses à sua ambição. Isso é feito por meio de atos calculados

de magnanimidade, que colocam os outros em posições de gratidão e deobrigação, devido a alguma ajuda generosa que lhes é dada. Uma técnica

comum é o pagamento do dote da noiva em nome de rapazes que estejamà procura de esposas.

Ao analisar a economia primitiva, o grande Malinowski usou uma

expressão feliz para descrever exatamente o que faz o grande-homem: eleacumula um "fundo de poder". O grande-homem é aquele que pode criar eusar relações sociais que lhe conferem influência sobre a produção alheia e

capacidade de sugar uma produção excedente - ou então, de vez em quando,

pode reduzir o consumo dos outros a bem dessa sucção. Mas, embora suaatenção possa voltar-se primordialmente para os interesses pessoais imedia-

tos, o líder, do ponto de vista objetivo, age no sentido de promoverinteresses

sociais de longo prazo. O fundo de poder patrocina atividades que envol-vem outros grupos da sociedade em geral. Na perspectiva mais ampla dessasociedade em geral, os grandes-homens são meios indispensáveis para a cria-

ção da organização supralocal: em tribos normalmente fragmentadas em pe-

quenos grupos independentes, os grandes-homens ampliam, ao menos tem-porariamente, a esfera das cerimônias, da recreação e da arte, da colaboração

econômica e também da guerra. Essa organização societária maior, entre-tanto, sempre depende da organização faccional menor, e particularmente

dos limites impostos à mobilização econômica pelas relações entre homens

do centro e seguidores. Os limites e fraquezas da ordem política em geral sãotambém os limites e fraquezas dos grupos faccionais que a compõem.

E a natureza pessoal da subordinação ao homem do centro é um grave

ponto fraco na estrutura faccional. A lealdade pessoal tem de ser construída

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e reforçada continuamente; havendo insatisfação, pode ser facilmente rom-

pida. A simples criação de uma facção exige tempo e esforço, e sua manu-tenção, mais esforço ainda. O rompimento potencial dos laços pessoais nacadeia faccional está no cerne de duas grandes desvantagens evolutivas dasordens políticas da Melanésia ocidental. Primeiro, uma relativa instabilidade:

as inclinações mutáveis e o magnetismo dos homens ambiciosos numa região

podem induzir a flutuações nas facções, talvez a uma certa superposição delas,

e também a flutuações na extensão dos diferentes renomes. A morte de um

homem do centro pode converter-se num trauma político regional: a marte

solapa a facção pessoalmente cimentada, a grupo se dissolve, no todo ou emparte, e as pessoas acabam se reagrupanda em torna de grandes-homens em

ascensão. Embora determinadas estruturas tribais amorteçam aqui e ali adesorganização, o sistema político do grande-homem costuma ser instável

a curto prazo: em sua superestrutura, ele é um fluxo de líderes em ascensão.

e em queda, e em sua subestrutura, um fluxo de facções em expansão e

contração. Segundo, o laço político pessoal contribui para o refreamento. doavanço evolutivo. A possibilidade da deserção, é claro, freqüentemente inibe

a capacidade do líder de farçar a aumenta da produção de seus seguidores,

com isso impondo restrições a uma organização política superior; mas não.é só: para poder gerar um grande impulso, a busca da auge da prestígio pela

grande-homem tende a acarretar uma contradição. em seu relacionamento

com os seguidores, de modo que ele se descobre estimulando a deserção - oupior, uma rebelião igualitária - ao estimular a produção.

Um dos aspectos da contradição. melanésia é a reciprocidade econômica

inicial entre a homem do centro e seus seguidores. Em troca da ajuda daquele,estes oferecem a sua, e, em troca dos bens que saem pelas mãos do primeiro,

outros bens (muitas vezes provenientes de facções externas) refluem para seus

seguidores pelo mesmo caminho. O outro aspecto é que a construção cumula-tiva do renome força os homens do centro. à extorsão econômica da facção.Nesse aspecto, a importante é que não. apenas seu próprio status, mas a posição

e, talvez, a segurança militar de sua gente dependem das realizações do grande-

homem na distribuição pública. Estabelecido à testa de uma facção de dimen-

sões consideráveis, o homem do centro está sob uma pressão. crescente de (QS:-

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trair produtos de seus seguidores, adiar as reciprocidades que lhes são devi-

das e desviar para a circulação externa as mercadorias recebidas. O sucesso na

competição com outros grandes-homens mina particularmente as recipro-cidades faccionais internas: tal sucesso é medido exatamente pela capaci-

dade de dar às pessoas de fora mais do que elas têm possibilidade de retribuir.

Nas sociedades bem-delineadas de grandes-homens encontramos líderesque desconsideram as obrigações de reciprocidade sobre as quais se alicer-

çaram suas facções. Para substituir a reciprocidade pela extorsão, eles têm de

obrigar seu povo a "comer o prestígio do líder", nas palavras de um grupo das

ilhas Salomão, em troca dos esforços produtivos. Alguns homens do centroparecem mais capazes do que outros para refrear a inevitável maré de insatis-

fação que se eleva dentro de suas facções, talvez em virtude de uma personali-

dade carismática, talvez por causa das organizações sociais específicas em queoperam. 11 Paradoxalmente, porém, a defesa suprema da posição do grande-homem é uma certa redução de seu ímpeto para aumentar o fundo de poder.

A alternativa é muito pior. Nos anais da antropologia existem não apenas

exemplos de chicanice dos grandes-homens e de privação material dos mem-

bros da facção em prol do prestígio, como também de sobrecarga das relações

sociais entre líder e seguidores: gerando antagonismos, deserções, e, em casosextremos, a eliminação violenta do homem do centro. 12 Ao desenvolver li-

mitações internas, a ordem política melanésia do grande-homem mantém o

avanço evolutivo num certo nível. Ela estipula limites para a intensificação

da autoridade política, para a intensificação da produção doméstica por meios

políticos e para o desvio da produção doméstica em apoio à organização po-lítica mais ampla. Na Polinésia, entretanto, esses limites foram rompidos e,embora as chefias polinésias também tenham atingido seu patamar máxi-

mo de desenvolvimento, isso só ocorreu depois de a evolução política haver

ultrapassado os tetos existentes na Melanésia. As falhas fundamentais do plano

rnelanésio foram superadas na Polinésia. A divisão entre pequenos setorespolíticos internos e setores externos maiores, em torno da qual girava toda

a política dos grandes-homens, foi eliminada, na Polinésia, pelo desenvolvi-

mento de chefaturas abrangentes. Uma cadeia de comando que subordinavaos chefes e grupos menores a outros maiores, com base em uma hierarquia

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intrínseca de posições, levou blocos locais ou séquitos pessoais (como os que

eram independentes na Melanésia) a se transformarem em meras partes de-pendentes de uma chefatura maior. Com isso, o eixo da chefatura polinésia

passou a ser um amplo conjunto de cargos, uma pirâmide de chefes superiores

e inferiores, dominando setores maiores e menores da unidade política. Arigor, o sistema de linhagens ordenadas e subdivididas (sistema de clãs cônicos),com base no qual normalmente era estabeleci da a pirâmide, podia continuar

crescendo por meio de várias ordens de inclusão e abarcar a totalidade deuma ilha, ou de um grupo de ilhas. Conquanto a ilha ou o arquipélago

fossem normalmente divididos em várias chefaturas independentes, vínculosde linhagem de ordem superior existentes entre elas, assim como laços de

parentesco existentes entre seus chefes maiores, forneciam vias estruturaispara uma expansão ao menos temporária da escala política, para a consolidaçãode grandes chefaturas em outras cada vez maiores. 13

O chefe supremo axial, bem como os chefes que controlavam partes de

uma chefatura, eram verdadeiros detentores de cargo e de título. Não eram,

como os grandes-homens melanésios, pescadores de homens: detinham

posições de autoridade sobre grupos permanentes. Do mesmo modo, ostítulos honoríficos dos chefes polinésios não se referiam a uma posição nasrelações interpessoais, mas a sua liderança de divisões políticas - nesse caso,

tratava-se do "Príncipe dos Dinamarqueses" e não de um "príncipe entre oshomens". Na Melanésia ocidental, as superioridades e inferioridades pes-

soais emergentes na interação de determinados homens definiam, predomi-

nantemente, os corpos políticos. Na Polinésia, surgiram estruturas suprapes-soais de liderança e de grupamento, organizações que tinham continuidadeindependentemente dos homens específicos que nelas ocupavam posições

durante breves intervalos mortais.Esses chefes polinésios não criavam suas posições na sociedade - eram

instalados em posições sociais já existentes. Em várias ilhas do arquipélago,os homens competiam pelo cargo, batendo-se contra a vontade e os estra-

tagemas dos aspirantes rivais. Mas, afinal, chegavam ao poder. O poder resi-dia no cargo; não era criado pela demonstração de uma superioridade pessoal.

Noutras ilhas - o Taiti celebrizou-se por isso - a sucessão à chefia era rigo-

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rosamente controlada pela posição hierárquica intrínseca. A linhagem diri-

gente governava em virtude de suas ligações genealógicas com a divindade, eos chefes eram sucedidos pelos filhos primogênitos, que traziam "no sangue"os atributos da liderança. O ponto importante da comparação é este: as

qualidades de comando que tinham de estar presentes nos homens da Me-

lanésia, que tinham de ser pessoalmente demonstradas para atrair segui-dores leais, eram, na Polinésia, socialmente atribuídas aó cargo e à posiçãohierárquica. Na Polinésia, as pessoas de posição e cargo elevados eram líderes

justamente por essa razão e, da mesma forma, as qualidades de liderançaestavam automaticamente ausentes - não lhes competia indagar por quê - na

população subalterna. Os poderes mágicos que um grande-homem mela-

nésio podia adquirir para sustentar sua posição eram herdados pelo chefe

supremo polinésio de sua ascendência divina, como o mana que santificava

sua dominação e protegia sua pessoa das mãos da plebe. A capacidade pro-dutiva que o grande-homem tinha laboriosamente de demonstrar, era dada

sem esforço aos chefes polinésios, na forma de um controle religioso sobre a

fertilidade agrícola, e o resto do povo era tido como dependente de sua im-plernentação cerimonial. Enquanto um líder melanésio tinha de dominar o

estilo oratório persuasivo, os dirigentes supremos polinésios comumentecontavam com "porta-vozes" ["talking chiefi"] treinados, cuja voz era a ordem

do chefe principal.

Na visão polinésia o poder de um chefe fazia parte da natureza das coisas.Mas isso meramente implica a observação objetiva de que seu poder era do

grupo, e não dele próprio. Sua autoridade vinha da organização, da aquies-

cência organizada a seus privilégios e aos meios organizados para preser-vá-los. Nos fenômenos evolutivos, há uma espécie de paradoxo que separa o

exercício da autoridade da necessidade de demonstrar uma superioridade

pessoal: na verdade, a capacidade organizacionalarnplia o papel da decisão

pessoal e do planejamento consciente e lhe confere maior âmbito, impactoe eficácia. O desenvolvimento de um sistema político como o polinésio cons-

titui um avanço, em relação aos tipos melanésios de dominação interpessoal,

no controle humano das questões humanas. De especial importância para a

sociedade em geral eram os privilégios conferidos aos chefes polinésios que

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o CULTURA NA PRÁTICA

faziam deles maiores arquitetos de fundos de poder do que jamais foram

quaisquer grandes-homens melanésios.Como senhores do povo e "donos" oficiais dos recursos grupais, os chefes

polinésios tinham direito de mando sobre a mão-de-obra e a produção agrícola

das unidades domésticas situadas em seus domínios. A mobilização econômica

não dependia, como era necessariamente a situação dos grandes-homensmelanésios, da criação reiterada de lealdades pessoais e obrigações econômicas

por parte do líder. Um chefe não precisava se rebaixar para obsequiar este ou

aquele homem, e não precisava induzir os outros a apoiá-Ia mediante umasérie de atos individuais de generosidade, pois a primazia econômica sobreum grupo era seu direito intrínseco. Considerem-se as implicações, para o

fundo de poder, do privilégio largamente disseminado, relacionado à "posse"

titular da terra, de impor interdições ou tabus sobre a colheita de uma dada

lavoura, a fim de reservar seu uso para um projeto coletivo. De modo geral,o chefe dirige o curso da produção por meio do tabu: as famílias de seu

domínio têm de se voltar para outros meios de subsistência. Ele estimula

assim a produção familiar: na ausência do tabu, outros trabalhos não te-

riam sido necessários. E, o que é mais significativo, ele gera desse modo um

excedente agrícola politicamente utilizável. Um saque subseqüente nessesaldo garante a credibilidade da chefia como negócio corrente, capitali-

zando o fundo de poder. Em algumas ilhas, os chefes polinésios controla-vam grandes armazéns, que mantinham as mercadorias congeladas, pelas

pressões, principalmente sobre a plebe. David Mala, um dos grandes guardiães

nativos de antigos saberes havaianos, foi muito feliz na maneira como captoua importância política dos armazéns do chefe, em seu célebre Haiwaiian

Antiquities:

Era prática dos reis (ou seja, dos chefes supremos de ilhas parti-culares) construir armazéns para estocar alimentos, peixes, tapas(tecidos da casca da arnoreira), malas (tangas masculinas), pa-us(saias femininas) e toda sorte de mercadorias. Esses armazéns eramconcebidos pelo kalaimoku (o principal executivo do chefe) comoum meio de manter a população satisfeita para que ela não aban-donasse o rei. Eles eram como os cestos usados para apanhar peixes

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE o

hinalea. O hinalea achava que havia alguma coisa boa dentro docesto e ficava circulando em volta dele. Do mesmo modo, as pessoasachavam que havia alimentos nos armazéns e ficavam de olho norei. Assim como o rato não abandona a despensa (...) na qual acre-dita haver comida, as pessoas não abandonam um rei enquantoacham que há alimentos em seu armazém. (1903, p. 257-258)

A redistribuição do fundo de poder era a arte suprema da política

polinésia. Por meio de uma bem-planejada noblesse oblige, o grande domí-

nio de um chefe supremo era mantido, ocasionalmente organizado paragrandes projeros, protegido contra outras chefaturas e, além disso, aumen-tado. Os usos desse fundo incluíam a pródiga hospitalidade e o entreteni-

mento oferecidos aos chefes de fora e ao povo do próprio chefe, bem como

ajuda a indivíduos ou à população em geral em épocas de escassez - pão ecirco. Os chefes subsidiavam a produção artesanal, promovendo, na Poli-nésia, uma divisão do trabalho sem paralelo, em extensão e grau de espe-

cialização, na maior parte do Pacífico. Eles também davam apoio a gran-des realizações técnicas, como complexos de irrigação, cujos benefícios adi-

cionais engrossavam a reserva da chefia. Iniciavam ainda construções reli-giosas de larga escala, subsidiavam as grandes cerimônias e organizavam oapoio logístico às grandes campanhas militares. Maiores e mais facilmente

reabastecidos do que seus equivalentes da Melanésia ocidental, os fundos de

poder polinésios permitiam melhor regulação política de uma gama maisampla de atividades sociais em maior escala.

Nas chefaturas polinésias mais avançadas, como no Havaí e no Taiti,

uma parcela significativa do fundo de poder era desviada da redistribuiçãogeral para a manutenção da instituição da chefia. Esse fundo era assim ca-nalizado para respaldar uma organização administrativa permanente. Em

certa medida, os bens e serviços com que o povo contribuía sedimentavarn-

se nas residências grandiosas, nos salões de reunião e nas plataformas dostemplos dos recintos dos chefes. Numa outra medida, eles eram apropriadospara prover o sustento dos círculos de dependentes, muitos deles parentes

próximos, que se aglomeravam em torno dos poderosos líderes supremos.

Nem todos eram parasitas inúteis. Eram quadros políticos: supervisares dos

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o CULTURA NA PRÁTICA

armazéns, porta-vozes, assessores cerimoniais, sumos sacerdotes intimamenteenvolvidos no governo político ou emissários que transmitiam instruções

por todo o território da chefatura. Nesses séquitos havia homens - no Taiti etalvez no Havaí, corpos especializados de guerreiros - cuja força podia ser

internamente canalizada como uma escora contra os elementos desarticula-

dores ou rebeldes. O chefe maior taitiano ou havaiano dispunha de sançõesmais convincentes do que o sermão. Controlava uma força física sempre de

prontidão, um corpo armado de executores, que lhe conferia domínio espe-

cialmente sobre os membros inferiores da comunidade. Embora, mais uma

vez, isso se pareça muito com a facção do grande-homem, as diferenças no

funcionamento do séquito dos grandes chefes polinésios são mais significa-tivas do que as semelhanças aparentes, superficiais. Para começar, o círculo

íntimo do chefe era economicamente dependente dele, e não o inverso. E, ao

despacharem politicamente seus quadros para os vários setores de sua che-fatura, ou contra as ordens inferiores, os grandes chefes polinésios detinhamo comando ali onde o grande-homem melanésio, no setor externo, possuía,

no máximo, renome.Isso não quer dizer que as avançadas chefias polinésias fossem isentas de

falhas internas e de disfunções potenciais ou reais. O grande aparato político-

militar indica o contrário. Os recentes trabalhos de Irving Goldman (1955,1957,1960) sobre a intensidade da "rivalidade de status" na Polinésia, reite-ram essa idéia, especialmente quando se considera que muito da rivalidade

de status nas chefaturas mais desenvolvidas, como a havaiana, correspondia a

uma revolta popular contra o despotismo, e não a uma mera disputa de I0osi-ção dentro da camada dominante. Isso sugere que as chefaturas polinésias,assim como os tipos melanésios de grande-homem, geravam, paralelamente

ao desenvolvimento evolutivo, pressões compensat6rias contra a autoridade,e que o peso dessas podia acabar bloqueando o desenvolvimento ulterior.

A contradição polinésia parece bastante clara. Por um lado, a chefia nuncaé desvinculada das amarras do parentesco e da ética econômica do parentesco.

Mesmo os maiores chefes polinésios eram concebidos como parentes su-

periores das massas, pais de seu povo, e a generosidade era-lhes imposta como

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE .:.

uma incumbência moral. Por outro lado, os principais líderes polinésios pa-

reciam inclinar-se a "comer demais do poder do governo", como dizem os tai-tianos, ou seja, a desviar uma parcela indevida da riqueza geral para a insti-tuição da chefia. 14 Esse desvio podia ser realizado pela redução do nível habi-

tual da redistribuição geral, diminuindo também as recompensas materiais

proporcionadas pela chefia à comunidade - a tradição atribui a essa causaa grande rebelião dos plebeus mangarevan (Buck, 1938, p. 70-77,160,165).

O desvio podia também consistir - e desconfio que isso acontecia mais co-

mumente - em exações maiores e mais impositivas feitas ao povo e aos chefesmenores, aumentando a renda do aparato da chefia, sem necessariamenteafetar o nível de redistribuição geral. Em qualquer desses casos, a chefatura

bem desenvolvida criava para si o paradoxo desanimado r de incitar a rebe-lião ao financiar sua autoridade. 15

No Havaí e em outras ilhas, é possível abstrair das histórias tradicionais

alguns ciclos de centralização e descentralização política. Em outras palavras,chefaturas maiores fragmentavam-se periodicamente em unidades menores e

depois se reconstituíam. Esse seria mais um indício de uma tendência a exigir

demais da estrutura política. Entretanto, como explicar o surgimento de umaparalisação do desenvolvimento, de uma incapacidade de sustentar o avanço

político além de um certo nível? Alegar uma propensão dos chefes para

consumir, ou uma propensão polinésia para se rebelar, não é suficiente: eSS(lSinclinações são promovidas pelo próprio avanço das chefaturas. Ao contrário,

temos razão para arriscar a idéia de que a notáveUei de Parkinson está por trás

disso tudo: a expansão progressiva da escala política acarretava um aumentodesproporcional do aparelho governamental, desequilibrando o fluxo da

riqueza a seu favor. A inquietação daí resultante cerceava as imposições dos

chefes, às vezes reduzindo a escala da chefatura ao nadir do ciclo periódico.

Uma comparação das exigências administrativas nas pequenas e grandes

chefaturas polinésias ajuda a estabelecer esse ponto.Uma chefatura menor, restrita a um vale estreito, como, digamos, nas

ilhas Marquesas, podia ser dirigida em caráter quase pessoal por um líder em

contato freqüente com uma população relativamente pequena. A descrição

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o CULTURA NA PRÁTICA

de Melville, em Tjpee, parcialmente romanceada - inclusive por seus detalhes

ernográficos, plagiados em parte -, deixa isso bastante claro (como umaalternativa, ver Handy, 1923; Linton, 1939). Mas os grandes chefes poliné-sios tinham de governar populações muito maiores, dispersas no espaço e

internamente organizadas. O Havaí, ilha com mais de 6.400 quilômetros

quadrados e uma população aborígine de quase cem mil habitantes, foi, em

algumas épocas, uma única chefatura; noutras, dividiu-se em duas ou até em

seis unidades independentes. E, em todas as ocasiões, cada chefatura com-

punha-se de grandes subdivisões governadas por subchefes poderosos. Vez

por outra uma chefatura do grupo havaiano estendia-se além dos confins

de uma das ilhas, incorporando parte de uma outra por meio da conquista.

Ora, essas chefaturas extensas tinham de ser coordenadas, drenadas para a

constituição de um fundo de poder central, protegidas de perturbações in-

ternas e, algumas vezes, congregadas em massa para conflitos militares dis-

tantes, talvez ultramarinos. E tudo isso devia ser implementado por meios

de comunicação ainda no estágio do boca a boca, e por meios de transporte

limitados ao corpo humano e às canoas. (A propósito, a extensão de certas

chefaturas maiores, aliada às limitações da comunicação e dos transportes,

sugere uma outra fonte possível de inquietação política - o fato de que o

ônus do sustento do aparelho governamental tendia a recair desproporcio-

nalmente sobre os grupos a que o chefe supremo tinha acesso mais fácil. 16)Nessas circunstâncias, a tendência da chefatura desenvolvida a multiplicar

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os quadros executivos, a se tornar pesada no topo, parece inteiramente fun-

cional, ainda que a resultante drenagem da riqueza leve à sua desarticulação.

Também funcionais, e constituindo similarmente um dreno material na che-

fatura como um todo, seriam as crescentes distinções, em termos do estilo

de vida, entre os chefes e o povo. As residências palacianas, a ornamenta-

ção e o luxo, o requinte e a cerimônia - em suma, o consumo ostensivo - por

mais que evoquem mero interesse pessoal, têm sempre uma importância

social mais decisiva. Criam entre governantes e governados essas distin-

ções odiosas tão conducentes a uma aceitação passiva - e, portanto, muito

econômica! - da autoridade. Ao longo da história, muitas organizações

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE o

políticas intrinsecamente mais poderosas do que as da Polinésia, com umalogística de governo mais segura, recorreram ao consumo ostensivo - in-

cluindo, em nossa época, alguns governos aparentemente revolucionáriose proletários, a despeito de todas as manifestações pré-revolucionárias de

solidariedade com as massas e de igualdade para as classes.

Na Polinésia, portanto, tal como na Melanésia, a evolução política é su-

jeita a curtos-circuitos eventuais em decorrência da sobrecarga nas relações

entre os líderes e seu povo. Porém a tragédia polinésia foi, de certo modo, o

inverso da tragédia melanésia. Na Polinésia, o teto evolucionário foi esta-belecido pela extorsão da população em favor da facção governante; na

Melanésia, pela extorsão da facção do grande-homem em favor da distri-

buição para a população em geral. E, o que é mais importante, o teto polinésio

era mais alto. Os grandes-homens melanésios e os chefes polinésios não re-

fletem apenas variedades e níveis diferentes de evolução política, mas tam-

bém exibem, em graus diferentes, a capacidade de gerar e de sustentar o pro-gresso político.

O que emerge particularmente de sua justaposição é o impacto mais

decisivo dos chefes polinésios na economia, e seu maior poder sobre a produção

das várias unidades domésticas. É aí que se decide o sucesso de qualquer

organização política primitiva: no controle que se pode ter sobre a economia

doméstica. É que a unidade doméstica não é apenas a principal unidadeprodutora nas sociedades primitivas; muitas vezes, ela é perfeitamente capaz

de uma direção autônoma de sua própria produção, e esta produção é orientada

para seu próprio consumo e não o da sociedade. O potencial maior das chefiaspolinésias residia justamente na pressão mais intensa que podiam exercer sobre

a produção familiar, em sua capacidade tanto de gerar excedentes quanto dedistribuí-los além da unidade doméstica, a favor de uma divisão do trabalho

mais ampla, da construção cooperativa e de ações cerimoniais e militares

maciças. Os chefes polinésios constituíam os meios mais eficientes de co-

laboração societária nas frentes econômica e política e, a rigor, em todas

as frentes culturais. Talvez nos tenhamos acostumado, por demasiado tem-

po, a enxergar a hierarquia e a dominação do ponto de vista dos indivíduos

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o CULTURA NA PRÃTICA

implicados, e não pelo prisma da sociedade total, como se o segredo da su-bordinação do homem ao homem residisse nas satisfações pessoais do po-der. E assim, também as desarticulações ou os limites da evolução têm sidobuscados nos homens, em reis "fracos" ou em ditadores megalomaníacos-sempre no "quem está em questão?". Uma incursão pelo campo da políticaprimitiva sugere a concepção mais fecunda de que os benefícios dos de-senvolvimentos políticos são mais decisivamente auferidos pela sociedadedo que pelos indivíduos, e de que também as falhas são da estrutura, nãodos homens.

Notas

Este texto é preliminar a uma comparação mais ampla e mais pormeno-rizada das sociedades e economias melanésias e polinésias. Eu apenas considereiaqui algumas das diferenças políticas mais notáveis entre as duas áreas. O estudocompleto - que, aliás, incluirá maior documentação - foi prometido aos editoresdo Journal o/ tbe Polynesian Society, e tenciono entregá-Io algum dia.

O método comparativo até aqui adotado nesta pesquisa envolveu a leitura demonografias e a tomada de notas. Não creio que eu tenha criado este método, masgostaria de batizá-lo de "método da comparação descontrolada". A presente descriçãode duas formas de liderança é uma destilação mental do método de comparaçãodescontrolada. Essas duas formas são tipos sociológicos abstraídos. Qualquer pes-soa familiarizada com a literatura antropológica do Pacífico Sul saberá que existemvariantes importantes desses tipos, assim como formas políticas excepcionais quenão são inteiramente tratadas aqui. Todos concordariam em que o exame das varia-ções e das exceções é necessário e desejável. No entanto, também há prazer e umacerta recompensa intelectual em descobrir os grandes padrões. Para justificar emtermos (sociolcientíficos meu prazer, eu poderia ter-me referido aos retratos aquitraçados dos grandes-homens melanésios e dos chefes polinésios como "modelos" oucomo "tipos ideais". Se isso é tudo o que é necessário para conferir respeitabilidadea este artigo, fique à vontade o leitor.

Espero que tudo isto tenha sido suficiente para desarmar os espíritos. Ou seráque também é preciso dizer que as hipóteses são provisórias, estão sujeitas a novaspesquisas etc.?

2 Desde a época de Rivers, o Pacífico tem proporcionado estímulo etnográficoa praticamente todas as grandes escolas e interesses etnológicos. Em grandes marcos

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE o

como a History of Melanesian Society, de Rivers, a "Social Organization of rhe Aus-tralian Tribes", de Radcliffe-Brown, os famosos estudos de Malinowski sobre as ilhasTrobriand, especialmente Argonauts of the Western Pacific, o livro pioneiro de Firth,Primitive Economics of the New Zealand Maori, e seu clássico funcionalista We, theTikopia, e ainda Coming of Age in Samoa, de Mead, pode-se quase que ler a históriada teoria etnológica do início do século XX. Além de continuar a oferecer todosesses interesses, o Pacífico tem sido a sede de muitos trabalhos evolucionistas recentes(ver, por exemplo, r. Goldman, 1955, 1960; Goodenough, 1957; M. Sahlins, 1958;Vayda, 1959). Existem também as monografias notáveis sobre temas especiais, quevão desde a agricultura tropical (Conklin, 1957; Freeman, 1955) até o milenarismo(Worsley, 1957).

3 Essa questão, no entanto, encontra-se presentemente em debate. Ver Grace,1955,_1959; Dyen, 1960; Suggs, 1960; Golson, 1961.

4 Existem saltos notáveis no gradiente geográfico, como as chefias das ilhasTrobriand ao largo da Nova Guiné oriental. Mas o desenvolvimento político dessasilhas é claramente uma exceção na Melanésia ocidental.

5 Sobre a escala política das terras altas da Nova Guiné, ver, entre outros,Paula Brown, 1960.

6 Ver exposição sucinta em M. Sahlins, 1958, especialmente p. 132-133.7 O padrão do grande-homem é muito difundido na Melanésia ocidental,

embora sua distribuição completa ainda não esteja clara para mim. As descrições an-tropológicas desse tipo de liderança variam desde meras sugestões de sua existência,como entre os orokaiva (F. E. Williams, 1930), os lesu (Powdermaker, 1933), ou os

povos interioranos do nordeste de Guadalcanal (Hogbin, 1937-1938a), até análises.excelentes e minuciosas, como a descrição de Oliver sobre os siuai de Bougainville \J

(1955). O padrão político dos grandes-homens foi mais ou menos extensamentedescrito em relação aos manus das ilhas do Almirantado (Mead, 1934, 1937a); aosto'ambaita do norte de Malaita (Hogbin, 1939, 1943-1944); aos tangu do nordesteda Nova Guiné (Burridge, 1960); aos kapauku da Nova Guiné Holandesa (Pospisil,1958, 1958-1959); aos kaoka de Guadalcanal (Hogbin, 1933-1934, 1937-1938b);ao distrito dos Seniang em Malekula (Deacon, 1934); aos gawà da região do golfodo rio Huon, na Nova Guiné (Hogbin, 1951); aos abelam (Kaberry, 1940-1941,1941-1942) e aos arapesh (Mead, 1937a, 1938, 1947) do distrito de Sepik, na NovaGuiné; aos elemas da baía de Orokolo, na Nova Guiné (F. E. Williams, 1940); aosngarawapum do vale de Markham, na Nova Guiné (Read, 1946-1947, 1949-1950);aos kiwai do estuário do Fly, na Nova Guiné (Landtman, 1927); e a diversas outrassociedades, inclusive, nas terras altas da Nova Guiné, como os kuma (Reay, 1959),

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os gahuka-gama (Read, 1952-1953, 1959), os kyaka (Bulmer, 1960-1961) e os enga(Meggitt, 1957, 1957-1958). Para uma visão geral da posição estrutural dos líderesdas terras altas da Nova Guiné, ver Barnes, 1962. Uma bibliografta parcial sobre achefia polinésia pode ser encontrada em M. Sahlins, 1958. A descrição etnográ-fica mais destacada é, naturalmente, a de Firth sobre os tikopia (1950, 1957) - ostikopia, porém, não são exemplos típicos das chcfaturas polinésias mais avança-das, nosso principal objeto de interesse aqui.

8 Assim, o encravamento do padrão do grande-homem numa organizaçãode linhagens segmentares, nas terras altas da Nova Guiné, parece restringir o papel

e a autoridade políticos do líder, em comparação, digamos, com o que aconteceentre os siuai. Nas terras altas, as relações intergrupais são parcialmente reguladaspela estrutura da linhagem segmentar; entre os siuai, as relações intergrupais de-pendem mais de arranjos contratuais entre os grandes-homens, o que dá a essasftguras um destaque maior. (Notável, nesse contexto, a maior viabilidade do grande-homem siuai frente ao controle colonial quando comparado à do líder nativo dasterras altas.) A comparação feita por Barnes entre a estrutura social dos planaltos eos sistemas segmentares clássicos de descendência encontrados na África sugereuma relação inversa entre a formalidade do sistema de linhagem e a importância

política da ação individual (1962). Ora, se pudermos introduzir na comparaçãocasos como os dos siuai, essa generalização poderá ser mais corroborada e am-pliada: entre as sociedades de nível rribal (cf. M. Sahlins, 1961; Service, 1962),quanto maior a auto-regulação do processo político por meio de um sistema dedescendência, menor é a função que resta para os grandes-homens e menos importanteé sua autoridade política.

9 Compare-se isso com a afirmação paralela em relação aos kaoka deGuadalcanal, em Hogbin, 1937-1938b, p. 305.

10 É difícil dizer até que ponto as qualificações militares da liderança foramimportantes na Melanésia, uma vez que as pesquisas etnográficas foram realizadas,em geral, depois da pacificação, às vezes muito depois dela. É possível que eusubestime esse fator. Compare-se com Bromley, 1960.

11 Aliás, é esse mesmo povo, os siuai, que se descobre tão explicitamentecomendo o renome de seu líder, o qual também parece ser capaz de absorver umaboa dose de privações sem reação violenta, pelo menos até que a onda de prestígiodo líder tenha chegado ao auge (ver Oliver, 1955, p. 362, 368, 387, 394).

12 "Na região do lago Paniai (na Nova Guiné Holandesa), as pessoas chegam

a ponto de matar o homem rico egoísta por sua 'imoralidade' .. Seus próprios filhosou irmãos são induzidos pelos demais membros da comunidade a disparar a primeira

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE Ó

flecha mortífera. 'Aki to tonowi beu, inii idikima enadani kodo to niítou (você nãodeve ser o único homem rico, todos devemos ser iguais, portanto, você fica apenasigual a nós}': foi essa a razão dada pelo povo paniai para o assassinato de MoteJuwopija, de Madi, um tonowi (termo dos kapauku para designar grande-homem),que não era suficientemente generoso." (Pospisil, 1958, P: 80, ver p. 108-110). Apropósito de uma outra conspiração igualitária, ver Hogbin, 1951, p. 145, e, quantoa outros aspectos da contradição da Melanésia, ver, por exemplo, Hogbin, 1939, p.81~ Burridge, 1960, p. 18-19; e Reay, 1959, p. 110, 129-130.

13 À parte alguns fenômenos transit6rios na Melanésia oriental, várias socie-

dades da Melanésia ocidental evoluíram para uma posição estrutural intermediáriaentre as sociedades melanésias subdesenvolvidas e as chefias polinésias. Nessas pro-rochefias da Melanésia ocidental, surgiu uma divisão atribuída de grupos de paren-tesco (ou segmentos deles) em categorias aptas e não aptas à chefia - como em Sa'a(Ivens, 1927), nas cercanias do passo Buka (Blackwood, 1935), na ilha de Manam(Wedgwood, 1933-1934, 1958-1959), em Waropen (Held, 1957), talvez em Mafulu(Williamson, 1912) e em vários outros lugares. O sistema de categorias sociais nãovai além da ampla divisão dual dos grupos entre os que são e os que não são aptospara a chefia: não se desenvolveu nenhuma pirâmide de divisões sociopolíticas

categorizadas segundo os moldes polinésios. A unidade política mantém-se próximado tamanho médio das comunidades autônomas da Melanésia ocidental. A influênciasobre os grupos de parentesco de um desses corpos locais recai, automaticamente,numa unidade apta para a chefia, mas os chefes não detêm o título de um cargocom direitos estipulados sobre setores incorporados da sociedade, e a ampliaçãoadicional da autoridade da chefia, para existir, tem de ser conquistada. Os nativos-jdas ilhas Trobriand, que levam a seu ponto mais alto essa linha de desenvolvimentoda chefia, continuam sujeitos às mesmas limitações, embora comumente tenhasido possível aos chefes poderosos integrarem em seus domínios outros povoadosdo setor externo (cf Powell, 1960).

14 Tradicionalmente, os grandes chefes taitianos eram instruídos a não comerdemais do poder do governo, bem como a praticar a generosidade com o povo(Handy, 1930, p. 41). Os chefes supremos havaianos recebiam exatamente a mes-ma orientação de seus conselheiros (MaIo, 1951, P: 255).

15 As tradições havaianas são muito claras quanto ao incentivo dado à re-belião pelas exações dos chefes - embora David Malo, uma de nossas maioresfontes sobre a tradição havaiana, forneça a ressalva mais sensata a respeito dessetipo de indício: "Não presumo", escreveu ele no prefácio de Haiwaiian Antiquities,"que a história que se segue seja isenta de erros, posto que seu material provém

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V CULTURA NA PRÁTICA

de tradições orais; conseqüentemente, ela é maculada por erros de julgamento hu-

mano e não se aproxima da exatidão da palavra de Deus."

Mala assinalou que "muitos reis foram condenados à morre pelo povo em

decorrência de sua opressão aos makaainana (isto é, os plebeus)" (1951, p. 258).

Em seguida, ele arrolou diversos dos que "perderam a vida por causa de suas

exigências cruéis", e juntou a essa lista a seguinte declaração: "Essa era a razão por

que alguns dos antigos reis tinham um medo salutar do povo." A propensão dos

chefes supremos havaianos a se apropriarem indevidamente do que pertencia à

plebe é um aspecto repetidamente salientado por Maio (1951, p. 85, 87-88, 258,267-268). Na reconstrução da história havaiana feita por Fornander (a partir de

tradições e genealogias), as revoltas internas são freqüentemente atribuídas, demaneira quase axiomática, às extorsões e à sovinice dos chefes (1880, p. 40-41, 76-

78,88, 149-150,270-271). Além disso, às vezes Fornander liga a apropriação da

riqueza, e as revoltas subseqüentes, ao sustento da instituição da chefia, como na

seguinte passagem:

Depois de algum tempo, a escassezde alimentos obrigou Kalaniopuu (chefesupremo da ilha do Havaí e meio-irmão do pai de Kamehameha I) a retirar suacone (do distrito de Kona) e transferi-Iapara o distrito de Koala, onde sua sedefoi instalada em Kapaau. Ali, teve continuidade a mesma política extravagantede laissez-faire, comilança e diversões que fora iniciada em Kona, e muitosresmungos e insatisfaçõescomeçaram a se manifestar entre os chefes residentese os cultivadores da terra, os makaainana. lmakakaloa, um grande chefe da re-gião de Puna, e Nuuarnpaahu, chefedos naalehu no distrito de Kau, tornaram- '1

se líderes e pontos para os quais convergiam os insatisfeitos. O primeiro delesresidia em suas terras, em Puna (no sudeste, em frente à ilha de Kohala, no no-roeste), e resistiu abertamente às ordens de Kalaniopuu e a suas exigênciasextravagantes de contribuições sob a forma de toda sorte de bens; o segundofreqüentava a corte de Kalaniopuu, em Kohala, mas estavasob forte suspeita defavorecer a insatisfação crescente. (Fornander, 1880, p. 200)

À parte o levante dos mangarevan, mencionado no texto, há alguns indíciosde revoltas semelhantes em Tonga (Mariner, 1827, p. 80; B. H. Thomson, 1894a,p. 294 ss) e no Tairi (Henry, 1928, p. 195-196,297).

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HOMEM POBRE, HOMEM RICO, GRANDE-HOMEM, CHEFE o

16 Sobre a dificuldade de sustentar o grande aparelho político do chefe su-premo havaiano, ver a citação de Fornander (nota anterior) e também Fornander,1880, p. 100-10 1, e Mala, 1951, p. 92-93 e passim. Os grandes chefes havaianosdesenvolveram a prática do circuito - como os monarcas feudais -, muitas vezesdeixando atrás de si um rastro de penúria, ao se mudarem com toda a sua pompade um distrito para outro, dentro do território da chefia.

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