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Não falemos mais em “meritocracia” Por Heitor Coelho* Alguns motivos pelos quais já passa da hora de, até mesmo para acatar a vontade do criador do termo, caridosamente o deixarmos de lado. A sequência de debates acerca do Plano Nacional de Educação (PNE), que vem ganhando algum vulto na mídia e na internet desde que o mesmo retornou à Câmara para ser debatido, após alterações no Senado (a trajetória pode ser devidamente revista e acompanhada na página do PL 8035/2010 na câmara, aprovada no último dia 29 de maio), vem trazendo a reboque consigo e reeditando – dentre outros temas relevantes – ainda outra vez o debate acerca da “meritocracia”, tendo em vista a importância que continuam ganhando, nele, as avaliações de desempenho (notadamente o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, IDEB). Mas esta palavra, “meritocracia”, mais do que inútil, é nociva: ela desvia de tal maneira o debate que torna impossível discutir o que realmente importa, fazendo mesmo com que ele retroceda. O espetáculo não é novo e a trama geral, bem como os atores, são mais ou menos os mesmos na educação (para não se falar de outras áreas) desde que as avaliações periódicas de desempenho entraram em pauta, e não requerem que os passemos profundamente em revista, ainda que seus papéis tenham tons mais complexos do que aqueles com os quais por vezes se quer pintá-los. Tomando os grupos “extremos”, se é que a designação cabe, o que temos é outro exemplo gritante de como se pode enxergar, no mesmo objeto, características precisamente opostas, e onde parte do sindicalismo da área, p. ex., vê “excesso” de “meritocracia”, muitos especialistas em gestão e economistas veem falta dela e excesso de “igualitarismo”. A diferença talvez esteja na força que esta última visão vem ganhando, se não em qualidade argumentativa, certamente em número de adeptos e barulho na rede: o neoconservadorismo vem erigindo, neste como em muitos outros debates, a “meritocracia” como princípio e bandeira. A postura é bem (mal) representada por articulistas da leva de Rodrigo Constantino, para quem “o primeiro grande pilar para uma boa educação é o conceito de meritocracia (sic; ele evidentemente quer dizer a própria, não o conceito dela), em detrimento ao igualitarismo ‘democrático’ que nivela todos por baixo” 1 .

Não Falemos Mais Em Meritocracia - CONTRAVISÕES

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No falemos mais em meritocraciaPor Heitor Coelho*

Alguns motivos pelos quais j passa da hora de, at mesmo para acatar a vontade do criador do termo, caridosamente o deixarmos de lado.

A sequncia de debates acerca do Plano Nacional de Educao (PNE), que vem ganhando algum vulto na mdia e na internet desde que o mesmo retornou Cmara para ser debatido, aps alteraes no Senado (a trajetria pode ser devidamente revista e acompanhada napgina do PL 8035/2010 na cmara, aprovada no ltimo dia 29 de maio), vem trazendo a reboque consigo e reeditando dentre outros temas relevantes ainda outra vez o debate acerca da meritocracia, tendo em vista a importncia que continuam ganhando, nele, as avaliaes de desempenho (notadamente o ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica, IDEB). Mas esta palavra, meritocracia, mais do que intil, nociva: ela desvia de tal maneira o debate que torna impossvel discutir o que realmente importa, fazendo mesmo com que ele retroceda.

O espetculo no novo e a trama geral, bem como os atores, so mais ou menos os mesmos na educao (para no se falar de outras reas) desde que as avaliaes peridicas de desempenho entraram em pauta, e no requerem que os passemos profundamente em revista, ainda que seus papis tenham tons mais complexos do que aqueles com os quais por vezes se quer pint-los. Tomando os grupos extremos, se que a designao cabe, o que temos outro exemplo gritante de como se pode enxergar, no mesmo objeto, caractersticas precisamente opostas, e onde parte do sindicalismo da rea, p. ex., v excesso de meritocracia, muitos especialistas em gesto e economistas veem falta dela e excesso de igualitarismo. A diferena talvez esteja na fora que esta ltima viso vem ganhando, se no em qualidade argumentativa, certamente em nmero de adeptos e barulho na rede: o neoconservadorismo vem erigindo, neste como em muitos outros debates, a meritocracia como princpio e bandeira. A postura bem (mal) representada por articulistas da leva de Rodrigo Constantino, para quem o primeiro grande pilar para uma boa educao o conceito de meritocracia (sic;ele evidentemente quer dizer a prpria, no o conceito dela), em detrimento ao igualitarismo democrtico que nivela todos por baixo1.

O argumento orbita a cartilha neoliberal, e a polarizao caricata que desenha ainda carrega as tintas da ltima fase da Guerra Fria: o Estado uma burocracia ineficiente, seus funcionrios, inertes e incompetentes devido estabilidade garantida pelo cargo e a ausncia de incentivos etc. Se queremos que as pessoas trabalhem bem, devemos incentiv-las, elevando cargos e salrios dos que se mostrarem mais eficientes e produtivos e, finalmente, punindo aqueles que no cumprirem adequadamente com seus deveres, negando-os aumento e promoo ou, mesmo, demitindo-os, tal e qual numa empresa privada; devemos, portanto, avaliar os desempenhos de pessoas e instituies da maneira mais isenta possvel, por meio de exames ou processos semelhantes, e com base nestes distribuir recompensas. Grosso modo seria isto a meritocracia.

Seria? Certamente o que autores como Constantino identificam sob o nome, ou algo muito parecido, se descontarmos as divergncias que, aqui, no faro diferena. Mas ocorre que a palavra no vai exatamente de encontro ao que supostamente designa. Na verdade, sob ao menos um aspecto muito relevante, ela no vai de encontro a nada que normalmente designe, porque no pode designar nada que no a mais basilar das noes.

Como j disse Cornelius Castoriadis ao tratar de democracia, a etimologia no resolve todos os problemas substanciais, mas pode por vezes ajudar a pensar2. No caso, ela realmente esclarecedora: meritocracia, a juno do latimmeritum,de onde vem nosso verbo merecer, com o gregokrata, poder, governo, significaria literalmente o poder a quem merece. E como poderia algum, em s conscincia, opor-se a uma ideia to evidente quanta esta, de que devemos dar o poder a quem o merece? Haveria mesmo quem acredite que o poder, em especial o poder de Estado e disso que se est falando quando discutimos sobre rgos estatais deva restar com quem no o merecesse? Ou, para dar discusso a abrangncia que tambm lhe cabe, se o poder legtimo significa direitos e os correspondentes deveres, como no concordar que com base no mrito que estes devem ser distribudos?

A resposta, claro, que na verdade no se tem notcia de ningum que seja contra esta ideia. Pelo contrrio, trata-se de uma das noes mais universalmente aceitas de todos os tempos; s que normalmente a designamos pela palavra justia. E apesar de toda a tinta derramada acerca de uma definio precisa do que ela , dificilmente se chega a algo muito distinto da conhecida frmula de Ulpiano: dar a cada um o que seu de direito, isto , o que ele merece. O verdadeiro debate acerca do que significa merecer.

Se tomamos a palavra meritocracia em seu sentido etimologicamente radical, portanto, chamar uma lei, ou um governo, ou uma empresa, ou uma brincadeira de pique-pega etc., de meritocrtica significa rigorosamente nada. Em todas estas situaes se distribuem direitos e deveres, com os consequentes benefcios e punies, conforme o que se designa como mrito; toda organizao social meritocrtica: a lei de Roma permitia escravos pelo mrito da conquista; o governo da Frana era de Lus XIV pelo mrito de seu nascimento nobre; a Universidade Estcio de S pertence a seus acionistas pelo mrito de terem tido dinheiro para pagar por suas aes; Joozinho caf-com-leite na brincadeira de pique-pega porque muito pequeno e merece a vantagem. E por a vai.

Provavelmente por isto nunca ocorrera a ningum unir estas duas palavras numa s at que Michael Young o fizesse, em 1958, com seuA Ascenso da Meritocracia; mas mesmo a ele no ocorreu faz-lo seno sob a forma de ironia. De fato, Young veio a, muitos anos depois, declarar-se decepcionado com seu livro, uma stira que pretendeu ser um aviso (que, desnecessrio dizer, no foi ouvido) contra o que poderia ocorrer ao Reino Unido, mas acabou por popularizar como positivo um termo que, para ele, mais do que simplesmente pejorativo, seria a principal caracterstica de um futuro de desigualdade social desastrosa (e que ele ainda viveu para ver se tornar, em grande parte, realidade). No pouco notar que Young foi publicamente contra o uso do termo pelo ento Primeiro-Ministro Tony Blair, mas, principalmente, contra o que a palavra expressava j em sua obra3.

Nela, onde uma sociedade obcecada por exames, testes e avaliaes, completamente organizada com base neles, revela-se desde logo o carter profundamente ideolgico que, muito ironicamente, o termo viria tambm a adquirir na realidade: desde ento quem diz meritocracia invariavelmente equaliza mrito com desempenho (ou, quando muito, com algum de seus componentes, como inteligncia ou esforo). Mas por que o desempenho mrito? Ele o sempre? Estas discusses, to fundamentais, a meritocracia convenientemente pula, passando direto aos critrios de definio e classificao do desempenho; nunca considera que o mrito possa ser, justificadamente, qualquer outra coisa. Da forma como usada, ela tenta se passar por sinnimo de justia e, nesta qualidade, ser capaz de rebater como evidentemente injusta toda forma de organizao que no se paute pelo mesmo norte.

Ocorre que h questes nas quais o desempenho no , no pode e no deve ser considerado o principal mrito. O direito vida, para buscar um exemplo radical, nada tem a ver com desempenho: nossa constituio o atribui a qualquer brasileiro ou estrangeiro residente, sem restries, incluindo a o direito integridade fsica. O que equivale a dizer: ningum merece ser torturado, ningum merece morrer por falta de abrigo, comida etc.; e isto nada tem a ver com desempenho, ou mesmo com fazer sua parte pela sociedade, trabalhando e pagando impostos, digamos. O mrito est na prpria vida humana. De forma semelhante, o direito participao poltica decorre apenas da condio de cidado livre, nada tendo a ver com um saber supostamente tcnico ou cientfico no preciso saber fazer poltica, saber votar bem ou o que quer que seja; o mrito est na prpria condio de cidado, e todos os cidados o possuem.

claro tambm que o desempenho pode ser mrito, e muitas vezes deve mesmo ser central. De uma maneira geral isto verdade em tudo aquilo que normalmente designamos como questo tcnica: construir um prdio, pilotar um avio, diagnosticar uma doena etc. Quem deve se encarregar de construir, pilotar, diagnosticar quem sabe faz-lo, no qualquer um. Por sinal, em quase tudo o que diz respeito a uma empresa privada, cujo objetivo o lucro, o desempenho tende a se justificar como um bom critrio para o mrito; mas, ao tratar de rgos estatais, isto j no to vlido. A distino entre assuntos de especialistas e os demais problema muito antigo, datando pelo menos do surgimento da democracia grega, e impossvel de solucionar de uma vez por todas, at pelo simples fato de que as sociedades e o que so capazes de estabelecer como saber especializado mudam.

Tomar desempenho, sem discusso, como sinnimo de mrito, significa que esta fronteira deixada de lado, e que tudo pode ser considerado como questo tcnica; que, portanto, o poder deve ser distribudo e exercido sempre de acordo com critrios tcnicos. Para isto, no entanto, a lngua moderna j criou outra palavra, apenas algumas dcadas mais velha que meritocracia, com o mesmo sufixo, e certamente mais honesta em suas pretenses: tecnocracia. E tecnocrata, no por acaso, um rtulo que boa parte dos defensores da meritocracia certamente rejeita no apenas porque a palavra tem carter bem mais pejorativo, mas porque, sendo mais precisa em seu sentido, obriga-os a levar a indistino que lhe prpria s ltimas consequncias: se o desempenho o nico mrito admissvel em todas as reas, a herana, ou o livre-mercado, por exemplo, so inadmissveis; os bens devem ser designadas a quem melhor far proveito deles, por critrios tcnicos, e no por parentesco ou riqueza. E, claro, pelo mesmo raciocnio, em ltima anlise no pode haver algo como educao igual para todos, e a noo de escola pblica se torna obsoleta, pois o ensino deve ser melhor para quem tem o melhor desempenho, pior para quem no o tem.

Nenhuma destas consideraes nova, embora frequentemente paream esquecidas. Tambm nenhuma delas significa que devemos ser automaticamente contra as to polmicas medidas do PNE (ou de qualquer outra lei semelhante, dizendo respeito a qualquer assunto) que seriam meritocrticas (ou seja, tecnocrticas) demais ou de menos. O uso que o PNE pretende fazer do ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica (IDEB), p. ex., bem como tudo que da decorre ou qualquer outro ndice semelhante, assunto importantssimo, e deve ser devidamente discutido com seriedade, e no imediatamente rejeitado ou apoiado, como por vezes infelizmente ainda se faz. H mesmo muito a ser discutido no que diz respeito educao e, ao menos naquilo que diz respeito prpria prtica pedaggica, principalmente pelos especialistas do assunto, que so os pedagogos e professores (e no os economistas, administradores etc., como tanto se v) como em tantos outros setores de atuao do Estado. Mas, como dito desde o comeo, estas discusses precisam ser melhor conduzidas se quisermos tratar de posies razoveis e no de caricaturas, e o termo meritocracia tem de ser devidamente abandonado para que possamos faz-lo.

Quando for, tenhamos certeza: j vai tarde.

* Ps Graduando em Filosofia na FFLCH/USP

1A questo essencial : qual educao?, em Revista Veja Online, 09/04/2014

2Castoriadis, Que democracia?, em: Figuras do pensvel: as encruzilhadas do labirinto VI.

3Down with meritocracy, emThe Guardian, 29/06/2001.