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Neurociências Fátima Fonseca Aluna nº 43540 Introdução às Neurociências 1

Neurociências

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Artigo de investigação sobre neurociências.

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Page 1: Neurociências

Neurociências

Fátima FonsecaAluna nº 43540

Introdução às Neurociências

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Considerações Iniciais

Este trabalho surge no âmbito da Unidade Curricular de Introdução às

Neurociências do Curso Superior de Educação Socioprofissional na Escola

Superior de Educação Jean Piaget e resulta da análise de vários artigos propostos

nas aulas online.

Os artigos podem parecer desarticulados, se bem que têm em comum o cérebro e

visam explicar doenças que aí possam surgir, comprometendo o comportamento, a

qualidade de vida e a saúde do paciente.

A informação foi organizada em cinco itens, conforme apresentado a seguir:

“IEED – Transtorno de Expressão Emocional Involuntária”

“Memória e Envelhecimento: aspectos neuropsicológicos e estratégias

preventivas”

“Bem-estar e senso de ajustamento psicológico em idosos que sofreram

acidente vascular cerebral: uma revisão”

“A cognição social e o córtex cerebral”

“Apresentação de dois casos de Alzheimer”

Posteriormente, são apresentadas as considerações finais mediante a informação

recolhida e a análise feita aos textos propostos e aos casos expostos.

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1. IEED – Transtorno de Expressão Emocional Involuntária

O transtorno de expressão emocional involuntária é caracterizado como sendo um

descontrole emocional manifestado através de episódios de riso e/ou de choro

incontrolável. Estes episódios podem ser provocados por situações contrárias à

expressão manifestada, assim como dissociados do estado de humor do paciente.

Os pacientes não conseguem impedir que o descontrole emocional se manifeste, se

bem que têm consciência quando ele acontece, conseguindo assim minimizá-lo

parcialmente por intermédio de um controle voluntário.

O IEED pode distinguir-se por humor ou afecto, sendo a diferença entre ambos

importante para a compreensão de IEED. O humor reporta-se a um estado de

descontrole emocional por um período de tempo longo (dias, semanas ou meses).

O afecto reporta-se a um estado de descontrole emocional por um período de

tempo curto (minutos ou horas).

O IEED pode ser identificado por diversas designações, tais como:

- afecto pseudobulbar (comprometimento da função do menor dos nervos

cranianos IX, X, XI, XII, que controlam os músculos da alimentação, da

deglutição e fala);

- riso e choro patológicos;

- labilidade emocional (instabilidade emocional);

- emocionalismo;

- desregulação emocional;

- choro forçado, involuntário;

- emocionalidade patológica e incontinência emocional.

Segundo Cummings et al (2006), a utilização da sigla IEED justifica-se pelo facto

de ser uma descrição menos perjorativa para os pacientes, além de conter uma

descrição de fenomenologia, estar de acordo com as convenções de nomenclatura e

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ainda evitar confusões conceituais entre afecto e humor.

Em 1924 foram definidos três sintomas que levam a um diagnóstico de IEED por

Wilson, que ainda hoje são tidos em consideração. Os sintomas definidos por

Wilson são:

1. desequilíbrio entre estímulo e resposta, com resposta a estímulos

inadequados e inapropriados;

2. desconexão entre humor e afecto, com emoção visível não

correspondendo aos sentimentos do paciente;

3. natureza estereotipada das crises de explosão emocional com

invariabilidade da resposta emocional sobre qualquer estímulo.

Mais recentemente, Cummings et al (2006) proposeram novos critérios que

permitem diagnosticar o IEED de uma forma mais pragmática e estruturada, que

abaixo se descrevem:

1. Elementos necessários: episódios de choro ou riso incontroláveis,

frequentes e breves, que são incongruentes com o humor ou, mais comumente,

congruentes, porém excessivos; espelham uma mudança na capacidade habitual do

paciente para regular o afecto; os episódios são independentes ou exagerados, com

relação ao estímulo provocador; há doença ou dano encefálico estrutural

subjacente e relação temporal deste com a alteração do comportamento emocional;

o transtorno provoca perturbação ou redução do funcionamento ocupacional ou

social; não pode ser explicado por outra condição neurológica ou psiquiátrica,

como crises epilépticas, dacrísticas e gelásticas, distonias faciais, tiques vocais e

faciais, discinesias faciais, mania, depressão, transtorno de pânico ou psicose; o

sintoma não corresponde ao efeito fisiológico de uma substância química

(medicamentos ou drogas ilícitas).

2. Elementos acessórios: alterações autonómicas; sinais de paralisia

pseudobulbar, como fraqueza da língua, disartria, disfagia, reflexo mandibular

aumentado; episódios de fúria.

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3. Características descritivas: episódio de instalação súbita; duração breve

(segundos a minutos); crises estereótipadas para o mesmo paciente, mas com

variação interpessoal.

Os mecanismos fisiopatológicos específicos envolvidos no IEED ainda não estão

bem esclarecidos, mesmo assim Wilson (1924) postulou a hipótese da existência

de vias descendentes que controlam os movimentos faciais durante o riso e o choro

por meio do V e VII pares de nervos cranianos e, além disso, haveria um centro

supranuclear ligando o VII e o X nervos cranianos, o que serviria para coordenar

mudanças na respiração e movimentos faciais durante o riso e o choro.

Parvizi et al (2001) adiantou que a rede da expressão motora da emoção era

constituída pelo lobo frontal, sistema límbico, tronco cerebral, cerebelo e a

substância branca que os interconecta. A interrupção desta rede neural surge como

a principal justificação para as fisiopatologias do IEED, podendo a ruptura resultar

da perda do controle voluntário do córtex frontal, como da interrupção das vias

córtico-pontocerebelares. Assim, a ruptura resultaria na expressão emocional

involuntária e inadequada.

Cummings et al (2006) destacam como causa do aparecimento dos sintomas do

IEED os transtornos nos neurotransmissores envolvidos no circuito das emoções,

tais como: glutamano, acetilcolina, serotonina, norepinefrina, dopamina e

receptores do sistema sigma.

O IEED pode ser provocado por variadíssimas fisiopatologias encefálicas em

diversas localizações anatómicas, tais como:

1. esclorose lateral amiotrófica (McCullagh et al, 1999; Cummings et al,

2006);

2. esclerose múltipla (Feinstein et al, 1997 e 1999; Cummings et al, 2006);

3. acidentes vasculares encefálicos (Morris et al, 1993; Robinson et al,

1993; Anderssen et al, 1994);

4. traumatismos cranio-encefálicos (Zeilig et al, 1996);

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5. tumores cerebrais, as demências (Starkstein et al, 1995);

6. doença de Parkinson (Kaschka et al, 2001);

7. doença de Alzheimer (Lopez et al., 1996).

As informações disponíveis nesse sentido são ainda muito escassas e pouco claras.

Zeilig et al (1996) e Tateno et al (2004) estudaram o choro e riso patológico em

pacientes que tinham um histórico de traumatismo cranioencefálico. Assim,

chegaram à conclusão que os pacientes com IEED tinham mais propensão a

estados depressivos, ansiosos e agressivos quando comparados com pacientes sem

transtorno.

Na esclerose lateral amiotrófica, o aparecimento de choro e riso patológicos

podem derivar de distúbios da fala e da deglutição. Um estudo realizado com 73

pacientes portadores de ELA demonstrou a prevalência de IEED em 49% dos casos

estudados, sendo que 27% apresentavam choro e riso patológico, 12% apenas

choro patológico e 9,5% apenas riso patológico (Gallagher, 1989).

Feinstein et al (1997) realizou um estudo com portadores de esclerose múltipla e

concluiu que a prevalência de IEED era de 10% onde era mais comum o choro

incontrolável do que o riso incontrolável. Provou-se também que o IEED verifica-

se em estágios mais avançados onde exista incapacidade física e mental,

confirmando assim relatos prévios (Surridge, 1969).

Após o acidente vascular encefálico, um dos sintomas comportamentais é o IEED.

Tais dados resultaram de diferentes estudos onde a prevalência varia de 11 a 52%

(Schiffer e Pope, 2005).

O IEED associado ao AVE tem uma instalação tardia, causando assim dificuldades

na sua avaliação imediata (Kim, 1997). Em 2000, Kim e Choy-Kwon sugeriram

que o AVE que envolva lesões de estruturas subcorticais, principalmente nas

proximidades da cápsula interna e dos núcleos da base, está mais relacionado com

o aparecimento do choro e riso patológicos.

Os pacientes pós-AVE com IEED apresentam, com maior frequência, um quadro

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de depressao sobreposta. No mesmo estudo, Ross e Stewart (1987) demonstraram

também que a presença da depressão exacerba as crises de choro, o que dificulta a

realização do diagnóstico diferencial.

O estudo clinico-radiológico de 148 casos de AVE unilaterais solitários realizado

na Coréia por Kim e Choy-Kwon (2000) mostrou que 100% dos casos de afecto

pseudobulbar estão associados a AVEs localizados em lobo frontal no território da

artéria cerebral anterior.

Starkstein et al (1995) desenvolveram um estudo com 103 pacientes de Alzheimer,

utilizando a Escala de Choro e Riso Patológico (PLACS), através do qual

verificaram que 40 desses pacientes apresentavam riso e choro patológico. Dos 40

pacientes com IEED, 21 apresentavam também um transtorno congruente do

humor, tendo sido rotulados pelos autores como tendo “labilidade emocional” e

definidos com “riso e choro patológicos com transtorno do humor subjacente”.

O diagnóstico diferencial mais importante e também o mais difícil é o da

depressão, uma vez que o choro é sinal de tristeza na depressão, enquanto que no

IEED está dissociado do estado de humor ou claramente exacerbado em relação a

ele (Robinson et al, 1993). Arciniegas et al (2005) dizem que ao contrário do

IEED, na depressão, o humor e o afecto estão sempre congruentes.

Existem alguns aspectos que possibilitam a distinção entre IEED e depressão, dois

transtornos que podem surgir em um mesmo paciente, tais como:

1. no IEED, o choro é independente das mudanças de humor;

2. o IEED é caracterizado por períodos curtos e estereotipados, enquanto

que a depressão pode durar semanas e mese;

3. as alterações de sono e apetite, os sentimentos negativos de culpa e de

tristeza são mais comuns na depressão do que no IEED;

4. o controle voluntário da depressão é geralmente modulado e no IEED é

mínimo e ausente;

5. um distúrbio neurológico subjacente está sempre presente no IEED,

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enquanto que na depressão tal não acontece;

6. sinais pseudobulbares e raiva episódica podem estar associados ao IEED,

se bem que tal não acontece no caso da depressão;

7. o estímulo precipitante para a expressão da depressão está, em geral,

relacionada com o humor e no caso do IEED é mínimo e não aparente.

Segundo Silver et al (2005), devem ser consideradas, para além dos transtornos do

humor, outras patologias para o diagnóstico diferencial, tais como:

- os transtornos do afecto (chorar essencial ou Witzelsucht, e as

demonstrações ictais do afecto, como as crises dacrísticas e crises gelásticas);

- os transtornos da ansiedade (transtorno do pânico e outros transtornos

ansiosos associados a ataques de pânico);

- os transtornos da personalidade (transtorno da personalidade borderline,

transtorno da personalidade histriónica, alteração da personalidade devida a uma

condição médica geral, de tipo desinibido, alteração da personalidade em virtude

de uma condição médica geral, de outro tipo, como o irritável, transtorno

intermitente explosivo, e síndrome agressiva orgânica);

- e outras síndromes neurocomportamentais: movimentos anormais,

distonias, tiques faciais ou vocais, discinesias faciais, psicoses, efeito

“fisiológico” de uma substância.

As escalas de avaliação são utilizadas como importantes instrumentos de

mensuração, de análise da gravidade e de medida mais objectiva no

monitoramento do tratamento, além de servir de adjuvante no diagnóstico clinico.

Os instrumentos de avaliação mais utilizados são:

- PLACS (Escala de Choro e Riso Patológico): é um questionário de 18

perguntas feito a um familiar ou ao cuidador, que rastreia o riso e o choro

patológicos. A frequência dos sintomas é medida e pontuada de 0 a 3 em ordem

crescente de frequência. É válido para o AVE, a doença de Alzheimer e

traumatismo cranioencefálico. Robinson et al (1993) demonstraram num estudo

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duplo-cego a sua utilidade no acompanhamento da resposta terapêutica do

transtorno associada ao uso da nortriptilina.

- CNS-LS (Center for Neurologic Study – Lability Scale): é uma escala

auto-aplicada, breve e de fácil execução desenvolvida por Moore et al (1997) e

que consiste em sete itens distribuídos em duas subescalas: quatro itens avaliam o

choro e três avaliam o riso. Em 2004, Smith et al validaram esta escala em

pacientes com esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica. Panitch et al

(2006) utilizaram-na recentemente num estudo sobre o tratamento farmacológico

do afecto pseudobulbar na esclerose múltipla.

O tratamento do IEED ainda não tem medicação aprovada pela FDA (Food and

Drug Administration) americana. As terapias farmacológicas disponíveis hoje em

dia passam por inibidores selectivos de recaptação de serotonina (ISRSs),

antidepressivos tricíclicos e, em menor extensão, drogas dopaminérgicas.

Foram já desenvolvidos vários testes com amitriptilina e placebo em pacientes

com esclerose múltipla (Schiffer et al, 1985), com levodopa (Wolf et al, 1979;

Udaka et al, 1984), desipramina (Poeck, 1969), fluoxetina (Seliger e Hornstein,

1989), citalopram (Andersen et al, 1993) e sertralina (Mukand et al, 1996), tendo

demonstrado melhora dos sintomas.

Actualmente, outros estudos estão a ser desenvolvidos para o tratamento do IEED,

tais como o tratamento com AVP-923 (Neurodex – Schiffer e Pope, 2005). Trata-se

de um medicamento oral que consiste numa combinação de 30 mg de

dextrometorfano e 30 mg de quinidina, uma enzima que inibe o metabolismo do

dextrometorfano pelo citocromo P-450, utilizada em dose 10 a 20 vezes menor que

a dose antiarritmica habitual.

Até ao momento este medicamento tem-se mostrado benéfico no tratamento

sintomático do IEED em pacientes portadores da doença de Alzheimer, de

Parkinson, AVE e pós-TCE.

O IEED é muitas vezes acompanhado de isolamento e do prejuízo no

funcionamento social, ocupacional e familiar do paciente. O subdiagnóstico, o

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desconhecimento e, muitas vezes, a falta de abordagem e valorização dessa

condição clínica por parte do seu médico-assistente acabam por provocar episódios

de desinibição emocional.

“Assim, a correcta identificação e conduta do transtorno tornam-se

imprescindíveis, na medida em que um tratamento adequado e bem indicado pode

reduzir os sintomas, minimizar o impacto negativo, melhorando a sua qualidade de

vida e, até mesmo, o engajamento do paciente em programas de reabilitação.”

A Sociedade Portuguesa de Neurociências (SPN) e a Sociedade Portuguesa de

Neuropsicologia (SPNP) são entidades que se dedicam às Neurociências e às

Ciências Comportamentais.

A SPN dedica-se à promoção e ao desenvolvimento da investigação científica em

Neurociências, bem como à difusão da cultura científica (no site pode fazer-se o

download gratuito de livros e vídeos da área).

Já a SPNP é um organismo que aglutina os Psicólogos que exercem

Neuropsicologia e tutela a sua prática e promove actividades que visam o

constante progresso da mesma (através de acções de formação, nas suas mais

diversas facetas, e de outras iniciativas com igual propósito).

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2. Memória e Envelhecimento: aspectos neuropsicológicos e

estratégias preventivas

De algum tempo a esta parte, as Neurociências têm tido como principal

preocupação a descoberta de bases biológicas do funcionamento da memória.

Considera-se memória toda a capacidade que o ser humano tem de reter e

recuperar informação podendo assim modificar e/ou alterar o comportamento

influenciado por experiências anteriores.

Considerando-se que o cérebro funciona como um todo, havendo regiões próprias

para o processamento dos mais diferentes tipos de informação. O

“armazenamento” que é feito de informações varia das alterações na estrutura e

nas funções de células nervosas, assim como nas conexões, em diferentes regiões

do sistema nervoso.

O nosso cérebro é detentor de uma certa plasticidade, que varia com a idade. Isto

é, com o avançar da idade vai diminuindo a capacidade de ocorrer alterações.

Considera-se assim que a memória representa um papel importante como marcador

biológico para o envelhecimento.

A memória pode ser afectado em qualquer idade, sendo sempre um transtorno

quando tal acontece. Todo o ser humano está sujeito a sofrer amnésia ainda que

este seja apenas considerado como falta ou falha de memória, sendo chamado de

memória declarativa. Há no entanto, dois tipos de amnésia a considerar: aquelas

que surge em circunstâncias de decorrência de stress e das realmente patológicas.

O stress, a depressão estão na base das amnésias, podendo, também, levar a

quadros de demência mais graves, como é o caso da Alzheimer. Outras situações

que podem levar a graves demências e a dependência crónica e grave de álcool,

cocaína e outras drogas, lesões vasculares, traumatismo craniano repetido e a

exposição a metais pesados por longo período, assim como o mal de Parkinson nos

seus estágios mais avançados.

Em idades inferiores a 50 anos, as probabilidades de sofrer disfunções orgânicas

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relativa à memória são mínimas. Na década de vida que se segue as probabilidades

aumentam, podendo assim surgir doenças como o Alzheimer e a arteriosclerose.

A perda de memória pode ainda comprometer a qualidade de vida do ser humano

nas suas habilidades motoras.

Há no entanto uma questão que se levanta. Sabendo que a partir dos 30 anos, o ser

humano começa a perder entre 10.000 e 100.000 neurónios diários e que, por outro

lado, aos 120/125 anos o ser humano possuia ainda metade da sua capacidade

cerebral, permitindo assim continuar a viver e a raciocionar normalmente, por que

motivo algumas pessoas, em idades avançadas, apresentam quadros de demencia?

O stress, a obesidade, a depressão, o fumo, as drogas, a diabetes são alguns dos

factores associados à aceleração da perda de densidade cerebral. Entende-se então

que a demência pode ser prevenida e de certa forma evitada. Para tal, basta que

nos afastemos de factores de risco, realizando tarefas e actividades que

estimulem/obriguem o “uso” do cérebro, como por exemplo praticar exercício

físico com regularidade e aprender uma nova língua.

As emoções e os estados de ânimo estão como meios reguladores da aquisição, de

formação e de evocação da memória. Sendo assim, o sentido que dámos às coisas

vai condicionar e/ou influenciar o armazenamento e a manutenção de determinadas

informações, como nos diz Merleau-Ponty e Goldstein, autores ligados à

fenomenologia.

Os processos fisiológicos do envelhecimento normal pode originar não só o

declínio da capacidade cognitiva como um processo de transição para as

demências. Segundo Charchat-Fichman, H.; Caramell, P.; Sameshima, K. et al

(2005), os idosos que estão mais propensos a desenvolver a doença de Alzheimer

são os que apresentam declínio da capacidade cognitiva em particular aqueles com

déficit de memória episódica. Os mesmo autores, afirmam que o que mais se

verifica nos idosos é um comprometimento cognitivo leve.

A percepção dos cuidadores, em conjunto com a percepção subjectiva dos próprios

idosos é um bom meio de avaliação. O estímulo para um bom funcionamento

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físico, mental e social é um bom método de prevenção e promoção de saúde na

terceira idade podendo assim combater as demências graves e/ou leves. Considera-

se, portanto, que todas as actividades mentais actuam no sentido de protecção às

funções cognitivas.

Velhice não significa doença, mas a ausência desta é um privilégio de poucos nesta

faixa etária. No entanto, o bem-estar pode ser atingido por muitos uma vez que o

fecho de serem portadores de doença não é condicionante para que possam levar

uma vida dita normal.

Ramos (2003) defende que a autonomia é a capacidade mais lesada na velhice,

uma vez que uma pessoa que consiga aos 80 anos gerir a sua vida, orientar, decidir

e programar o seu dia-a-dia, bem como ser capaz de zelar pela sua higiene pessoal

é considerada uma pessoa saudável.

Profissionais de diversas áreas tem um papel importante na manutenção de

capacidade funcional, como sinónimo de saúde, na vida do idoso. Conforme

Ramos (2003), o envelhecimento de forma saudável implica a interacção de vários

factores, nomeadamente entre a saúde física, saúde mental, independência na vida

diária, integração social, suporte familiar e independência económico. Alguns

acontecimentos do quotidiano, isolados ou não, como perdas a nível emocional ou

económico, doença, acidentes ou distúrbios mentais podem abalar a capacidade

funcional do indivíduo.

As instituições particulares de solidariedade social, assumem um papel importante

no apoio a uma minoria da população idosa, podendo ser a nível de internamento

ou no seu domicílio. Os idosos, sem rectaguarda familiar e dependentes, acumulam

problemas sociais e médicos.

“O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem

prejuízo da protecção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou

por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para a preservação de sua

saúde física e mental e de seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e

social, em condições de liberdade e dignidade.”

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Posto isto, justifica-se portanto a necessidade / obrigação de implementar

programas que visem a manutenção das capacidades cognitivas e funcionais dos

idosos, assegurando-lhe uma melhoria na sua auto-estima que levará a uma

qualidade de vida merecida. O convívio inter-geracional deve ser tido em

consideração nos programas implementados por equipas de caracter

multidisciplinar que visem a participação, ocupação e convívio do idoso.

Este tipo de programas, ainda dirigidos aos idosos institucionalizados, traz

também benefícios para aqueles que executem os projectos, uma vez que toda a

experiência vivida acumulada pelo idoso é parte de aprendizagem e ensinamentos.

A solução para os problemas dos idosos não passa somente pela criação de leis,

considera-se também importante a sua protecção ser incluída numa política social

mais ampla, de todo um curso de vida. Por outras palavras, pretende-se educar e

sensibilizar a sociedade para as problemáticas do ser humano quando chegado à

velhice.

Sabendo-se que a população a nível mundial está a envelhecer, torna-se uma

necessidade premente criar políticas e capacitar os profissionais para a criação de

equipas multidisciplinares para que se criem mecanismos que favoreçam a

divulgação de informações de carácter educativo sobre os aspectos

biopsicossociais de envelhecimento.

Promover a melhoria de instituições residenciais de longa permanência para

idosos, garantindo assim o bem-estar e a qualidade de vida do idoso aquando da

sua institucionalização. Por último, mas não menos importante, formar e

sensibilizar técnicos para a detecção e acompanhamento de transtornos cognitivos

do idoso.

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Page 15: Neurociências

3. Bem-estar e senso de ajustamento psicológico em idosos que

sofreram acidente vascular cerebral: uma revisão

O bem-estar subjectivo do idoso depende em muito do nível físico, mental e da

funcionalidade reflectida na capacidade para o desempenho de actividades básicas

e instrumentais da vida diária (AVDs e AIVDs).

A velhice não sendo sinónimo de doença, é significativamente associada a certas

condições causadoras de incapacidades físicas e/ou mentais.

Existe grande probabilidade que o acidente vascular cerebral (AVC) provoque

déficits no funcionamento físico, sensorial e cognitivo, tendo assim um grande

impacto no quotidiano e no desempenho do indivíduo frente às actividades da vida

diária e afectando a avaliação subjectiva que ele faz da sua vida.

A capacidade de recuperação de acontecimentos negativos adquire maior

importância à medida que as pessoas envelhecem (Kanh & Juster, 2002). A par

disso, aumentam também os riscos de perdas biológicas, cognitivas, motivacionais

e sociais no âmbito pessoal ou de pessoas próximas e significativas (Fortes &

Neri, 2004).

“As diferentes condições de vida associadas às incapacidades tendem a alterar o

potencial do indivíduo para manter um senso positivo de bem-estar subjectivo

(Smith, Borchelt, Maier & Jopp, 2002).

Como já foi dito anteriormente, o AVC causa desequilíbrios no funcionamento

físico, social e psicológico, sendo um episódio inesperado e que exige uma grande

capacidade de adaptação (Fortes & Neri, 2004). Um importante indicador do

estado de bem-estar subjectivo e do senso de ajustamento pessoal é o sucesso na

adaptação às demandas impostas pelo AVC.

“Quanto maior a integração psicológica e social, mais ajustados se sentirão os

indivíduos e menor será o ónus para a família, os cuidadores e os serviços de

saúde (Freire, 2000).

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O AVC frequentemente provoca incapacidades residuais, tais como a paralisia de

músculos, rigidez das partes do corpo afectadas, perda da mobilidade das

articulações, dores difusa, problemas de memória, dificuldades na comunicação

oral e escrita e incapacidades sensoriais (Skilbeck, 1996). O mesmo autor atestou

que os sobreviventes de um AVC podem sofrer de deterioração da funcionalidade e

melhorar o permanecer estabilizados na condição inicial num período que varia de

um mês a dois anos após o acidente.

“A velocidade de recuperação e o grau de adaptação variam de indivíduo para

indivíduo e dependem da gravidade das lesões e do engajamento em processo de

reabilitação eficientes.”

Doyle (2002) verificou que os sobreviventes de AVC sofrem mudanças na

qualidade de vida, mesmo quando foram pouco afectados pelo acidente. Outros

estudos verificaram também que, após um ano do acidente, a depressão e,

principalmente, a incapacidade são as principais variáveis associadas à qualidade

de vida global e à qualidade de vida referenciada aos domínios psicossocial e

físico.

Os estudos realizados demonstraram também que as mulheres estão mais

vulneráveis à depressão, sofrendo de depressões de maior gravidade, por um

período de tempo maior e pior qualidade de vida percebida em todos os domínios.

A idade e a incapacidade gerada pelo episódio também influencia a recuperação e

o status funcional das mulheres. “Quanto maior a idade e a incapacidade, pior a

recuperação e o status funcional das mulheres.” O isolamento e a restrição em

actividades sociais resultam mais da incapacidade do que da depressão pós-AVC,

como acontece com pessoas com menos de 65 anos que se vêem impedidas de

voltar a trabalhar devido à incapacidade provocada pelo AVC.

Vestling, Tufversson e Iwarsson (2003) reforçaram esta ideia, uma vez que o

trabalho tem importância para a sobrevivência, para o autoconceito, o status social

e as relações sociais. No caso de um sobrevivente de AVC, ficar impossibilitado de

retornar ao trabalho provoca um forte declínio no bem-estar global.

Ostir et al (2002) comprovaram que aproximadamente metade dos idosos

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sobreviventes de AVC não consegue recuperar completamente a sua

independência. Mesmo assim, aqueles que apresentavam um baixo nível de

sintomas depressivos e alto nível de afectos positivos tinham três vezes mais

chances de recuperação que aqueles altamente deprimidos.

Os sintomas de depressão tendem a aumentar entre os pacientes de AVC, estando

associados principalmente ao prejuízo funcional, prejuízo cognitivo, historial

prévio de depressão, idade (os jovens têm maior propensão no período agudo,

enquanto que os idosos no período tardio pós-AVC), género, historial prévio de

AVC, morar sozinho e ter rede social pobre, e correlatos neuro-anatómicos

(Terroni, Leite, Tinone e Fráguas, 2003).

“As repercussões de um AVC sobre os indivíduos são muitas e os principais

mediadores ou indicadores de baixa qualidade de vida é a incapacidade e a

depressão. “

Hopman & Verner (2003) indicaram que a qualidade de vida percebida e o bem-

estar subjectivo são significativamente comprometidos, mesmo depois de um AVC

leve.

Bem-estar subjectivo refere-se à avaliação que a própria pessoa faz sobre sua vida

a partir de seus valores e critérios pessoais. Esta avaliação pode ser feita mediante

dois indicadores:

- a natureza cognitiva, que diz respeito ao julgamento da satisfação com a

vida em geral ou referenciada a domínios específicos (como a capacidade física e

mental ou os relacionamentos sociais);

- a natureza emocional, que diz respeito ao equilíbrio entre afectos positivos

e negativos relatados pela pessoa. (Diener, 2000)

Diener (2000) defende que as pessoas com graves limitações físicas ficam

extremamente infelizes após o acidente que o causou, adaptando-se rapidamente.

Durante o período de adaptação, experimentam o decréscimo das emoções

desagradáveis e o aumento das emoções agradáveis. Segundo este autor, as pessoas

reagem fortemente aos bons e maus eventos, quando da sua ocorrência, mas

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tendem a adaptar-se com o tempo e a retornar ao seu nível original de bem-estar.

Já o bem-estar psicológico é definido por Ryff (1989) como a percepção pessoal

sobre o ajustamento emocional e social em relação aos desafios da vida. A autora

propôs um modelo de bem-estar psicológico composto em seis dimensões:

- auto-aceitação: refere-se a ter atitudes positivas em relação a si mesmo e

em relação à própria vida presente e passada, reconhecer e aceitar os múltiplos

aspectos de si mesmo (qualidades e defeitos);

- relação positiva com os outros: refere-se a uma relação calorosa,

satisfatória e verdadeira com os outros, com a preocupação com o bem-estar destes

e com empatia, afeição, intimidade e entendimento na relação de dar e receber no

âmbito das relações humanas;

- autonomia: refere-se à autodeterminação, à resistência a pressões sociais e

à presença de um locus interno de avaliação com base nos próprios padrões, ou

seja, refere-se à capacidade de gerir e de tomar decisões sobre a própria vida;

- domínio sobre o ambiente: refere-se à habilidade de excolher ou criar

ambientes apropriados às condições físicas e de manipular e controlar ambientes

complexos;

- propósito na vida: refere-se ao sentimento de que existe um propósito,

uma missão e um significado para a vida, mesmo depois do acidente;

- crescimento pessoal: refere-se ao senso de desenvolvimento contínuo, de

realização do próprio potencial e de estar aberto a novas experiências.

Vários são os estudos efectuados em portadores de AVC relativamente ao bem-

estar subjectivo e o ajustamento psicológico. Alguns dos resultados já foram

apresentados anteriormente, mesmo assim aqui fica um resumo dos referidos

estudos.

Os estudos transversais e prospectivos indicam que os afectados pelo AVC

apresentam menor senso de bem-estar subjectivo, quando comparados com a

população em geral. Aqueles sobreviventes de AVC acompanhados por programas

18

Page 19: Neurociências

sociais de apoio e de reabilitação, com suporte informal e com a escolaridade mais

alta demonstram maior ajustamento psicológico.

A boa capacidade cognitiva, o suporte social efectivo, a continuidade de uma

ocupação produtiva, a manutenção da competência em actividades instrumentais

da vida diária e o humor positivo são factores que influenciam positivamente o

bem-estar subjectivo e psicológico. Já a incapacidade funcional, a capacidade

cognitiva deficiente, a depressão, a dificuldade em restabelecer a identidade e a

posição oficial anterior pela restrição em actividades de autodefinição são factores

de influenciam negativamente o bem-estar subjectivo e psicológico.

Os idosos temem a incapacidade funcional e cognitiva e uma possível dependência

subsequente, porque os segrega de outros grupos, fazendo com que sejam tidos

como incompetentes em comparação com as normas sociais (M.M. Baltes, 1996).

Também para a família e para a sociedade a incapacidade funcional representa uma

grande desafio, dizendo respeito às limitações específicas ao desempenho

individual de papéis e de tarefas socialmente definidas, nos quais estão incluídas

as actividades básicas e instrumentais de vida diária, os papéis no trabalho, os

papéis não-ocupacionais e os papéis envolvidos com o exercício de actividades de

lazer (Jette, 1996).

“De acordo com Coleman (1996), a crise decorrente de uma inesperada

incapacidade que demanda grande mudança traz dificuldades ao ajustamento uma

vez que origina descontinuidade ao estilo de vida, requer o uso de estratégias de

enfrentamento eficazes e de esforços para manter o senso de controle, acarreta

mudança na referência grupal e dificulta a identificação de self (s) possíveis.”

Segundo Antonucci (2001), as pessoas com mais ampla rede social têm mais ajuda

em tempos de doenças e as pessoas, enfrentando assim melhor as enfermidades e o

stress e outras dificuldades da vida, para além de terem mais senso de controle e

de auto-eficácia. O suporte social aumenta a auto-estima, funciona como recurso

de enfrentamento, ameniza o impacto das doenças e modera o efeito das crises

(Handen, 1991).

19

Page 20: Neurociências

A restrição de fontes de suporte, que acarretam os eventos stressantes, têm um

grande impacto sobre o bem-estar subjectivo e o ajustamento pessoal. O suporte

social é muito importante para o senso positivo do bem-estar psicológico dos

sobreviventes de AVC, uma vez que tendem a perceber grandes oportunidades de

crescimento pessoal, acabando por ter melhor score em relações positivas com os

outros, em auto-aceitação e em senso de domínio sobre o ambiente, o que os ajuda

na adaptação à incapacidade.

“O AVC acarreta mudança fundamental em vidas e identidades, como se os corpos

se separassem da personalidade (Ellis-Hill, Payne & Ward, 2000).”

No que concerne os aspectos físicos, cognitivos, emocionais e sociais, a

reabilitação ajuda a maximizar a qualidade de vida percebida.Hopman e Verner

(2003) desenvolveram um estudo sobre as mudanças na qualidade de vida durante

a reabilitação em pacientes entre os 33 e os 92 anos, mostrando que a idade não foi

um factos significativo nas mudanças ocorridas. Os declínios relacionaram-se com

a presença de comorbidades, com a reduçºao dos níveis de energia, com a vida

social limitada e com expectativas irreais da recuperação.

Ostir, Markides, Peck & Goodwin (2001), a depressão é a complicação

psiquiátrica mais prevalente após o AVC, estando associada a um pior prognóstico

e a mais dificuldades de ajustamento pessoal. O baixo suporte social pode

aumentar os sentimentos de solidão e a falta de esperança, afectando a

recuperação, visto os sintomas depressivos poderem diminuir a motivação da

pessoa para a reabilitação e diminuir a interacção social.

“Os elementos que mais auxiliam a recuperação, o ajustamento psicológico e o

bem-estar são os programas sociais de apoio e de reabilitação, o suporte informal,

a maior escolaridade, a boa capacidade cognitiva, a continuidade de uma ocupação

produtiva, a manutenção da competência em actividades instrumentais de vida

diária e o humor positivo.

20

Page 21: Neurociências

4. A cognição social e o córtex cerebral

Cognição social define-se como sendo o processo que permite tanto ao ser humano

como aos animais interpretar signos sociais e à posteriori responder de maneira

apropriada. Todo este processo neurobiológico origina a conduta adequada ao

estímulo recebido do outro indivíduo, ou animal da mesma espécie, ou seja,

aqueles processos cognitivos superiores que sustentam as condutas sociais

extremamente diversas e flexíveis (Adolphs, 1999).

Anatómicamente, as estruturas implicadas em todos estes processos, com base em

estudos com pacientes com lesões cerebrais, são: a amigdala, a insula, o córtex

somatosensorial direito e o córtex pre-frontal ventromedial. O caso de Phineas

Gage, o mais referenciado caso, dá-nos a conhecer o córtex pré-frontal

ventromedial como parte afectada. Este, de pessoa pacata, passa a agressivo e mal

educado verificando-se alteração de um conjunto compartimental após um acidente

de trabalho (uma barra de ferro entrou pela zona do maxilar sainda na zona pré-

frontal).

O seu médico descreve o seu comportamento dizendo: destruiu-se o equilíbrio

entre as suas faculdades intelectuais e as suas inclinações animais (Damásio,

1994).

Com base na observação de 12 pacientes, um dos quais Phineas Gage, em 1888

Leonor Welt publica o seu doutoramento onde apresenta existir uma correlação

entre a lesão orbital vizinha à linha média e mudanças de carácter. Em 1931,

Kleist observou haver dificuldades em inibir impulsos, o pacientes com lesões em

áreas orbitrárias. O mesmo autor, relaciona o córtex orbital (área 11 de Brodmann)

ao “eu social”.

“O neocórtex ventral e as estruturas paralímbicas ventrais ocupam-se de outorgar

um valor aos sentimentos e aos actos que executa o neocórtex dorsal. Deve-se

fazer um esclarecimento anatómico: estruturas paralímbicas ventrais correspondem

ao córtex pré-frontal ventromedial, amígdala, ínsula ventral e pólo temporal

(Mesulam, 2000). Já o córtex pré-frontal orbital, mais anterior e lateral,

21

Page 22: Neurociências

corresponde neocórtex (Nauta, 1971) e, segundo Cummings (1995), sua lesão

também ocasiona um transtorno nas condutas sociais.

O estudo de pacientes lesionados revela que pacientes com lesão pré-frontal têm

dificuldades na tomada de decisões e no raciocínio social. Segundo Damásio

(1994), tomar decisões é escolher uma opção de resposta entre as muitas possíveis

num determinado e numa determinada situação. Supõe conhecer: 1) a situação que

exige tal decisão; 2) as distintas opções de acção; e, 3) as consequências imediatas

ou futuras de cada uma das acções. Realizar estes passos através de uma

perspectiva lógica dedutiva levaria muito tempo.

O marcador somático surge, sugerido por Damásio, como uma hipótese de

qualificação de uma situação como boa ou má. O estado somático dá especial

atenção para possíveis consequências negativas de condutas, tornando as decisões

mais rápidas e efectivas.

Por sua vez a falha reutilização de sinais somáticos ou emocionais para guiar a

conduta estão associados a lesão no córtex pré-frontal ventromedial. O paciente

com este tipo de lesões actuam em função das perspectivas imediatas não temendo

qualquer tipo de represálias no futuro em função de acções presentes.

O lobo pré-frontal pode também ter uma dissociação dupla. A lesão pré-frontal

dorso-lateral e a lesão pré-frontal ventromediais bilaterais. Sabendo que a primeira

causa déficits nas tarefas que envolvem a memória de trabalho, mas que teriam

uma resposta electrodérmica antecipatória adequada ante à expectativa de ganhar

ou perder. Por sua vez, a segunda lesão não afecta a memória de trabalho, mas tem

abolido a resposta electrónica antecipatória ante à expectativa de ganhar ou perder.

No córtex pré-frontal dorsolateral encontra-se a representação cognitiva de metade

de uma ação na ausência de seu desencadeamento imediato no córtex pré-frontal

ventromedial, encontra-se a representação emocional da metade de uma acção, na

ausência de seu desencadeamento imediato.

Norman e Shallice (1986), ao explicar o funcionamento e funções do córtex pré-

frontal explica-o como sendo um programa de contenção automático e implícito

22

Page 23: Neurociências

que funciona como meio regulador das condutas sociais e emocionais apropriadas

ao meio. A atenção está virada para componentes emocionais. Se observarmos

anatómicamente a zona pré-frontal ventromedial, podemos deduzir que esta está

ligada aos núcleos basais de Meynert e núcleos de Banda Diagonal de Broca, que

regula e focaliza a atenção para suas referências para o tálamo através de

projecções gabaérgicas e glutamatérgicas e colinérgicas. Está também relacionada

com componentes que regulam o estado afectivo como a amigdala e o córtex

singular subcaloso e com estruturas dorsolaterais executivas e áreas sensoriais.

O raciocínio social é testado, com meios que avaliem o raciocínio dedutivo. Onde

são colocados várias afirmações e o paciente deverá concluir se estas são

verdadeiras ou falsas. Pacientes com lesões pré-frontal ventromedial tem as suas

capacidades afectadas, notando-se alterações das funções executivas, da atenção,

da memória e do movimento, alterações no julgamento social e alteração na gestão

emocional. Nota-se ainda alterações comportamentais de personalidade.

Quando por sua vez o córtex pré-frontal dorsolateral está ileso, o paciente mostra

capacidade de decidir acerca de uma situação abstrata, mostrando assim uma

dissociação (Adolphs, 1999).

Após a remoção bilateral da amígdala nos macacos, Kluver e Bucy (1939)

verificou que estes apresentavam mudanças emocionais (como a hipersexualidade,

cegueira psíquica, falta de reactividade face a estímulos naturalmente perigosos ou

rechaço social para parte dos macacos sãos).

A intervenção da amigdala na cognição social, desperta interesse uma vez que esta

intervém fazendo uma avaliação cognitiva do conteúdo emocional de estimulos

perceptivos complexos. Por ser o de maior interconexão com o cortex pré-frontal

ventromedial, o núcleo basal, actua no pareamento de sinais sociais com o

contexto social apropriado, segundo Emery e Amaral(2000). Uma das funções

perceptivas complexas mais estudadas é a do estado emocional de uma face. A

percepção dos aspectos que se alteram na face é processada no sulco temporal

superior e na amigdala sobretudo na direita. A amigdala é capaz de desencadear a

resposta normal e neurovegetativa de stress através das eferências que saem do

23

Page 24: Neurociências

núcleo central atingindo o hipotálamo e o tronco cerebral.

Devido à sua conexão com o núcleo basal de Meynert, consegue modular a

direcção da atenção para o estimulo perigoso(LeDoux, 2000). A amigdala recebe

aferências sensoriais talâmicas e de áreas sensoriais de associação e manda

eferências para as áreas sensoriais primárias antes de ocorrer o estimulo,

regulando assim o que o cortex sensorial processa. Direcciona, assim, a atenção

para o estimulo perigoso. A amigdala vê a sua participação implicada nos

processos de ansiedade e stress pós- traumático devido à potenciação de longo

prazo. São apreendidos e reforçados a associação entre sinais perigosos e resposta

de stress, originando sintomas somáticos de ansiedade.

Segundo Emery (2000), o processo de direcção do olhar tem um peso

preponderante na cognição social, sendo discutido o predomínio do hemisfério

direito no processamento emocional de expressões faciais (percepção e produção

de expressão emocional).

Ross (1998) avançou com um novo pensamento relativo à maior capacidade de

percepção do estado emocional através do processamento da metade superior da

face (olhos / olhar) do que da metade inferior (boca), relembrando a máxima

popular que “os olhos são o espelho da alma”.

Voeller (1998) entende como fundamental na cognição social: a capacidade de

atribuir uma mente a outro indivíduo, ter habilidade de entender o papel de outros

individuos, entender outros pontos de vista ou atribuir uma intenção a outra

pessoa.

“Os pacientes com autismo, que possuiriam anormalidades estruturais ou

funcionais na amígdala, não têm capacidade de atribuir um estado mental ou

inferir uma emoção noutra pessoa através do olhar.” Baron-Cohen e cols (1994,

2000) demonstraram tal facto em estudos funcionais, dando assim lugar à teoria do

transtorno amigdalino no autismo.

Adolphs (1999) avançou que para investigar a capacidade de um indivíduo em

interpretar uma expressão emocional de um face, deve reproduzir-se a expressão

24

Page 25: Neurociências

da face no próprio organismo, ou seja, através do córtex somatosensorial direito e

ínsula, o indivíduo que vai interpretar a expressão emocional, reproduz a mesma

em si mesmo.

Para Charles Darwin, as emoções primárias, como o nojo, o medo, o pânico, a

tristeza, a surpresa, o interesse, a felicidade e o desgosto, têm uma base neural

inata, visto serem expressas de maneira universal através das mais distintas

culturas.

“À medida que a criança cresce, de maneira normal aprende a manipular estas

emoções conforme as normas e expectativas sociais (Ross, 1998), desenvolvendo

uma correcta cognição social. Assim, o córtex pré-frontal ventromedial permite

uma integração entre a percepção de uma emoção e a resposta que desencadeia,

seja uma conduta completa elaborada pelo necórtex orbitário, seja uma resposta

autonómica ou motora (incluída a atenção) através das eferências amigdalinas. Por

outro lado, o córtex somatosensorial direito e a ínsula permite uma correcta

manipulação da informação necessária para a interpretação e expressão emocional

da face e, sobretudo, do olhar (tarefa que realiza juntamente com a amígdala).”

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Page 26: Neurociências

5. Apresentação de casos de Alzheimer

No seguimento do trabalho proposto, são apresentados agora dois casos para

análise. Foram retirados do site da Alzheimer Portugal

(http://www.alzheimerportugal.org ). O primeiro é o testemunho da neta de uma

idosa a quem foi diagnosticada a doença de Alzheimer. O segundo caso é o relato

da filha de uma mulher que padece da doença de Alzheimer.

Caso 1

“Venho desta forma deixar o testemunho da situação que enfrentamos na minha

família com a minha avó materna, que padece deste mal há cerca de 9 anos.

Se bem me recordo, esta doença foi diagnosticada na minha avó logo após o

falecimento do meu avô, seu marido. Talvez tenha sido um pouco antes, não me

recordo da altura certa em que fomos advertidos para esta doença.

Após o falecimento do meu avô, a minha avó veio viver connosco. Apesar de ter 3

filhos, a minha mãe era a única filha (mulher) e a minha avó preferiu ficar com

ela, até porque os meus tios preferiam colocá-la num lar a ter que cuidar dela.

Preparámos um quarto ao lado dos meus pais e assim foi viver connosco. No

início as coisas foram muito mais fáceis, pois apesar de a doença já se manifestar

ainda não estava num estado muito avançado, foi-se agravando aos poucos.

Começou por perder a memória de algumas coisas recentes, alguns nomes,

começou a demonstrar pouca iniciativa em tudo. Se lhe perguntávamos, nunca

tinha fome, nunca tinha necessidades, ficava no sofá o dia todo ou ia até à

varanda e lá estava um pouco meio atónica, mas falava e conversava quando

puxávamos por ela. Aos poucos começou a cismar com algumas coisas. Primeiro

cismou em ir à casa de banho de 5 em 5 minutos, mal acabava de se sentar, já se

estava a levantar. Depois, ia até à varanda ou até à rua por uns minutos e voltava

para casa. Conseguia passar o dia assim. Enquanto conseguia andar bem, era

muito mais simples lidar com a situação, pois comia sem a ajuda de ninguém, ia à

casa de banho, vestia-se, deitava-se e levantava-se sozinha, enfim, fazia as coisas

básicas sem precisar de ajuda.

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Page 27: Neurociências

Depois desta fase começou o pior... começou a deixar de raciocinar, começou a

perder por completo a memória. Esqueceu-se de nós, das outras pessoas, às vezes

tinha flashes em que se lembrava de alguém, mas na maioria confundia tudo e

muitas das vezes falava de pessoas que nunca existiram ou de pessoas que há

muito tinham desaparecido. Deixou de conseguir ir à casa de banho, sendo

necessário usar fraldas. Às vezes ainda se levantava e lá ia, mas muito raramente.

Deixou de conseguir comer sozinha, perdeu completamente a noção do tempo, do

dia e da noite.

Desde há uns meses que está numa situação muito mais complicada, cansativa e

extenuante, para ela e, principalmente, para nós, pois não tem noção de nada.

Passa o dia no sofá, a pedir que a levantem, que a deitem, que a sentem, a

maioria das vezes já não sabe se está sentada, deitada ou levantada. Cismou com

isto e consegue estar de 2 em 2 minutos, assim, durante todo o dia e toda a noite,

não dormindo, não descansando. Mesmo que estejamos constantemente a fazer o

que ela pede, não pára, nunca está bem de maneira nenhuma. A minha mãe é

quem cuida dela, normalmente, mas todos tentamos ajudar um pouco que seja,

pois não é fácil, para uma só pessoa, aguentar esta pressão. A minha mãe passa

noites em branco, porque a minha avó não pára e passa o tempo a gritar o

mesmo, e se ela não estiver atenta ela vai para o chão e lá fica, porque já não se

consegue levantar. Às vezes torna-se quase doloroso estar perto dela, pois

sabemos que façamos o que quer que seja, nada a ajuda a melhorar e ela não tem

noção de nada, nem do que faz, nem do que diz, nem sequer do que lhe dizemos.

A minha avó tem mais dois filhos, mas eles só a vêm buscar um pouco ao

Domingo, alternadamente, levam-na depois de almoço e trazem-na depois de

jantar. Claro que já se propuseram a colocá-la num lar, mas a minha mãe não

aceitou, e eu concordo com ela, não é justo enviá-la para um lugar que sabemos

muito bem como funciona, nestas doenças a maioria dos doentes são presos às

camas, pois não há quem possa cuidar deles a toda a hora, e dá muito menos

trabalho, é claro.

Onde é que está a humanidade ao colocarmos os nossos pais num lar, a serem

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Page 28: Neurociências

cuidados por desconhecidos (muitas vezes descuidados), quando foram eles que

nos deram vida, que nos criaram com amor, carinho e atenção e que nos

ensinaram a enfrentar a vida. Não podemos esquecer que devemos a nossa vida

aos nossos pais, e que eles nunca (com algumas terríveis excepções) se

“livrariam” de nós por darmos mais trabalho do que o normal, ou por sermos

mais complicados, ou por sermos doentes ou até mesmo por sermos diferentes,

pois somos seus filhos, sangue do seu sangue, amam-nos incondicionalmente, e

dependemos deles até sermos capazes de ter uma vida autónoma. O mesmo

acontece ao contrário, quando os nossos queridos pais deixam de conseguir ter

uma vida autónoma, não é justo, nem humano, “livrarmo-nos” deles como se

fossem roupa velha...

Eu escrevi este testemunho para o poder partilhar com outras pessoas que passam

ou passaram por situações idênticas e para poder homenagear a minha querida

mãe que é a melhor mãe do mundo e, ao mesmo tempo, a melhor filha. A minha

mãe tem um coração enorme, não tem ponta de maldade ou egoísmo, trata da

minha avó com tanto carinho como a tratava antes da doença. Não perdeu nem

um pouco a paciência com ela. Quando as coisas estão mais difíceis consegue

passar por cima e continuar em frente, sem fraquejar.

Espero que este testemunho possa ajudar quem precisa de encontrar coragem e

força de vontade para enfrentar uma doença como esta, espero que compreendam

que apesar de ser uma doença complicada para quem cuida é, também, uma

doença incapacitante e penosa para quem a tem, e prova que nós somos apenas

humanos e que de um momento para o outro podemos deixar de ser saudáveis e

capazes para passarmos a precisar de ajuda de outrem para viver, para

sobreviver, para continuar... Sabemos que esta doença não tem cura, e que tem

sempre tendência a piorar, mas gostaria que soubessem que não existe nada mais

gratificante do que saber que ajudámos alguém a viver um pouco melhor os

últimos dias da sua vida...

Patrícia Martins”

(http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=135&categoryID=819 )

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Page 29: Neurociências

Caso 2

“Venho trazer-vos um testemunho que gostava muito que ajudasse todos os que,

de uma forma ou de outra, estão a lidar com a doença de Alzheimer.

A doença de Alzheimer era a última coisa que eu e os meus irmãos achávamos que

pudesse alguma vez afectar uma pessoa com o perfil da nossa Mãe.

Para além de linda e de aspecto forte e indestrutível, a nossa Mãe era, realmente,

o baluarte da família. Do Pai aos filhos, todos víamos nela o nosso porto seguro,

a nossa referência, a pessoa que nos passava valores de forma convicta, que nos

orientava, aquela à volta de quem toda a família girava. Uma “generala” para

usar a expressão de alguns dos nossos amigos que sabiam bem o que era ter de

passar a grande prova da sua aprovação.

Tirou o curso de enfermagem com desempenho brilhante e, em pouquíssimo tempo

era enfermeira chefe. Desistiu para se dedicar, por inteiro, à família. Interessada

por tudo, a nossa Mãe dedicou a sua vida a ajudar os outros, e tinha sempre uma

sede muito grande de saber - o que a fazia ler muito, frequentar cursos acerca dos

mais variados temas, ir a concertos e exposições.

A nossa Mãe pintava, fazia peças de cerâmica cujas receitas revertiam a favor de

instituições ou pessoas mais carenciadas que acompanhava, diariamente, com

extraordinária dedicação. Tudo isto para vos explicar que a doença de Alzheimer,

pensávamos nós, não podia mesmo acontecer com esta Mãe leoa com uma mente

tão activa, e que achávamos ir cuidar de nós toda a vida.

De repente, por volta dos 60 anos, começaram a acontecer coisas estranhas: a

nossa Mãe começa a telefonar-nos a toda a hora para nos fazer perguntas acerca

de coisas que ela sempre soube fazer: para nos perguntar, por exemplo, o que

devia ser o almoço. E perguntava uma, duas e três vezes, em ligações telefónicas

que foram ficando cada vez mais repetitivas e consecutivas. (Uma vez ligou para o

meu escritório, fora de horas, e deixou recado a quem lhe atendeu o telefone –

que, por acaso, era o meu Administrador -em relação à roupa que não podia

deixar de ser estendida, acerca do jantar de família e muitas outras coisas que

29

Page 30: Neurociências

deixaram o senhor a achar deveras estranho o comportamento da mãe da

Francisca, sem qualquer hipótese de pôr termo àquela conversa que ainda

demorou bastante).

Nessa altura a nossa Mãe começa a escrever bilhetes e bilhetes em post-it’s,

versos de envelopes, em tudo onde uma caneta pudesse escrever. Deixava-nos

recados confusos, e manifestava preocupações e medos com a porta da rua que

podia não estar bem fechada, com as compras que não podia esquecer-se de fazer,

com tudo e com nada. Na realidade eram recados que escrevia para si mesma...

Os bilhetes eram muitos mas a sua letra inconfundível, cheia de personalidade,

muito grande e que ainda realçava a escrever quase sempre com canetas de feltro,

parecia ir ficando mais fraca e com falhas.

Em casa as coisas começaram a ficar difíceis. O nosso Pai dizia que a Mãe não

parecia a mesma, as coisas começam a perder aquela organização rígida

habitual; começam-se a queimar tachos e refeições, a ocorrerem pequenos

acidentes de alguma gravidade; o dinheiro e outros bens começam a aparecer nos

sítios mais inacreditáveis; a carteira torna-se um objecto de culto onde se

esconde tudo desde o relógio despertador a não sei quantas canetas sem tampa,

alimentos, livros, meias, etc... As saídas sozinha começam a ficar desorientadas e

têm de ser suspensas.

A nossa mãe começa também a perder o interesse pelo que se passa no mundo. Diz

que as notícias são sempre iguais, que a deixam triste e lhe fazem mal. Nada lhe

interessa ... adormece em frente à televisão, não lê e deixa de se arranjar. Quando

lhe damos roupa ou uma carteira nova elogia, mas não usa nada, preferindo tudo

o que encontra de mais velhinho e usado, deixando de ter o gosto que tinha para

combinar peças e cores. A nossa Mãe está cada vez mais triste e diferente.

Emagreceu e nós conseguimos encontrar uma médica extraordinária, a Dra.

Maria João Quintela, que a acompanhou e que acompanhou a Família, na fase

pré-diagnóstico, com enorme profissionalismo e humanismo. Depois foi

necessário um neurologista - o Professor Castro Caldas que precisou de,

sensivelmente, um ano e meio para diagnosticar a doença de Alzheimer, tão bem

30

Page 31: Neurociências

camuflada estava por uma depressão.

Nunca esquecerei aquelas consultas, e o esforço da nossa Mãe em disfarçar os

seus esquecimentos perante as perguntas do médico para as quais, com grande

desgosto, não conseguia encontrar resposta. Com dignidade e um porte que

tentava altivo, desvalorizava as perguntas, ou respondia com outras perguntas ou

comentários para mudar o rumo da consulta. No fim pedia, invariavelmente,

desculpa ao professor pelo incómodo e por a filha ter “... esta mania de a levar

lá, com tantos doentes graves que o senhor professor teria certamente para

tratar...” e depois, a sós comigo, dizia-me: “Que grande maldade teres-me trazido

aqui e não me teres avisado do tipo de perguntas para eu me preparar!” Era de

cortar a alma ver como estava triste por ter falhado, apesar de todos os meus

esforços para dizer que tinha sido óptima!

Estava a chegar ao fim a doença de Alzheimer para a minha Mãe. Estava a chegar

ao fim uma primeira fase, duríssima para ela, e em que nós (longe como

estávamos de imaginar que aquele mal lhe pudesse acontecer) não reagimos como

devíamos: não fomos tão pacientes como devíamos, não disfarçámos as suas

dificuldades, não a ajudámos, porque não entendíamos nada do que estava a

acontecer. Ficámos revoltados com ela e entre nós, porque nos sentíamos perdidos

com tudo o que estava a acontecer, porque ela começava a fazer-nos falta... muita

falta!

Algum tempo depois da sua morte tivemos mais uma prova de como esta fase deve

ter sido difícil para ela, quando encontrámos um bilhetinho com letra frágil que

dizia: “Acho que tenho a doença de Alzheimer”.

A partir daí a doença de Alzheimer torna-se, mais do que nunca, a doença da

família que envolve o Pai, os Filhos e os Netos. Fomos, lentamente, tomando

consciência que a nossa mãe estava a perder a noção do seu drama e estava mais

indefesa, mas também mais tranquila.

Para o meu pai – um “pinga amor” num casamento feliz de 40 anos - tudo estava

a ser ainda mais sofrido, porque foram para ele as primeiras ausências de

reconhecimento, e até medos de que ele lhe fizesse mal, o que o magoava muito

31

Page 32: Neurociências

profundamente. No entanto Estava na hora de assumir a inversão de parentescos,

de passar da revolta à aceitação, de suavizar ao máximo os sintomas da doença.

Encontrámos conforto na constatação de que a Mãe já não estava a sofrer e

estabelecemos prioridades para que tudo fosse menos difícil:

1ª Prioridade: Cuidar da nossa mãe assegurando-lhe todo o conforto e bem-estar

físico que estivesse ao nosso alcance. Não sabíamos nada e aprendemos.

Resistimos mas chegou o dia, depois de partido o colo do fémur, em que o meu

irmão Luís - que já ajudava tanto - passou também a dar o banho e a mudar a

fralda da nossa Mãe. Tratávamos de a arranjar, pentear, perfumar e pôr um

batom, e depois mostrávamos-lhe o espelho, para que visse o resultado.

Aprendemos a lidar com feridas e escaras inevitáveis em seis anos acamada,

apesar de todo o cuidado da senhora que nos ajudava durante o dia de semana, e

do apoio extraordinário da nossa tia Francisca, também ela enfermeira.

Aprendemos a sobreviver sem apoio médico ao domicílio, porque a doença de

Alzheimer ainda não é compreendida por todos...

2ª Prioridade: Dar-lhe todo o afecto que estivesse ao nosso alcance, nunca

desistindo, mesmo na fase de maior distância em que já nada parecia ligá-la a

nós. A nossa mãe teve uma sobredosagem de mimo - uma espécie de desforra por

todos os beijos que não lhe tínhamos dado, por todas as frases queridas que não

lhe tínhamos dito - e um constante contacto físico que nós, intuitivamente,

acreditámos até ao fim ser válido e eficaz.

Os netos também foram envolvidos e passaram a demonstrar o seu afecto, dando

presentes muito especiais à sua Avó – os seus próprios brinquedos. Eram

extraordinários os momentos de ternura da nossa Mãe em diálogo com o

"chorão". A Avó e a Mãe voltava a ser bebé... estava a sair do nosso mundo...

então entrámos nós todos no dela, brincando também, e cantando as canções de

infância que ela adorava. Em dias de festa até ganhávamos um sorriso ou palmas,

o que nos enchia de alegria porque, nesta doença, cada dia é um dia!

3ª Prioridade (mas não menos importante): Manter a dignidade até ao fim. Desde

uma cadeira senhorinha na qual o nosso Tio José colocou umas rodinhas

32

Page 33: Neurociências

escondidas para a deslocarmos sem ser numa cadeira de rodas normal, aos

bonecos de arroz e chorões que arranjámos e que, além de a deixarem feliz, a

impediam de estar sempre a mexer e a tentar tirar a sua própria roupa, a

conversas sem nexo que, enquanto a nossa mãe ainda falava, mantínhamos com

ela para a deixar feliz e não se sentir descabida, à companhia que lhe fizemos

porque os amigos eram muitos mas só uns dois não desertaram entretanto, fomos

entendendo que, com uma doença avassaladora como esta, a dignidade é,

certamente, o valor a preservar.

A nossa mãe podia até ter-se esquecido de nós... mas nós, em momento algum

deixámos de a sentir Pessoa ou esquecemos que ela era a nossa Mãe.

UM DRAMA QUE VIROU CAUSA

Nunca mais nenhum de nós voltou a ser o mesmo! O meu pai morreu antes da

minha Mãe e eu, a minha irmã Margarida e o meu irmão Luís envelhecemos e

ficámos mais tristes. No entanto, sentimos todo o conforto de termos dado o nosso

melhor e de termos crescido tanto como pessoas com um drama como este. Hoje

sentimos que temos de continuar a ajudar os outros com o nosso testemunho.

Por isso o drama transformou-se numa Causa. Uma Causa na qual está o meu

Marido cuja Mãe - também forte e indestrutível! - foi vítima da doença de

Alzheimer. E foi por isso que durante os últimos dois mandatos integrei a

Direcção da Alzheimer Portugal – um apoio fundamental para as pessoas com

doença de Alzheimer e também para nós Cuidadores que ficamos totalmente

perdidos pelo drama familiar e social que nos bate à porta sem nunca estarmos

preparados.. Ser voluntária da Alzheimer Portugal foi e é uma forma de superar

este luto, esta ausência…

Foi o passar de “ uma doença que nunca vou esquecer “ para o “Não há memória

de uma causa assim” – a assinatura da nossa Associação.

Francisca Távora”

( http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=134&categoryID=819 )

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Page 34: Neurociências

Considerações Finais

É reconhecido que a fragilidade de um grupo de pessoas idosas representam uma

parte importante da população em situação de deficiência. Esta constatação foi

feita pelos epidemiologistas há muito tempo. Os maiores de 65 anos constituem

mais de metade da população que sofre de uma deficiência.

Esta fragilidade põe em evidência a ligação estrutural que existe entre a

vulnerabilidade das pessoas e o risco de terem de enfrentar diferentes obstáculos

para assegurar as necessidades da vida. Estas vulnerabilidades põem em causa a

satisfação da necessidade de segurança no centro das necessidades fundamentais

descritas por Abraham Maslow.

Segundo Margot Phaneuf, os seres humanos têm necessidade de estimulação para

sobreviver. No crepúsculo das suas vidas, sós, muitas vezes prisioneiros de uma

cama ou de uma cadeira de rodas, eles retornam à época em que os consideravam

dignos e úteis. A sua antiga forma de ver o mundo substitiu as percepções actuais e

tudo se confunde no seu espírito: voltam ao passado para dar um sentido à sua vida

presente e estimulam-se pelas suas reminiscências.

Enfim, para melhor demonstrar as dificuldades que um paciente com transtornos

neurológicos passa no seu dia-a-dia e a forma como procura lidar com as mesmas,

recupera-se agora uma carta que um jovem adolescente de 15 anos, que tem

contacto com um médico neurologista portador da doença de Alzheimer, escreveu

para a Associação de Alzheimer de Portugal.

“Rua da Imaginação, nº 12, 4º M

Imaginolândia, 07.02.2576

Querida Lembrança:

Há muito que te queria enviar esta carta, mas o esquecimento apodera-se de mim

nos momentos em que o poderia fazer. Deve ter-se esquecido de me esquecer hoje.

Já devia ter chegado... Enfim, continuemos.

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Page 35: Neurociências

Agora que posso escrever, sem me esquecer, queria pedir-te que, das tuas,

"gavetas memoriais", retirasses a "pasta" da minha infância e juventude.

Sei que já passaram muitos, muitos anos desde essa minha idade de criança,

tantos que já nem eu próprio sei se alguma vez fui miúdo, mas agora que este

maldito esquecimento já consumiu grande parte da minha memória, pedia-te que

me enviasses essas "pastas" ou, se não puderes, os tópicos dos momentos mais

importantes.

Agora que os carros voam e que as pessoas passam as férias em Marte, é-me

necessário recordar os momentos em que o Homem ia só à Lua e em que Marte

era uma ilusão, aqueles tempos em que os carros só andavam na estrada e só

voavam nos filmes americanos, esses anos em que a própria Natureza controlava

a temperatura do planeta, sem ser necessário esta cápsula sufocante que cobre o

planeta...

- Toc, toc, toc...

Bem, está alguém a bater à porta. Deve ser o Esquecimento. Vem tirar Novamente

as ilusões. Antes que arrombe a porta e me assalte a alma, só te peço que faças o

possível para me resolveres este tormento. Não precisa de ser já, tenho tempo.

Vou abrir-lhe a porta, antes que me esqueça.

Os melhores cumprimentos do teu esquecido

Miguel Garcia Wagner”

( http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=138&categoryID=819 )

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