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REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS Ano VI/ - Outubro/Dezembro 1954 SUMÁRIO Agricultura mais IndÚl!tria Edgard Teixeira Leite Pá4. 193 Bases Econômicas e Sociais na Formação das Alagoas .. Manuel Diégues Júniot 209 Valorização Intelectual do Município Administração e Urbanismo Planos de Urbanização InquécitCf:l e Reportajens Flscalh:ação, pelos Municípios, dos Serviços das Em- Nilo Pereira 217 Francisco Burkinski 223 prêsas Concessionárias de Energia Elétrica . . . . . Geraldo Silva Oliveira 225 Vida Rural A Missão Rural, Fator de Recuperação do Homem do Interior Luiz Rogério 227 Idéias em Fooo Os Estados e a Criação dos Municípios Otto Prazeres 233 Através da Imprensa Concentração e Valorização das Terrns Paulistas .... Operação-Município ............ .............. Brasília Machado Neto 234 Osório Nunes 234 Vida Municipal ................................... •. Notícias e Comentários V Congresso lnteramericano de Munidpios ....... . EstliltÍstica Municipal Melhoramentos Urbanos em 1952 ................ . A REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS, publicação trimestral do Con se Ih o Nacional de EstatÍstica, é órgão oficial da Associação Brasileira dos Municípios. Di reto r responsável : \VALDEMAR LoPES Secretário: VALDEMAR C.-\.VALCANTI Assinatura anual: Cri 80,00. Tôda correspondência deve se.r encaminhada 2 sede do Conselho Nacional de Estatística, Avenida Franklin Roosevclr, 166. Telefone 43-4821. 236 242 243 244

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  • REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    Ano VI/ - Outubro/Dezembro 1954

    SUMÁRIO

    Agricultura mais IndÚl!tria Edgard Teixeira Leite

    Pá4.

    193

    Bases Econômicas e Sociais na Formação das Alagoas .. Manuel Diégues Júniot 209

    Valorização Intelectual do Município

    Administração e Urbanismo

    Planos de Urbanização

    InquécitCf:l e Reportajens

    Flscalh:ação, pelos Municípios, dos Serviços das Em-

    Nilo Pereira 217

    Francisco Burkinski 223

    prêsas Concessionárias de Energia Elétrica . . . . . Geraldo Silva Oliveira 225

    Vida Rural

    A Missão Rural, Fator de Recuperação do Homem do Interior Luiz Rogério 227

    Idéias em Fooo

    Os Estados e a Criação dos Municípios Otto Prazeres 233

    Através da Imprensa

    Concentração e Valorização das Terrns Paulistas .... Operação-Município •............•..............•

    Brasília Machado Neto 234 Osório Nunes 234

    Vida Municipal ...................................•.

    Notícias e Comentários

    V Congresso lnteramericano de Munidpios ....... .

    EstliltÍstica Municipal

    Melhoramentos Urbanos em 1952 ................ .

    A REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS, publicação trimestral do Con se Ih o Nacional de EstatÍstica, é órgão oficial da Associação Brasileira

    dos Municípios. Di reto r responsável : \VALDEMAR LoPES

    Secretário: VALDEMAR C.-\.VALCANTI Assinatura anual: Cri 80,00.

    Tôda correspondência deve se.r encaminhada 2 sede do Conselho Nacional de Estatística, Avenida Franklin

    Roosevclr, 166. Telefone 43-4821.

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  • REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS N.o 2 8- Ano VII- Outubro/Dezembro- 1954

    AGRICULTURA MAIS INDÚSTRIA

    (A DESTINAÇÃO AGRO-INDUSTRIAL DO BRASIL)

    EDGARD TEIXEIRA LEITE

    ,

    E MATÉRIA superada o debate que durou quase um século sôbre a destinação econômica do Brasil. De um lado, os que defendiam a tese de que devíamos ser país preponde-rantemente agrÍcola, fornecedores de alimento e de matérias-primas a povos indus-trializados, o que equivaleria mantê-lo em semicolonialismo. De outro lado, os que julgavam indispensável à custa de quaisquer sacrifícios, realizar a sua industrialização.

    Esta disputa não se travava apenas no campo especulativo das tertúlias acadêmicas: revestia-se do mais vivo pragmatismo, quando uma das facções pugnava por tarifas protetoras para a indústria, e seus adversários exigiam taxas cambiais mais favoráveis para a lavoura .

    Sua origem repousa na infra-estrutura econômica. Vale mencioná-la ao menos de mo-do sucinto, para melhor entendimento da matéria que constitui o temário do encontro nesta Escola, das mais altas e fecundas criações das fôrças a1 ma das do nosso País.

    Pela extensão do território, das condições naturais, o Brasil tinha de iniciar sua vida econômica pelo extrativismo e pela produção agropecuária. Era imperativo a que não podia escapar, porque as leis da geopolítica são tão inflexíveis quanto as da gravidade.

    Quê se poderia fazer em terra tão vasta, de população tão esparsa, mergulhada ainda em plena idade da pedra, onde não havia produção escambável, capaz de criar corrente comercial, como ocorreu nas Índias?

    Bem sabemos o desaponto dos primeiros tempos da conquista, e o quase abandono de tão dilatadas áreas, cuja conservação se deveu, sobretudo, à esperança das minas de praia, de ouro e pedras preciosas e a preia do índio, como escravo. Os colonizadores aos poucos foram, porém, se radicando ao ecúmeno. Não podendo transplantar para aqui o sistema de cultura adotado na metrópole, pelo descompasso do clima, da abundância da terra, e o obstáculo da floresta, o reino! foi aprendendo com o indígena, métodos de plantio - matriculando-se na sua escola - porque esta foi a primeira escola da agricultura nacional, cujas lições ainda não foram esquecidas, porque a destruição das matas, pelo machado e pelo fogo, a coivara, a cultura itinerante, continuam a ser as bases da nossa lavoura.

    E criou-se, aos poucos, uma classe rural que dominou, na economia e na política, à medida que enriquecia e se tornava forte, todo um grande período da vida brasileira. Foi a era da hegemonia do barão-fazendeiro e do senhor de engenho; do prestígio da casa grande, da família patriarcal de que são expressões mais marcantes a cana e o café.

    Em tôrno dêles principalmente se plasmou a vida política nacional, se fortaleceu o regime imperial e obtivemos devido às condições conservadoras criadas pelo patriarcalismo agrícola a unidade pátria, apesar dos surtos revolucionários, que de vez em quando eclodiam - sintomas de vitalidade de organismo em formação - e do contratempo das lutas externas, de que a guerra do Paraguai foi o seu ponto mais alto. Daí, saíram as grandes expressões culturas do Brasil, em todos os ramos e, nesta Escola, se formaram os homens de maior projeção na vida pública e que tanto concorreram para dar ao País a feição agzária, que o caracterizou até o início dêste século

    Examinemos, agora, a outra face do problema: a da nossa industrialização.

    Bem longe nos levaria o estudo da história da sua evolução. Diferente, aliás, é o objetivo destas considerações que é o de examinar, em têrmos concretos, as condições da agricultura em face da industrialização do País.

    Apenas para situar o problema nos eeus exatos têrmos, façamos dêle rápido escôrço. Começou, como era natural em região nova sem capitais e sem técnica, pela indústria extrativa e pelo artesanato. Entre aquelas, a da madeira, de que a do pau-brasil constitui a primeira exploração regular; em seguida, a da erva-mate, a da cal, e a do curtume etc.

    R B M -1

  • 194 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    O artesanato - afora as atividades comuns à vida, mesmo incipiente, de qualquer sociedade humana - se organizou como artes mecânicas e manufaturas, de que se distin-guem vários aspectos: um dêles, o rural, se tomou largamente disseminado. As propriedades agrícolas formavam, naquele período de nossa história, sociedades de economia fechada, conseqüência de seu isolamento, criada pela distância real e pela distância virtual, dadas as precariedades dos transportes. Proprietários, escravos agregados, compunham núcleos humanos consideráveis, cabendo-lhes organizar seu próprio suprimento. Daí o carpinteiro, o ferreiro, o oleiro e, em certas regiões, as manufaturas de pano e vestuário, como nos dão conta os relatos dos viajantes, que visitaram o interior do País nos três primeiros séculos depois da descoberta. A um dêles, um grande proprietário, como demonstração -como diríamos hoje - de sua auto-suficiência, declarava "produzir tudo que necessitava para alimentar, vestir e abrigar sua família e sua gente". Apenas tinha de comprar pólvora e sal.

    Embora algo exageradas, tais palavras dão idéia bem aproximada da situação então vigente na hinterlândia. Até pequena siderurgia, para uso exclusivo da propriedade, foi promovida.

    Certas formas de artesanato, que pe~manecem ainda hoje aqui e ali, formam remi-niscências dêste período já longínquo. Tal é o caso da fiação da lã e a sua tecelagem, em teares primitivos, manuais, como pode ser encontrado em regiões afastadas de Minas Gerais, no Sêrro, nascente do São Francisco, em Pi -í etc . Ao lado dêste artesanato, nos centros urbanos, adquirindo às vêzes considerável desenvolvimento, apareceram: a cerâmica, a exploração de cal, o curtume, nos pontos de comércio de gado, a tecelagem de corda na Amazônia etc. Na segunda metade do século XVIII, fundam-se em Minas, e também no Rio de Janeiro, manufaturas de têxteis, relativamente grandes, - emprêsas autônomas, com organização comercial. Ao lado delas, a indústria de ferro, cuja abundância e excelente qualidade determina um rápido crescimento, explicável ainda pelo elevado consumo de instrumentos dêste metal na mineração de ouro para suprimento de tropas, e pelo preço escorchante do similar reino!. Mas, em 1785, a metrópole manda extinguir tôdas as indús-trias, salvo a de panos grossos para vestuário dos escravos. Visava, dêste modo, a manter o País em situação de feitoria, impedindo tudo que pudesse torná-lo independente, não apenas política, mas econômicamente, ciosa de reservar para o seu comércio a exclusividade de suprimento de tecidos, artefatos de ferro etc. Nestas medidas, estavam incluídos os propósitos de fazer a emancipação política, que seria conseqüência do desenvolvimento do País Nesta ordem de idéias, - foi o caso especial pelo receio da fundição do ouro, facilitando fraudar o pagamento do quinto, - proibiu o ofício de ourives, sendo, já em 1751, expulsos de Minas todos os que exerciam êste ofício.

    Atenuada esta situação, pela melhor compreensão do problema, diante do desconten-tamento das populações, prejudicadas por êste retrocesso, se foi atenuando o regime de proibição. Mas, o que fôra criado de indústria artesanal, sofreu tremendo colapso, com a abertura dos portos ao comércio exterior, em 1816.

    Tanto quanto esta providência, atuou a decretação de baixas tarifas alfandegárias ( 15% ad-valorem), possibilitando às mercadorias estrangeiras, produzidas em melhores condições, concorrer com as nacionais provenientes da indústria colonial mal equipada, sem organização técnica. E desapareceram, assim, a tradição e artífices, que se haviam aos p;:mcos formado nestes dois séculos na "escola ativa" do artesanato Como se pode bem imaginar, tôda esta primeira fase industrial não perturbou a nossa feição nitidamente agrária, antes a consolidou como já foi mencionado, permitindo o patriarcalismo rural de mais alto tipo. Re"!liniscência desta época, foi a situação encontrada ainda em 1865, por Louis Agassiz, geólogo de origem suíça, aliás naturalizado americano, que escreveu um livro famoso sôbre o Brasil, em maior parte aliás da autoria de sua espôsa, onde foi mencionada a famosa expressão, que fêz fortuna e corre mundo, tantas vêzes repetida, e que se incorporou ao nosso patrimonio cultural: que o Brasil continuava a ser um país essencialmente agrícola apesar, acrescentava êle, "do caráter e dos costumes dos brasileiros não serem os de um povo de agricultores".

    Esta ressalva, seja dita de passagem, pinta bem a impressão que causou a um europeu o sistema de saque a que viu submetida a terra posta em lavoura.

    A nova fase industrial do País teve de partir da estaca zero, lutando com a falta de energia num país em que 80% do combustível tem de ser buscado na lenha, com a distância que isola seus núcleos populacionais, pequenas ilhas econômicas distanciadas umas das outras e, até há pouco, sem comunicação pela hinterlândia, o que impecilha o transporte, impedindo a produção em larga escala; a ausência, até há pouco, da industria pesada, donde a impossibilidade da produção de máquinas e a necessidade de utilizar muitas vêzes maquinaria obsoleta importada e a dificultando em renovar o material desgastado; a inexistência de mercados de capitais de investimentos e para o financiamento das indústrias de tradição e de técnicos; a debilidade do nosso mercado interno: eis, em grandes linhas, os tremendos óbices com que se defronta a industrialização do País.

    Ê de inteira justiça, pois, mencioná-las, como reconhecimento aos que estão construindo a nossa economia, através de obstáculos que nem sempre são coroados de vitórias, mas assinalados não raro de fracassos, de desastres financeiros, em que se esvai às vêzes o patrimônio familiar dos empresários.

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    Foi, por isso, penosa a estrada percorrida, mas, olhando-se para trás, e o que foi vencido, sentimos o que poderá ser realizado pelos nossos chefes de indústria, que estão ajudando a criar o Brasil vigoroso, econômica e poll.ticamente forte, que é a grande tarefa de todos nós.

    Num livro, bem documentado e altamente informativo, O Pensamento Industrial no Brasil, o Conselheiro Humberto Bastos estudou esta evolução e lembra com razão como foi lenta.

    Além dêstes handicaps, havia a luta contra a mentalidade dominante, resíduos da nossa formação agrária. Dela, são expressões marcantes as disputas sôbre as taxas cam· biais, como já foi lembrado. A luta neste sentido foi tremenda, como era natural. Aos produtores de matérias-primas e de produtos alimentares, interessavam taxas que lhes permitissem fazer o maior número de cruzeiros por libra ou dólar de mercadoria vendida, e ao mesmo tempo receber, pelo menor número de cruzeiros, os bens de consumo do estrangeiro, em lugar dos fabricados no País, a preços mais elevados e de qualidade inferior.

    Os anais do parlamento, as coleções dos jornais e revistas estão cheios dos debates em tôrno dêste problema Se as tarifas alfandegárias, a partir de 1844, são progressivamente elevadas, há nelas, a par de certo sentido protecionista à industrialização, sobretudo, a necesidade de atender às condições do erário. É o que explica a sua adoção, numa época em que a hegemonia política pertencia às classes rurais.

    Sentimos até hoje os reflexos desta situação, quando com justiça se reclama especial tratamento para a nossa mais poderosa máquina de fazer dólares, que é o café, e para o cacau e outros grandes produtos de exportação.

    Mas não tinha apenas origem nacional. Havia também argumentos oriundos de fontes estrangeiras. Um exemplo concretiza bem êste pensamento: No Livro Verde n.0 2, Relatório sôbre condições econômicas e financeiras do Brasil, organizado por Ernest Ham-bloch, cuja tradução foi permitida pelo Competroller do Stationery Service de S. M. Britânica ( 1924) lê-se o seguinte: "É incontestável que teria sido muito mais proveitoso, e econômicamente melhor para o País, menor concentração no desenvolvimento industrial e maior na expansão agrícola e pecuana e indústrias conexas. Uma grande proporção das chamadas indústrias nacionais podem ser classificadas como plantas de estufa, incapazes de suportar intensa concorrência de artigos estrangeiros, quando melhorassem o câmbio e as condições da Europa. Mesmo no momento atual, tais indústrias só florescem devido aos elevados direitos de importação sôbre os artigos estrangeiros e aos mesmos deve-se grande-mente levar em linha de conta o excessivo custo-da-vida que, dia a dia, torna mais difíceis as condições das classes médias . As classes operárias sofrem menos, visto terem sido os seus vencimentos aumentados. Os únicos favorecidos por êsse estado de coisas são os donos de fábricas e acionistas. Está verificado com segurança que os seus lucros anuais são de 50% e, em alguns casos, mais. Conquanto não se possam verificar êstes cálculos, êles não são exagerados. Certamente os lucros obtidos são muito grandes. É inegável que há um grande e legítimo campo de desenvolvimento para as atividades industriais, tendo relação direta com os recursos naturais do País, facilitados pela fôrça hidrelétrica de baixo preço; de nenhum modo, porém, é êste o caso para a maioria das indústrias estabelecidas no Brasil. O resultado é que, em regra, são fornecidos ao público, em muitos casos, artigos de manufatura inferior, cujos preços não são proporcionais ao custo de sua produção. Acresce que a atração da já insuficiente população do País para os centros, tais como Rio e São Paulo, está criando, no interior, séria falta de braços que não pode senão afet:>r, em geral, a situação econômica do País. O salário do trabalhador no interior aumentou sem motivo, além das dificuldades que o lavrador tem de enfrentar, as quais sãd as insuficientes facilidades de transporte e os altos preços em moeda nacional para maquinismos e instrumentos agrícolas . "

    Os exemplos dêste tipo são numerosos nos livros, em relatórios de missões oficiais ou privadas. Apenas, difícil a escolha. Mas o citado acima resume bem a argumentação dos estrangeiros, que pensam e julgam que o Brasil devia ser mantido em situação de produtor de matérias-primas e gêneros alimentícios, buscando no exterior o que necessita de bens de consumo, tornado numa grande feitoria, em suma, num país semicolonial. As duas guerras, porém, no seu brutal impacto sôbre a nossa economia, iriam demonstrar o quanto estava errada tal orientação Graças às nossas indústrias, mesmo incipientes, evitamos o colapso da vida nacional, em tantos e tão variados setores, abrindo os olhos aos mais displicentes e concorrendo para criar o sentimento da necessidade de incremento industrial, para que em conflitos, declarados ou latentes, o País possa sobreviver.

    Num mundo cada dia mais interdependente, ao lado desta solidariedade econômica, que o comércio internacional promove e estreita, desgraçadas das nações que dependem do suprimento total do estrangeiro, quer para a sua defesa militar, quer de bens de consumo.

    Não se pode pensar, assim, em país do tipo do nosso, em antagonismo entre agricultura e indústria. Alguns aspectos do problema valem ser especialmente acentuados e demons-trarão que a infra-estrutura econômica da nação será, porém, sempre alicerçada na agricultura tomada no seu mais amplo sentido.

    Melhor do que longas explanações, um exemplo porá em evidência a verdade desta assertiva. Admita-se que por condições, difíceis de serem verificadas na prática, mas que

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    se podem conceber, as nossas grandes lavouras de exportação, as nossas máquinas de fazer dólar, desapareçam totalmente.

    O País, com sua exportação pràticamente anulada, veria paralisando o seu transporte rodoviário pela supressão de petróleo e o prejudicado ferroviái:ío, dado o crescente emprêgo de locomotivas diesel; não teríamos pão, êste alimento, cuja carência tem sido o detonador de tantas perturbações sociais, e que de tal modo influi na psicologia coletiva, como símbolo de fome; e tôda a nossa importação, em conseqüência, sofreria um completo colapso. Imagine-se, dentro da linha do mesmo raciocínio, idêntica situação no setor da indústria: que desaparecesse todo o nosso parque industrial. Tremenda seria a perturbação da nossa economia, mas incontestàvelmente bem menor que na primeira hipótese. Poderíamos com-prar, com as cambiais obtidas pelo agricultor, os produtos que tivéssemos deixado de fabricar. O nível de vida baixaria enormemente, mas o colapso não atingiria o clímax como no caso de serem destruídas as grandes lavouras de exportação: e isso porque somos um País com enorme extensão territorial, cuja população, a oitava do mundo, cresce na proporção de 1 200 000 pessoas por ano, que tem de ser alimentado quase totalmente com recursos da própria economia, e cuja exportação, de onde lhe advêm cambiais, é constituída na proporção de 90% de produtos de origem agropecuária e apenas um DX por manufaturados, e que tem de buscar dentro dêle, para seu parque industrial, os têxteis, madeiras, borracha, oleaginosos etc. Basta o exame dêstes itens para sentir ao vivo, quanto é pura estultícia procurar escurecer a realidade, isto é, que na agricultura, tomada no seu amplo sentido, reside a infra-estrutura econômica da Nação.

    INDUSTRIALIZAÇÃO COMO FATOR DE PROSPERIDADE AGRÍCOLA

    A MODERNIZAÇÃO rural do País está, entretanto, na mais estreita dependência de sua industrializacão .

    A agricultura desenvolvtda stgmftca maténa-pnma a custos acessíveis e razoáveis, por isso que elas têm, sobretudo, origem agrícola. Significa ainda alimentação sadia e barata. Assim, o operário da indústria pode obter um dos elementos de trabalho eficiente que é alimentação adequada, em qualidade e em quantidade, adquirida dentro das possibi-lidades do seu salário. Significa, ainda, mercado de alta capacidade aquisitiva para a produção industrial, não apenas no sentido de atender a necessidades elementares, mas, dotado de poder de compra capaz de adquirir bens de consumo, acima delas. É o que ocorre, na zona de agricultura próspera em que a população se veste melhor, usa calçado, requinta na alimentação, que passa a ser um prazer a mais, em vez de atender apenas à necessidade vital. Neste caso, incentivado pelo lucro, é-lhe possível a melhoria da técnica, de tôda sorte. E como ganha mais, pode tornar-se um bom cliente da indústria.

    Suponha-se um país dotado de matérias-primas, efetivamente ou em potencial, que possa industrializar-se, como é o nosso caso. As indústrias podem suprir a lavoura de maquinaria de tôda ordem, de fertilizantes e inseticidas. Melhor aparelhados, os lavradores têm possibilidade de aumentar, não apenas o volume de sua safra, mas, o que ainda é mais importante, a sua produtividade obtendo mais cruzeiros por quilo de produto colhido, e assim, adquirir muito além do estrito necessário, para a vida precária de simples subsistência, como ocorre com mais de dois terços da população rural do País .

    Há ainda outro aspecto em que nem sempre se atenta devidamente, mas que é da mais alta relevância. É o da transformação, no próprio País, da produção agrícoia. Industrializada dentro das fronteiras nacionais, asseguraria certo número de vantagens substanciais, dignas de menção .

    Suponha-se o caso do algodão, num país sem fábricas de fiação e tecelagem. O lavrador tem de se submeter às cotações do mercado internacional, que nem sempre se ajustam às condições internas, vítima, não raro, das manobras da especulação sem entranhas, que num simples jôgo de bôlsa pode aniquilar o esfôrço de todo um ano de trabalho. No caso inverso, em que há parque industrial capaz de adquirir a produção nacional, apure-se o que representa transformá-lo em fio e tecido. Quanto mais adiantada a indústria mais produzirá em cruzeiros esta mesma quantidade, o que significa salários, impostos, movi-mentação bancária, tôda a longa cadeia de atividades remuneradoras das transformações da matéria-prima em produtos industriais. As vendas podem operar-se dentro de normas mais justas e equilibradas, assegurados preços em bases menos aleatórias, pois até limitações, visando ao equilíbrio dos mercados, podem ser introduzidas, do que temos exemplo na in-dústria açucareira .

    Esta fixação de preços, que é fator da mais alta relevância na produção agrícola, só pode ser praticada na realidade, quando a industrialização se processa dentro do território nacional. De outro modo o sistema importa no sacrifício do consumidor, sem compensações de nenhum grupo produtor. No caso de um país industrial, elas, porém, se estabelecem, dentro de um sistema que às vêzes beneficia passageiramente um grupo, para, na fase seguinte, beneficiar o outro, mas com incontestável vantagem para a economia nacional, como um todo. E as situações podem ser reajustadas, através de providências, oficiais ou não. O Nordeste brasileiro oferece, para muitos de seus produtos, um exemplo típico da

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    subordinação de reg1ao produtora de matérias-primas, na dependência dos mercados situados fora das suas fronteiras . É 0 caso do Ceará, região fornecedora de matérias-primas para indústria: algodão, fibras, óleos, cêras, peles e couros. É uma produção nitidamente colonial. Como a industrialização local é limitada, está na mais estrita dependência da exportação, como quase todos seus produtos estão entre os gravosos, para empregar-se o neologismo tão em uso, isto é, estando os preços inferiores às cotações internacionais, o Ceará luta, dentro do País, com a sêca, e, no estrangeiro, com preços ruinosos.

    Como sua lavoura de subsistência é insuficiente, tem de adquirir, com o dinheiro da exportação, o charque, carnes enlatadas, feijão, arroz, leite condensado, além de trigo, apenas para citar alguns dos bens de consumo mais indispensáveis.

    Com a sêca, em que tôda lavoura de subsistência desaparec'e, a situação atinge seu clímax, mas suas raízes profundas estão também em outras causas, das quais o colonia-lismo de sua economia é uma das mais atuantes . Por isso, só a água não resolveria o problema das sêcas, mas tôda uma série de providências que evitem a depressão cíclica de uma região em permanente desajustamento de produção de preços e de esvaimento de material humano.

    Mas o problema tem outro aspecto, cujo brutal impacto tivemos de sofrer, na última guerra: o da ausência dos aparelhamentos para a nossa lavoura . Até a enxada e o machado, que continuam como a base instrumental da produção agrícola nacional, atingiram preços incríveis, pois ainda não havia sido criada a respectiva produção dentro do País.

    A êste exemplo poderíamos adicionar numerosos outros, - o dos arados e outros implementas agrícolas . Será por isso conveniente fixar melhor um dos aspectos mais imperiosos da organização, entre nós, da indústria mecânica em condições de atender ao constante problema da mecanização rural.

    É sem dúvida auspicioso o número crescente da importação de tratores pelo Brasil. Mas, se atentarmos no número de propriedades agrícolas do Brasil, da ordem de dois milhões, verificaremos o número de tratores já importados, isto é, cêrca de 30 000, e veremos como é ainda insignificante o número dêles, mesmo para o caso de um trabalho permanente e eficiente, o que não ocorre. Talvez estejam nestas condições menos de 50% dos que figuram nas estatísticas.

    O Dr. João Cleofas, num corajoso estudo sôbre o assunto, em que o Ministro de Estado desmentiu o aforismo de que "otimismo é uma virtude oficial" demonstrou que, no caso de trabalho eficiente de cada trator, teríamos necessidade da utilização, pelo menos, de 70 000, para o trabalho da atual área cultivada.

    Não se pode, porém, contar com uma revolução tecnológica agrícola, enquanto depen-dermos do estrangeiro, para suprimento quer de máquinas, quer de seus sobressalentes.

    A indústria norte-americana dispõe de quotas limitadas de exportação para atender a clientela de 65 países, além do seu mercado interno, cujas necessidades são imperiosas, crescentes e preferenciais .

    E o nosso País não apresenta condições que justifiquem a criação de tipos especial-mente fabricados para nós, ao nosso solo e a nossa mão-de-obra.

    Somos coagidos a adquirir o que existe, e que nem sempre nos serve, e que é entregue quando querem e como entendem os vendedores.

    E depois, pelas rápidas modificações de tipos de fabrico, quer para atender a aperfei-çoamentos técnicos, quer por motivos comerciais para forçar a obsolência, não temos facilidade do suprimento dos sobressalentes. Isto cria o drama dos sobressalentes, a máquina paralisada na hora mais angustiante, quando mais dela se necessita. O exército tem conhe-cimento bem exato dêste drama, mas não sofre nas proporções da agricultura, que só pode lavrar o solo em tempo exato, podendo a paralisação de um trator representar a perda de tôda uma safra. Assim, só a criação, dentro do Brasil, desta fabricação de tipos ade-quados às nossas condições poderá resolver o problema.

    Temos, aliás, no País, tôdas as possibilidades para iniciá-la, pela colaboração de nume-rosas indústrias, de São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, cada uma fornecendo uma parte do material necessário, pois o trator é um produto de uma assembly plant.

    Só assim teremos dado, decisivamente, um passo à frente, neste setor da transformação agrícola, sem receio de falta de sobressalentes e evitada a multiplicidade de tipos, às vêzes inadequados, criando tôdas a sorte de dificuldades de ordem prática.

    A certeza de aquisição de certo número, pelo Govêrno, asseguraria ao fabricante a regularização da produção, que tem já hoje no aço de Volta Redonda e em breve no aço especial da Acesita os elementos indispensáveis para promover a motorização agrícola do País.

    Motorização agrícola, digo bem, mas não é tudo de que a agricultura necessita de indústria. Exemplifiquemos:

    Examine-se uma fazenda moderna adotando técnicas racionais e ver-se-á quanto o seu aparelhamento está na dependência da indústria: além das máquinas agrícolas, de diversos tipos, para lavrar a terra, para semeadura, tratos culturais e colheitas e beneficia-

  • 198 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    mento, as instalações para estocagem dos produtos e o transporte das safras. De outro lado, os fertilizantes, os inseticidas, os produtos veterinários, o material para embalagem da produção .

    Compare-se esta fazenda, razoàvelmente equipada, com uma propriedade de agricultura rotineira, onde apenas se usa a enxada, o machado e a foice; onde o preparo dos cereais é feito por processos manuais; onde os fertilizantes não são utilizados, nem adotados meios para combater as pragas e o tratamento dos animais, onde o transporte é feito no carro de boi ou no lombo do burro - e ver-se-á como a modernização e rotina estão em estreita correlação com a produção industrial.

    Assim, sem ela, não podemos sair do mais extremo primitivismo agrícola, como bem disse Euvaldo Lódi, o eminente líder das classes industriais: , "O Brasil não poderá estru-turar a sua economia, não poderá construir um ciclópico edifício econômico, não estabelecerá uma economia estável, harmônica, arquitetada sem que haja efetivamente uma agricultura desenvolvida, racionalizada como fundamento da riqueza comum . "

    E para sentirmos a grande ajuda que tem de ser dada pela indústria, recordemos o problema da mecanização agrícola: dois milhões de propriedades, com menos de 20 000 tratores em uso, empregando, em mais de um milhão e meio delas, como instrumento de trabalho, apenas a enxada e o machado, e o caso dos fertilizantes, indispensáveis para a restauração de nossas terras, degradadas por séculos de "mineração".

    Para o ano corrente, está previsto o emprêgo de trezentas mil toneladas de fertilizantes, incluídas nesta cifra cêrca de sessenta mil tonela~as de calcário, para corretivo.

    Calculando, grosso modo, 500 quilos de fertilizantes por hectare, teremos que apenas vão ser beneficiados seiscentos mil hectares, área insignificante em face da superfície cultivada do País, que atinge dezoito milhões de hectares.

    Êstes números na sua singeleza demonstram o enorme papel da indústria, só em maquinaria e fertilizantes, para a modernização rural do País.

    DEBILIDADE DO NOSSO MERCADO INTERNO

    O GRANDE escoadouro da produção nacional será sempre o mercado interno, com cinqüenta e quatro milhões de consumidores, que crescem cada ano, não apenas em razão do aumento demográfico, mas também pela capacidade aquisitiva das popu-

    lações industriais .

    Mas, se o examinarmos mais de perto - veremos como é grande sua debilidade. Enorme parte de consumidores está em estado potencial . Prova desta situação são o "pé descalço" e a restrita indumentária das populações rurais.

    Se se generalizasse o uso do calçado, as fábricas dêste artigo seriam insuficientes para atender à nova clientela. A produção anual que em 1930 era de 15 819 000 pares, atingiu em 1949 37 812 000 pares, o que dá um consumo per capita de 0,73 pares.

    Se cada brasileiro consumisse pelo menos um par anualmente, as fábricas existentes seriam insuficientes para atender a demanda.

    O mesmo ocorre com o vestuário, cujas estatísticas situam o Brasil como país seminu. Como fortalecer o mercado interno?

    Não basta propaganda, estimulando o desejo de compra, mas é indispensável dar ao homem possibilidade de satisfazê-lo.

    Soma enorme de nossos patrícios, mais de 25 milhÕes pelo menos, vivem em regime de subconsumo, isto é, em situação inferior às necessidades vitais de alimentação, de vestuário, de moradia e de higiene a mais elementar.

    Ê alarmante o número de brasileiros que nunca dormiu em cama com colchão, que nunca calçou um par de sapatos, que nunca teve a noção de tratamentos de dentes, que vive aliás como numerosos milhões de outros sêres humanos, de países superpopulados da Ásia, em permanente subnutrição. O estudo que começou a ser feito, nas diversas regiões do País, mesmo das reputadas mais prósperas, das populações marginais, são de molde a deixar apreensivos os menos avisados e os mais otimistas.

    Dessa situação têm aliás as fôrças armadas um exemplo alarmante, pelo número de recusas que o serviço militar apura, anualmente, por moléstias e distúrbios de tôda sorte.

    Outro índice alarmante é o cálculo do que toca a cada brasileiro da produção industrial do País. Apesar de serem incompletos e por isso pouco seguras as nossas estatísticas, admite-se que o valor desta produção industrial é da ordem de Cr$116 000 000,00.

    Quase tôda ela se destina a bens de consumo, sendo ainda insignificante a produção de bens de capital.

    Calculado o valor do der ando a população em:

    1940 1950

    consumo per capita, encontramos os seguintes números, consi-

    42 000 000 52 000 000

    Cr$ 331,10 Cr$ 1 662,51

  • AGRICULTURA MAIS INDÚSTRIA 199

    Ou seja, em 1930, cada brasileiro despendia, com vestuário, calçado, fumo e outros artigos de consumo, de origem industrial, menos de 1 cruzeiro por dia ou exatamente Cr$ 0,90.

    Em 1950, com preços não deflacionados o dispêndio era, para o mesmo fim, de Cr$ 4,53.

    Por aí se vê que o nosso mercado interno é de extrema debilidade, pois cada brasi-leiro só tem atendido um limitado número de necessidades e de modo muito precário, como se vê por êste levantamento, realizado pelo Departamento Econômico do Ccmselho Nacional de Economia, por uma equipe sob a chefia do Prof. Manoel Orlando Ferreira.

    Assim, vemos, por êste enunciado, traçado em linhas gerais para não enfadar êste paciente auditório com cifras e estatísticas minuciosas, que na organização, ou melhor, na criação de um poderoso mercado interno está o fundamento da nossa expansão industrial. E mercado interno tem de ser conseqüência de agricultura de alto grau de produtividade.

    Não basta, entretanto, mencionar verdade tão sediça mas é preciso, para completar o panorama da nossa situação industrial, em face da conjuntura agrícola brasileira, estudar os iatôres limitantes da sua produtividade.

    Poderíamos resumi-los numa única palavra: ROTINA. Rotina compreendida no seu mais amplo sentido: de métodos, de técnicas, de aparelhamento humano e material, cuja ausência ou escassez são a regra na agricultura nacional.

    É a rotina, assim compreendida que torna a nossa lavoura verdadeira mineração do solo, exaurindo-o pelas colheitas e pelas práticas mais irracionais de trabalho da terra, apressando a erosão: a mining agricultura dos americanos. A sua conseqüência foi a agricultura nômade, itinerante, que destruiu, em quatro séculos apenas de ocupação do território, extensões enormes, em busca sempre de novas jazidas, ainda virgens, de húmus e de materiais minerais nobres, e de que o exemplo mais dramático é o café.

    Introduzido no País, no início do século passado, a lavoura cafeeira percorreu, arra-sando as florestas, criando uma prosperidade efêmera, deixando após si não raro cidades mortas, taperas e pastagens fracas, tôda a bacia do Paraíba do Sul, Minas, grande parte de São Paulo e também do Paraná, onde as zonas desbravadas já começam a dar sinais de esgotamento .

    A vaga cafeeira em 150 anos inundou milhares de quilômetros quadrados das encostas da Tijuca, de onde partiu em 1810, para conquista de imensos territórios, aproximando-se agora dos limites políticos da nação, desbordando para o Paraguai. É, entretanto, desta lavoura de extermínio que dependemos para manter a economia da nação, porque cada automóvel que roda nos campos ou nas cidades representa um pouco de café, com que o veículo foi comprado, e do petróleo que o move .

    No início da sua cultura, havia a crença da fertilidade sem limites das nossas terras. E o barão-fazendeiro da velha província fluminense, construiu, na ilusão de sua perma-nência, casas imensas, que algumas são verdadeiros palácios, instalações custosas de beneficiamento, com terreiros, paióis, senzalas, capelas e cemitérios, como se não tivesse de ter fim o rico filão que estava minerando.

    O Palácio do Catete foi edificado com o café da bacia do Paraíba do Sul, no Município de Cantagalo, que em meados do século passado, detinha, com Vassouras, a hegemonia cafeeira da velha província .

    A produção era em tal volume que justificou a construção de uma dispendiosa estrada de ferro, a E. F. Cantagalo, que exigiu sistema especial de cremalheira e que é o atual ramal de Friburgo. As fazendas da família S. Clemente, a dos Barões de Nova Friburgo possuíam grandes palácios, de que ressalta pela grandeza e imponência a famosa fazenda do Gavião.

    Tudo fôra feito para durar eternamente.

    Entretanto, em menos de cinqüenta anos, a ilusão se desfez ao impacto da realidade. O ramal de Friburgo trafega vazio de carga cafeeira, deficitário como quase tôda a rêde da Leopoldina, criada para o transporte de café, pois a pecuária que substituiu a rubiácea, com pastagens fracas, só permite a exploração extensiva de dois bovinos por alqueire e baixo rendimento. E o café que se bebe hoje na região, outrora centro de prodigiosa lavoura cafeeira, vem do Rio de Janeiro.

    A riqueza da terra roxa de São Paulo, que era dada como tipo ímpar de solo no Brasil para a cultura do café, também não resistiu à mineração.

    São Paulo, cujas safras já atingiram 24 milhões, mal se mantém no nível de 7 milhões.

    E quando dentro de meio século talvez, acabarem as terras novas para café do Paraná, de Goiás e de Mato Grosso, tornando-se, pelo transporte, cada vez mais deficitária a produção cafeeira? Onde iremos buscar dólares para manter o comércio internacional, sem o qual não pode viver uma nação soberana?

    Jeremias Lunardelli, o atual rei do café, numa entrevista publicada em 1950, num grande jornal europeu, mostrou em sua plena evidência esta temível realidade.

    Neste sentido, também merecem especial atenção as palavras contidas na Mensagem do Governador do Paraná, em 1948: "Há um ponto sombrio na risonha perspectiva da

  • 200 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    produção do café no norte do Paraná. É que os cafezais do Paraná continuam a ser plantados pelo mesmo processo como foram os de São Paulo e de todo o Brasil, ou seja, pela destruição da floresta virgem para explorar o filão do húmus, sem nenhum cuidado pela sua conservação. As madeiras de lei são aproveitadas em mínima parte e o resto queimado, em quantidades enormes. Essas florestas não são, de modo nenhum, substituídas. E, além de sua perda, há o prejuízo ainda maior, do enfraquecimento acelerado das terras pela erosão, êsse mesmo fenômeno que reduziu a zero os cafezais do Nordeste, os chapadões do Centro e que vai rudemente devastando todo o nosso hinterland. ·

    Se êsse processo continua principalmente nas ferazes zonas do norte do Paraná e do vale do Rio Doce, pouca coisa nos restará em matéria de florestas, dentro de um quarto de século . " I·

    É imperioso, a menos que queiramos assumir atitude suicida, enfrentar esta situação, encarando-a de frente, como fazem os povos e os indivíduos fortes, sem ilusões e sem buscar falsas soluções. E ela está na larga industrialização agrícola; fazendo passar a nossa agricultura de seu estágio extensivo para o de semi-intensividade.

    O Conselho Nacional de Economia fêz um levantamento do saldo da produção agro-pecuária per capita, de 1940-51, para apurar a situação de cada brasileiro, em face desta produção, subtraída a exportação e incorporada a do mesmo gênero importada. Êste levantamento foi realizado, ainda para a população e a área cultivada tomando como número índice, igual a 100, o ano de 1940.

    LEVANTAMENTO DO SALDO DA PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA "PER CAPITA" 1940/51

    PRODUÇÃO PRODUÇÃO VEGETAL EXPORTAÇÃO ANIMAL

    ANOS Volume Valor

    físico

    1940 100 1941 102 1942 105 1943 95 1944 92

    (1) 1945 92 1946 101 1947 107 1948 117 1949 122 1950 125 1951 133

    FONTE: - Anuário Estatístico do Brasil NOTA: - Número índice 1940 - 100

    100 113 137 156 189 218 277 315 376 410 447 575

    Volume físico

    Valor

    100 100 102 111 101 117 105 159 101 219 113 247 123 333 124 376 132 439 134 512 140 655 142 711

    Da Da produção produção

    Área animal vegetal cultivada

    Volume Volume físico físico

    100 100 100 103 71 81 97 82 62

    107 43 73 114 32 97 118 21 92 121 39 138 123 23 138 126 29 160 132 22 121 138 14 110 138 8 137

    ( 1) - Dêste ano em diante, os dados sôbre a Produção Vegeral, referem-se a 2 9 produtos.

    PRODUÇÃO MENOS EXPORTAÇÃO

    ANOS Da produção animal

    Volume físico

    --------------------1940 100 1941 106 1942 108 1943 101 1944 99

    (1) 1945 102 1945 109 1947 118 1948 128 1949 134 1950 139 1951 149

    FONTE: - Anuário Estatístico do Brasil. NOTA: - Número índice - 1950 - 100.

    Da produção vegetal

    Volume fisico

    100 102 102 107 102 114 123 124 131 134 141 142

    SALDO DA PRODUÇÃO "PER CAPITA"

    População média Da produção Da produção

    animal vegetal

    --------- --------------100 100 100 102 106 100 105 103 97 108 97 99 111 91 92 113 91 101 116 97 106 118 100 105 121 106 108 124 110 109 127 110 110 131 116 108

    (1) - Dêste ano em diante, os dados sôbre a Produção Vegeral, referem-se a 29 produtos.

  • AGRICULTURA MAIS INDÚSTRIA 201

    Em 1940, havia, para 100 de população, 100 de saldo per capita de produção animal e vegetal.

    Em 1951, havia, para 131, 116 de produção animal e 108 de produção vegetal. Ou, traduzindo em palavras, a população cresceu de 100 para 131, enquanto cada brasileiro que dispunha, em 1940, de 100, em 1951 teve respectivamente apenas 116 e 108 - isto é, o número de bôcas aumentou mais depressa que a disponibilidade para alimentá-Ias.

    O Conselho Nacional de Economia, na sua exposição geral do ano de 1952, demonstra através de cifras, esta situação, que tem suas raízes na rotina: "A feição nitidamente semicolonial de nossa agricultura, ressalta, em sua plena evidência, quando examinada sob o aspecto das disponibilidades energéticas.

    Grande parte da que é empregada tem, como fonte, o esfôrço muscular, humano e animal.

    O exame dêste setor explica muita coisa de seu atraso e rotina, e põe em seus exatos têrmos a importância da mecanização, que não deve apenas ser entendida como a utilização de motores de explosão, mas o emprêgo de outras fontes de energia que não a do esfôrço humano. A generalização do emprêgo de tração a sangue deve ser seriamente encarada como um dos instrumentos mais importantes para a revolução técnica que precisamos realizar. O que conta na agricultura moderna não é a produção por hectare (que pode ser muito grande, mas obtida por dispêndio enorme de energia) mas a produção por homem-hora. Tudo que aumenta o rendimento por homem-hora reduz o custo da produção.

    Para a passagem de uma agricultura de mineração para uma técnico-científica, a larga utilização de energia mecânica é fator decisivo. Daí a importância da eletrificação, embora se tenha de pensar, cada vez mais, dada a dispersão das propriedades, nos motores de explosão para as tarefas de bombeamento d'água, da manutenção das máquinas de beneficiamento de cereais e preparo de alimentos human;:J e animal, e tôda uma série de aplicações que exigem mão-de-obra de utilização temporária e, por isso mesmo, muito dispendiosa e de difícil obtenção."

    São também da mesma exposição os seguintes conceitos: "Entre os fatôres que mais atuam, negativamente, na produção agrícola brasileira está a semente não selecionada. A redução da produção tem sido, dentro de estimativas conservadoras, calculada entre 20% e 25%. Para exato conhecimento da matéria, vale recordar algumas cifras.

    Em 1951 nossa produção de cereais e de feijão foi a seguinte:

    Arroz .................................... . Centeio .................................. . Cevada ................................ . Feijão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . Milho ........................... . Trigo .................................. .

    Mil cruzeiros 5 140 727

    34 502 23 607

    2 787 559 6 157 673 1037 755

    15 181823

    Todo esfôrço despendido no preparo do solo, nos tratos culturais com fertilizantes e em outras técnicas de nada valerá, se a semente lançada à terra é inferior, se não germina ou germina mal, ou não é da variedade preferível. Assim - só na produção comercializada de cereais e de feijão - a perda anual é equivalente a Cr$ 3 036 364,60, na base de 20% . Mas é bem maior, pois a produção real de milho, arroz e feijão excede de muito a indicada pelas estatísticas, e a verificada nas pequenas propriedades e na dos colonos vai muito além de 20% . O nosso lavrador vende, em geral, o melhor produto, e reserva para o plantio a pior semente, guardando-a mal, em paióis, tulhas e armazéns abertos, sem expurgo ou proteção de qualquer espécie.

    A situação é a mesma para outros produtos. Daí, ser avaliado o preJUizo anual da agricultura brasileira, pela utilização da má semente, nas diversas culturas que explora, em Cr$ 5 500 000,00. A êsse prejuízo, que tem como base de cálculo e que deixou de ser produzido, cabe acrescentar outro, de difícil a:9uração e igualmente elevado. É o da baixa cotação do produto, de má qualidade, só conseguindo preços inferiores. Os exemplos são numerosos, na comercialização internacional, de prejuízos causados pela baixa qualidade da mercadoria vendida Ésse fato constitui sério handicap para a exportação de produtos agrícolas. Os resultados verificados nos casos do milho híbrido, cuja produção cresceu 30%, da cana-de-açúcar, do trigo, da batatinha e dos artigos hortícolas, dão a segurança de que, mantidos todos os demais fatôres e métodos de produção, poder-se-iam aumentar, de pronto, de 20% as safras agrícolas, caso houvesse utilização de semente de boa quali-dade. A sua obtenção é tarefa difícil mesmo nos países de agricultura tecnicamente organizada. É realizada por estabelecimentos especializados, do poder público ou de iniciativa privada. O agricultor, consciente da importância da boa semente, tem interêsse em adquiri-la, embora a preços aparentemente mais elevados. O desperdício na produção agropecuária assume proporções enormes, mas que, tornando-se habituais e rotineiras, quase não despertam a atenção .

  • 202 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    Estudos e observações permitem expressá-Ias em cifras. No setor da agricultura propriamente dita, vale recordar o que foi apurado no Rio Grande do Sul, na lavoura do trigo, onde, pela falta de armazenagem adequada e instalações de beneficiamento, as perdas atingem 11% da safra, ou seja, para uma colheita de 350 000 toneladas, 38 000 toneladas, no valor de Cr$ 95 000,00 (o preço fixado para a compra de trigo ao fazendeiro é de Cr$ 2 500,00 por toneladas). É geralmente considerado que, na lavoura de outros cereais e de leguminosas alimentares, por deficiência de estocagem, as perdas são de cêrca de 20%, chegando a 30% nas pequenas propriedades. Segundo verificação do Instituto Biológico de São Paulo, 30% dos prejuízos causados ao milho naquele Estado provêm dos ataques de insetos a êsse cereal, quando armazenado .

    A dificuldade não será resolvida apenas com a criação de uma rêde de silos e armazéns, nos grandes centros de produção. Será sem dúvida, auspicioso progresso, cujos resultados são consideráveis. Mas a verdade é que - salvo para o trigo, no Rio Grande do Sul, o arroz nesse mesmo Estado e no Triângulo Mineiro, e para outros poucos casos, onde a técnica e a densidade de produção alcançam feição industrial - a lavoura cerealífera se processa em áreas vastíssimas do nosso território, um pouco por tôda a parte, sobretudo no caso do milho e do feijão. O problema deve, assim, ser pôsto em têrmos de armaze-namento nos meios rurais, com a modificação de métodos de trabalho.

    A estocagem, na primeira fase - na propriedade de onde se origina a produção - aparentemente não apresenta dificuldades, já que as colheitas, consideradas indivi-dualmente, são pequenas. As temperaturas elevadas e a umidade são no Brasil um dos elementos favoráveis à proliferação dos insetos e pragas. O nosso agricultor, em 90% dos casos, não tem tulhas, armazéns e paióis, em condições que permitam o contrôle de pragas, insetos e roedores São sempre espaços abertos, ou recintos onde se apresentam as condições mais favoráveis para a destruição dos cereais. Um sério esfôrço, no sentido de esclarecer o lavrador, sobretudo o pequeno proprietário, da necessidade de adaptação de novo método de estocagem, e também de auxiliá-lo a criar um tipo adequado de paiol onde pudesse aplicar processos de expurgo, teria imediatamente repercussão no aumento das disponi-bilidades em cereais .

    Ao lado do desperdício na estocagem de cereais e outros produtos agrícolas, cabe, num estudo sucinto dêsse problema, examinar as conseqüências do que se passa, num dos setores da pecuária - o da industrialização do charque. O abate nas charqueadas do País é de cêrca de 800 000 cabeças. O prejuízo pela falta de aparelhamento adequado é de:

    Sangue .................... . 2 000 000 kg 16 000 000 " 16 000 000 "

    Farinha de carne Farinha de ossos . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

    Dos abates nos matadouros municipais, calculando-se sôbre 3 000 000 de cabeças que teriam possibilidade de aproveitamento:

    Sangue sêco .... Farinha de carne . . . ..... .

    7 500 000 kg 21 000 000 " 45 000 000 " Farinha de ossos ........ .

    Para ambas as classes de estabelecimentos, teríamos os seguintes totais:

    Farinha de sangue Farinha de carne .. Farinha de ossos

    9 500 000 kg a Cr$ 3,00 = 28 500 000 37 000 000 " " Cr$ 4,00 = 148 000 000 61 000 000 " " Cr$ 2,50 = 152 500 000

    329 000 000

    Êstes números se referem apenas aos bovinos. O mesmo ocorre quanto aos suínos, dos quais são abatidos seis milhões, tendo apenas um milhão aproveitamento perfeito. O mau trabalho dos cinco milhões restantes, acarreta prejuízos de cêrca de 30 000 000 de quilos de subprodutos ( 6 quilos por cabeça, de farinha de carne, farinha de ossos, cerdas etc.) ou sejam Cr$ 90 000 000 por ano."

    Êsses números, na sua brutal realidade, explicam muita coisa da "carestia da vida", expressão que encerra no seu bojo todo um mundo de inquietação e desassossêgo, de intranqüilidade que se estende do chefe de família para o grupo familiar, e quando a inquietação se generaliza, se manifesta pelas greves, pios grandes movimentos, de revolta ou de indisciplina, atingindo o clímax com a revolução.

    Explicam ainda êstes números a necessidade de reajustamento de honorários, orde-nados e salários, abono e outros meios de atenuar uma crise, que são ilusórios paliativos, pois ela não pode ser corrigida por êsse meio, como também resulta inútil a fixação de preços, o seu tabelamento, porque a escassez de produção tem suas raízes profundas na baixa produtividade da terra, a qual torna a agricultura, produtora de matéria-prima de alimentação, uma atividade precária, exigindo tôda sorte de medidas, muitas das quais constituem terapêuticas sistemáticas e não específicas.

    É como se a um doente de infecção tífica se desse aspirina para combater a febre.

  • AGRICULTURA MAIS INDÚSTRIA 203

    ftXODO RURAL E MIGRAÇÕES INTERNAS

    A indústria e o Exército e a escassez de "braços para a lavoura" ,

    E FREQÜENTE a menção de serem os salários altos da indústria fator dos mais atuantes para o esgotamento do campo e seus melhores elementos, tornando a indústria a grande responsável pelo êxodo rural.

    Vemos constantemente repetida esta alegação, que adquiriu de tal modo foros de verdade incontestável, que está incluída entre os slogans que explicam a falta de braços com que luta a lavoura em tantas regiões do País. Não devemos,' entretanto, aceitá-la sem maior exame .

    Segundo a Sinopse Preliminar do Censo Industrial do Brasil, - era a seguinte a população operária nos seus dois grandes setores, respectivamente em 1940 e 1950.

    Nas diversas classes de indústrias ........... . Nas diversas classes de serviços . . ......... .

    1940 781185 122 150

    803 335

    1950 1250 807

    193 914

    1450 621

    1940 1950 População de fato . . . . . . . . . . . . . ........... . 41 236 315 52 632 577 Aumento de população .................... . 11632 577 Aumento de operariado industrial em 10 anos .. 647 286

    1940 População ocupada nos estabelecimentos agro-

    pecuários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 150 545

    Assim, em dez anos, foram recrutados em todo o País apenas 647 286 operários novos, para a indústria, muitos dos quais de origem nitidamente urbana, dada a contribuição de escolas profissionais, à formação especializada, pela aprendizagem nas fábricas, e as próprias condições familiares dos operários que vão encaminhando para êsse setor seus parentes. Enquanto isso, a população do País aumentava de quase doze milhões. O operariado rural, cujo censo, para 1950, não está ainda concluído, deve ter crescido cêrca de quatro milhões.

    Não tem, portanto, cabimento a alegação de que no Brasil a indústria está despovoando o campo.

    Outra alegação, também sem base, é a que inclui entre os fatôres do êxodo rural, o serviço militar. É mesmo das mais repetidas, e de tal modo, que as fôrças armadas tomaram providências para pôr cabo a um mal . . . que não existe. Assim, pela Lei n.0 9 500 denominada "Lei do Decreto do Serviço Militar", permitiu-se a dispensa da incorporação, em cada ano, parcial ou totalmente dos alistados em Municípios que possuírem uma das seguintes condições:

    indústria extrativa de interêsse da defesa nacional; pronunciada atividade agrícola. Quantos homens são chamados para servir nas fileiras do nosso Exército? Não

    mencionarei os números exatos, colhidos em fontes militares, por um motivo compreensível, mas êles são bem menores que os criados pela imaginação do nosso lavrador, sobretudo os das zonas velhas, que, com a queda de produtividade de suas terras não permitindo salários compensadores, assistem a partida para "zonas novas" dos homens de suas fa-zendas. De um velho e honrado fazendeiro, a lutar com a falta permanente de braços, ouvi que, só no seu Estado natal, saíam da lavoura para não mais voltar, levados pelo serviço militar, para mais de 100 000 homens todos os anos.

    E ficou surpreendido quando lhe mostrei as cifras exatas, que não atingiam nem a cinco mil, numa população de cêrca de dois milhões de habitantes.

    Perguntou-me: "Então para onde foi tanta gente que saiu da minha fazenda?" E deu êle mesmo a resposta: "Já sei, se não foi para o Exército, foi para Volta Redonda!"

    Na verdade, espalhou-se certa época, pelo Brasil afora, que todo homem que saía da lavoura, ia atraído pelos altos salários do grande centro siderúrgico brasileiro.

    Tive oportunidade de examinar as fontes estatísticas de recrutamento militar sob seus vários aspectos .

    Podem ser, sem inconveniente, divulgados, os números referentes aos reservistas das zonas rurais, visto que não voltaram às residências que tinham na época da incorporação.

    Em 1948 1949 1950 1951

    618 499

    1830 1495

  • 204 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    ou seja, em quatro anos, o total de 4 442 homens apenas. Foi êste, assim, o número de braços que o exército nacional talvez tenha desviado da lavoura. Aliás, se todos os con-vocados rurais dos anos referidos tivessem abandonado o campo, mesmo assim teria isso insignificante expressão econômica diante da população adulta· de cêrca de doze milhões de homens que representam o mercado de trabalho da nossa agropecuária.

    Não existe então o êxodo rural? Existe entre nós, como em todos os países, cujas populações camponesas são as matrizes que abastecem as cidades, quer para o seu cresci-mento, quer para a renovação demográfica, sabido a baixa natalidade dos citadinos . E são diversas as causas dêste movimento populacional: sociais, políticas, de ordem religiosa etc. Mas entre nós, o fator decisivo é o de ordem econômica: o homem abandona o meio que não lhe permite condições razoáveis de vida. '

    É o que, aliás, sempre aconteceu em todos os tempos e em todos os países. Nem tem outro motivo a partida do nordestino de regiões de relativa civilização para as selvas amazônicas; o homem do norte de São Paulo para as regiões bravias das matas paranaenses; do mineiro, para terras incultas de Goiás, etc.

    Aliás, estudos recentes de amplitude internacional estão demonstrando que o fator econômico prevalece, como causa determinante em 90o/o dos casos. Daí, seja dito de passagem, o aleatório da medida pretendendo estancar o êxodo rural apenas com medidas de caráter social.

    Entre nós, entre os melhores estudos a respeito, há um livro que vale ser, não apenas lido, mas meditado, escrito pelo nosso maior demólogo, o professor Castro Barreto, que estudou a fundo o problema na sua grande obra Os Problemas de Povoamento e Popu-lação.

    Na verdade, há no Brasil grande deslocação de população, migrações internas, cujo exame começa a ser feito em bases científicas, sendo uma das melhores indagações a realizada pelo Instituto de Economia, da Fundação Mauá, hoje extinto e cujo encerramento de atividades foi deveras para lamentar.

    Estas migrações de regiões empobrecidas para zonas novas, mais ricas, são muito mais perturbadoras que o recrutamento, que faz à indústria ou ao pequeno contingente que até alguns anos atrás, saía do campo, para as fileiras do Exército.

    O Estado da Bahia e certas regiões de Minas estão perdendo, para Goiás, São Pauló e Paraná e já agora Mato Grosso, cifras enormes de elementos agrícolas, que abandonam a lavoura deficitária e, portanto, de salários baixos, em busca de terras novas.

    Entre 1872 e 1940, Minas Gerais perdeu 800 000 habitantes, o que não significou apenas uma redução líquida dêste número, mas temos de computar nêles a contribuição para a reprodução, e que não foram apenas para as indústrias do Rio e São Paulo, mas constituem um dos mais importantes elementos desbravadores das regiões novas de Goiás .

    Note-se, com particular cuidado, esta condição: numerosos dêles são proprietários de "pequena propriedade", que vai sendo apontada como a panacéia milagrosa capaz de remediar a precariedade da produção agropecuária nacional.

    Outro exemplo é a contribuição permanente que o nordeste semi-árido, mesmo quando não há crises climáticas, quando o êxodo assume proporções catastróficas. Só para o caso do Ceará, a movimentação é calculada, em anos normais, em mais de trezentas mil pessoas.

    Ainda recentemente, o professor francês Lucien Pauisel que, durante cinco anos, ensinou geografia humana na Faculdade de Filosofia do Recife, num excelente trabalho lido na Associação de Geógrafos Brasileiros, sôbre Pernambuco, pôs em evidência o problema destas migrações internas, do agreste para outras regiões do mesmo Estado e do País, e salientou a importância da destinação agrícola dos que partiam.

    :Éstes deslocamentos são assim ocasionados pela procura de melhores condições de fertilidade de solo e melhor salário de rurícolas que continuam rurícolas. É que a terra expulsa o homem que não mais o alimenta. Por um dos nossos poetas, foi considerado isso como vingança da "companheira maltratada" - vítima dos erros de uma agricultura de espoliação.

    A matéria é longa. Cuidá-la, em minúcias, nos levaria muito longe. Vamos fixá-la numa conclusão; é que, não apenas a indústria e o Exército determinam o desequilíbrio do fator energético humano de que dispõe a agricultura nacional, num país em que a população cresce em 1 200 000 pessoas por ano, e cujas matrizes, nas zonas rurais, são de cêrca de trinta milhões.

    Outra conclusão deve ser fixada: o deslocamento das populações rurais é, sobretudo, conseqüência de agricultura deficitária (de baixo rendimento e de baixo salário) para zonas novas (de fertilidade ainda não esgotada e que permite mais altos salários e, sobretudo, assegura ocupação permanente) .

    Assim, também sob êste aspecto não há antagonismo entre a industrialização e a agricultura. De outro lado, a industrialização da agricultura, de que é condição a indus-trialização geral do País permite, mesmo com redução de braços, aumento de produção.

    O exemplo norte-americano é bem conhecido: diminuição de população rural e aumento de produção agrícola. É que o aumento de produtividade, determinado pelo emprêgo de

  • AGRICULTURA MAIS INDÚSTRIA 205

    melhores métodos tecnológicos, determina salários mais altos, permitindo, por isso, reter no campo a mão-de-obra mais qualificada. É, aliás, o caminho que teremos de seguir.

    Na verdade, quanto mais desenvolvido é um país, menor é a percentagem da mão--de-obra dedicada à produção primária, cujo alto índice ocupacional é sinal de baixo índice econômico.

    É o que ocorre na China, por exemplo, e também entre nós. Não se dispondo de outra fonte de energia, senão o esfôrço muscular, fica restringida a produção: a máquina multiplica a capacidade do homem.

    RENOVAÇÃO TECNOLÓGICA - O HOJV,lEM

    A NDAMOS por montes e vales, procurando fixar os problemas da agricultura brasileira em face da industrialização do País. Chegamos à conclusão, aliás bem conhecida, de que somos um país em fase pré-industrial.

    Ela se caracteriza pela coexistência de atividades industriais, que se desenvolvem através de técnicas modernas, na indústria, ao lado do que o professor Kingslay Davis, no seu excelente ensaio sôbre o Mundo em Transição Demográfica, descreveu como illerato agriculturalism que caracterizou o período medieval.

    Neste estágio social, enquanto a população industrial aperfeiçoa suas técnicas de vida, com melhor habitação, alimentação, vestuário, defesa de saúde, hábito de poupança e, portanto, de previdência, de elevação cultural, através da leitura, do cinema, do rádio, a outra parte da população, que vive na lavoura, "não tem tempo para levantar seus olhos da terra que trabalha". Com os métodos rotineiros, a produção por unidade de área é reduzida, o lavrador não pode viver melhor. Seu baixo padrão de existência torna-o, eco-nômicamente, um marginal, um elemento inexpressivo, no mercado consumidor.

    É dêste atoleiro que devemos safar a nossa máquina econômica, naquele belo sonho de Roberto Simonsen, que situava a redenção econômica do Brasil, quando não houvesse limites entre indústria e agricultura, pela alta industrialização de ambas.

    Mas, tudo isso não poderá ser obtido ou só será realizado com demora e consideráveis prejuízos de tôda sorte, se não cuidarmos, com decidido empenho, da criação do instrumento essencial de qualquer progresso que é o homem, que irá pôr em execução a "revolução técnica" que devemos iniciar com a maior urgência. A nossa formação intelectual foi sempre até aqui eminentemente literária.

    Nesta Escola - numa excelente conferência, que é, sôbre a matéria, dos melhores trabalhos escritos no País, - o General Macedo Soares, estudando a Indústria BraBileira e Auto-Suficiência Nacional, em junho de 1949, escreveu palavras da maior atualidade, e que devem ser meditadas:

    "Êsse lapso, na constituição de nossas elites dirigentes, deixou-nos desarmados diante do progresso tecnológico e devemos encarar o problema com tôda energia, se queremos sobreviver e prosperar num Mundo em que a competição entre as nações é áspera e contínua. O progresso tecnológico é, atualmente, a pedra de toque na organização da vida de um povo. Sem ela, não há estrutura econômica sólida possível e, sem isso, não há organização política estável. A primeira preocupação, portanto, deve ser a de dar à Nação uma base econômica, sôbre que ela possa viver e expandir seus meios de vida digna e proveitosa, em que a todos é facultada a aspiração de progredir intelectual e materialmente."

    A formação de homens, com base científica e tecnológica, é, sem dúvida, como bem assinala o grande brasileiro, criador de Volta Redonda, um dos problemas de base e dos mais urgentes, pala a sobrevivência nacional. Neste sentido, a famosa definição de Pitágoras, de que "o homem é medida de tôdas as coisas", a "homomensura" tão discutida sob outros aspectos, é uma verdade incontestável.

    Sobretudo, para a agricultura, a situação é premente. Não temos, na verdade, técnicos, de diversos graus e tipos, em quantidade e qualidade suficiente para a tarefa de renovação tecnológica dêste importante setor da economia nacional.

    É insuficiente o número de escolas e cursos, e as que existem, por circunstâncias várias, cuja menção exorbitaria do temário destas considerações, são freqüentados por número insignificante de alunos. Dois exemplos, apenas, porão em plena evidência esta inópia tecnológica .

    O Ministério da Agricultura, que tem de ser, por definição, o grande propulsor dessa renovação, dispõe, para atender a dois milhões de propriedades rurais, e às necessidades de um rebanho de cento e doze milhões de animais, apenas de 800 agrônomos e 300 vete-rinários. Ainda mais insignificante é o número de auxiliares dêsses dois tipos de profis-sionais. E se não fôsse fugir demasiado ao temário destas considerações valeria examinar a conveniência de promover, nas populações rurais, o preparo ativo, para sua integração eficiente como elemento produtor de técnicos para vida mais higiênica, do que cuidar de alfabetização de adultos e mesmo de crianças, cuja formação intelectual, não raro, constitui um motivo até de desajustamento com o meio, mais um fator de êxodo. Sobreviver com saúde é mais importante que saber ler. É êste, aliás, o pensamento de Alberto Torres.

  • 206 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    Ainda neste sentido, quero fazer um caloroso apêlo aos oficiais do Exército Nacional, para que examinem a grande colaboração que pode ser dada pelo desenvolvimento das granjas militares, localizadas nas diversas regiões do País, onde o conscrito, além do rudimento da profissão militar, adquiriria tôda uma valiosa' cópia de conhecimentos em matéria de maquinarias e de processos aperfeiçoados de lavoura e pecuária. Sem sair do meio, receberia uma aprendizagem da mais alta valia, melhorando-o como agricultor.

    Nenhum maior serviço poderia prestar o Exército para organizar a chamada retaguarda econômica, que participar, dêste modo, para a renovação da tecnologia agrícola, pela valorização do homem rural. Vale repetir: passando pela aprendizagem das granjas militares, o egresso da fileira adquiriria, sobretudo, outra mentalidade.

    Temos o exemplo do que o SENAI e o SESI estão fazendo no campo da indústria. O que o Exército poderia, em colaboração com o Serviço Social Rural, realizar para modernização da nossa agricultura teria o mais benéfico dos resultados. Urge, porém, concluir. A matéria é de vasta e de extrema complexidade, por isso que apenas puderam ser explorados alguns de seus aspectos, mas que permitem tirar conclusões, capazes de traçar diretrizes para uma POLÍTICA.

    Estas conclusões são:

    a) - a disputa entre o destino agrícola ou destino industrial do Brasil é uma tese superada;

    b) - o Brasil tem de ser uma nação industrializada, no mais alto grau, inclusive por motivos de defesa nacional;

    c) - o Brasil só poderá atingir a um grau elevado de industrialização quando tiver um grande, rico e bem organizado mercado interno;

    d) - a organização dêste mercado está na estreita dependência da retaguarda eco-nômica, que é uma agricultura de alta produtividade;

    e) - para atingir êste objetivo, tem de ser combatida a rotina, isto é, criada uma agricultura industrializada;

    i) - agricultura industrializada importa no apoio, cada vez maior, de uma indústria organizada e diversificada, capaz de atender às múltiplas exigências de técnica em ma-terial e produtos;

    g) - sem agricultura industrializada e indústria altamente desenvolvida, não poderá nossa Pátria atingir sua plena emancipação econômcia.

    Temos, assim, que o problema econômico do Brasil se equaciona em têrmos de "AGRICULTURA MAIS INDÚSTRIA", somando valores, criando uma única corrente de atividades, fôrças com mesmo sentido e direção, capazes de assegurar, cada vez mais, a grandeza do Brasil.

    BIBLIOGRAFIA

    MACEDO SOARES E SILVA - A Indústria Brasileira e a Auto-Suficiência Nacional (Con-ferência proferida, em junho de 1949, na Escola do Estado Maior do Exército).

    CASTRO BARRETO - Problemas de Povoamento e População - Política Populacional Brasi-leira. Ed. José Olímpio.

    CONSELHO NACIONAL DE ECONOMIA - Exposição Geral da Situação Econômica do Brasil - 1951 e 1952.

    CAIO PRADO JÚNIOR - História Econômica do Brasil - Ed. Brasiliense Ltda. - 1949 2.a ed.

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    ERNEST HAMBLOCK -- 1925.

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    Academy oi Political and Social Series - January, 1945 - p. 1-11.

  • AGRICULTURA MAIS INDúSTRIA 207 -------------------------

    INDÚSTRIAS DE BENS DE CONSUMO

    1940 1950

    Cr$ 1 000 Cr$ 1 000

    ESPÉCIES Conservação Conservação Aparente Aparente

    Pro~ Impor~ Expor~ Pro- Impor- Expor-dução tação tação

    Per dução tação tação

    Per I Total Capita* Total Capita*

    Cr$ Cr$ ------------- ~---- -- -- ---- ---- ---- ----- ---- ~---- ----- ----

    Metalurgia 987 168 534 977 959 1 521 186 36,22 8 074 834 1 470 615 48 177 9 497 272 182,64

    Papel e papelão 274 409 108 003 350 382 062 9,10 2 141 698 294 443 787 2 435 344 46,83

    Borracha 87 533 14 941 246 102 228 2,43 1 651 479 38 620 1871 1 688 228 32,47

    Química e farmacêutica 1 424 016 290 814 7 173 1 707 657 40,66 8 856 884 1 173 760 65 826 9 964 818 191,63

    Vestuário, calçado e arte-fatos de tecidos 729 792 4 133 280 733 645 17,47 4 662 119 2 777 170 4 6C4 726 89,71

    Têxtil 3 562 316 55 639 30 289 3 587 666 85,42 19 309 611 319 185 367 900 19 258 896 370,36

    Produtos alimentares 4 927 324 588 485 355 157 5 160 652 122,87 33 822 742 973 J 20 709 658 34 086 204 655,50

    Fume 265 715 133 1 314 264 534 6,30 1 529 879 21 279 1 529 818 29,42

    Bebidas 408 410 38 232 83 446 559 10,63 3 251 252 81 807 1 806 3 331 253 64,06

    TOTAIS 12 666 683 1 635 357 395 851 13 096 189 331,1() 83 301 498 4 354 545 1 196 469 86 450 559 1 662,5

    * A população, para efeito de cálculo do consumo per capita, era: { ~~ ~~~g. ~~ ggg g~g (Êste levantamento foi feito pelo Departamento Econômico do Conselho Nacional de Economia, pelo Prof. Orlando Fer-

    reira, Olavo Miranda e Waldir Wanick)

    íNDICES DA PRODUÇÃO DA INDúSTRIA DE TRANSFORMAÇÃO - 1939-1950

    INDÚSTRIAS 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 19

  • BASES ECOI\TÔMICAS E SOCIAIS NA -FORMAÇAO DAS ALAGOAS MANUEL DIÉGUES JÚNIOR

    P RETENDENDO estudar os fundamentos econômicos e soctats das Alagoas, é preciso examinar_, de início, entre os elementos que condicionaram a formação do hoje Estado, a participação do elemento geográfico propriamente dito. A situação geo-gráfica das Alagoas se, por um lado, facilitou a penetração e a ocupação do território, indicando as diretrizes do povoamento, atraindo os homens povoadores, por outro, constituiu um grande impecilho ao seu desenvolvimento. Isto porque, por sua posição geográfica, Alagoas se coloca sob a influência de duas grandes fôrças, Pernambuco e Bahia, os dois centros principais da vida colonial, que naquele tempo absorviam tudo, e conseqüentemente retiravam ao nosso território capacidade para aproveitamento de possibilidades e ampliação de seus recursos.

    O povoamento, partindo de Pernambuco, alcançou Alagoas através das vias fluviais. Os rios e seus vales permitiram a fixação das correntes povoadoras e sua expansão para o interior. Pôr to Calvo, Alagoas (atual Marechal Deodoro) e Penedo, os três centros da vida alagoana nos primeiros tempos da colonização, devem em grande parte sua importância - e deveram, evidentemente, sua localização - à situação topográfica em que foram fundadas, em pontos-chave em relação às vias fluviais. O primeiro núcleo fundou-se ao norte, à margem do Manguaba; Alagoas, ao centro, junto à lagoa do Sul; e Penedo, no São Francisco, no limite sul da Capitania duartina.

    Foram êstes os três focos iniciais da formação econômica e social das Alagoas, os pontos de partida de onde se irradiou o povoamento e se expandiu a atividade agrícola. De Pôrto Calvo os povoadores ocuparam os vales do Manguaba, do Camaragibe, do Santo Antônio, enquanto que, das Alagoas, a vila primitiva que recebeu modernamente o nome de Marechal Deodoro em homenagem ao filho ilustre que ali nasceu, penetram pelo Mundaú e pelo Paraíba. Penedo foi o ponto de partida da penetração pelo São Francisco e os vales de seus afluentes, nem sempre perenes, de onde o povoamento conquistou o medi-terrâneo, utilizando já não a cana-de-açúcar, mas o criatório, o gado, cuja criação se alastrou pelas margens são franciscanas. Quando teria sido fundado Penedo? Há dúvidas a respeito. Acredita-se que Duarte Coelho, primeiro donatário, teria visitado a região e lançado os fundamentos da vila, como ponto de defesa do extremo sul de sua Capitania; isto em 1545 provàvelmente. Nenhuma documentação, todavia, o comprova; entretanto, nada contribui para negar a possibilidade desta viagem, sobretudo em face de referências, vagas embora, na correspondência de Duarte Coelho .

    Em 1695, com a extinção dos Palmares, deu-se a penetração para o centro, a partir de Atalaia, que foi o foco da luta contra os negros e que havia sido ocupada através do vale do rio Paraíba .

    As origens econômicas das Alagoas ligam-se à posição dêstes vários focos de povoa-mento. Em Penedo, a fixação se fêz com base na pecuária, tendo por origem um pequeno povoado de defesa da Capitania criado justamente no ponto de penetração mais fácil - o vale do São Francisco. Com exceção dêste caso, foram sempre os canaviais que consolidaram a ocupação dos diferentes vales, através dos engenhos, responsáveis, realmente, pela fixação do colonizador.

    Esta expansão colonizadora, originada de Pernambuco, que a não ser no caso particular de Penedo teve por móvel principal a cultura canavieira, encontrou, nas Alagoas, regiões naturais bem diversificadas. Mas o canavial sustentou a ocupação humana, na margem litorânea, nos vales a que nos referimos. Aí se sedentarizaram os grupos humanos seduzidos pelo trabalho agrário da cana-de-açúcar.

    Para um conhecimento melhor das condições regionais procuraremos aqui dar uma idéia da divisão do território alagoano em áreas naturais ou zonas fisiográficas. A nossa sugestão foge um pouco da divisão oficial, muito embora se aproximem. A meu ver podemos distinguir, nas Alagoas, quatro grandes zonas fisiográficas, a Zona Litorânea, a da Mata, a do Sertão e a do Vale do São Francisco .

    A Zona Litorânea, que abrange tôda a faixa costeira das Alagoas, banhada pelo Atlân-tico, é baixa, arenosa, bem regada por numerosos rios e riachos; possui terrenos próprios para a plantação de coqueiros, algumas jazidas minerais ainda não devidamente exploradas.

    R.B.M -2

  • 210 REVISTA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS

    O clima é quente, consideràvelmente modificado, porém, pelos ventos do mar; salubre, embora apresente alguns casos de febre intermitente. Esta Zona pode ser subdividida, de acôrdo com as feições próprias de cada trecho, em quatro sub.zonas: a) a dos pequenos rios (Municípios de Maragogi e Pôrto Calvo), caracterizada pelos rios de pequeno porte: o Persinunga, o Jacuípe, o Paus, o Maragogi, por exemplo; b) a dos grandes rios (Muni-cípios de Pôrto de Pedras, Passo d~ Camaragibe e São Luís do Quitunde), cujo traço marcante na paisagem é a presença de grandes rios, por onde se fê.z a penetração: o Manguaba, o Camaragibe, o Santo Antônio, e, um pouco menores embora, o Tatuamunha, o Santo Antônio-Mirim etc.; c) a das grandes lagoas (Municípios de Maceió, Rio Largo, Marechal Deodoro, Pilar e São Miguel), onde dominam as grandes lagoas de Mundaú ou do Norte, Manguaba ou do Sul e Jequiá; e, finalmente, d) 'uma última subzona, a das pequenas lagoas ( Coruripe e Piaçabuçu), caracterizada pela existência de numerosas pe-quenas lagoas, tais como Poxirn, Timbó, Escura, Niquim etc. A presença no litoral alagoano, ora de pequenos rios ou lagoas, ora de grandes rios, convidando à penetração e à agricultura, teve grande influência no tipo da ocupação humana da faixa litorânea. Assim os vales férteis facilitaram a expansão da cultura canavieira e, na faixa costeira arenosa, estende-ram-se os coqueirais .

    A Zona da Mata segue-se, para o interior, à Zona Litorânea, estendendo-se cêrca de 25 léguas. Corresponde às encostas meridionais da Borborema, onde, graças à presença de solos férteis, se desenvolveu uma cobertura florestal que caracterizou a região. Embora atualmente devastada, a Zona da Mata ainda está perfeitamente individualizada, pois as condições do solo e umidade aí reinantes favoreceram o desenvolvimento agrícola da região com a cultura canavieira e também a do algodão.

    É um vasto tabuleiro, consideràvelmente acidentado por numerosos vales de erosão, mais ou menos largos, em várias direções, levando as águas dos rios principais que desaguam no Atlântico; regada pelos rios principais, seus afluentes, é própria para as culturas agrárias e, em parte, para o gado . O clima é tropical, bastante modificado pela elevação e pelas matas, havendo lugares que experimentam frio à noite. Condições salubres. É o habitat propício à cana-de-açúcar; o algodão encontrou igualmente excelentes condições nesta Zona.

    Na terceira Zona fisiográfica das Alagoas, ou seja, a do Sertão, pode-se distinguir duas paisagens bem definidas: a caatinga, nome que lhe aplico embora sujeito a ressalvas, e as serras. O que comumente se conhece por Sertão nas Alagoas compreende, na verdade, além da caatinga propriamente e das serras, tôda uma faixa de transição entre a caatinga e a mata. Abrange o que chamamos caatinga os Municípios de :Limoeiro de Anadia, Anadia, Arapiraca, Palmeira dos Índios e Quebrangulo. Por não pertencerem à Zona da Mata são sumàriamente considerados sertanejos. Aliás, a importância crescente da lavoura nestes Municípios, inicialmente dedicados à pecuária, vem comprovar esta afirmação.

    O que chamo, talvez impropriamente, caatinga, mas até que estudos mais pormeno-rizados me permitam dar-lhe denominação mais adequada ou exata, é a continuação do grande tabuleiro da mata, sem, porém, a vegetação luxuriante desta. O solo é plano, com alguns sulcos por onde correm os rios que das serras vão desaguar no litoral ou no São Francisco. O terreno é, em grandes faixas, próprio à criação; por vêzes lhe falta a água necessária, o que é menos uma condição física insanável que a falta de recursos e de providência de particulares e dos Governos. É uma subzona propícia também para a cultura do algodão e dos cereais, sendo que êstes têm tido aí algum desenvolvimento.

    Quanto à subzona das serras, formada por cordilheiras de pequena elevação, nunca superior a 300 metros, apresentou outrora vasta floresta, hoje quase inteiramente devastada. O terreno é acidentado. A serra se torna favorável à cultura agrária, aí em franco desen-volvimento com gêneros de subsistência. Há, porém, sensível deficiência de comunicações. O clima tropical é amenizado pelos ventos e pela neblina que refrescam a terra; a salubri-dade excepcional; ausência de moléstias endêmicas. Algumas jazidas minerais aí se encontram, mas não são exploradas ainda. Compreende esta subzona os Municípios de Água Branca, Mata Grande, Major Isidoro e Santana do Ipanema. Por seu clima mais úmido, permitindo a existência de matas e de solos mais profundos, as serras constituem verdadeiro oásis no chamado sertão alagoano .

    Os Municípios ribeirinhos do São Francisco formam uma Zona caracterizada pela presença do grande rió; é por isto a Zona fisiográfica São-franciscana ou do São Francisco. Êste é que dita as condições de vida nesta região, povoada inicialmente por criadores de gado - um dêles o célebre Belchior Álvares Camelo, dono de grandes sesmarias no ter-ritório alagoano marginal ao rio - mas que hoje está voltando-se para a lavoura de vários cereais, em uma parte, e particularmente para a de arroz, nas baixadas úmidas próprias para seu cultivo. Abrange os MuniCÍpios marginais do grande rio, de Penedo para cima.

    Voltando aos fundamentos da economia alagoana, pode-se dizer que, antes do domínio holandês,' a região apresentava urna grande diversificação econômica. Apenas cumpre lem-brar nem sempre coincidiam as áreas econômicas daquele tempo com as atuais. Um relatório de 1630 nos fala da riqueza econômica daquele território, que vivia em função do grande centro que já era então Pernambuco. Dizia Adriano Verdonk, neste seu relatório de 1630, antes pois da ocupação holandesa nas Alagoas, que o gado criado ao longo do

  • BASES ECONÔMICAS E SOCIAIS NA FORMAÇÃO DAS ALAGOAS 211

    São Francisco era destinado ao abastecimento do Recife. Das Alagoas também saíam, com destino ao Recife e outros centros de consumo vizinho, peixes secos, mandioca, cereais e, ainda, fumo. Da mandioca produzida no território alagoano se fabricava também farinha, gênero de grande consumo pelas populações do Recife e de outros núcleos tanto pernam-bucanos como alagoanos . E de grande uso mesmo pelos próprios holandeses invasores e dominadores do Recife.

    Quanto ao fumo, é interessante observar a localização da área fumageira naquela época, que não corresponde, aliás, à da atual. O centro fumageiro era então Barra Grande e, segundo consta, em relatório de Carpentier, já do domínio holandês, o fumo desta localidade era o melhor da região. Também Antonil, quase um século mais rtarde ( 1711), diz que o fumo alagoano era vendido a 30 e 40o/o a mais que o de outra~ procedências, "por ser melhor o tabaco". Verificamos, portanto, confrontando as áreas de cultivo de fumo em nosso território, que tanto no norte, em Barra Grande, cpmo no centro, em Arapiraca,, atualmente, é possível desenvolver-se uma excelente produção fumageira.

    A variedade dos produtos então cultivados enriquecia o território, servindo para abastecer os centros vizinhos dedicados exclusivamente à cultura canavieira. Com a restauração, em 1654, estendeu-se às Alagoas o domínio da monocultura açucareira. Ao fazer esta afirma-tiva, longe de mim a idéia de ter sido esta influenciada pela situação política; ou, em particular, pela volta do domínio português. Foram, sim, as próprias condições de vida colonial que determinaram um maior desenvolvimento da cultura .canavieira. Primeiro, porque esta propiciava rendimentos mais elevados, e segundo porque havia mister incre-mentar a produção para fazer frente à concorrência do produto das Antilhas, cujo progresso se verificara justamente com o deslocamento de judeus do Nordeste para aquela área da América Central. Sabe~se que levaram êles técnicas de produção de açúcar no Brasil, fôrmas de açúcar, mestres de açúcar, e a expansão do produto das Antilhas entrou nos mercados importadores do Brasil, em face de perturbação oriunda das lutas restauradoras em nossos engenhos e canaviais. Assim, restaurado o domínio luso, tornou-se necessário desenvolver, quase exclusivamente, a produção para recuperação dos mercados de consumo.

    Incrementou-se e manteve-se, desta forma, a monocultura da cana como a primeira atividade agrícola nas Alagoas, verificando-se a decadência da lavoura dos outros produtos. Pôrto Calvo, Alagoas e Penedo eram as três vil(ls por onde se podia medir o desenvolvi-mento econômico da região. Em 1710 a criação da Comarca une territorialmente a área sob influência destas três vilas, os focos demográficos e sociais de onde se originaram as correntes de povoamento das Alagoas. No século XIX, em 1817, consolida-se a unidade territorial, com a formação da Capitania, mas a Comarca continua a representar a base daquela unidade, que se diversifica em 1833, com a criação de quatro Comarcas, já então constituída a Província.

    A unidade primária, não só nas Alagoas como em outras Capitanias, em todo o Brasil, foi, sem dúvida, a Paróquia. As vilas se dividiam em paróquias, e nesta residia a base da vida social, das relações entre pessoas e entre grupos . Era a unidade para recenseamentos . A contagem de pessoas, de fogos, de engenhos, de tropas de linha, se fazia com base na paróquia. Era a unidade social; a ela concorriam as famílias nas festas religiosas ou pro-fanas. Era a unidade política; nela se processavam as eleições para as Câmaras, esco-lhiam-se os homens bons para a administração e a representação. Era, sobretudo, a unidade espiritual; congregava os fiéis, reunia-os, mantinha-os na fidelidade dos sentimentos reli-giosos. Nas sucessivas reorganizações da vida brasileira, a Paróquia foi pouco a pouco sendo relegada, e está hoje esquecida. Mas notável foi o papel por ela realizado entre nós, como unidade, de onde se irradiou, projetando-se, a vida social, a política, a espiritual.

    A distinção das áreas econômicas atuais das Alagoas mostra-nos as possíbílídades de desenvolvimento que seu território apresenta. Não chegaremos a con