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Nilo Batista

Nilo Batista - Punidos e Mal Pagos - Violência, Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos No Brasil de Hoje - Ano 1990

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Nilo Batista

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Justiça, violência, polícia,drogas, pena de morte, direitoshumano s e criminalidadeurbana são temas quedespertam enorm e interesse,mas cuja discussão ora serestringe à linearidaderepetitiva do noticiário ou àsuperficialidade de discursoseleitorais preconceituosos, ora

se confina em inacessíveisseminários de especialistas.

 No presente livro , Nilo Batista — ■renom ado professor dedireito penal e advog ado comlarga experiência —empreende a discussãodaqueles temas a partir de

episódios ou conjunturas reais,colocand o à disposição doleitor informações importantessobre as variáveis jurídicas esócio-criminológicas queorientam seu enfoque.

São artigos inicialmenteendereçados ao chamado

 público não especia lizado, que

entretanto não renunciam a umnível acadêm ico que torna sualeitura indicada igualmente

 para estu dante s, profe ssores e profis sio nais da justiçacriminal .

Com sua indiscutívelautoridade, N ilo B atista põe odedo nas feridas mais abertas

do sistema penal e convida oleitor a refletir sobre asfunções ocultas de certasdesgastadas soluções usuais.

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Nilo Batista

PUNIDOSE 

MAL PAGOSVIOLÊNCIA, JUSTIÇA, SEGURANÇA PÚBLICAE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL DE HOJE

Editora Revan

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Copyright © 1990 by Nilo Batista.

Coordenação editorial Lílian M. G. Lopes

 Arte e produção gráfica Ricardo Gosi

 Revisão  Miguel Villela

Capa Danilo B asto Silva

Composição WJ Fotocomposição Ltda.

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Batista, NiloB3 37p Punidos e mal pagos: violên cia,  ju stiça , segurança pública e direitos huma

nos no Brasil de hoje / N ilo Batista. — Rio de Janeiro: R evan, 1990

ISBN 85-7106-022-3

1. Violência urbana — Brasil. 2. Segurança pública — Brasil. 3. Crime e criminosos — Brasil. 4 . Direitos humanos — Brasil. 5. Justiça social — Brasil. I. Título.

CDD — 363.20981  364.0981 

CDU — 343.4/. 6(81) 90-0459 343.9(81)

Ed i tora R evan L tda .Avenida Paulo de Frontin, 163

Rio de Janeiro - RJ CEP: 20260-010Tel.: (21) 2502-7495 - Fax: (21) 2273-6873

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Quero dedicar este livro a três amigos. Com Lolita Aniyar de Castro, professora de criminologia, e Raúl Zaffaroni, professor de 

direito penal, tenho aprendido a inserir o debate jurídico na tragédia social 

latino-americana^com Silvio Viola,  professor de vida, tenho aulas permanentes 

de humor e dignidade.

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Sumário

- Nota Prévia 11

Apresentação 13

SOBRE A PENA DE MORTEA mídia da morte em horário gratuito 15Pena de morte 18O cardápio da morte 20

CAPITALISMO E SISTEMA PENALPunidos e mal pagos -35O aprendizado da violência 39Onde está a corrupção? O gato comeu? ‘ 44

SAÚDE E JUSTIÇAGenocídio hospitalar 47Um réquiem para Leide 52

Aids e direitos humanos 55

O PROBLEMA DAS DROGASDrogas e drogas 59A sentença como exorcismo 62Tráfico e abuso de drogas 67

JUDICIÁRIO E DEMOCRACIA

O poder judiciário: independência e democratização 71Quem tem medo da lei Fleury? 81Voltando aos bons tempos 86

DUAS PERDAS PARA OS DIREITOS HUMANOSRecordação de Hélio Pellegrino 91Memória de Heleno 94

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AUTORITARISMO E SISTEMA PENAL

Tanques ou tribunais 10.1À memória vã 104Tortura nunca mais — ou para sempre? 107A lógica de lago 11.2O asilo inviolável 114“ Sem documentos? Teje preso!” 116Pequeno ritual de degradação 118

^ A QUESTÃO PENITENCIÁRIAAlternativas à prisão no Brasil 123Reforma penitenciária à francesa 130

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITO PENALComunicação e crime 133Lei da Censura e lei da Imprensa 139Repressão a favor da arte 142

^V IOL ÊN C IA E POLÍCIAMorte criminal no Rio de Janeiro 147O grande facínora 152O bandido é o Estado 158Futebol e^violência 160Lar, doce lar 163Criminalidade e favelas 167

Trocando em miúdos 170

^  ADVOCACIADe volta ao lar 177Advogados demais? 180O julgamento da advocacia 182

índice alfabético-remissivo de assuntos 189

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 N ota P rév ia

 Nos últimos cinco anos, dei-me conta da importância detornar públicos certos assuntos que os juristas habitualmente preferem discutir entre eles: violência, garantias individuais,drogas, direitos hurnanos, pena de morte, democratização doPoder Judiciário, segurança pública, etc. Passei então a publicarregularmente na imprensa artigos que estendessem o debate

desses assuntos a um público maior. No Jornal do Brasil, 

sede damaior parte dessas publicações, tive o estímulo cordial de ZuenirVentura e Flávio Pinheiro, e desejo registrar a esses notáveis

 jornalistas meus agradecim entos. Paralelamente, com algunscompanheiros, criamos no jornal O Dia  uma coluna, chamada“ O direito do povo ” , com a perspectiva da educação legal

 popular, que em minha opinião é um pressuposto inafastável paraa consolidação de qualquer ordem democrática. Naquela coluna,

os textos eram mais simplificados e buscavam tematizar os pro blemas mais emergentes e aflitivos no cotidiano da populaçãourbana. Sou grato também a outro grande jornalista, DácioMalta, co-autor dessa experiência. Este volume reúne a maior

 parte dos artigos que, sob a influência imediata do noticiário ou pela permanente relevância dos temas, publiquei nesse período.Três deles (“ Alternativas à prisão no Brasil” , “ Comunicação ecrime’ ’ e “ Morte criminal no Rio de Janeiro’ ’), embora tivessem

destinação acadêmica, foram também incluídos por abordaremtemas de interesse geral. Nilo Batista

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O que faz Nilo Batista fora da redação?

Quando há cinco anos Nilo Batista apareceu escrevendo no Jornal do Brasil, o Direito corria o risco de perder um grande

advogado sem que a imprensa tivesse certeza de que iriaganhar um bom colaborador. A história recente dê nossa atividade estava repleta desses casos. Sedutor, o espaço jornalístico atrai essas migrações, que muitas vezes desfalcam umaárea, sem reforçar a outra. Há vários exemplos — de médicos,engenheiros, psicanalistas, psicólogos, etc. — que a imprensagostaria de devolver a suas áreas de origem, mas estas também

 já não aceitam o desgarrado de volta.

Com advogado a coisa é ainda pior po rque , como se sabe, ocausídico em geral não escreve , fala. E quando escreve, escreve como fala: outrossim, data venia, data supra, decisão prolata-da, matéria probante.

Restava saber se com o advogado Nilo Batista a coisa seriadiferente. O criminalista de sucesso e o professor universitáriode cursos concorridos já tinham sido testados: o defensor sabiadefender e transmitir seus conhecimentos. Mas como seria o

 jornalista?A seleção de artigos agora reunidos em livro demonstra

que o jornalismo saiu ganhando com essa colaboração. Revelando um olhar atento a tudo o que se passa em volta — dacorrupção à Aids, da violência à situação do menor ou damulher — Nilo Batista surpreende principalmente pela qualidade do texto, que alia vasta erudição juríd ica a uma admirávelcultura literária, numa com binação que o tratamento jorna lístico torna muito agradável.

Leitor de Machado, Drummond, Shakespeare e Aristóteles, cultor de Charles Chaplin e Glauber Rocha, curtidor deAgatha Christie e Simenon, Nilo recorre a eles sempre queuma história ameaça ficar chata ou que um assunto se tornaárido . Esse machadiano pode interrom per uma indignada frasecontra a tortura para introduzir uma fala de José Dias e Benti-nho, personagens de  Dom Casm urro.

Se alguém quiser um exemplo, vá direto à parábola “O

aprendizado da violência” e veja a entrada do catártico Carlitofurando as tinas de 30 quilos de água que os meninos do fim do

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século XIX eram obrigados a carregar. Ou que o assista fazendo adefesa no tribunal de “ um garoto de dez anos que subtraía dafábrica uma peça de pano para o dia das mães” .

Assim, para dramatizar as iniqüidades que o Código Penal de1890 acabou permitindo que se infligissem às crianças, Nilo vai buscar em Drummond o Carlito que “ as crianças do mundosaúdam’ ’. O que seria uma ficção com personagens hipotéticos ea hipotética participação de Chaplin acaba sendo uma metáforafulminante de nossa História: o que dois personagens muitonossos conhecidos — o liberalismo e a burguesia nacional — podem fazer com a lei em benefício próprio. Depois da leitura, éfácil ver como há 100 anos começamos a preparar cuidadosa

mente nossos pivetes de hoje.Mas Nilo não é apenas um bom redator, é também um bomrepórter. Quem quiser que esse requisitado advogado interrompaa discussão de uma causa milionária é só chamá-lo ao telefone

 para ajudar numa apuração. Gosta de telefonar para a redaçãosugerindo matéria, dá sugestões e dicas e sabe logo quando umainvestigação jornalística está indo para o lado errado: “ Vocêsnão checaram isso, deixaram de ver aquilo, estão no caminhoerrado’ ’. Dizer que Nilo Batista tem intimidade com o mundo docrime é uma impropriedade que pode soar de uma maneira quevai certamente gerar mal-entendidos. Mas a verdade é que certaconvivência imposta por sua atividade como criminalista e comoex-secretário de Segurança deu a esse intelectual uma sabedoriaconcreta. Ele é capaz de, num bar, com um legítimo uísque e uma boa música, descrever a ficha de um policial, as manhas de um bandido e as ramificações do crime organizado.

 Nilo Batista é aquele profissional que todo jornalista gosta de

ter como colega não apenas porque, de repente, quem sabe, Deusnos livre, pode ser o nosso defensor, e que defensor! Mas porquenos ensina como colocar um saber específico ao alcance de todos,a nós que somos metidos a ser especialistas em assuntos gerais.

O corporativismo jornalístico, ainda que com despeito, temque finalmente admitir: Nilo é um advogado que sabe apurar eque sabe escrever. Eu me pergunto, à maneira do nosso amigocomum Ancelmo Gois: Afinal, o que faz Nilo Batista fora daredação?

Zuenir Ventura

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SOBRb; A PLNA d e  m o r t i

A MÍDIA DA MORTE EM HORÁRIOGRATUITO

O debate sobre a pena de morte, redivivo pelo oportunismoeleitoreiro da direita, apresenta dois riscos que podem ser evitados .

O primeiro é restringir-se ao mais bisonho empmsmo, articulando impressões e vivências de pessoas atingidas por atos deviolência ou pela administração publicitária do medo a certodiscurso “ bem pensante” , que reduz algumas categorias jurídicas (especialmente a retribuição) ao nível de almanaque, e pro

cura seduzir com os sortilégios daquele bom senso que Miaillecaracteriza como “ o oposto da ciência” . Exemplo disso é relacionar a ocorrência de linchamentos à falta da pena de morte,ignorando que nos Estados Unidos, como apontou Sellin, a lei deLynch foi observada principalmente nos estados sulistas — ondeexistia, e arraigadamente, a sanção capital.

O segundo risco reside em situar-se o debate no plano jusfilosófico ou moral. Aí nos deparamos com a mania de alguns

 jurisconsultos, percebida por Erasmo (não, por certo, o coronel paulistano, e sim o sábio seiscentista), de amontoar glosas ecitações, persuadidos de que o preço da beleza teórica é pago emdores e fadiga. Exemplo disso está nos rios de tinta que seseguiram à notável reflexão de Camus, ou nos alentados tomosque poderiam compendiar os estudos sobre o caráter valorativoda retribuição. O mistério da morte, que sempre desafiou oespírito humano, empresta indevidamente suas perplexidades a

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um assunto que é bem outro, porque a morte é uma questãoreligiosa, social, filosófica e científica, mas a pena de morte éessencialmente uma questão político-jurídica.

Um bom caminho para contornar esses dois riscos está emcorrer um terceiro: o do pragmatismo penal. Ou seja, diante damídia da morte em horário gratuito, devemos, conter a lembrançado caso Naves, resistir à atração do alpinismo jusfilosófico (aindaque Millôr, no JB de 3.out.86, tenha aportado algo de novo aoargumento do verdugo), e perguntar pura e simplesmente se a

 pena de morte é eficaz.  Se houvesse uma só probabilidade deresposta positiva, estaríamos em maus lençóis, porque enquanto

questão político-jurídica a cominação de uma pena não podefundamentar-se tão-só em sua eficácia. Sucede que, entre tantasamargas lições que a história da pena de morte ensinou, a de suaineficácia é das mais constantemente esquecidas. O recente livrode Barbero Santos {Pena de Muerte — el ocaso de um mito,  B.Aires, ed. Depalma, 1985) oferece um bom roteiro para a vulgarização daquela lição, que toma a um só tempo risível odiscurso “ bem pensante” da direita e desnecessárias as grandes

indagações jusfilosóficas, morais ou religiosas.Respondamos, com o professor espanhol, à seguinte

 pergunta: a pena de morte intimida?  Certamente que não aoelevado percentual de assassinos que, segundo estatísticas, sesuicidam (em antiga pesquisa inglesa, de 7.454 homicidas, 1.674se suicidaram). É muito duvidoso também que ela intimide as

 pessoas que se encontrem em sitpação sem saída,  ós criminosos passionais (quase 50%), ou os numerosos casos nos quais concorram componentes psicopatológicos. Quanto aos crimes políticos

 — à parte, é claro, outras considerações — não há quem hojeafirme que a pena capital opere por intimidação. Vemos, portanto, que se existe algum efeito intimidativo, é o efeito sobre umsaldo, sobre um modesto saldo de homicidas.

Sendo, contudo, inoperante para o efeito preventivo geralde intimidação, a pena de morte logra um resultado que Staub

comprovou, e que é exatamente o oposto. Falamos do suicídio judiciário, isto é, dos inúmeros casos em que o homicídio é

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cometido por alguém que deseja, mais ou menos conscientemente, morrer, e elege, mais ou menos conscientemente, ocarrasco como meio de autodestruição. Middendorff lembra queenquanto Peter Kurten, o vampiro de Düsseldorf, cometia seus

crimes, quase 200 pessoas se apresentaram à polícia afirmando-se autores. Exemplos recentes de condenados à morte que desejavam morrer: Sirham Bishara, Gary Gilmore, Jesse Bishop eSteven Judy. Pesquisas americanas identificaram que nos arredores da prisão, nos dias de execução de pena de morte, sãocometidos mais crimes de sangue do que normalmente.

Observemos agora, sempre em companhia de Barbero Santos, alguns resultados de uma investigação da ONU, de 1962,sobre estatísticas de países que aboliram a pena de morte. Vejamos na Alemanha, com pena de morte abolida em 1949,  osnúmeros de homicídio: 1948,  521; 1950,  301; 1960,  355. Veja-,mos na Áustria'(abolição em 1950): 1948,  77; 1949,  93; 1950, 48; 1951,  64; 1952,  38; 1953 ,  41. Na Itália, na Argentina, erecentemente na Espanha, a supressão da pena de morte não teveo menor efeito criminógeno. A sempre citada pesquisa da Selim,realizada sobre um amplo universo de quase 30 cidades de

diversos estados americanos, não encontrou qualquer relaçãoentre a pena de morte e o volume de homicídios de cada conjuntocomparável, concluindo que as execuções não influenciam os percentuais de homicídios.

As últimas e mais avançadas investigações criminológicasnorte-americanas sobre a eficácia da prevenção geral da pena demorte procuraram, através de um método denominado multiple regression analysis  (MRA), que associa à pena capital diversasséries de variáveis controláveis estatisticamente, verificar se a

 pena de morte tal como praticada tem efeito intimidativo, e, emcaso positivo, se poderia obter-se por outros meios tal efeito.Como assinala Barbero Santos, o resultado quase unânime dessesestudos é no sentido de não se demonstrar possua a pena de morteum apreciável efeito intimidativo (any measurable deterrent  effect).

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Isso deveria bastar, e normalmente basta. A pena de mortenão é eficaz, e portanto desnecessário discutir suas implicaçõesmorais, religiosas e filosóficas. Há entretanto outra linha que

também evita aqueles dois riscos, e é convidar os partidários da pena de morte para examinar de perto a realização de suas idéias.Há alguns livros que se ocupam exclusivamente desse aspecto,como os de Kurt Rossa e Daniel Sueiro. Esses livros, que não

 podem ser lidos antes de uma refeição, demonstram algo quecomumente não aparece no debate: a execução da pena de morte ésempre um episódio indigno, violento e macabro. O homem nãodescobriu um modo decente para negar tão radicalmente sua

 própria humanidade.Para a turma da direita penal, seria decepcionante dar-se

conta de que, nas propostas que defendem, morrer decentementeé tão impossível quanto viver decentemente.

PENA DE MORTE

Sempre que ocorre uma onda de violência, ou um crime particularmente cruel, aparecem políticos oportunistas pregandoa pena de morte. Quase sempre são políticos que nada fazem paramudar a situação de miséria, promiscuidade e medo que é a mãeda criminalidade. Quase sempre são políticos ligados aos maiores criminosos do país, que, no entanto, praticam uma delinqüência dourada e impune, sem se preocupar com a polícia ou a

 justiça. Mas algumas pessoas de boa-fé acabam acreditando quea pena de morte pode ajudá-las, que a pena de morte podediminuir os assaltos, os estupros, os homicídios, etc.

 Não acreditem nisso.A pena de morte não ajuda a reduzir a criminalidade. Como

é que se sabe? É que em muitos países a pena de morte foiabolida, e em alguns outros introduzida. Isso aconteceu princi palmente na Europa, na metade do século. E as estatísticas de

antes e de depois da pena de morte puderam ser comparadas. A

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ONU fez um relatório sobre isso. Não há nenhuma diferença afavor da pena de morte.

Também nos Estados Unidos, um professor fez uma pesquisa em Estados com e sem  pena de morte, para um mesmo crime:matar um policial em serviço. Ele pensava que ia encontrarmenos desses homicídios nos Estados sem pena de morte. Pois osresultados provaram que não havia qualquer diferença.

Mas se não existem provas de que a pena de morte reduza acriminalidade, existem provas de que ela a aumenta.  Antigamente, quando as execuções eram públicas, percebeu-se um

aumento de violência na área em que os condenados eram mortos. Pior do que isso foram os inúmeros casos de pessoas quecometeram um crime punido com a pena de morte só para“ suicidar-se” através do carrasco. Os livros registram muitoscasos desses. Por que é que tradicionalmente, quando um crimemuito grave era cometido, e não se sabia por quem, apareciamdezenas de pessoas na polícia confessando-se autores dele? Eram

 pessoas que — ainda que não tivessem consciência disso —

desejavam morrer, mas não tinham coragem de suicidar-se.O pior da pena de morte, contudo, não é sua ineficácia parareduzir a criminalidade, e sua propensão a incentivá-la. O pior éque ela é aplicada discriminatoriamente. São os pobres, os negros, os inadaptados que vão para os corredores da morte: ricos e

 poderosos nunca põem os pés lá.Olhem para nossas prisões e vejam quem é que esses políti

cos querem matar.

Há até certa coerência deles. Sua cumplicidade com umasociedade injusta os toma co-autores das milhares de mortes pordoença, por falta de alimentação, de assistência, de habitação, eaté mesmo de uma “ morte civil” por falta de informação sobreseus direitos. Propugnando pela pena de morte, esses políticosapenas querem continuar a matar, dessa vez sem subterfúgiosou dissimulações. Gostam de matar. Mas sua vítima — o povo

 brasileiro — gosta de viver.

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O CARDÁPIO DA MORTE

(Tragicomédia em uma cena, para uso em laboratórios de interpretação de Política e Criminologia, duas ciências a 

cada dia mais afins)

 Dramatis personae:1.  Exequiel Burundanga, deputado-constituinte;2. Brocardo Latino, assessor jurídico.

Cena Única

 Brasília, em alguma noite da primavera de ]987, na véspera da apresentação do projeto de lei do deputado  

Exequiel Burundanga sobre pena de morte. Entra em seu gabinete, carregado de livros, o assessor jurídico  

 Brocardo Latino.

EB — Ora, muito bem, Dr. Brocardo. Resolveu o problema?

BL — Não, deputado, não resolvi. Estudei a quaestofaçti e estou meio confuso. Aliás, quanto mais estudava, mais meconfundia.

EB — Não entra na minha cabeça que um aspecto tãosecundário como este — a forma de execução — possa retardara apresentação de nosso projeto de lei. O fundamental é amorte, em sua elevada abstração teórica. Matou, morreu.

Morte lá, morte cá. Nada mais saudavelmente lógico. Agora,como  se vai matar, como  se vai morrer, que importância temisso?

BL -— Não é tão simples assim, deputado Burundanga.Veja o levantamento que fiz, nesta folha de papel. É umaespécie de cardápio da morte, uma summa divisio:  aí estãoarroladas todas as formas contemporâneas de execução da

 pena capital, no mundo ocidental e no mundo comunista.

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EB — Perfeitamente dispensável o segundo grupo. Nossoeleitorado quer a pena de morte no e para o mundo ocidental. A propósito, onde o senhor colocou o Japão?

BL — Japão é ocidental.

EB — Claro. Mas, diga-me uma coisa: os comunistas nãosão contra a pena de morte?

BL — Não consegui entender isso direito. Lênin váriasvezes afirmou que os comunistas eram adversários da pena demorte, porém excepcionalmente a admitiam, sob determinadas circunstâncias e enquanto tais circunstâncias perdurassem. Garantia-se que o governo revolucionário não a conser

varia além do necessário à estabilização do poder. De fato,logo após a guerra, em 1947, aboliram a pena de morte. Masem 1950, com a chamada guerra fria, ela retornou para crimesde çspionagem e traição, e foi ampliada para crimes comunsem 1954 e 1961. Esta situação perdura até hoje. Ou não ligammais para Lênin, ou o poder ainda não está consolidado lá;tertius non datur.

EB — Não tente compreendê-los. Vamos ao nosso problema: por que é complicado o je ito de matar?

BL — No direito antigo e intermédio não era. Matava-secomo bem se queria.  Ad libitum . Mas hoje é muito diferente.Há um relatório, sempre citado nos livros, de uma comissãoinglesa, chamada  Royal Comission on Capital Punishment. De 1949 a 1953, essa comissão estudou a pena de morte. Paraela, a execução da pena capital exige três requisitos básicos:humanidade, certeza   e decência . Por humanidade, entende-seque a técnica adotada deva matar o padecente sem aflição e semdor (ou com perda imediata de consciência), evitando-se longos ritos ou preparativos. Por certeza, entende-se que a formade execução deva alcançar direta e imediatamente a supressãoda vida do padecente, sem interrupções ou dificuldades operativas. Por decência, entende-se que o procedimento deve realizar-se com dignidade, evitando qualquer violência inútil ou

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 brutalidade eontra o padecente, não lhe mutilando ou deformando o corpo.

EB — Embora os assaltantes e estupradores não conce

dam a suas vítimas qualquer dessas considerações, concordoem que o Estado não pode matar como um assaltante ou umestuprador. Vejamos aqui seu cardápio. Forca. Acho interessante, e tem tradição entre nós. Funciona bem a forca?

BL —  In thesí, sim. A comissão inglesa achava que era amelhor técnica. O verdugo examina previamente o condenadoe calcula, de acordo com seu peso e outras características, aaltura da queda. Com um saco de areia do mesmo peso, testa a

corda. No momento da execução, o padecente tem seus braçosatados às costas e é conduzido à sala própria.

EB — O enforcamento não é público?BL — Na América, o último enforcamento público foi em

1831, em Nova Iorque; na Inglaterra, em 1868. Depois disso,e enquanto se usou a forca (na Inglaterra, até 1969), as execuções se deram no interior das prisões. Levado à saía própria,

que fica contígua à cela dos condenados, coloca-se em suacabeça um capuz e passa-se a corda em seu pescoço. O laçocorrediço era colocado, na Inglaterra, sob a mandíbula, dolado esquerdo; na América, sob a orelha, também do ladoesquerdo. Trata-se de uma dissidência entre carrascos: aposição submental e a posição stjbaural são defendidas por correntes distintas, a primeira perfilhada pelos verdugos ingleses, asegunda pelos americanos. De qualquer forma, aberto o alça

 pão, o corpo cai e o deslocamento violento das vértebrascervicais promove a maceração ou ruptura da medula. Issoleva à perda imediata da consciência. O coração fica batendoainda quase 20 minutos, mas a comissão inglesa garante que setrata de uma função inteiramente automática.

EB — Não me parece mal, não me parece mal. E é barato.Por que disse, caro doutor Brocardo, que em tese  funciona

 bem? Na prática porventura funciona mal?

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BL — A prática registra vários inconvenientes. Se overdugo erra no cálculo da queda, haverá problemas. Se eleerra para menos, não ocorre o deslocamento das vértebrascervicais, a medula não é atingida, e a morte sobrevêm porasfixia. A morte  por asfixia na forca é um espetáculo deprimente . Os antigos verdugos cavalgavam os padecentes paraacelerar sua morte. Houve caso de o desgraçado conseguir, aoscorcovos. apoiar as pernas nas bordas do alçapão. Mas se overdugo erra para mais, pode a cabeça do padecente ser arrancada. Pelos critérios da comissão inglesa, na primeira hipótese, falta o requisito da humanity; na segunda, falta o requisito da decency.  Mas não é só. São inúmeros os casos dereanimação de enforcados que a literatura registra. Imagine ocoração de um corpo, no Instituto Médico Legal, voltar a bater! A reação juríd ica foi estipular prazos de perm anência docorpo pendurado. Na Inglaterra, em 1969, o prazo era de umahora, ex-vi legis.  A tecnologia tornou coisas do passado ascordas que rebentavam, mas esse coração batendo quase 20minutos continua ensejando muita polêmica. Há também rea

ções fisiológicas desagradáveis que,..EB — Não. Melhor tentarmos outro caminho.BL — Devo então desconsiderar o garrote?

EB — Como é o garrote?BL — Mais ou menos como a forca. São duas argolas de

ferro, uma fixa e outra móvel. Quando o torniquete é acionado, a argola móvel caminha para trás. O padecente está

sentado num banco, e o garrote ajustado num madeiro atrãsdele. Há o deslocamento de vértebras cervicais, como noenforcamento, e asfixia. O corpo se estorcega espasmodica-mente, até que o número de voltas no torniquete consigadeslocar as vértebras e dilacerar a medula.

EB — Não, não. Vamos por outro caminho. Você aceitaum uísque? Estou com a garganta seca.

BL — Eu o acompanharei. ínteressa-lhe a decapitação?

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EB — Usa-se no ocidente cristão?BL — A guilhotina é o método moderno de decapitação.

Tem o grave inconveniente de mutilar o corpo do padecente,mas foi muito prestigiada. Seu inventor dizia que o executadonão sentiria mais do que uma sensação gelada...

EB .— Duas ou três pedras?BL — ... nas espáduas. Sem gelo, por favor: bebo cow- 

boy  quando estou gripado, A guilhotina é simples. O padecente é colocado, por um mecanismo basculante, em posiçãohorizontal; seu pescoço é imobilizado por um dispositivo deduas peças grossas de madeira, cada qual com um semicírculo,chamado lunette; a lâmina tem sobre si um peso de aproximadamente 40 quilos, ao qual é dado o nome de mouton; acionadoo declic,  uma garra que prende o mouton,  este e a lâmina,dotados de carretilhas laterais, caem e promovem a decapitação.

EB — Parece eficiente.BL — Devo dizer-lhe, deputado, que há inconvenientes.

Corno a lunette é  uma, e os pescoços m últiplos, o ajudante docarrasco tem que se garantir de que o padecente não faça

movimentos para retrair sua cabeça. Ele o segura pelos cabelose, quando calvo, pelas orelhas. Se o padecente se retrai, podem acontecer carnicerias desagradáveis, como no casodaquele que teve a mandíbula cortada. Esse ajudante usa umaespéc ie de máscara, para proteger-se da sangueira que jorra dagarganta.

EB — Pelo menos, é um processo de morte imediata.BL — E que o senhor não conhece as estórias macabras de

decapitados. Não me refiro, é claro, ao rubor de CharlotteCorday, esbofeteada no patíbulo, que tem um ar de lenda. Maso relatório do médico Wendt, no início do século XIX, que,

 ju nto a alguns colegas, testou a percepção sensorial da cabeçarecém-degolada de um executado chamado Troer, bem como orelatório semelhante do médico Bearieux, no início do século

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XX, que trabalhou sobre a cabeça do executado Larguille, sãode arrepiar. Um decreto de 1904, na Prússia, proibiu que serealizasse “ qualquer espécie de excitação mecânica ou gal-vânica em qualquer parte do corpo dos decapitados e em suas

cabeças” . Isso tudo pode ser questionado. Mas quem presenciou a execução de Gorguloff, o assassino do presidente Dou-mer, não deve ter dormido por uns dia s. Seu pescoço era muitogrosso, impedindo que a lunette  fechasse completamente; amadeira, fora da posição normal, passou provavelmente afrear, pelo atrito, a queda da lâmina. Foram sucessivas quedas, cada uma das quais arrancava um pedaço da cabeça deGorguloff. Para que os berros inumanos do padecente cessas

sem, Rogis, ajudante do verdugo Deibler, deu-lhe um golpecom uma chave inglesa para desacordá-lo.

EB — Basta, meu caro Dr. Brocardo. Com um acidentedesses, não me elejo nunca mais. Vai uma fatia de salaminho?E o que se pode dizer da cadeira elétrica?

BL — Obrigado. A comissão inglesa registrava inconve

nientes nos preparativos lon gos, uma vez que o condenado temque ter raspados os cabelos da parte superior da cabeça e da perna, onde serão fixados os ele trodos, além de ser atado pordiversas correias à cade ira, para não ser projetado pela primeira descarga. Mas acho que o pior são as queimaduras e asreanimações, durante e depois.

EB — Queimaduras?

BL — Sim. Muitas testemunhas presenciais mencionaram a fumaça que sai do corpo do padecente, mas todas,absolutamente todas, sentem o cheiro de carne queimada. E oslaudos registram, inúmeras vezes, queimaduras, no rosto ouna perna. Isso aconteceu com Spenkelink, executado na Flóridaem 1979: sua face estava queimada. A primeira descarga é demais ou menos 2.000 volts, por uns 6 segundos. Reduz-se para500 volts por quase um m inuto, aplicam-se 1.000 volts por uns

10 segundos, e após novo minuto de 500 volts, vem a última

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descarga de 2.000 volts, como um coup-de-grâce.   A 2.000volts, a temperatura no cérebro do padecente vai a 140 Fare-nheit. O pastor Potter, que assistiu à execução de um crimi

noso chamado Crowley, fez um relato que se detém muitosobre isso; os suores profusos, às vezes sangue pela boca enariz, indicando, ao lado do cheiro, que o corpo está sendoassado. E — o que é pior — freqüentemente é preciso asegunda descarga, e por vezes a terceira. O médico vai até lá, eo homem está vivo. O' deputado podia passar-me uma torradi-nha, por favor?

EB — Pois não. Mas e se aumentarmos a voltagem?BL — É claro que se fossem aplicados 10.000 volts, alta

tensão, a 100 ampères, a morte seria indiscutivelmente imediata. Porém sobraria na cadeira, sic et simpiiciter,'  um pedaçode carvão. Veja o deputado: para usar os termos da comissãoinglesa, ganharíamos 10 em certainty,  mas levaríamos zeroem decency.  Para não desfigurar o corpo, haverá o risco damorte aflitiva, e das reanimações.

EB — Reanimações?BL — A literatura anota diversos casos em que se deu

reanimação. Num deles, ad exemplum, referido por von Hen-tig, o médico legista requisitou o retom o do — não sei se digocorpo ou réu — à cadeira elétrica, para que voltasse a morrer.Uma lei nova-iorquina de 1914 determinava a imediata reali

zação da autópsia, logo que encerrada a execução, e o motivoera enunciado com louvável sinceridade: “ to prevent any possible chance of the subject ever returning to life” . Veja bem o que essa lei, na verdade, pedia ao médico de plantão!

EB — Começo a entender suas dificuldades, Dr. Bro-cardo. Fale-me algo sobre... a câmara de gás.

BL — A câmara de gás tem desde logo a vantagem de não

apresentar um só caso de reanimação.

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EB — Enfim, uma boa notícia! Aceita uma cigarrilha?Como funciona a coisa?

BL — Obrigado, prefiro o meu Hollywood. A coisa ésimples. Uma câmara hermética, com uma ou duas cadeiras,

cujo assento deve ser vazado — tipo palhinha — para nãoimpedir a ascensão do gás. Sob a cadeira, um recipiente, queserá cheio com certa quantidade de ácido sulfúrico; nesterecipiente, no momento da execução , cairão algumas pastilhasde cianureto de potássio, dando surgimento ao gás cianídrico. Na cadeira, amarrado pelo pescoço, braços e pernas, o padecente. tem um estetoscópio preso à altura do coração, conectado a um tubo que sai da câmara e permite a um médicoconstatar a interrupção dos batimentos. Se o réu colaborar...

EB — Se ele colaborar?BL — Sim, se o réu colaborar, inspirando fortemente, a

 perda da consciência é quase im ediata. Sem essa colaboração,tudo é mais lento, e o condenado sofre uma asfixia.

EB — Quanto tempo demora?BL —- De uns três a 12 minutos. Houve um caso em qtie

um espectador conversou, pelos sinais dos surdos-mudos,através das janelas de vidro, 4 minutos e meio com o padecente, em plena execução. Veja este relatório do médico Ha-mer. O gás começou a sair às 4.37:30h. O último batimentocardíaco foi |s 4,47, mas a respiração estava convulsiva, espas-módica e irregular desde 4.38. Por exemplo, às 4.41 :30 eram100 batidas; às 4.44, eram 80. Mas só quem percebe isso é omédico, com seu estetoscópio.

EB — E as testemunhas o que vêem?BL — Nada excepcionalmente terrível — dentro de nosso

tema, naturalmente. A língua, quando a cabeça pende, costuma sair dos lábios, junto com uma baba. Como, segundo osautores de Medicina Legal, esse envenenamento produz en

 jô os, dor de cabeça, aumento da pressão sangüínea, perda da27

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visão e opressão sobre o peito, tornando a respiração difícil,como num ataque de asma, não se pode dizer que a coisa sejaisenta de dor. O padecente às vezes não evita transmitir suassensações.

EB — Acidentes?BL — Insignificantes. Um condenado que teve que ser

sentado à força, tentou o suicídio cortando o pescoço com um pedaço de espelho; outro, magrinho, que conseguiu tirar asmãos e já estava desafivel ando as co rre ias , para seu azar — ou

 para sua sorte? — ainda não haviam lançado o cianureto, e elefoi reamarrado. Não, os inconvenientes maiores não vêm,neste caso, de acidentes, e sim das conotações políticas.

EB — Que conotações políticas?BL — Milhares de pessoas, principalmente judeus, foram

exterminadas da forma mais arbitrária e impiedosa por esse processo. Muitos textos chamam a atenção para isso.

EB — Veja, caro doutor, como, no fundo, no fundo,dessa ou daquela forma, os judeus realmente intervém em

todas as decisões importantes... Assim fica de fato muitodifícil. Vamos ao fuzilamento. Talvez este seja o caminho, porque o fuzilamento já existe no direito brasileiro , não é?

BL — Sim, já existe no Código Penal Militar, para crimesmilitares em tempo de guerra.

EB — Então, vamos lá. Não me venha dizer que saisangue; isso eu já sei. O fuzilamento mata bem e depressa, ou

não? BL — Depende muito, deputado Burundanga, da pontaria do pelotão. No famoso fuzilamento do soldado Slovik,em 1945, com um pelotão de 12 homens, nem uma só das balasacertou no coração. Os projéteis se alojaram entre o pescoço eo ombro esquerdo, atingindo a parte esquerda do peito, acimae abaixo do coração. Slovik ficou se debatendo, amarrado ao

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 poste, gemendo, enquanto nova descarga era preparada.Acontece que, pelo regulamento m ilitar americano, a preparação da descarga leva uns 15 minutos. Quando ficou pronta,Slovik cessara de debater-se. Um quarto de hora de intensahemorragia o matara. Não desanime, deputado; às vezes amorte é imediata.

EB  — Sim?BL — Na execução de Pedro Martínez, em 1972, o tiro de

misericórdia não foi necessário. À frente do pelotão, por umafraqueza qualquer — quiçá compreensível :— o condenadocaiu de joe lhos, e quase todas as balas o atingiram na cabeça.

EB — Mas, afinal, onde se atira? E quantos atiram?BL — Há diversos sistemas. Pode fuzilar-se disparando à

cabeça, ao peito e às costas — tradicionalmente, essa últimamodalidade implicava um demérito, reservando~se a traidorese quejandos. Não vou deter-me sobre o fuzilamento por dis

 paro na nuca, que teve pouca receptividade no Ocidente — pelo menos, no Ocidente oficial. O pelotão pode ser de 5 , 8, 10

ou 12 homens. Uma norma muito freqüente obriga a que umadas armas — sem que se saiba qual — esteja municiada comdisparo de festim.

EB — Isso me parece engenhoso! Quer dizer: uma dasarmas tem um cartucho só com pólvora, sem bala. Todosficam com o direito de achar que aquela era a sua arma.Engenhoso!

BL — Infelizmente, dessa gentil fantasia não pode beneficiar-se o comandante do pelotão, a quem toca o tiro demisericórdia.

EB — Mas esse tiro é a regra ou a exceção?BL — É a regra. E é  feio. Ao descrever os efeitos de uma

 bala 9 milím etros que rebentou o crânio de um réu, e fez comque a massa encefálica lhe saltasse sobre os olhos, N a u d disse

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que parecia uma “ couve-flor rosada” . No histórico fuzilamento do padre Hidalgo, as regras não previam tiro de misericórdia. Após três descargas, o tenente Armandáriz pediu adois dos soldados que disparassem com o cano colado ao peito

do padre. Essa pastinha é de salmão?

EB — Hadock. Não, não, acho que o fuzilamento nostraria problemas com os militares. Não vão querer assum ir asfunções. Ainda mais' se tivermos que fuzilar um padre; ealguns padres, o senhor bem sabe, o merecem.

BL — Poderia ficar a cargo da Polícia Militar...

EB — Com aquela pontaria? Imagine as cenas horripilantes, a cada execução. E isso iria despertar ciúmes em algunscorreligionários da Polícia Civ il , que nos são muito fiéis. Não,Dr. Brocardo, muita gente nessa história de matar não dácerto. Mais uísque?

BL — Obrigado, vou ficar só nesse. Tenho contraídogripe com freqüência, e tomei medicação antibiótica.

EB — E a injeção?BL — Não: foram cápsulas.

EB — A injeção letal, Dr. Brocardo! A injeção letal!BL — Esta é que lhe traria problemas, meu deputado,

muitos problemas com a classe médica. Desde a primeira lei,que é de 1977, de Oklahoma, existem esses problemas. Aliás,ainda em estudos, a Associação Médica Britânica se

 pronunciara: “ Não se deve esperar de nenhum médico que, noseu exercício profissional, concorde em tomar parte na mortede um assassino condenado” . Quando houve a primeiraexecução por esse processo — em Huntsville, Texas, 1982 —o diretor médico do presídio teve a seguinte participação: 1? —examinou previamente as veias do condenado para ver se eramadequadas; 2°  — entregou a droga (tiopental sódico) aocarrasco; 3? — supervisionou a aplicação da injeção; 4? — 

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controlou os batimentos cardíacos (o que não fugiria às tarefascomuns); 5? — indicou, em determinado momento, que ainjeção deveria continuar alguns minutos. Choveram manifestações, das associações médicas do Texas e da Americana. O

secretário geral da Associação Médica Mundial declarou que aúnica função que toca a um médico, nessa situação, é certificara morte, cumprida a execução. Aqui não seria diferente, deputado. Ainda outro dia um médico mineiro chamava essa formade execução de “ silencioso assassinato farmaco lógico” .

EB — É fogo. Esses médicos comunistas.BL — Há um detalhe que lhe agradará. Parece que em

algum dos seis estados americanos que adotaram a injeção,tomam-se três veias do condenado. Em dois são inoculadassubstâncias inócuas, e só numa a droga letal. Como no pelotãode fuzilamento.

EB — Eu chego a pensar que na votação de certas leis poderia ser introduzido algo semelhante. De 12 botões de

votação, um votaria em branco. O deputado poderia sempredizer: não fui eu quem aprovou aquilo. Ou, pelo menos, pensar: talvez não tenha sido eu.

BL — Deputado, com sua licença, vou me retirar. Estoume sentindo meio febril.

EB — Será a cadeira elétrica, Dr. Brocardo.BL — A cadeira elétrica?

EB — Sim. Tem uma certa mística, é bem ocidental. Agente tom a obrigatório o uso de um aromatizador de ambientesna sala, para evitar o cheiro de carne assada. E cobre todo ocorpo do condenado, para a cena não deprimir, com suores

 profusos, queimaduras. E qualquer resistência do bandido,tascamos mais mil volts nele. Poderíamos aproveitar nossamão-de-obra na área da eletricidade repressiva, que está ocio

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sa, operando muito abaixo do que demonstrou ser capaz, porexemplo, nos anos Médici.

BL — Conviria então que o senhor soubesse que crimi-nólogos americanos identificam a origem da cadeira elétricanuma disputa comerciai. Edison queria eletrificar as cidades

americanas com corrente contínua, de baixa tensão, conduzida por cabos subterrâneos; Westinghouse era partidário da corrente alternada, de alta tensão, conduzida por cabos aéreos.Em 1888, um operário de Westinghouse esbarrou num cabo emorreu. Edison não perdeu a oportunidade. Além de divulgarao máximo o fato, construiu um aparelho — antepassadodireto da cadeira elétrica — destinado a demonstrar, pelaeletrocução de animais, as desvantagens e perigos da corrente

alternada. Um tal Harold P. Brown foi o encarregado datournée demonstrativa. Parece que Edison quis levar sua tese auma comissão parlamentar. Aí começaria...

EB — Dr. Brocardo, isso parece história de comunista. Osenhor andou lendo demais. Vamos dormir, que esta reuniãofoi dura, e o corpo merece descanso.

BL — É verdade. O corpo merece descanso. Boa noite,

deputado.

EB — Boa noite.

(Pano lento)

 Nota Póstuma

O deputado Exequiel (com  x   mesmo, cognato deexéquias) Burundanga é um personagem de ficção. Qualquersemelhança com pessoas reais é mera coincidência. Enquanto

 personagem , morrerá em 1988, num conto denominado“ Apetite Fatal” , atropelado, ao sair de sua casa para ir com

 prar um saquinho de pipocas , por uma viatura policial, emmau estado de conservação, que se deslocava para atender a

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um falso alarme de assalto bancário. O personagem, portanto,falece antes de ver realizado seu sonho. Deposto pelo impea- chment   das armas vendidas ao Irã, Reagan comparecerá pessoalmente às exéquias. O cabo PM que dirigia a viatura seráabsolvido.

Pelo contrário, Brocardo Latino existe realmente. Com oóbito de Exequiel, foi assessorar um deputado do PMDB,depois Ministro, e em pouco tempo, benquisto no Planalto,viu-se nomeado magistrado de importante corte federal . Tor-nar-se-ia famoso em 1989, pelo erudito voto vencedor pro ferido no processo em que se  discutia a legitimidade de umaoperação 63 que o Piauí realizara com bancos sul-africanos

 para financiar a implantação de cinco cadeiras elé tricas. Viriaa morrer em 1990, de pneumonia. Suas últimas palavrasforam: “Factum negantis probatio nulla est.”

Os episódios, personagens, relatórios, depoimentos, normas e referências ‘ ‘técn icas” sobre execução da pena de mortesão todos rigorosamente verdadeiros.

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PUNIDOS E MAL PAGOS

Historicamente o capitalismo recorreu ao sistema penal para duas operações essenciais: 1? garantir a mão-de-obra; 2?impedir a cessação do trabalho.

Para garantir a mão-de-obra, criminalizava-se o pobreque não se convertesse em trabalhador. A experiência,, nosséculos XVII e XVIII, das “ casas de traba lho” (Workhouse, 

 Arbeithaus),   a pioneira das quais foi a rasp-huis  holandesa

(onde muito pau-brasil certamente foi raspado), conduziu àgeneralização do internamento “ correicional’ ’. Com a revolução industrial, o esquema jurídico ganhou feições maisnítidas: criou-se o delito de vadiagem. Referindo-se à reformados dispositivos conhecidos como Poor Law, em 1834, Disra-eli dizia que na Inglaterra ser pobre passava a ser um crime.Aqueles que, por uma razão ou outra, se recusavam ou não

conseguiam vender sua força de trabalho, passaram a sertratados pela justiça mais ou menos como nos julgamentosdescritos por Jack London em seu conto autobiográfico: a cada15 segundos, uma sentença de 30 dias de prisão para cadavagabundo.

Para impedir a cessação do trabalho, criminalizava-se otrabalhador que se recusasse ao trabalho tal como ele “ era” :criou-se o delito de greve.  O Código Penal francês de 1810

contemplava o novo crime, em seu artigo 415. O Vagrancy Act  inglês de 1824 tornava possível processar criminalmente tra

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 balhadores que recusavam a diminuição de seus salários. Não por acaso, um dos vagabundos condenados do conto de JackLondon, alegando perante o juiz que houvera deixado suaocupação com a esperança de obter uma vida mais feliz, foi

 punido com mais  30 dias por “ abandono de emprego” . No B rasil, abolida a escravidão e proclamada a república,o Código Penal de 1890 trazia a mesma receita: em seu artigo399 punia a vadiagem,  e em seu artigo 206 punia a greve (definida como “ cessação ou suspensão do trabalho para im

 por aumento ou dim inuição de serviço ou salário” ). Houveforte reação a este último dispositivo, que dois meses depoisdo início da vigência do código foi objeto de reforma, para

incluir como condições do crime “ violências ou ameaças” .Mudou um pouco a letra da lei porém não o espírito da coisa. Oteorema jurídico era o mesmo: não trabalhar é ilícito, parar detrabalhar também. Em suma, punidos e mal pagos.

A ditadura militar forneceu um modelo muito legíveldessas relações. Enquanto a política do arrocho salarial assegurava às multinacionais a mão-de-obra mais barata domundo, o sistema penal tratava de prender vadios e grevistas.

Se a prisão dos vadios era uma rotina que cumpria outrasfunções (porque, em certo sentido, os vadios eram funcionais para o regim e, enquanto compunham o “ exército de reserva’ ’daquela mão-de-obra mais barata do mundo), os grevistas,

 paralisando a produção, atrapalhavam a assadura política dofamoso bolo que um dia — com o esquecer? — seria dividido.A constituição da ditadura proibia “ greve nos serviços públicos e atividades essenciais, definidas em le i” (art. 162). Logo

o crime chegaria à legislação de segurança nacional: decreto-lei n? 314, de 13.mar. 67 (arts. 32, 33, inc. V e 34), piorado pelo decreto-lei n? 510, de 20.m ar.69, e especialmente odecreto-lei n? 898, de 29.set.69 (arts. 38, 39, inc. V e 40). Neste últim o, que foi o diploma legal de nossos anos dechumbo, a greve em serviços públicos ou atividades essenciaisera punida com reclusão de 4 a 10 anos. A mesma pena doroubo!

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A nova Constituição assegura o direito de greve de modoamplo, ressalvando que os “ abusos sujeitam os responsáveisàs  penas da le i"   (art. 9°,  § 2°).  Essa espécie de ressalva ésupérflua   e infeliz  — mas, para os tristes acontecimentos de

Volta Redonda,, foi tragicamente oportuna.A ressalva é supérflua porque o abuso de todo e qualquerdireito acarreta necessariamente sanções jurídicas. Um direitoverdadeiramente democrático desconhece qualquer criminali-zação específica da greve, e os abusos porventura ocorridosdevem ser punidos pelo direito penal comum: para isso existem as infrações penais de constrangimento ilegal, vias-de-fa-to, lesões corporais, rixa, dano à propriedade alheia, seqües

tro, etc. A ressalva é também infeliz porque, quando se trata dodireito de greve, costuma-se regulamentá-lo de forma tãorestritiva e repressiva que tal regulamentação se converte emsua negação. A Constituição de 1946 reconhecia o direito degreve, “ cujo exercício a lei regulará” (art. 158). Mal desfechado o golpe militar, em 1° de junho de 1964, através da lei n?4.330, tratou-se de “ regu lá-lo” , criando novos crimes (art.29), e um procedimento tão bacharelesco e rococó que, na

 prática, uma gr eve legal tornou-se algo inalcançável. Ou seja,o efeito da regulamentação durante a ditadura foi tornar agreve sempre ilegal.

Para a tragédia de Volta Redonda, contudo, a ressalva foioportuna.  Podemos admitir que a ocupação da aciaria daCompanhia Siderúrgica Nacional configurasse juridicamenteum abuso no exercício do direito de greve. Tal abuso, assim,sujeitaria constitucionalmente os responsáveis às “ penas da

lei” . Mas a lei não prevê para a hipótese a pena de morte, aplicada sem processo a três operários, nem as penas corporaisaplicadas a tantos outros.

Por outro lado, era incabível empregar, na operação policial de desocupação da aciaria, as Forças Armadas, que só

 podem in terv ir em questões de lei e ordem por expressa solicitação dos poderes constitucionais — como determina o artigo142 da nova Constituição.

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Inteiramente irrelevante é a existência do ofício de ummagistrado. Para o ordinário cumprimento das decisões judiciais existe o que se chama força pública,  representada especialmente pelas Polícias Militares. É inconcebível que as Forças Armadas, cujo Comandante-em-Chefe é o Presidente daRepública, possam ser distraídas de suas funções constitucionais fundamentais — a defesa da Pátria e a garantia dos

 poderes legítimos — para uma função excepcional (garantiada lei e da ordem) sem que o Chefe do Poder solicitante semanifeste expressamente, como prevê o artigo 142 da novaConstituição. Pobre democracia será aquela na qual juizes,através de um ofício, possam movimentar regimentos e batalhões das Forças Armadas para intervir em questões policiais.Como co nc i l iar às idéias m atrizes de “ hierarqu ia edisciplina” (art. 142 CF) e ao comando constitucional presidencial essa disponibilidade, que poderia-levar ao grotesco deser uma operação militar interrompida frente à cassação dodespacho do juiz por tribunal superior, ou ao absurdo de uma batalha ocasionada por decisões divergentes? Pensar diferentemente é não apenas trair o texto da Constituição, mas tam bém degradar as funções relevantes e insubstituíveis que, noestado de direito democrático, tocam às Forças Armadas.

Se o massacre de Volta Redonda nunca mais acontecer, se pudermos aprender com ele para jamais repeti-lo, um passoimportante terá sido dado para reverter a tradição segundo aqual a greve e seus abusos são invariavelmente reprimidos,dentro ou fora da lei, mas os crimes cometidos nessa repressão

ficam sempre impunes.Q uand o alguém fala que o B rasil é “ o país daimpunidade” , está generalizando indevidámente a históricaimunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos

 brasileiros — do escravismo colonial ao capitalism o selvagemcontem porâneo — a punição é um fato cotidiano. Essa puniçãose apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ouquaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de seremacusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões

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corporais, homicídios, estupros, etc.). Porém essa punição perm eia principalmente o uso estrutural do sistema penal paragarantir a equação econômica. Os brasileiros pobres conhe

cem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjemrápido emprego e desfrutem do salário mínimo (punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves

 para discutir o salário, porque a polícia prende e arrebenta(punidos e  mal pagos).

O APRENDIZADO DA VIOLÊNCIAEm mais de um' momento de sua obra, Charles Chaplin

abordou o tema do trabalho infantil. São conhecidas as cruéiscondições nas quais a industrialização nascente promoveu aexploração da mão-de-obra de crianças. Menos. evidente, contudo, se apresenta a articulação entre essa exploração e osistema penal contemporâneo. Uma homenagem a Chaplin

 pode ser prestada examinando tal articulação a partir de umt e x t o l e g al q u e t a m b é m c o m p l e t a c e m a n o s : oCódigo Penal brasileiro de 1890.

A época é o final do século XIX, e a ação se passa num país latino-americano. O personagem antagonista de Carlitosé um próspero comerciante, cujo pai fora barão do Império,grande proprietário de fazendas e escravos. Chamemos nosso

 personagem de Burguito. Admirador do engenho inglês e da

liberdade americana, Burguito está participando a um sótempo da instalação de uma fábrica de tecido e da república.Para que ambas funcionem, precisa de mão-de-obra barata elegislação severa. Suspeitando de que através da segunda

 poderia garantir a prim eira, Burguito arregaça as mangas e vaià luta pela mão-de-obra das crianças.

Burguito convence o Generalíssimo que chefiava o Governo Provisório da repúb lica a expedir um decreto que proíbeterminantemente o trabalho nas fábricas a menores de 12 anos,

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‘ ‘salvo a título de aprendizado” , desde que seja em fábricas detecido e restrito a maiores de oito anos. (Qualquer semelhançacom a estrutura lógica do inciso XXXIII do artigo 7? daConstituição de 1988, que proíbe o trabalho para menores de14 anos “ salvo na con dição de ap ren d iz’ ’ , é m era

coincidência.) Para evitar abusos, o decreto proibia que a jo rnada de trabalho ultrapassasse nove horas para os maioresde 12 anos (se garotas, máximo de oito horas), quatro horas

 para as crianças entre 30 e 12 anos e três horas para as criançasde oito a 10 anos. Era também proibida qualquer tarefa queimplicasse “ esforço excessivo” . Se não houvesse jane las, odono da fábrica teria que providenciar ‘ ‘ ventilação artificial ’ ’.O industrial que excedesse os limites da jornada ou não asse

gurasse as condições sanitárias prescritas estaria sujeito a pequenas m ultas, sempre com recurso para o m in istro(especialmente quando a medida sanitária importasse‘ ‘ a v u l t a d a d e s p e s a p o r p a r t e d o s d o n o s d osestabelecim entos” ). Burguito esfregou as mãos de contente.

Esse decreto existiu (n? 1.313, de 17.jan. 1891). JacobPenteado (recolhido por Edgar Carone em seu  Movimento  Operár io no Bras i l )   narra o drama de crianças que

“ aprendiam” a carregar tinas d'água de 30 quilos ( “ os pobresmeninos levavam-nas junto ao peito e devido ao peso andavama passos incertos, tropeçando a cada instante” — e podemosimaginar Carlitos com uma broca furando as tinas) ou“ aprendiam” a socos e pontapés a disciplina fabril (“ nãochegou a firmar-se de todo, porque um possante pescoção o-

 projetou de novo no solo” — e novamente podemos imaginaras fintas que Carlitos aplicaria no capataz agressor).

Porém — pensa Burguito — se criança pode trabalhar, pode também furtar; quantas coisas das fábricas aqueles diabi-nhos sonsos não iriam levar para casa entre os farrapos de suasvestes sujas? Como a Senhora Burguito lhe objetasse queafinal eram crianças, sem maior compreensão dos própriosatos, ele pensou: a responsabilidade criminal deve começarcedo, aos nove anos de idade — desde, porém, que se verifi-

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que que o réu tenha “ discernimento” ; e dos 14 anos em diantesem qualquer verificação.  Assim fo i feito no Código Penal de 1890 (art. 27, §§ 1?e 2?). A cena, agora, é Carlitos no tribunal,defendendo um garoto de 10 anos que subtraíra da fábrica uma

 peça de pano para o dia das mães.Sucedeu que o garoto foi condenado: o que fazer com ele?

O ideal — sugere Burguito aos juristas que redigiam o CódigoPenal — seria que esses pequenos delinqüentes (entre nove e14 anos , com d i sce rn imento) fossem reco lh idos a‘‘estabelecimentos disciplinares industriais” , — “ Por quantotempo?” — “ Não seria melhor deixar isso ao arbítrio do

 ju iz?’ ’ — “ Mas um limite qualquer é aconselhável. ’ ’ — “ Porque não 17 anos?” E assim fo i feito  (art. 30 CP 1890). Ogaroto condenado aos 10 anos poderia ficar até os 17 sobtrabalho forçado numa fábrica! E fácil supor as encantadorasmanobras de que o advogado Carlitos lançou mão para conseguir do juiz que o internamento fosse apenas até os 15 anos enão no grau máximo (até 17 anos). Durante a longa execução.Carlitos lembrava ao jovem cliente que Jacó trabalhara não

sete, mas 14 anos para se casar com Raquel...O garoto,sai finalmente da prisão-fábrica e, claro, nãoquer saber de trabalho. Tinha então 15 anos, dos quais passarasete naquele inferno (dois na fábrica-prisão e cinco na prisão-fábrica). Não por acaso, um escrito do início do séculochamava a fábrica do Ipiranguinha de “ galé industrial” , referindo-se às crianças “ metidas na prisão naquela idade em queo ar e a luz são tão necessários” . O fato é que o garoto não quer

ouvir falar em trabalho por uns tempos.Entrementes, Burguito continuava a fazer seu código penal. “ Greve tem que ser crim e” , bradava. Um ju rista li beral observou que tal dispositivo pareceria excessivo e discriminatório. Burguito sugeriu que o crime abrangesse tambémos patrões , e também as greves que fossem feitas para aumentar   o trabalho ou diminuir   o salário. O jurista liberal ficousatisfeitíssimo, pois a sugestão resolvia, ao menos num plano

form al, a questão da eqüidade. E assim veio à luz o artigo 206

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do Código Penal de 1890: “ causar ou promover cessação oususpensão de trabalho, para impor aos operários, ou patrões, oaumento ou diminuição de serviço ou salário’’. (Meses de

 pois, para desespero de Burguito, o juri sta liberal, corroído deremorsos, conseguiu acrescentar à definição íegal a cláusula‘"por meio de ameaças e violências’’ , através do dec. 1.162, de12.dez. 1890. Apesar disso, para espanto geral, não se registrou um só caso de gréve de operários para o fim de aumentar oserviço ou diminuir o salário, nem uni só caso de greve de

 patrões com o objetivo de diminuir o serviço ou aumentar ossalários. Carlitos teria tentado, sem sucesso, mobilizar os

 patrões.)O incansável Burguito, contudo, não estava satisfeito.

Mão era bastante a criminalização da greve. “ Muito pior — dizia cie —..do que parar de trabalhar é não querer trabalhar,recusar-se ao esforço nacional da produção de tecidos: vadiartambém é crime.” E também assim foi feito   (art. 399 CP1890). Em homenagem à memória do Barão, Burguito conseguiu também a criminalização de uma prática nefasta, umaespécie de arte marcial inferior, e o artigo 402 puniu com

 prisão celular de 2 a 6 meses a conduta de “ fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporalconhecidos pela denominação de capoeiragem” . A câmeradeveria registrar, agora, o imortal vagabundo participando deuma roda de capoeira e fugindo da polícia.

Mas Burguito não estava satisfeito. A vadiagem era punida com pequena prisão celular, sendo o réu “ obrigado aassinar (não havia analfabetismo nesse país) termo de tomar

ocupação dentro de 15 dias” . Acontece que os vadios nãocumpriam o que assinavam, nem mesmo quando assinavam.E, quebrado o termo, deviam eles ser recolhidos a ‘ ‘colônias

 penais que se fundarem em ilhas marítimas ou nas fronteirasdo território nacional” (artigo 400). Burguito pensou nascrianças e nos jovens, em como este exílio poderia ser maléfico, afastando-os do carinho familiar. E propôs ao juristaliberal, seu amigo, o seguinte dispositivo para jovens vadios:

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“ os maiores de 14 anos serão recolhidos a estabelecimentosdisciplinares industriais, onde poderão ser conservados até aidade de 21  anos” . Sua proposta converteu-se em lei (§ 2? do

artigo 399 CP 1890).E eis como aquele garoto, cliente de Carlitos — que não

queria nem ouvir falar de trabalho, depois de sete anos dereclusão têxtil — viu-se, dois meses depois, novamente internado numa prisão-fábrica até os 21 anos. Como a Vara deExecução Penal do país era caótica, o garoto ficou um anoalém do que devia, isto é, dos 15 aos 22. Totalizou, assim, osmesmos 14 anos de Jacó, sem as duas esposas. A penúltimacena é o advogado Carlitos no cartório da Vara de Execução,não conseguindo sequer localizar o processo do garoto. Ofilme se encerraria com uma discussão entre ambos, a respeitodas alternativas não trilhadas por Jacó.

A colaboração do sistema penal esboçado pelo Código de1890 na implantação da ordem burguesa e sua articulação coma exploração da mão-de-obra infantil foram destacadas, entre

nós, não por juristas, mas por três historiadores (BereniceCavalcante, limar Rohloff de Mattos e Maria Alice Rezendede Carvalho), num capítulo de seu estudo sobre a polícia noRio de Janeiro. Vistas à distância de cem anos, aquelas disposições legais despertam indignação e repulsa. Sua óbvia gramática econômica se fez visível sob a dissimulação da abstração jurídica, e não há como quantificar seu saldo de mutilações, espancamentos e mortes.

A violência contra a criança não opera apenas pelo abandono ou pela crueldade, mas também pela sua exploração. Não por acaso tais situações são emparelhadas pelo Princípio 9? daDeclaração dos Direitos da Criança da ONU: “ The child shall

 be pro tected against ali forms of neglect, cruelty andexploitation, ” Em nosso país, de triste tradição, há um longo

 percurso a ser cumprido, na estrada de pó e esperança pela qualDrummond viu caminharem os sapatos e o bigode de Carlitos.

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ONDE ESTÁ A CORRUPÇÃO? O GATOCOMEU!?

É lugar comum, em criminologia, referir-se à distânciaestrategicamente mantida, no campo da criminalidade econômica e financeira, entre condutas desviantes e condutas delituosas.  (Toma-se aqui o termo desviante  na acepção de Cli-nard, de conduta fortemente desaprovada pela comunidade, eo termo delituoso no sentido de penalmente típico, ou seja, deconduta associada a uma pena mediante previsão legal.) Taldistância, no terreno da “ delinqüência dourada” , é estável e

 perm anente demais para ser também inocente; e ainda quando

rompida no plano legislativo, não se encurta na prática dosistema penal. Não sei por que algum editor não tratou de providenciar

uma tradução do livro de Conklin Illegal but not crim inal, quese ocupa de outra distância análoga — a distância entre oilícito  e o delituoso,  o primeiro podendo conduzir a multas eindenizações, e o segundo podendo conduzir à cadeia — que,nos países centrais, enseja a mesma estratégia que, nos países

 perifé ricos, toca à dualidade desvian te-delituoso; o livro seriaum sucesso de vendas entre nós. Illegal but not criminal é umaespécie de versão juridicam ente desenvolvida do “ sabe comquem está falando” terceiro-mundísta.

Isso me vem à cabeça a propósito da troca de notas entre aCNBB e o Presidente da República, à qual, em sua edição dodia 04.fev.88, o  Jornal do Brasil   incorporou valiosa contri

 buição. A CNBB denuncia a existência de um nível insuportável de corrupção; o Presidente, proclamando-se católico de

corpo in teiro (e graças a essa religiosidade só evocou o BancoAmbrosiano), pede a indicação de casos concretos; o JB, emmatéria intitulada “ Se o governo quiser não faltará trabalho —uma pequena lista para investigação’ ’, arrola alguns episódiosaos quais a coletividade atribui sem hesitar o rótulo de corrupção.

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A distância entre o desviante e o delituoso  nos crimes docolarinho branco, incorporada pela prática do sistema penal,costum a levar a duas situações dignas de atenção. Na primeiradelas, toda a comunidade representa o fato como corrupção e o

desaprova enfaticamente — porém ele escapa pelas volutas daconstrução legal. E desviante,  porém não delituoso.  Na segunda situação, o fato é delituoso,  porém a dessensibilizaçãodo sistema penal, pela incorporação daquela distância, fazcom que ninguém se mexa, e nada aconteça; pode o fato

 passar-se no mais alto escalão do governo, e ao Presidente sóresta queixar-se ao bispo.

Vejamos um exemplo de cada situação. Antes, porém,releiam-se os artigos 317 e 333 do Código Penal, onde estão previstos os crimes de corrupção passiva e ativa: art. 317   —

‘ ‘Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, masem razão dela, vantagem indevida ou aceitar promessa de talvantagem.” ; art. 333    — “ Oferecer ou prometer vantagemindevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar,

omitir ou retardar ato de of íc io .’’ A pena, em ambos os casos,é de reclusão por 1 a 8 anos, e multa.Um bom exemplo de conduta desviante   e não delituosa 

está na hipótese do chamado ‘ ‘oferecimento poster ior’ ’. O que pensa a coletividade de quem, após o ato do funcionário, quedireta ou indiretamente beneficiou-lhe interesses, presen-teia-o^regiamente? Um tribunal, contudo, dirá que não seconfigurou o crime de corrupção com “ o oferecimento pos

terior à ação ou om issão, sem anterior prom essa, pois o crimeé dar para que se faça ou omita e não dar porque se fez ouomitiu” (Tribunal de Justiça de São Paulo, RJTJSP 70/347).Está certa a opinião pública em indignar-se; está certo o tribunal em aplicar a lei vigente com obediência ao princípio dareserva. A condenação criminal de cidadãos que se fundamente não na estrita letra de lei anterior, e sim no “ sãosentimento do povo’ ’, dá origem ao terrorismo penal e produz

na verdade uma prática judiciária insana.

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O exemplo da segunda situação (conduta delituosa  e pass iv idade do sistema penal) não é difícil de ser formulado.Como consta dos mais acessíveis manuais, para fins penais osdeputados são considerados funcionários públicos (veja-se.

 por exem plo, o comentário de Celso Del manto ao artigo 327CP). O voto nas deliberações dos distintos órgãos da casalegislativa é um ato de ofício desse funcionário público, aliásseu ato de ofício essencial. Imagine-se que, para levar umdeputado a votar dessa ou daquela maneira sobre determinadotema — suponhamos, a extensão do mandato presidencial —alguém lhe oferecesse, ou a algum familiar, qualquer vantagem, por exemplo facilitando-lhe a obtenção da concessão de

um serviço público — suponham os, uma emissora de rádio oude televisão. Alguém duvidaria, diante da letra da lei, de queuma vantagem indevida foi oferecida a funcionário público

 para que eie praticasse ato de ofício? Alguém duvidaria de queos contornos legais do crime de corrupção, tal como previstono código penal, estão presentes?

E claro que a legislação criminal deve ser reformada, parareduzir a distância entre a forte reprovação comunitária e seus

dispositivos, atenuando a crise de funcionalidade que aí seinstala. Mas é também claro que o sistema penal e suas conexões administrativas, em todos os níveis, têm que recondicionar seus sensores para os crimes dos poderosos, que sãocometidos à sua frente sem que nada aconteça; e a crise, aqui,não é funcional e sim política e moral.

Enquanto aguardamos, resta parodiar a marcha do genialBraguinha, que vem de festejar bodas de ouro: onde está acorrupção? O gato comeu!?

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SAÚDE E JUSTIÇA.

GENOCÍDIO HOSPITALAR Durante os anos 80, juristas e criminólogos que desenvol

vem extensa pesquisa, patrocinada pelo Instituto Interameri-eano de Direitos Humanos, perceberam que os sistemas penaislatino-americanos operam com uma nítida tendência geno-cida. A despeito de se legitimarem num discurso que os apresenta como protetores da vida, tais sistemas — em seu desem

 penho prático — expõem uma perturbadora constante: a mortemassificada de pessoas integrantes de estratos sociais bemcaracterizados. Seja pela atuação de grupos de extermínio(“ justiceiros” , “ esquadrões” , “ polícia mineira” , etc), seja

 pelo abuso nas situações de enfrentamento (a menor re lutânciaem submeter-se ou entregar-se vale como condenação à penade espancamento ou mesmo àpen a capital, executadas duranteou após  a resistência), seja pela indiferença institucional(expressa pelo desinteresse — homicídios carcerários ou registros de “ encontro de cadáver” jam ais investigados — ou

 pela conivência — a justificativ a, verdadeira ou não, da‘ ‘guerra de quadrilhas ’ ’ subtraindo relevância de chac inas), asagências executivas dos sistemas penais latino-americanos,direta ou indiretamente, produzem, administram ou toleramum volume de mortes que, face a certa hom ogeneidade social

das vítimas, introduz necessariamente a idéia de genocídio. Asignificação estatística de tal volume gera o paradoxo segundoo qual os sistemas penais latino-americanos, para cumprir sua

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função programática de  proteger a vida, matam  mais do quequalquer outro conjunto unitário de condutas delituosas (ex-cluindo-se os homicídios iníerindividuais irredutíveis a um

 perfil criminológico unitário, sua performance é inferior apenas às mortes no trânsito).

Recentemente, os jornais passaram a destacar algo semelhante que estaria ocorrendo nos hospitais, ou nas portariasdos hospitais. Como inúmeros estudos — principalmente osde Philippe Ariès — demonstraram, o hospital é o locus moderno da morte urbana, e no processo his tór ico de“ medicalização” da morte concentraram-se, no médico do

hospital, a ciência e o poder. A relação èntre os serviçoshospitalares e a segurança pública é freqüentemente esquecida. Bastaria, porém, lembrar que a mais elevada taxa dasmortes violentas urbanas reside nos acidentes de trânsito, para

 perceber como um atendimento de emergência rápido e eficaz pode influenciar a estatística criminal, impedindo que lesõesgraves se convertam inevitavelmente em mortes. É ainda visível que as vítimas da recusa de assistência ou internação são

integrantes das mesmas populações marginalizadas atingidas pelos sistemas penais , e isso é uma realidade mesmo para oscasos de trânsito (nos quais, a despeito da presença de pessoasde classe m éd ia, o perfil preponderante das vítimas é constitu ído por pedestres pobres, com elevada incidência de mendigos,crianças, bêbados, etc). O fato importante é que membros dasclasses hegemônicas só excepcionalmente morrem à minguade atendimento na portaria de um hospital público. Por outro

lado, não há burocrata que consiga revogar a lei física segundoa qual dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar noespaço, e portanto dois corpos humanos não podem ocupar omesmo leito cirúrgico. São essas as variáveis que delineiam aquestão: 1. no hospital, a ciência e o poder médico gerenciamhoje as mortes urbanas; 2. o exercício dessa ciência e desse

 poder pode influenciar qualitativa e quantitativamente essasmortes; 3. as disfunções que, impedindo ou dificultando tal

exercício, incrementam essas mortes, recaem sobre pessoas

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integrantes de estratos sociais bem caracterizados; 4. tais dis-funções estão associadas a um desaparelhamento estruturaldos hospitais, significativos de uma atitude geral de órgãos públ icos , muito mais do que à hipótese rara da conjuntural

relutância ou “ pervers idade” de alguma equipe médica querecuse o atendimento. E a partir dessas variáveis que cabe perguntar se está ocorrendo um genocídio hospi talar em nosso país, e se — ironia à parte — o sistema penal pode ofereceralguma contribuição.

Salvo o duvidoso emprego revolucionário (quando a umaabundância do penal corresponde notável escassez de direito), o direito penal não é instrumento adequado para transforma

ções sociais. O esforço teórico crítico e desmitificador dodireito (que na América Latina recebeu excelentes contribuições, entre as quais os trabalhos de Novoa e Zaffaroni) revelousuas funções legitimadoras e conservadoras. A pesquisa cri-minológica demonstrou que ambiciosas pedras angulares demuitas concepções (por exemplo, a intimidação pela ameaça

 penal, ou a ressoeialização carcerária) não passaram de fantasias, capazes de articular uma lógica penalística e desatar

concretos sistemas de controle social penal, porém simplesmente sem existência social. As limitações hoje impostas noconceito de prevenção geral são bem representativas do caráter místico da maior parte das racionalizações penais. Umaconfirmação histórica pode, no Brasil, ser buscada no própriogenocídio. O genocídio dos índios e dos negros teve no direito

 penal seu pressuroso regimento interno, enquanto as leis eusos de guerra não contiveram o genocídio dos paraguaios. A

tendência genocida responde a uma organização social internamente excludente e discriminatória, e externamente imperialista, que converte o estado em agressivo servidor aparelhadodos interesses de uma classe. Tal estado, por ação, negligênciaou omissão, extermina ou tolera que se exterminem, diretaou indiretamente, as “ classes perigosas” , os inúteis ou incômodos grupos marginalizados. Se o genocídio por ação é desdelogo reconhecível e condenável, pelo confronto formal evi

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dente com direitos humanos fundamentais, microgenocídiostolerados, lentos e sistemáticos, escapam ao próprio nome pela indulgência da. disfuncionalidade. No fundo, para um

regime econômico que se alicerça em elevadas iaxas de desemprego, a morte massificada de menores, recentementedenunciada entre nós, é funcional (um “ exército de reserva”muito numeroso questiona a própria ordem econômica); parasistemas penitenciários e hospitalares escabrosamente desprovidos de vagas e equipamentos, a morte de acusados ou de

 pacientes é funcional (fôssemos apenas 15 milhões de brasileiros, os serviços públicos seriam primorosos: culpa nossa). O

equacionamento global desses problemas só se alcança no plano político, pela construção de uma sociedade democrática , sendo ilusório supor que novas leis penais possam alteraressa mesma velha e injusta estrutura.

Contudo, às hipóteses menos comuns, porém ocorrentes,de recusa de atendimento por deliberação de administradoresou equipes técnicas de estabelecimentos hospitalares, cabe —um pouco na perspectiva do “ uso alternativo do direito” — a

aplicação imediata do artigo 135 do Código Penal, que punecom detenção de um a seis meses ou multa quem “ deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,a pessoa em grave e iminente perigo” . A pena é triplicada seda omissão resulta morte. A incriminação da omissão de socorro visa a proteger, como frisou Rodriguez Mourullo em suamonografia, o valor da solidariedade humana. Um juristasuíço, Paul Logoz, disse com felicidade que na omissão desocorro encontramos “ o egoísmo erigido em delito” . A aplicabilidade do crime de omissão de socorro a situações queenvolvam pessoal da área médica é reconhecida não só pelosmais importantes penaüstas brasileiros, mas também por nossos t r ibu n a i s . T ran sc rev am os , como exe m plo , dois

 precedentes: “ Responde por omissão de socorro o médicoque, embora solicitado, deixa de atender de imediato o pa*-ciente que, em tese, corria risco de vida, omitindo-se no seudever de facultativo” (TACrimSP, Ap. n:1154.529, rei. Juiz

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Lauro Maiheiros); “ Recepcionista de hospital que se recusa aacolher a vítima e encaminhá-la a médico, consciente do perigo a que estava dolosamente contribuindo, a pretexto de prévio preenchimento de ficha hospita lar, comete o crime deomissão de socorro” (TAPR, Ap. n'.’ 774/82, rei. Juiz AssadAmadeo). No microgenocídio dos aidéticos, muitos episódiosdesse gênero aconteceram impunemente, havendo quem invocasse a cláusula do “ risco pessoal ’ ’ para eximir-se do dever deatendimento. Como lembra Jean Penneau em seu estudo sobrea responsabilidade médica, o risco do contágio integra a ativi

dade do profissional da saúde, e não pode por ele ser invocadocomo escusa; nesse aspecto, o direito deve ser mais exigentecom o médico do que com outro indivíduo (“ ici, le droit doitêtre plus exigeant pour le médecín que pour un autreindividu’ ’).

C l a r o e s t á q u e s e r i a a b s u r d o e d e m a g ó g i c o“ policializar” as administrações hospitalares. A esmagadoramaioria dos profissionais de saúde é igualmente vítima da

insuficiência de recursos materiais e técnicos, de saláriosaviltantes e do subdimensionamento dos estabelecimentos,expressões da tolerância essencial do estado para com o níveldos serviços que mantém ou fiscaliza. A aplicação do crime deomissão de socorro, no quadro dramático que está aflorandoao debate público, deve circunscrever-se às hipóteses minori-táríaj^nas quais — dentro, de resto, das características típicasdos crimes omissivos — a equipe médica poderia ter atuado, e não o fe z.   O grande cúmplice secreto de todas as mortes queestão no noticiário dos jornais é o próprio estado, cujo descasoretirou dos médicos o pressuposto jurídico indeclinável dosdelitos de omissão: a  possibilidade de agir.  Este velho réuconvicto, este multirreincidente em genocídios, contudo, sóos tribunais da democracia poderão algum dia julgá-lo e trans-formá-lo.

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UM RÉQUIEM PARA LEIDE

Muitos brasileiros — inclusive meninas — restolham olixo e reaproveitam da imundície às vezes alimentos, às vezes

(f)utilidades domésticas, às vezes — quando meninas — bonecas mutiladas. Pode acontecer, seja no lixo desesperado dos paupér rimos, seja no lixo classe média de detritos menosvulgares (como um ferro-velho), pode acontecer um cilindrode chumbo, e a fantasia de um segredo, um cofre, um. tesouro.E se esse cilindro mágico verte de suas entranhas um pó azuliridescente, a maravilha é total, e a menina não resistirá a pin tar-se com ele, a com ele decorar seu sanduíche de pão eovo.

Agora que Leide das Neves Ferreira, aos seis anos deidade, morreu por ter brincado essa aventura, a brutalidade daquestão nuclear se recoloca. Informam os jorn ais que as bonecas que a cercaram, em seu leito de morte, também serãoenterradas como lixo radioativo. A pequena Leide merece terum réquiem na reabertura do debate sobre o irracional is monuclear; e recuso-me a crer que a última palavra no assuntocaiba à tecnocracia, pois se a fissão nuclear e a radioatividade

se esgotam na física, a morte a transcende e se reapresenta aosníveis religioso, moral, histórico e político.

Quero deter-me sobre um aspecto dessa tragédia: a apuração das responsabilidades criminais. Informa a imprensa que,antes das mortes de Leide e de sua tia Gabriela, o inquéritotinha como indiciados apenas os responsáveis pela manutenção e operação da bomba de césio na clínica radiológicadesativada, aos quais se atribuía o crime de lesões corporais

graves dolosas (mediante dolo eventual). A superveniênciadas mortes deveria logicamente converter a subsunção legalnum homicídio doloso (igualmente mediante dolo eventual).Mas a imprensa informa também que as autoridades que dirigem a investigação não acreditam muito na solução jurídicaque propuseram. E mais: estaria praticamente descartada aincriminação de qualquer funcionário da Comissão Nacional

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de Energia Nuclear — CNEN — , da Secretaria de Saúde deGoiás ou do Instituto da Previdência do Estado.

A morte de Leide provoca muitas conclusões; a menosimportante delas é que a capitulação jurídico-penal atribuídainicialmente aos fatos era artificial e equivocada. Antes dasuperveniência de qualquer dano  à saúde ou à vida, o crimecometido foi o do art. 26 da lei n? 6.453, de 17.out.77:“Deixar de observar as normas de segurança ou de proteçãorelativas à instalação nuclear ou ao uso, transporte,  posse e guarda de material nuclear,  expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem;  pena:  reclusão de

dois a oito anos.’’ Essa mesma lei, em seu art. 1?, inc. IV,inclui na definição de material nuclear   os ‘ ‘prod utosradioa tivos” . A equação jurídica que se segue é simples:trata-se de verificar que pessoa ou pessoas tinha(m) o dever(legal, contratual ou social) de guardar   e velar pela guarda (fiscalizar, inspecionar, etc ) daquele produto radioativo.

Muito dificilmente um levantamento exaustivo das atri buições da CNEN não encontrará essas funções. Inúmeras

 passagens da lei n? 4.1 18, de 27.ago.62, que criou a CNEN, eda lei n? 6.189, de 16.dez.74, que lhe introduziu alterações,

 patenteiam as funções normativas e de fiscalização e controleque a Comissão detém com respeito a essas atividades. Na pesquisa e lavra de jazidas de minérios nucleares, empreendidas por particulares autorizados, a CNEN exercerá “ sobre asatividades dos respectivos titulares a fiscalização prevista emlei” . É de sua competência expedir normas, licenças e autorizações para a “ posse , uso, armazenamento e transporte dematerial nuclear’ ’, bem como as normas de segurança para ‘ ‘otratamento e a eliminação de rejeitos radioa tivos” . A estrutura

 básica da CNEN, sobre a qual dispôs o decreto n? 75.569, de7.abr.75, atribui essa tarefa de receber e depositar rejeitosradioativos ao Departamento de Instalações e Materiais Nucleares. Tais dispositivos, embora com objeto distinto, forne

cem uma visão significativa da índole geral dos poderes eobrigações da CNEN. Ninguém do ramo poderia ignorar o

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 perigo da bomba de césio. Uma lei de 1950 (n? 1.234, de14.nov.50) determinava em seu art. 5'.’ que “ as instalaçõesoficiais e paraestaíais de Raios X e substâncias radioativas

sofrerão revisão semestral” . O delegado de polícia precisaconvencer-se de que, no caso de Goiânia, a investigação dofato está na investigação de quaí(ss) pessoa(s) tinha(m) o deverde ter evitado que a bomba de césio fosse ter ao ferro-velho.Pensar diferentemente é admitir, de antemão, que a CNEN tematribuições para enterrar as bonecas contaminadas na agoniade Leide, porém não para ter protegido a própria Leide quandoviva.

Do ponto de vista jurídico, a ocorrência da morte dasvítimas teria solução simples caso o legislador houvesse previsto, no artigo 26 da lei 6.453, de !7.out.77, a forma qualificada por esse resultado, com ui . ; . „grafo que exacerbasse a pena na hipótese de resultar moite. í ta ta-se, como registrou ofalecido Procurador Jorge Medeiros da Silva, de “ omissãoimperdoável” (in Direito N uc lea r,  ano 1, n? 1. Rio, 1979, p.93). A natureza especial do perigo nucíear, da qual fala enfati

camente a escala penal do artigo 26, impede o uso do princípioda subsidiariedade, que normalmente vincula os crimes de perigo e de dano que tutelem de ofensas homotípicas o mesmo bem jurídico.  A míngua de uma qualificação pelo resultadomorte no artigo 26 ou de um tipo autônomo de “ morte porrad ioatividade’ ’, temos que recorrer ao crime comum contra avida. O homicídio, obviamente não intencional e sim culposo,de Leide e sua tia não se diferencia em nada daquele que teria

ocorrido se uma substância venenosa qualquer houvesse sidonegligentemente abandonada numa lixeira habitualmente vasculhada ou vasculhável (nessa última distinção, o grau deculpa). Efetivamente, parece que os responsáveis pela clínicaradiológica estão mais próximos da linha de imputação desseshomicídios (em concurso formal, pois uma só ação produziumais de um resultado criminoso — artigo 70 do Código Penal),embora, consoante seus deveres para com a guarda do produto

radioativo, não escapem desde logo ao artigo 26. Mas é im

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 perioso, quanto à acusação de violação de normas de segurança relativas à guarda do material nuclear, indiciar igualmente o(s) funcionário(s) do(s) órgão(s) estatal(is) que não

cumpriu (ram) seus deveres de fiscalização e controle. A existência de convênios com outros órgãos privados ou mesmo

 públicos só acrescentará um novo problema jurídico: pode oautor especialmente obrigado por lei exonerar-se do dever deatuar pela delegação contratual de sua obrigação? Mas essa éuma questão que apenas uma sentença judicial pode responder. Até lá, a indiciação seria impositiva. Faltam personagensimportantes como indiciados nesse inquérito.

Chega-se, assim, a um aspecto fundamental. Esse inquérito não pode ter a influência ou assessoria da CNEN, porquanto funcionários da CNEN devem ter suas condutas analisadas nele, com probabilidade de verem-se indiciados. Alguém acreditaria num inquérito no qual o indiciado fossetambém o perito? Rigorosamente, esse caso deveria ser investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Não questiono a possível independência da polícia federal com respeitoaos importantes estratos funcionais que podem vir a ocupar a

 posição de indiciados, mas refiro-me à confiança que a opinião pública precisa ter na apuração implacável do que se passou.

Certa ocasião, Foucault enfatizou o quanto há de exercício de poder no monopólio e condução do inquérito, do procedimento que irá desvendar e revelar a verdade a todos. Os

 brasileiros não querem, no episódio infeliz que levou a pequena Leide, vasculhar um lixo investigatório ou um lixo juríd ico.Queremos, todos, a verdade toda.

AIDS E DIREITOS HUMANOS

A marchagay

  sobre Washington sugere algumas reflexões. Pelo menos duas chaves permitem religar a questão da

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Aids aos direitos humanos: a chave da discriminação  e a dodireito à saúde.

Embora todos os homens nasçam livres e iguais em dignidade e direitos — como consta do art, I da Declaração Univer

sal — , parece que alguns inexoravelmente perdem dignidadequando doentes; e embora todos devam ser protegidos contraqualquer discriminação e qualquer incitamento à discriminação — como reza o art. VII da mesma Declaração — , pareceigualmente que certos doentes estão na prática excluídos de tal

 proteção.Creio que essa perda de dignidade e essa discriminação se

demonstram até pór uma divisão que a inclemente opinião

social dominante empreende nos pacientes aidéticos, considerando diversamente os casos em que a doença tenha sidocontraída por transfusão de sangue — o que mobiliza sentimentos de comiseração e alguma distanciada solidariedade —e os, casos em que a infectação se deu através de práticashomossexuais ou abuso de drogas injetáveis — o que despertavagos ou definidos (consoante o quadrante político) impulsosde “ guetificar” o episódio infeliz. Dentro da saga trágica da

moléstia, surgem dois grupos bem distintos, e um deles — odos homossexuais e drogados ■— é atingido por inequívocos

 preconceitos e não muito velada discriminação.Esse preconceito e discriminação, a meu juízo, não é

 predominantemente religioso, moral ou “ sanitário ” , e sim político-social. Na verdade, a Aids apenas oferece uma dramática oportunidade para a exacerbação da “ desqualifica-ção” (em alguns países, até jurídica) que o sistema vota aoshomossexuais. Talvez tenha sido Reich quem percebeu, commaior agudeza, o compromisso político-social da sexualidade. Os hom ossexuais divergem aberrantemente das práticassobre as quais, pela construção histórica do casamento mono-gâmico e da fam ília, o direito acomodou importantes interesses, entre os quais a transmissão da propriedade privada pelasucessão. Também os drogados, a seu modo estéril e autodes-

trutivo, recusam e são percebidos pelo sistema como pessoas

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que lhe recusam as propostas existenciais; a exemplo doshomossexuais, contestam o vigente em sua opção pelo a-legalou pelo ilegal. Um historiador do futuro será tentado a ver, nocriminoso atraso com o qual alguns governantes — Reagan àfrente, mas no Brasil não ficamos muito atrás — adotaram

medidas iniciais contra a Aids, uma definida tolerância paracom a extinção virótica desses grupos sociais; uma espécie decalculado genocídio por omissão.

O direito à saúde,  que de forma tímida se insinua noartigo XXV da Declaração, é previsto no artigo 12 do PactoInternacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais;entre as medidas que os Estados devem tomar, para assegurá-lo, estão a prevenção, o tratamento e o controle de doenças

epidêmicas ( “ the prevention, treatment and control o f epide- mic  [...] diseases”  — art. 12, 2, c). Não temos uma tradição jurídica de tutela ao direito à

saúde. Os bancos de sangue irregulares, que funcionaram semautorização (cometendo o delito equiparado a exercício ilegalda medicina, previsto no esquecido artigo 5? do DL 211, de27.fev.67) ou sem condições técnicas (transmitindo fartamente hepatite e outras doenças), contagiaram com o H1Vmais de 70% dos hemofílicos do Rio de Janeiro. Ninguém

 jamais responderá por esse inominável crime.Ao contrário, entre juristas o interesse se concentra no

episódio individual. Alguém propõe que Aids deve considerar-se moléstia venérea para os fins do artigo 130 do CódigoPenal. A teoria do dolo^pventual receberá volumosa contribuição com a análise do homicídio sexo-virótico. O portadorassintomático do vírus será um “ doente” , na acepção do art.269 do Código Penal, estatuindo a comunicação médica

obrigatória?O individualismo no direito tem essa propriedade: em

 bora cegue, enseja discussões elegantíss imas. Pela via dodireito à saúde pode chegar-se à discriminação com uma celeridade que o itinerário inverso não faz presumir.

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indecifráveis costumam ser, infelizmente, atrações às quaisnão resistem muitos juristas do lado de baixo do Equador. •

O tráfico internacional de drogas é certamente um dosnegócios criminosos mais organizados e poderosos, movimentando milhões de dólares, infiltrando-se no serviço público dos países envolvidos, favorecendo outras práticas delituosas, vinculadas ou não à proteção e reprodução da sua própriaestrutura. Os efeitos negativos do abuso de drogas não seapresentam apenas nos casos de morte por overdosc; sua nocividade se exerce preponderantemente sobre os vivos que delas

 passem a depender, substituindo o trabalho pelo êxtase, amilitância pelo transe, a solidariedade pela complacência. Eirônico perceber, mais de um século depois, que a religião estácom prom etida com a transformação de sistemas iníquos, e que

o ópio, sim, pode converter-se numa espécie de “ religião” do povo, em algumas sociedades pós-industriais.

 Na América Latina, são produzidas maconha e cocaína.Pequena quantidade da maconha e ínfima quantidade da cocaína são aqui consumidas, em razão dos elevados preços que

 podem ser obtidos no hem isfério norte . Não é por nossa culpaque não temos dinheiro para reter e consumir aqui toda amaconha e cocaína aqui produzida: isso se relaciona com

uma ordem econômica internacional extremamente injusta.Também exportamos alimentos e temos compatriotas quemorrem de fome. As chamadas leis do mercado são inexoráveis e funcionam para as drogas assim como funcionam para osalim entos. Por outro lado, o hem isfério norte brindou-nos comalgumas drogas incomparavelmente mais destrutivas. Há efetivamente drogas e drogas. Pense-se nos agrotóxicos organo-clorados, indiscutivelmente cancerígenos, ou relembre-se aTalidomida, em função da qual dezenas de milhares de bra

sileiros, hoje com aproximadamente 30 anos, vieram aomundo mutilados. Em que penitenciária cumpriram pena ostraficantes da Talidomida?

Podemos formular, como princípio básico para uma política criminal latino-americana, que drogas — lícitas ou ilícitas

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 — devem ser indistintamente tratadas tendo como centro dereferência a questão da saúde;  como primeiro corolário, segue-se que a caracterização de uma droga como lícita deviafundamentar-se na comprovação científica dos malefícios queela possa acarretar e na sua aptidão para conduzir o usuário auma dependência clinicamente significativa. Não estou pro

 pondo, como pode parecer, que o álcool e o tabaco se convertam em drogas ilícitas, por preencherem ambas as condições.Também em tema de drogas a quantidade se transforma emqualidade, e numa sociedade aberta e democrática o acesso aum moderado desfrute não deve ser coarctado por causa daintemperança de alguns. Trata-se bem mais de exorcizar as

extensas listas de “ substâncias entorpecentes” , constantesdos atos administrativos, daquilo que usual ou efetivamentenão seja nocivo, ou pelo menos discernir entre níveis distintosde nocividade, criando algumas classes (como fazem, aliás,textos legais norte-americanos).

Um segundo corolário daquele princípio está em que oabuso de drogas ilícitas deve ser tratado como o abuso dedrogas lícitas. A polícia só pode interessar-se por um ébrio

quando ele ‘ ‘cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia’ ’ {embriaguez,  artigo 62 da Lei de Contravenções Penais). Análoga deveria ser a situação dos consumidoresde qualquer droga ilícita. A criminalização do simples uso,sob a farisaica figura da “ posse para uso próprio” , é umafonte inesgotável de arbitrariedade e corrupção (geralmente,sob o seguinte modelo: 1. busca domiciliar motivada por“ denúncia anônima” ; 2. apreensão de pequena quantidade dedroga; 3. negociações entre os policiais e o “ criminoso” paraevitar a lavratura do flag ran te). E , afinal de contas, o que tem osistema penal a oferecer ao usuário de drogas?

Um terceiro corolário do mesmo princípio indicaria que ocomércio de drogas lícitas deve ser observado pelo sistema

 penal com o mesmo rigor que se atribui ao tráfico de drogasilícitas. Um medicamento cancerígeno, com promoção publi

citária, posto nas farmácias sob autorização dos órgãos sani

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tários, é algo mais insidioso do que a compra sobressaltada dadroga ilícita; é como se ao laboratório e à drogaria se concedesse uma licença para matar. Cabe perguntar, novamente, emque penitenciária cumprirão pena os banqueiros do sangue que

contaminaram com o vírus da Aids mais de 70% dos hemofílicos do Rio de Janeiro. A consensual severidade penal que otráfico de drogas insta não pode ignorar a distinção entre oschcfões e seu board, organizadores e beneficiários do crime, emilhares de humildes trabalhadores rurais despossuídos, quesó na lavoura da coca ou da cannabis  encontram meios desubsistência. Tanto quanto uma estrutura fundiária inumana, o-

 jogo internacional das cotas de produção agrícola pode retirarde regiões inteiras a perspectiva do desenvolvimento econômico e social. Atribuir a mesma resposta aos sem-terra e aoscapi  é puro humor negro jurídico.

Alunos bolivianos do Mestrado Latino-americano de Cri-minologia e Direito Penai me relataram que, nas áreas em queos fuzileiros navais norte-americanos despejaram suas poderosas drogas, que arrasaram as plantações de coca e adjacentes, começam a nascer agora crianças deformadas. E umatrágica metáfora sobre a imperiosa necessidade de elaborar

mos uma política criminal latino-americana para as drogas. Num de seus escritos sobre haxixe, Walter Benjamín evocavaAriadne e o prazer que pode existir em desenrolar um novelo.Os juristas latino-americanos têm que desenrolar este novelo.

A SENTENÇA COMO EXORCISMO

Está se convertendo num lugar comum, entre criminólo-gos latino-americanos, observar a “demonização” do problema das drogas. Uma fórmula bastante eficaz para superar odiscurso e as práticas institucionais da “ droga demoníaca” éreferir todo o problema ao eixo da saúde pública.  Extraem-sedaí alguns axiomas úteis, o primeiro dos quais é que a danosi-

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dade da droga não é uma função de sua ilicitude. O Brasil estáefetivamente logrando obter uma infeliz proeminência na rotada cocaína, mas a droga,.cujo abuso debilita, fere e mata —diretamente, pela dependência, ou indiretamente, nos espan

camentos domésticos, brigas de lar e acidentes de trânsito —milhares de brasileiros, é o álcool.

A expulsão do demônio pela saúde pública permite tam bém perceber que não existe a droga,  como abstração satânica, e sim drogas concretas mais ou menos maléficas oudestrutivas, e que contemplar numa lei lado a lado, por exem plo, os opiáceos e a maconha, apenas é possível sacrificando-se a realidade à proibição (só a desobediência à interdiçãoequipara as situações). Muitas legislações fazem essa distinção. Não menos importante é o princípio segundo o qual ocomércio de drogas lícitas danosas (p. ex., agrotóxicos orga-noclorados cancerígenos) deveria ser controlado e punido porcritérios semelhantes aos empregados para o tráfico de drogasilícitas, enquanto que o (ab)uso de drogas ilícitas deveriamerecer tratamento legal idêntico ao (ab)uso de drogas lícitas(p. ex., álcool).

A grave questão do tráfico bem revela os sortilégios deque lança mão o Maligno. Na América Latina, particularmente na Colômbia, Bolívia e Peru, quase 800 mil camponeses vivem do cultivo da coca e da cannabis.  Certamente cultivariam qualquer outro produto que lhes garantisse a sobrevivência, mas as instâncias decisórias da ordem econômica internacional — que estipulam onde plantar, o que plantar, paraquem vender e por qual valor — não estão na Am érica Latina.Os traficantes da região compram a pasta, convertem-na nocloridrato de cocaína e exportam este último para Europa eAmérica do Norte, ao preço anual estimado de US$ 25 bilhões.Imagine-se a importância desses ingressos na economia dosrespectivos países e a capacidade de corrupção neles representada. No hemisfério norte, a comercialização multiplica por 5vezes aqueles valores, alcançando a colocação final da droga o

 preço anual estimado de US$ 125 bilhões. Ou seja, o exíguo63

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grupo de pessoas que controlam as organizações criminosasque comercializam a droga ao norte do Equador lucra anualmente algo em tomo de uma dívida externa do Brasil emdinheiro livre de impostos. A arte de Satanás consiste em fazerrecair sobre os camponeses latino-americanos, regularmente,

 prisões extensas e fuzileiros navais americanos. Nos últimos dois anos começou a surgir, precisamente

nos Estados Unidos, a idéia de que a única coisa capaz dedestruir o Cartel de Medellín e organizações criminais semelhantes seria um sistema legal de controle da droga . O fracassoda estratégia repressivista ou, mais ainda, sua colaboração namanutenção de uma situação que só produz benefícios para osgrandes traficantes, sugeriu reflexões sobre as possibilidades

de um controle do problema pela legalidade (ao invés dofrustrado controle pela ilegalidade). Houve quem perguntasse

 por que armas de fogo podem ser vendidas em lojas e cigarrosde maconha não. Prós  (redução astronômica dos preços,falência dos “ cartéis” , impostos para programas de reab ilitação de viciados, qualidade da droga consumida) e contras (aumento astronômico do consumo, permanência de um comércio marginal) são confrontados e sopesados, e pode-seafirmar ser esta uma questão ainda não suficientemente amadurecida. Com todas as suas deficiências, as políticas repres-sivistas desfrutam de inquestionável preferência social, e avariável demoníaca contribui para ocultar o malogro de seureal desempenho.

Onde, contudo, a demonização do problema das drogasaparece em sua plenitude é na criminalização do seu uso. Aqui

 podemos perceber correlações espantosamente ajustadas entrecrenças da demonologia e preconceitos vigentes que fundamentam a punição do usuário.

Em seu conhecido estudo, Kolakowski selecionava trêsidéias básicas da demonologia dos séculos XVI e XVII: 1. o

 pacto entre a bruxa e Diabo (o usuário da droga também renegaeste mundo em favor de outro); 2. os sabás infernais (a visãocorrente de grupos orgíacos de viciados); 3. a relação sexual

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assumir feições inquisitoriais. Historicamente, foi a supressão processual da vítima, pela altura do século XII, que promoveuo câmbio definitivo do sistema acusatório para o sistema in-quisitório, que ganhou fama exatamente com as atividades do

Santo Ofício. Áo finai do processo, o usuário poderá serabsolvido, muitas vezes pela generosidade do juiz que às vezes proclama a inexistência de prova segura da posse da droga, àsvezes invoca explicitamente razões de política criminal, oucondenado a uma leve pena de detenção, cuja execução ésuspensa — ao sabor de uma abjuração de levi.

 Não há qualquer motivo para que o tratamento legal dousuário de droga ilícita seja diferente daquele deferido ao

usuário de droga lícita. Vejamos o álcool: quem bebe numespaço privado não comete qualquer delito; se na rua,embriagando-se, promover escândalo ou criar perigo para sua própria segurança ou a dos outros, está sujeito a pequena penade prisão ou multa. (Assinale-se, parênteses necessários, quefaz falta, e muito., uma incriminação autônoma para a em briaguez ao volante.)

Pessoas que realmente sejam viciadas em drogas —- líci

tas ou ilícitas — precisam de ajuda, e sua família, seus amigos, sua comunidade, seus colegas, seus companheiros detrabalho, grupos especialmente capacitados de pessoas quevivenciaram o mesmo problema, e até médicos, devem-lhesessa ajuda. O Estado pode fomentar os caminhos dessa assistência, mediante programas que facilitem recursos para suaexecução. O sistema penal é absolutamente incapaz de qualquer intervenção positiva sobre o viciado.

A descriminalização do uso de drogas abre perspectivas para uma abordagem adulta do problema e renuncia a tomar asentença criminal como exorcismo.

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 prejudicial à saúde. Nas drogarias existem muitas, e são muitofreqüentes os casos de pessoas dependentes de medicamentosque começam a usar para tranqüilizar-se, combater a insôniaou a tensão.

Mas temos também outras drogas ilícitas,  isto é, proibidas pela lei. São elas principalmente a maconha e a cocaína. Amaconha faz menos mal à saúde do que o tabaco e o álcool e,ao contrário deste último, não estabelece dependência física (a

 pessoa pára de usá-la sem as perturbações que o viciado emálcool experimenta se parar subitamente de beber).

O tráfico e a fabricação de drogas ilícitas são punidos comreclusão de 3 a 15 anos e multa (artigo 12 da lei n? 6.368, de12.out.76). A lei considera “ tráfico” a cessão gratuita (uma

 pessoa que cede a outra certa quantidade de droga, paraconsumo). A mesma pena recai sobre quem tiver a posse decoisas ou instrumentos destinados à fabricação ou produção dedrogas ilícitas.

O mero uso é também punido, o que é um despropósi to eum atraso. A pessoa na posse de um cigarro de maconha estásujeita à pena de detenção de 6 meses a 2 anos e multa (artigo16 da lei nf 6.368, de 12.out.76). Este dispositivo dá lugar amuitos abusos por parte de policiais desonestos, que se empenham em revistar pessoas e automóveis —- antes da C onstituição, também suas casas — para, descobrindo alguma droga,“ neg ociar” o não encaminhamento do caso.

 Não há qualquer motivo lógico para que o abuso dedrogas ilícitas seja tratado diferentemente do abuso de drogaslícitas. Não deveria haver qualquer diferença entre a situação

 jurídica de quem usa álcool ou maconha: se não incomodasseninguém pelo escândalo ou expondo a perigo a segurançaalheia ou a própria, nenhuma infração penal. O que o legislador na verdade revela com a diferença de tratamento é o

 preconceito  que preside seu critério e o temor da desobediência  a este critério. Que pode ser incorreto.

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Pense-se no dia em que acabou a lei seca  na América.Até sair o  Diário Oficial, beber era crime. Suponhamos

que o D.O. de lá saísse às 1l:00h. O gole das 10:59h foi ilegal,mas o das 11:01 h já era lícito. Não parece coisa de doido?

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JUDICIÁRIOE

DEMOCRACIA

O PODER JUDICIÁRIO: INDEPENDÊNCIAE DEMOCRATIZAÇÃO

 Na elaboração da futura Constituição, o debate sobre o-Poder Judiciário gravitará em torno de dois grandes temas: aindependência   e a democratização . Pela direita do paJco ingressarão falsos defensores da independência, estrategicamente descurados da democratização; são personagens quetêm o discurso da independência em suas falas, mas cujasações, pragmaticamente calculadas, indicam seu oculto objetivo, que é manter uma independência de fachada, sob discretomas eficaz controle, e bem distante de tudo o que seja políticae socialmente decisivo e substancial —- exatamente como aditadura militar procedeu. Pela esquerda do palco surgirãoardorosos partidários da democratização, desleixados daindependência; por ironia dramatúrgica, esses personagens outêm uma visão idealista do Poder Judiciário, ou circunscrevem

o debate a um esquema tão redutoramente simplista que nãoconseguem dar-lhe qualquer importância. Para tentar evitarum texto constitucional do absurdo, é dever de todos colo-car-se com franqueza e claridade.

Todos desejamos um Poder Judiciário independente  doExecutivo, e essa independência só pode ser alcançada comverdadeira autonomia, dotação orçamentária mínima e outrasmedidas que concretamente suprimam as relações de subordi

nação administrativa e financeira que ainda hoje subsistem. Amatriz histórica dessa situação, no Brasil, remonta ao caráter 

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sentença — lembrava recentemente Zaffaroni — é um ato político. Os tr ibunais desenvolvem políticas judic iá rias, namedida em que adotam povidências concretas a respeito dosserviços judiciários oferecidos à população. Há espécies dedecisões ineluíavelmente políticas, como a referente ao controle material daconstitucionalidade de uma lei, dotada, comodiz Bonavides, de “ elevado teor de politic idade” . Num Judiciário independente, a consideração política não sucumbiráaos preconceitos, gerados em boa medida por episódios de

 politicagem que a crônica dos bast idores forenses sói registrar;contra tais episódios, igualmente , não há melhor vacina que aindependência.

Devemos, pois, lutar para que a futura Carta inclua dispo

sitivos como o artigo 271 do anteprojeto Arinos que, aexemplo do art. 218, II, do anteprojeto OAB-RS, defere aoJudiciário elaborar e encaminhar ao Legislativo sua propostaorçamentária, bem como movimentar os respectivos recursos,que lhe seriam entregues mensalmente, aos duodécimos, peloExecutivo. Devemos também lutar pela inclusão de dispositivos como os artigos 159 e 160 do anteprojeto Comparato,

 parcialmente correspondido pelos artigos 218, III e IV do

anteprojeto OAB-RS e 273, II do anteprojeto Arinos: as nomeações e promoções dos juizes de primeira instância devemser realizadas pelo Presidente do Tribunal, a quem tocariatambém, com   prévia aprovação do colegiado, propor ao Legislativo a criação e extinção de cargos, bem como os vencimentos correspondentes.

Fora de semelhantes parâm etros, falar em independênciado Poder Judiciário é romantismo puro ou rematada hipocrisia. Sem independência real, o cidadão que bate às portas dotribunal para defender-se do governo tem a mais desagradáveldas surpresas quando as portas lhe são abertas.

A questão da independência do Poder Judiciário tem mãodupla.

Se inegavelmente todos desejamos um Judiciário inde pendente, ninguém está disposto a substi tuir a ditadura dos

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humanista recomposto pela humildade da técnica jurídica,Além de determinados marcos mínimos de complexidade, adecisão sobre litígios depende também, essencialmente de co

nhecimento jurídico. Acrescentem-se as viciss iludes do ensino jurídico no Brasil, e teremos que é descabefadamcnteutópico abrir mão do concurso público de provas e títulos.

Mas o concurso público, processo seletivo mora! e tecnicamente adequado e — mesmo num país em que a educação éainda privilégio — democrático, funciona insuperavelmente

 para o viés administrativo (cingido ao preenchimento de cargo público). O viés político fica sem retorno: fundamentar a

investidura e o exercício de poder no concurso público é um postulado aristocrático e elitista. Dado que é impossível renunciar ao concurso público, deve o constituinte pensar numsistema de balanceamento: um conjunto de medidas que —mantido o concurso público como processo básico de recrutamento -— permitisse religar o Poder Judiciário à fonte constitucional de todo poder. Tal sistema de balanceamento operariaem áreas de conexão do Judiciário com o Exdcutivo e o Legislativo, na medida em que, nesses outros poderes, a realização

 periódica de eleições afiança o controle da vontade popular.Por esse ângulo, e desde que constitucionalmente assumidas

 providências para garantir a real independência do Judiciário,essas áreas de conexão — com o, por exemplo, na indicação demagistrados para tribunais superiores — em nada lhe afetam aautonomia, mas certamente lhe revigoram a legitimidade.Pensemos em algumas das medidas que podem contribuir parao dito balanceamento.

Em primeiro lugar, a incorporação da garantia de vitali-ciedade aos juizes concursados (após dois anos pelo anteprojetos Arinos — art. 268, § 1? — e após três anos pelo anteprojetoComparato — art. 156, § 1?) deveria merecer a aprovação daAssembléia Legislativa, nos Estados, e da Câmara dos Deputados, quanto aos juizes federais de primeira instância. Isso

 pressupõe, é claro, a edição de regras claras acerca dos pressu

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 postos sob os quais a confi rmação do juiz concursado poderiaser recusada.

Em segundo lugar, nos casos em que a nomeação derivade indicação do Presidente da República (no raciocínio consti

tucional, eleito pelo povo), a correspondente aprovação peloSenado deveria ser mais do que mero referendo. Mais do que o“ notável saber jurídico” ou a “ reputação ilibada” , deve oSenado efetivamente investigar o espírito público e a sensibilidade social do indicado, recusando a indicação sempre que lhe

 pareça inconveniente. Na composição do Tribunal Constitucional — omitido

 pelo anteprojeto Arinos, e previsto nos artigos 163 e seguintes

do anteprojeto Comparato — recomendam-se medidas especiais. A esse tribunal se reservam as decisões em que mais seafirma a ascendência do Poder Judiciário; para simplificar,digamos que esse tribunal pode anular um decreto do Presidente da República ou uma lei do Congresso Nacional, afirmando-lhes a inconstitucionalidade. Para o Tribunal Constitucional, órgão tão importante no processo de redemocratizaçãode Portugal e Espanha, recomenda-se a indicação paritária de

seus integrantes (se forem 12, quatro pelo Judiciário, quatro pelo Legislativo e quatro pelo Executivo), bem como a investidura temporária (o anteprojeto Comparato fixa o mandato emnove anos, proibida a recondução).

O chamado ‘‘quinto constitucional” , ou seja, o preenchimento de um quinto das vagas dos  tribunais por advogados emembros do Ministério Público, pode desempenhar, aprimorado, relevantes funções no sistema de balanceamento cujosmódulos estamos tentando inventariar. Como os tribunais su

 periores controlam processualm ente , pelo julgamento de recursos, as decisões dos juizes de primeiro grau, exercendoainda funções de administração e disciplina, a nomeação demagistrados pelo quinto — através de mecanismo que contecom a colaboração do Executivo e do Legislativo — tempera a

 predominância do concurso público. Não deveria, contudo, oGovernador do Estado — eleito pelo povo — estar adstrito a

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uma lista elaborada pelo Tribunal; por outro lado, seria conveniente fosse o indicado aprovado pela Assembléia Legislativa

 — eleita pelo povo. A elaboração de lista trípl ice pela corporação à qual pertençam os candidatos — ao sabor de disposit ivos

do anteprojeto Comparato e do anteprojeto OAB-RS — , ou a participação das corporações com uma lista sêxtupla prévia,que o tribunal reduziria a tríplice — como prevê o art. 267, § 2?do anteprojeto Arinos — em nada auxilia quanto às reaisfinalidades do procedimento da indicação. Quanto mais liberdade desfrutem, aqui, o Executivo e o Legislativo, tanto- melhor

 para a saúde democrática da indicação.Cabe pensar igualmente numa ampliação da competência

do tribunal do júr i, no qual a judicatura é diretamente exercida pelo povo. Sem dúvida, essa ampliação deve ponderar sobreas limitações do julgamento de consciência, circunscrevendo -se a hipótese nas quais ele se revele tecnicamente viável e politicamente conveniente. Atualmente restrito aos crimes dolososcontra a vida, e assim mantido no anteprojeto OAB-RS (artigo2?, inciso 24),  tem o júri sua competência ampliada no ante

 projeto Arinos, para alcançar também os crimes de im prensa

(art. 52). Os crimes cometidos por funcionários públicos sãoum bom exemplo do horizonte para onde ampliar-lhe a competência. O modo de recrutamento dos jurados deveria merecerespecial atenção, para que o tribunal do júri tenha efetivarepresentatividade social.

Talvez seja cabível ainda pensar-se em eleições e mandato para um nível de órgão juridiscional que deve ser criadoabaixo  da atual primeira instância. Seja o juizado de pequenas

causas, seja nossa grande “ instituição desperdiçada” , nas palavras de Miranda Rosa — o ju iz de paz — , seja o ju izmunicipal, seja alguma espécie de órgão colegiado de matizcomunitário, é fundamental lançar uma ponte por sobre ofosso que separa a sociedade civil do mais baixo patamar daestrutura judiciária no Brasil.

A democratização do Poder Judiciário não resultará apenas da adoção de medidas que o religuem à fonte constitucio-

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naíde todo poder. É indispensável que se garanta o acesso à  justiça,   não pela hipócrita perspectiva liberal (a faculdadeque, teoricamente, todo brasileiro tem de dirigir-se aos

tribunais), mas sim por um prisma social, interessado na concreta criação de condições para que as reivindicações de indivíduos e grupos sociais sejam apresentadas e decididas gratuita e rapidamente.

A idéia de que pequenos conflitos devem ser tratados porórgãos especializados remonta a Aristóteles. Em seu tratadoda Política, ao mencionar as oito classes de tribunais que lhe

 pareciam necessárias, escrevia: “ Além destes tr ibunais, há ju izes para os pequenos assuntos, como seja desde o valor deuma dracma até cinco ou um pouco mais, porque se há que fazer

 ju stiça nestes pedidos, não vale, porém, a pena levá-los perante os grandes tribunais” . O que Aristóteles não podia perceber é que a quantidade avassaladora dos “ pequenosassuntos” os convertesse, pelo salto quali tativo, emassunto(s) da maior grandeza, e que chegaria um tempo no

qual a pena de levá-los perante os grandes tribunais não valeria principalmente para o cidadão.

Falhará qualquer reforma do Poder Judiciário — quem seesqueceu da última? — que não se exerça pela sua base, procurando expandi-lo na direção das maiorias que a ele objetivamente não têm qualquer acesso. A participação da sociedade civil poderá ter aqui singular relevância. Essa participação que, no campo penal, nasce historicamente sob o signoiluminista da reação ao modelo inquisitório e à justiça degabinete, pode adquirir novas funções na confluência estado-sociedade civil. Por exemplo, o art. 275 do anteprojeto Arinos

 prevê oportunamente a criação de tribunais administrativos para questões fiscais, previdenciárias e relativas a regime ju rídico de funcionários, porém não estipula a participação popular. O que perde e o que ganha um tribunal administrativo

que irá pronunciar-se sobre o cabimento de uma aposentadoria, se for também integrado por representantes da sociedade civil?

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Antes mesmo de uma avaliação da experiência do juizadode pequenas causas — que parece ser favorável — , convémreconsiderar as virtualidades do juiz de paz, liberto da restrição do artigo 144, § 1'.’, alínea c  da atual Constituição, que otransformou no possível único caso de “juiz nupcial” domundo. Pequenos litígios intrafariiiliares, questões singelas devizinhança, limitadas obrigações entre membros da mesmacomunidade, toda essa miudeza que, não dispondo de visibilidade para ver-se articulada perante os órgãos existentes, dis

 põe de extraordinário poder de corrosão sobre o sentimento decidadania e de confiança na ordem jurídica em transformação,encontraria no juiz de paz um acessível elemento de mediação

e conciliação. Ao litigante irresignado poder-se-ia oferecerum recurso para o juiz de direito, que funcionaria, dessaforma, como segunda instância para as pequenas causas.

 No âmbito criminal, tocaria igualmente a esse órgão situado abaixo da atual primeira instância o tratamento de certasinfrações leves: vias-de-fato e algumas outras contravenções,maus-tratos, rixa simples, dano simples, etc. O pressuposto detal atuação, contudo, estaria na recepção peío direito brasileiro de dois institutos: a diversion e a mediação. Pela diversion, o juiz ou tribunal encerra o processo sem julgamento de mérito, submetendo-se o acusado a participar de um programa não penal. A diversion  supõe, é claro, a adoção do princípio daoportunidade da ação penal para as infrações leves. Já a mediação , de cariz arb itra i, envolve a intervenção de um terce iro ,com mútuo consenso das partes (neste contexto, a expressão

 parte   abrange não só o acusado e o acusador como também avítima, na hipótese de acusação pública), sendo indicada espe

cialmente para casos em que os envolvidos mantêm relações permanentes (fam iliares, vizinhos, colegas de trabalho, con-sócios, etc). Ao Ministério Público, em ambas as situações,corresponderia importantíssimo papel, inclusive no recrutamento e supervisão de mediadores, entre assistentes sociais, psicólogos, advogados, ministros re ligiosos, sempre voluntários e não remunerados.

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O constituinte de 1937 tem a obrigação de não se conformar com o que encontrou, também no que concerne ao PoderJudiciário, Esse órgão que desejamos instituir poderá terforma coiegiada, e aí convém apreciar outras experiências. Na

China, Comissões Populares de Mediação, regulamentadasem 1954, funcionam como órgãos não judiciais e facultativos.Organizadas por bairros nas grandes cidades e por cidades, nointerior, são sediadas junto ao governo local (administraçãoregional, prefeitura) e integradas por três a 11 membros,eleitos pelos habitantes do local. Não dispõem de poder paraaplicar sanções, esforçando-se no sentido da conciliação das

 partes. Na índia temos as Nyaya Panchayats,  comissões judi

ciais comunitárias que objetivam garantir o acesso à justiça nointerior. Estabelecem-se por grupo de sete a 10 cidades, co br indo uma população total de 15.000 habitantes. Seus mem bros, que devem saber ler e escrever, são recrutados poreleição, nomeação e cooptação. As Nyaya Panchayats  têm suaalçada cível limitada a pequeno valor, porém o consenso das

 par tes pode dilargar-lhe a competência . No criminal, possuemextensa jurisdição (crimes culposos, economia popular, furto

e apropriações indébitas de pequeno valor, ameaça, etc), restringida à aplicação de penas pecuniárias; a pena de prisão não

 pode ser por elas aplicada. Suas decisões, sempre precedidasde esforço conciliatório, são controladas por recursos voluntários a juízos ordinários. Na Polônia encontramos, sob otítulo de Comissões de Conciliação Social, órgãos comunitários aos quais facultativamente podem recorrer cidadãos

 para a composição de conflitos, criados por lei de 1965 (aolado dos chamados tribunais de trabalhadores, que se ocupamde disputas e infrações acontecidas no ambiente de trabalho).A escolha dos membros é feita por indicação, admitido oreca.ll',  não percebem qualquer remuneração. Procura-segarantir para as Comissões de Conciliação Social a maiorindependência e autonomia poss íveis, inclusive tornando definitivos (no sentido da desvinculação recursal) os acordos e providências por elas adotadas; não obstante, os tribunais au

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xiliam as Comissões na interpretação de leis a serem por elasaplicadas. Na América, o programa dos centros de justiçacomunitária (Neighborhood Justice Center Program) mereceatenta leitura; algumas de suas linhas (como a chamada

“ discussão comunitária” de situações pré-conflitivas, quetem o importante efeito secundário de educação legal popular)merecem meticulosa consideração.

A Assembléia Nacional Constituinte tem o dever de apresentar à nação uma proposta de Poder Judiciário independentee democratizado — e ocorre mencionar os níveis internos dedemocratização, dos quais aqui não se falou. Ninguém queresperar outra Constituinte; que esta nos dê democratização já.

QUEM TEM MEDO DA LETFLEURY?

Os meios jurídicos brasileiros assistiram, perplexos, àassinatura pelo Presidente José Sarney de mensagem que altera o Código Penal e o Código de Processo Penal, concebida,

segundo consta, pelo Consultor Geral da República, a pretextode aprimorar o controle penal da violência rural e urbana. Nãocabe, por certo, nos limites e fins deste artigo, pontualizar osequívocos do projeto, o desconhecimento que ele revelaacerca da realidade policial, judicial e penitenciária, e dosistema normativo que candidamente, se aprovado, fará ex

 plodir. Renuncia-se, igualm ente, à forte tentação de g losar osdeslizes técnicos, que no projeto abundam, como por exemplo

a proposta de que o valor da fiança seja fixado pela autoridade(policial ou judiciária) em “ dias-multas” , com impossívelantecipação de complexo momento de individualização penalque integra a sentença. Nosso objetivo, bem mais modesto,circunscreve-se a descrever o que foi a chamada Lei Fleury —espécie de bête noire do fascismo penal brasileiro — , e o quesignificaria retroceder ao regime legal anterior a ela. A opinião pública costum a relacionar a Lei Fleury à raiz do insatis

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fatório desempenho da justiça penal entre nós. Nada maisfalso, como veremos.

 Nosso Código de Processo Penal foi editado por um

deereto-lei, em outubro de 1941, sob franca ditadura. A ideologia penal que o regia transparece de várias passagens daExposição de Motivos: “ Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bemcom um ” ; “ o indivíduo (... ) não pode invocar, em face doEstado, outras franquias além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelointeresse social” . O Ministro Francisco Campos citava nomi

nal e adequadamente o Ministro Rocco, de Mussolini: “ Já sefoi o tempo em que a alvoroçada coligação de alguns poucosinteressados podia frustrar as mais acertadas e urgentes reformas legislativas” . Tal concepção antidemocrática e elitista dereforma legislativa, que exclui a única fonte legítima de qualquer ato legiferante, que é a vontade popular, em favor dasiluminações dos juristas que eerzem o fardamento legal dostiranos, presidiu à elaboração de nosso Código de Processo

Penal no Estado Novo. No ofício de desclassificar, pela prisão, pelo processo e pela sentença, o cidadão que “ vem de semostrar rebelde à disciplina jurídico-social ’ ’, em bases teóricas semelhantes às que conduziam os dissidentes políticos às

 barras do famigerado Tribunal de Segurança Nacional, o acusado foi concebido como algjiém que decaiu de alguns direitos, como inerme objeto da reparadora intervenção judiciária.De tal concepção provinham algumas regras verdadeiramenteaberrantes, e selecionarei três delas para exame.

Primeira: todo réu pronunciado por crime inafiançável deve aguardar preso o julgamento pelo júri (art. 408, § 1 CPP1942). A sentença de pronúncia é o momento processual, no

 procedimento do jú ri , em que o Juiz declara que houve um (oumais) crime(s), e que há suficientes indícios de que o acusadotenha sido o responsável ou um dos responsáveis, e deve porisso ser submetido a julgamento pelo tribunal popular. Essadeclaração tem um valor provisório, porquanto pode o júri,

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 por ocasião do julgamento, não apenas negar seja o acusadoresponsável, como também negar a própria existência do crime, por razões cie prova (afirmando que o fato não ocorreu) ou

 por razões jurídicas (a fi rmando, por exemplo, a concorrênciade legítima defesa). Levando-se em conta que entre a pronúncia e o julgamento pelo júri costumam demorar no mínimomuitos meses e com «mente dois ou três anos, parece claro quea regra dc aguardar o réu pronunciado o julgamento sempre 

 preso  é irracional. É claro que há réus pronunciados quedevem mesmo aguardar presos o julgamento pelo júri, porque

assim o reclamam os interesses da segurança pública: réusreincidentes, réus primários de maus antecedentes, réus quadrilheiros, réus que, não radicados no distrito da culpa, evidenciem intenção de fugir, réus que ameacem testemunhas ou

 perturbem a produção da prova, etc. Mas que todos,  inexoravelmente, devam aguardar presos, é irracional. O QUE FEZ ALEI FLEURY? Estabeleceu que “ se o réu for primário e de bons antecedentes,  poderá   o juiz deixar de decretar-lhe a

 prisão” . É evidente que, apresentando-se as hipóteses acimaaventadas, como exemplo, e que configuram casos típicos de prisão preventiva, o juiz tem o dever de prender o réu pronunciado, e a lei Fleury não o impede.

Segunda: em crimes de certa gravidade (pena cominada igual ou superior a 8 anos), o réu absolvido em prim eiro grau  de jurisdição deve permanecer preso até o julgamento da apelação pelo tribunal superior   (art. 596 CPP 1942). Aquele

réu que, pronunciado, aguardou preso, às vezes 2 ou 3 anos, o ju lgamento pelo júri, e foi absolvido  pelo tribunal popular,deve continuar preso até o julgamento da apelação do Ministério Público! Essa regra era tão absurda, que já em 1948 umatímida reação foi esboçada: ela não prevaleceria diante dedecisões unânimes (7x0) do júri (lei n? 263 de 23.fev.48, art.9?). Mas se a decisão do júri fosse majoritária (por exemplo,6x1),  bastava que o Promotor de Justiça apelasse para que oréu absolvido  permanecesse no cárcere, aguardando já agoraos longos meses do procedim ento recursal. O QUE FEZ A LEI

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Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. ALei Fleury tem , por certo, um grave defeito, e este defeito estáno seu nome. Este defeito está na vergonha de ter sido neces

sário que um torturador, acusado de homicídio , tivesse necessidade de ver-se presumido inocente até decisão judiciáriafinal, para que todos os brasileiros pudessem desfrutar deidêntico tratamento.

A questão da violência — rural ou urbana -— pede realmente respostas prontas e enérgicas, mas o projeto da Consultoria Geral da República passa ao largo delas. Não é retroce

dendo ao Estado Novo e expurgando o princípio da presunçãode inocência de nosso sistema legal que avançaremos contra aviolência. A instituição policial carece de imediata reformulação e reapareihamento. É preciso criar, dos escombros que a

 política policial da ditadura nos legou, alguma coisa competente, operativa, reconhecida e legitimada comunitariamente:um serviço policial com acesso a técnicas de investigação

modernas, com um imponente cadastro de informações, conectado às instâncias que planejam e promovem o desenvolvimento urbano, inserindo permanente e antecipadamente —não eventual e curativamente — a questão da segurança pú blica.

Porém, sobretudo, precisamos outorgar ao MinistérioPúblico e à Justiça penal os recursos materiais e humanos para

que eles possam cumprir suas funções. Não conheço um só juiz que se negasse a decretar a prisão preventiva de umindiciado cuja liberdade pudesse comprometer a apuração docrime ou a incolumidade pública. Bastaria pudéssemos ter oJuiz criminal disponível 24 horas por dia: um plantão , fora dohorário de expediente, dividido em turnos, que, nos grandescentros urbanos, permitisse à autoridade policial obter presta-mente a custódia legal de indiciados. Algo semelhante, em

 bora circunscrito ao horário do expediente, já existe, parafins-de-semana e feriados forenses, nas organizações judiciárias locais. Entretanto , se a violência urbana opera full-tim e, o

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Ministério Público e a Justiça penal não podem bater o pontoàs 17:00h.

A vida, a liberdade e a segurança pessoal são direitos

humanos fundamentais — art. III da Declaração — , que oEstado deve defender infranqueavelmente. A criminalidadeviolenta é uma das manifestações que agridem esses direitos;nem é a maior, nem a mais difícil de ser isolada e controlada.Criminólogos já chamaram a atenção para a função ideológicae objetivos políticos de “ campanhas de lei e ordem” . Pode seroportuno para alguém que, no Brasil, se procure levar a opi

nião pública a acreditar que a violência, rural e urbana, serádominada expurgando-se o princípio da presunção de inocência —• recebido em nosso sistema legal pela chamada LeiFleury. Isso pode desviar as atenções da essência desses pro blemas. Mais ou menos como o médico que, diante de febrealtíssima, internasse o paciente num frigorífico: a temperatura

 baixará, mas a infecção que produziu a febre em nada seráatingida. Os autores da idéia de revogar a Lei Fleury terão

consciência de que retroceder a 1942, se pode gerar algunsdividendos junto a uma parcela da opinião pública, nada resolve substancialmente? Fiquemos numa ironicamente realadvertência lógica: todos são presumidos culpados, até quesuas inocências sejam provadas.

VOLTANDO AOS BONS TEMPOS

A imprensa noticiou, com o correspondente alarde, umacondenação pelo crime de adultério, ocorrida no Rio de Janeiro. A história era simples: a esposa de um destacado profissional liberal de classe média alta se apaixonara pelo motorista,com quem foi — como diria Machado, se vivesse nesses

tempos de Fórmula Um — estudar a tangência das curvas naBaixada Fluminense. A sentença condenatória, ao que parece,optou pela multa substitutiva (art. 60, § 2?  CP). Ainda bem.

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Poderia ter aplicado prestação de serviços à comunidade (arts,43, inc. I, e 46 CP), e a Vara de Execuções estaria na contingência de impor aos dois condenados a tarefa, por exemplo, de

orientar o trânsito na frente de um motel.Já que voltou à moda um crime tão antigo, tão desafinadocom a modernidade, por que não voltar de vez aos bonstempos, e pensar na reinírodução de suas antigas penas? Podeser um divertido porém útil exercício imaginar como seria o dispositivo da sentença, se aplicasse as penas que historicamente foram cominadas ao adultério.

Segundo as mais velhas leis que se conhecem, que re

geram no reino de Eshunna, no século XIX a.C., a mulher seriamorta, desde que provados os requisitos do casamento: “ umcontrato e um banquete de núpcias para os sogros” . O reiBilalama era muito objetivo nisso: sem contrato e banquete,não se tinha propriamente uma esposa, e portanto não era

 juridicamente pensável o adultério (§§ 27 e 28 das Leis deEshunna).

Ainda na Babilônia, temos, por volta de 1700 a.C., oCódigo de Hammurabi. Se nossa sentença quisesse aplicar a

 pena prevista em seu § 129, a esposa e o motorista teriam deser conduzidos, bem algemados, até o vão central da ponteRio-Niterói. Hamm urabi era implacável: “ se a esposa de umawilum foi surpreendida dormindo com um outro homem: elesos amarrarão e os jogarão n ’água” .

Leis assírias que datam do final do século XII a.C., procurando sér justas, prescreviam (tábua A, § 14) que “ se umhomem dormir com uma mulher casada, seja numa hospe

daria, seja na rua, sabendo que é casada, será tratado damesma forma que o marido tratar a mulher” . Recorrer hoje aessa regra implicaria a criação do cargo de debatedor público, um funcionário que, na Vara de Execuções Penais, se encarregasse de infindáveis e tensas discussões com o cúmplice daadúltera, para que ele padecesse, na mesma e cronometrada

 proporção, o suplício dos debates conjugais. Norm alm ente, osassírios não conversavam: matavam os dois. Mas o § 1.5

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revelava uma estranha percepção de analogia anatômica entreeles, porquanto “ se o marido cortar o nariz de sua mulher, ele(o juiz) tornará o homem eunuco e mutilará o seu ros to” .

Passemos ao chamado Código de Manu, as regras bramâ-

nicas promulgadas por volta de 700 a.C. O legislador de umasociedade tão rigidamente dividida conhecia bem, e por issotemia, os riscos do adultério: ‘ ‘porque é do adultério que nasceno mundo a mistura das castas” . Das diversas penas comina-das ao delito (entre as quais a. morte por fogo de ervas decaniço), cremos que nos socorreríamos, hoje, apenas daquelaconsistente em raspar a's cabeças dos réus e regá-las com urinade burro. Ou se criava a carreira de barbeiro juram entad o, ouse credenciavam alguns salões particulares — como os cartórios privados. De resto, quem conheça profundamente nossoforo, e não tenha sacrificado o senso crítico no altar de Tcmis,sabe que a produção do líquido penal — urina de burro — é aliabundan te, e por sua falta jamais se paralisariam os serviços.

Sob o direito rom ano , a sorte de nossa dupla de condenados dependeria muito do período. Após a lex Julia de adul- teriis coercendis, promulgada por Augusto, além de uma pena

 patrim onial, teríamos que inflig ir a relegação a ambos“ dummodo in diversas insulas relegentur” (Pau l., S en t., 2,26, § 14). Ou seja: o motorista para a Ilha Grande, a mulher

 para as Cagarras. A consideração da classe social poderiaalterar isso: motorista dono de carro sofre a pena patrimonial(perde metade do carro), porém motorista pobre, sem carro

 para div id ir, sofre uma pena corporal — “ si humiles, cor-

 poris coerc itionem” — (Inst., IV , 18, § 4). Mais tarde, a penade morte seria cominada; Constantino fê-la executar largamente, situação que perdurou até o ocaso do direito romano.Justiniano recomendava a internação da adúltera num convento, idéia que, modernizada, poderia levar à criação doconvento-albergue.

Já no direito germânico, o destino dos dois condenadosdependeria não apenas do período, mas também da variável

geográfica de seu crime. Se o cometessem, por exemplo, em

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Zwickau, em meados do século XIV, poderiam ser amarrados juntos e empalados simultaneamente . A melhor alternativa eraa morte pela espada. Se o marido os surpreendesse em flagrante delito, poderia matá-los. No direito sueco medieval

 previa-se, para essa hipótese, o instituto singular da “ queixacontra o morto” (K/age gegen den toten Mann).  Aplicadas asdisposições das  Áldre Vüstgõtalaghen, nossa história ficariaassim: o motorista seria morto e o marido, tomando as almofadas e os lençóis com sangue, levaria tudo ao tribuna], comnada menos que duas dúzias de testemunhas (substituíveis

 pelo depoimento do prefeito Saturnino Braga e do administrador reg ion al) , e ali acusaria o morto pelo adulté rio . A sentençateria, neste caso, o efeito de impedir qualquer indenização ouvingança por parte da família do motorista.

Apliquemos, por fim, as penas das Ordenações Filipinas,que datam do início do século XVII e cujas normas criminais,contidas no famoso Livro V, regeram no Brasil até 1830. Omarido poderia ele mesmo ter morto mulher e motorista, se ossurpreendesse: “ Achando o homem casado sua mulher emadultério, licitamente poderá matar assim a ela como ao adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero Fidalgo ou nosso

Desembargador ou pessoa de maior qualidade” — o que nãoseria o caso (tít. XXXVIII). Havendo processo e julgam ento , a

 pena seria igualmente a morte natural  para ambos: “ e se ela para fazer adultério por sua vontade se for com alguém de casade seu marido (...) se o marido dela querelar, ou a acusar,morra morte natural. E aqueje.com quem ela se for morra porisso” (tít. XXV, 1). D. Felipe II sabia que às vezes , “ em favordo M atrimô nio” , pode o marido perdoar à adúltera, porém

não aocom borço . Nesse caso, porque “ pareceria escândalo ao povo, sendo a adúltera reconciliada com seu marido, ser oadúltero justiçado” , o monarca determinava que ele “ nãomorra morte natural, mas seja degredado para sempre para oBrasil” (tít. XXV, 4). Como pareceria revanchismo históricodeportar o motorista para Portugal, a solução seria criar umacidade penal na Amazônia — não existem umas idéias nesse

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sentido? — , que poderia chamar-se “ Valeu-a-pena do Rio Negro” , “ Caí-da-cerca no Igarapé” ou quejando. E jã queestamos reabilitando essas normas sábias que regulamentaramo adultério, não devemos ser menos rigorosos com os maridos

complacentes, que sem dúvida colaboram,, e muito, para odelito. D. Felipe II não tergiversou à questão: “ sendo provadoque algum homem consentiu a sua mulher que lhe fizesseadultério serão ele e ela açoutados com senhas capelas decornos” (tít. XXV, 9). Por certo haveria interesse da Rio tu rem concentrar a execução coletiva dessa pena em períodosdeterminados; nasceria a “ cidade-presépio” ?

Entre as tantas disposições legais que envergonham a

cultura jurídica brasileira está a incriminação do adultério. Éhoje inconteste dogma aquele proclamado pela Resolução n?! ,2 da Seção Segunda do IX C o n g r e s s o internacional de Direito Penal, realizado em Haia, em 1964: “ L/aduJíère ne doit pasêtre pénalement incrim iné” . Fomos capazes de produzir umcipoal de leis que se complementam, se superpõem e se retificam. Acabamos de redigir unia Constituição. Não haverá poraí um deputado que apresente o seguinte projeto de lei: “ Art.1? Revoga-se o artigo 240 do Código Penal. Art. 2? Esta leientra em vigor na data de sua publicação” ? Não é simples?

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DUAS PERDAS PARA OS ■ - . . ■ DIREITOS HUMANOS

RECORDAÇÃO DE HÉLIO PELLEGRINO

Existe algo de sonho e de luta nos direitos humanos.Talvez por sua origem revolucionária: foi das entranhas deuma revolução que nasceu para o direito, no vagido de sonorí-dades inéditas (“ toda pessoa” , “ ninguém” ), o princípio deque existem atributos jurídicos dos quais nenhum homem podeser privado. Talvez por sua geometria igualitária, entranhada-rnente moral: a idéia de justiça sempre procurara, nos labirin

tos do direito natural, um eixo para regular a igualdade, e esseeixo se concentrava, no processo histórico da ascensão da burguesia, na própria pessoa humana. Tudo tão óbvio esingelo: o eixo da igualdade não nos méritos, nos desejos ounas necessidades do homem, e sim no próprio homem pelo fatode ser pessoa. Existe, por essas ou outras razões, conhecidasou não pela razão, algo de sonho e de luta nos direitos huma

nos, que atrai e encanta grandes sonhadores, grandes lutadores.Penso em Hélio Pellegrino, este imenso sonhador e

lutador que conheci em plena luta e arrebatado sonho. Emoutubro de 1985, na Faculdade Cândido Mendes, realizava-seo I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Hélio advertia:“ a tortura política no Brasil não foi um fato aleatório, nãorepresentou'um excesso ou uma exceção episódicos. A tortura

 política é um sintoma terrível e eloqüente de'crueldade da lutade classes em nosso país. Somos um país rachado ao meio” .

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Para ele, a organização social “ brasileira implica a torturacomo um dado estrutural” , e as práticas da ditadura militareram como uma continuidade das práticas da escravidão. Nossas perversas desigualdades, especialmente em face das vir-tua l idades geográf ico-c l imát icas ( ‘ ‘ temos uma ter ra

abençoada; poderíamos ser o celeiro do mundo” ), exprimiamaspectos dessa tortura estrutural: “ fome é tortura, doença étortura, ignorância é tortura, relento é tortura, criança abandonada é tortura” . Pobre país, cindido ao meio, no qual “ a coisadefinitivamente democrática é a fome” .

O ciclo da tortura política aprisionava e reproduzia, emmodelo individualizado, a esquizofrenia nacional. Porque —ensinava Hélio — ‘ ‘a tortura racha o ser humano ao meio. Eladivide a unidade indissolúvel de corpo e mente, e jog a o corpodo torturado contra sua mente. A tortura consegue essa coisamonstruosa que é a alienação total do próprio corpo” . Airresgatável desgraça do torturador (aquele que “ para afirmarsua própria força e potência precisa esmagar o seu próximo” )era assinalada por Hélio: “ dentro da dialética hegeliana dosenhor e do escravo, o torturador, no fundo, está nas mãos dotor turado’ ’. Pode o torturado não falar. Pode o torturado morrer, e aquele silêncio ou essa morte são “ também a morte do

torturador, porque ele não tem luz própria, o torturador nãotem eixo próprio: ele é uma sombra do torturado ’ ’. Na platéia,mil brasileiros mudos se emocionavam com sua própria história.

^ Reencontrei-me com Hélio Pellegrino em 1987, no movimento que, sob a designação de Assembléia em Defesa daVida, insurgia-se contra a truculência e o extermínio comométodos expressa ou tacifamente admitidos no controle(i)legal da violência urbana criminalizada. Todos os partici

 pantes da Assembléia puderam desfrutar, em nossos encontrose debates, da lucidez e do entusiasmo com os quais Hélioarticulava o sonho à luta. Vitorioso o movimento, as vicissitu-des da atividade profissional nos afastaram. Vez por outra nosfalávam os, como na ocasião em que o sobrinho de um funcio

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nário de sua clínica morreu em circunstâncias suspeitas numadelegacia policial, atirando-se de um segundo andar. Comuniquei o fato à Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ,telefonei para o Promotor de Justiça da comarca, no intuito de

tentar a exumação. Tudo se deteve diante do argumento com oqual a mãe do morto desinteressou-se da investigação: “ tenhooutro filho” . Hélio ajudou-me a compreender quão intransponível era a prudência materna, e lamentamos o medo que é preciso ter das instituições públicas.

 Na véspera de uma viagem que duraria 10 dias, recebi umtelefonema de Hélio Pellegrino. Estava interessado no casoRiocentro, cujo julgamento fora interrompido, e nas condições legais em que pode um inquérito policial militar serdesarquivado. Conversamos também sobre um projeto, quevem amadurecendo desde a campanha da Assembléia em Defesa da Vida, para a criação, no Rio de Janeiro, de umaComissão aos moldes da Comissão Teotônio Vilela de SãoPaulo, que reunisse, em perspectiva suprapartidária, não-go-vemamental e interdisciplinar, pessoas interessadas em direitos

humanos. Combinamos conversar quando de minha volta.Ao regressar, deparo-me com essa limitação terrível.Agora só podemos conversar com Hélio por escrito. Pobre país, agora muito mais pobre; todos nós, muito mais pobres.

Hélio Pellegrino viveu, intensa e exemplarmente, o sonho e a luta dos direitos humanos. Se de fato vier a constituir-se, no Rio de Janeiro, uma Comissão que deles se ocupecom retidão, coragem e independência, deverá chamar-se Co

missão Hélio Pellegrino. Quando uma sociedade radicalmentetransformada, fraternal e igualitária houver erradicado a tortura entre nós, as professoras primárias hão de falar para ascrianças de um profeta dos direitos humanos, metade médico,metade poeta, metade jornalista, um inacreditável ho-mem-e-meio que sonhou, que lutou, e que nunca morreu.

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MEMÓRIA DE HELENO

Repentinamente, eis Heleno Fragoso. Sua figura alta e

magra, trespassada de uma melancolia indecifrável, sentadasem conforto numa cadeira estreita, não recorda o advogadodas liberdades públicas, de gestos secos, que da tribuna dedefesa iluminava, coino um relâmpago, a causa e o tribunal,nem o notável professor cuja integridade intelectual, nas salasde aula e nos livros, questionava permanentemente os dogmas. Absurda presença, eis Heleno, e a oportunidade maravilhosa de conversar com ele.

 NB — Uma de suas colocações mais repetidas é aquelasobre o direito penal e os pobres. Como é mesmo?HF — O direito penal é, realmente, direito dos pobres,

não porque os tutele e proteja, mas porque sobre eles, exclusivamente, faz recair sua força e seu dramático rigor. A experiência demonstra que as classes sociais mais favorecidas são praticamente imunes à repressão penal, livrando-se com facilidade, em todos os níveis, inclusive pela corrupção. Os

habitantes dos bairros pobres é que estão na mira do aparato policial-judiciário repressivo e que, quando colhidos, são virtualmente massacrados pelo sistema.

 NB — Faz-se circular , hoje, a idéia de que a vida nasfavelas gravita em torno das quadrilhas de traficantes.

HF — Estudos realizados no Brasil e em outros países daAmérica Latina vieram mostrar que os habitantes das favelas

apresentam a mesma estrutura dos demais grupos de pobresque vivem nas cidades, e que não tem justificação'científica ou

 prática o tratamento de tais populações como classe distinta eseparada. A maioria dos habitantes das favelas, onde vivem de18 a 25% dos residentes no Rio de Janeiro, é composta de

 pessoas honestas e humildes, que vivem de seu trabalho.

 NB — Quer dizer que essa opção preferencial pelos po

 bres da polícia ...

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HF — A repressão policial sem freios jurídicos tende atransformar-se num poder autônomo e incontrastável, comodemonstra a experiência histórica, sendo inevitáveis os abusos. Os que moram nas favelas são comumente vítimas de

 prisões ilegais nas aparatosas operações policiais coletivasrealizadas nesses lugares, muitas vezes pelo simples fato denão trazerem consigo documento de identidade ou registro detrabalho. Somente os pobres são presos por vadiagem, e sãoeles o alvo preferido da violência policial. Os que cometemações delituosas no mundo dos negócios (White collar) sequersão considerados criminosos.

 NB — O que pensa Você da solução penal para, a vadia

gem e a 'mendicância?HF — O problema social que constituem os vagabundos eos mendigos não se resolve com o direito punitivo. Eles constituem um débito social...

 NB — Li isso recentemente!HF — ... são pessoas a quem a sociedade deve alguma

coisa, que não pode ser o internamento punitivo, mesmo que

tenha o nome de medida de reeducação ou ressocialização. Emrelação a essas pessoas, mais do que a quaisquer outras, surgeaquele direito à socialização  de que fala Filippo Gramatica,fenômeno semelhante ao direito a ser educado, instruído,curado e preparado para o trabalho.

 NB — E a ju stiça, como respopde a tudo isso?HF — A administração da justiça criminal constitui o

mais dramático aspecto da desigualdade da justiça, sendo nela

 puramente formal e inteiramente ilusório o princípio da igualdade de todos perante a lei, dogma dos regimes democráticos.Demasiadamente lenta, abstrata e insensível aos problemashumanos e sociais que surgem no processo penal, é exercida,na maioria dos casos, através de um corpo judiciário conservador e tradicional, aferrado à dogmática jurídica e alheio àsrealidades sociais que condicionam a criminalidade.

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 NB — Como melhorar isso?HF — É indispensável que os juizes sejam pessoal e

materialmente independentes, ou seja, que estejam em condições de proferir suas decisões com liberdade, sem temor desofrer conseqüências pessoais em razão de sua atividade jud i

cial.,

 NB — A independência seria suficiente, sem a democratização do Judiciário?

HF — O Poder judiciário pode e deve ser criticado. E queestamos mal habituados a uma autêntica sacralização da justiça, pela qual os advogados são, talvez, os maiores responsáveis . Dos trib un ais se co stum a dizer semp re que são

“ egrégios” , “ colendos” , “ altos sodalícios” . Dos juizes sed iz s em p re que são “ e m ine n tes , ‘ ‘ ín c l i to s ’ ’ ,“ meritíssimos” , “ doutos” , “ ilustres” , etc. As sentençassão sempre “ venerandas” e “ respeitáveis” , por mais injustase iníquas que possam ser. Nada disso tem sentido num regimedem ocráticoerepublican o, no qual ajustiça se fazem nome do

 povo, fonte primária de todo poder.

 NB — Inclusive o Supremo?HF — O Supremo Tribunal Federal — do qual comu-

mente se diz que é “ Pretório Excelso” — não está imune àscríticas. Como dizia Nélson Hungria, tem ele apenas o priv ilégio de errar por último.

 NB — Como Você está vendo a questão dos direitos

humanos no atual processo político?HF — Não pode haver efetiva proteção e tutela dos direitos humanos senão no estado de direito, onde o primado da lei

 ponha as liberdades fundamentais a salvo do arbítrio e da prepotência dos governantes, através de um sistema de segurança jurídica . Tal sistema não depende apenas de garantiascontra o abuso de poder pelo Executivo, mas também daexistência de um governo capaz de manter a lei e a ordem com

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energia e integridade e de assegurar condições sociais e econômicas adequadas para a vida em sociedade.

 NB — Ou seja, um governo legítimo, Isso significa quehá uma relação entre proteção aos direitos humanos e eleições?

HF — O primado do direito postula, de forma absoluta,eleições livres e periódicas, organizadas através de sufrágiouniversal e igual, em escrutínio secreto.

 NB — E a proteção dos direitos humanos econômicos,sociais e culturais?

HF — Para os povos do Terceiro Mundo, entre os quais

nos situamos, é longo e difícil o caminho a percorrer para aefetivação dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Cumpre, no entanto, desenvolver, mais e mais, a consciência desses direitos e as obrigações e compromissos doEstado a respeito dos mesmos, no plano nacional e internacional.

 NB — Que lhe parece a militância em direitos humanosda OAB e dos advogados individualmente?

HF — É importante insistir na responsabilidade dos advogados, como homens da lei e do direi to, cujo compromisso é a

 permanente luta pela realização da Justiça. Os advogados têmde estar na linha de frente da defesa dos direitos humanos e dasliberdades fundamentais. E esta autêntica responsabilidadehistórica que nos cumpre assumir.

 NB — Como viu Você a aplicação da lei de segurançanacional a participantes da manifestação do Paço Imperial, e acircunstância da política ter investigado o Comitê Pró-Dire-tas?

HF — Os ditadores de todos os tempos sempre identificaram a oposição à tirania como traição à pátria.

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 NB — A nova lei de segurança nacional é uma lei aceitável, do ponto de vista do estado de direito democrático e datécnica legislativa?

HF — Embora a nova lei de segurança nacional constituaavanço importante, se se considera a lei anterior, não hãdúvida de que ela mantém a filosofia de um sistema superado.

 NB — Cite uma conseqüência prá tica nefasta do acatamento, por uma lei, da doutrina de segurança nacional.

HF — Essa doutrina advoga abertamente a tortura comotécnica de luta. Diz-se que na guerra convencional o inimigo

está atrás das linhas, e que na guerra revolucionária está entrenós , só podendo ser descoberto através da tortura dos suspeitos e da informação imediata, a qualquer preço.

 NB — E conseqüências para a defesa dos indíxiados?HF — A falta de acesso aos autos, a impossibilidade de

fiscalizar a autoridade, a incomunicabilidade do preso, sãoformas de anular ou restringir o direito de defesa, constituindo

ofensa a garantias elementares do processo penal num paísdemocrático.

 NB — Então, essa lei deve ser revogada?HF — Essa lei deverá ser fatalmente revista, quando o

Congresso Nacional readquirir plenamente a sua independência e autonomia, liberando-se do domínio que sobre ele exerceo Executivo. Isso acontecerá quando se alcançar a plenitudedemocrática que todos almejamos.

 NB — E a criminalização da greve?HF -— A vigente lei antigreve constitui um dos mostren

gos criados pelo regime militar, e é demasiadamente repressiva, no plano trabalhista e no criminal. A greve afirmou-secomo instrumento de luta dos empregados e se transformou

num direito proclamado em constituições e documentos internacionais. O que se percebe é que o Estado, com sçu imenso

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 potencial de repressão, se põe do lado dos patrões, reduzindo ereprimindo o poder de pressão da classe trabalhadora.

 NB — Como lhe parece estar o trabalhador brasileiro?

HF — Todos os estudos sobre a questão salarial revelamque os salários reais estão caindo desde 1964. O que umtrabalhador pode hoje comprar com o seu salário é muitomenos do que podia comprar com os salários de 1964. Asmultinacionais pagam aos trabalhadores brasileiros incom

 paravelmente menos do que pagam aos trabalhadores de seus países de origem. A General Motors admite que os saláriosrepresentam 8% na composição de custos de seus veículos

fabricados no Brasil, ao passo que, nos Estados Unidos, esteitem sobe a 36%. O Brasil é um paraíso para as multinacionais.

 NB — Ou seja, outra lei a ser revogada?HF — E tarefa importante rever a vigente lei antigreve,

terminando com a estrutura sindical fascista que entre nós prevalece desde o Estado Novo.

 NB — Qual o maior advogado que Você conheceu?HF — Evandro Lins e Silva é, sem dúvida, o maior

advogado criminal de sua época. Ele é o mestre, o prim us inter   pares,  embora, com falsa modéstia, costume chamar-se de“ velho rábula” .

 NB — Qual o maior ju iz que Você conheceu?HF — Creio que Victor Nunes Leal foi o maior juiz que o

Supremo Tribunal Federal teve, no período em que atuou aminha geração de advogados. E com verdadeira alegria que oencontro sempre.

Absurda ausência, Heleno morreu em 18 de maio de1985, por trágica coincidência um dia após o falecimento deVictor Nunes Leal. O vazio por ele deixado no magistério e naadvocacia criminal não foi nem será preenchido tão cedo. Suas

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 palavras, acima fielmente transcritas, foram extraídas de diversos trabalhos, principalmente “ Aspectos Jurídicos da M arginalidade Social” e “ Os Direitos do Homem e sua TutelaJurídica” (in Direito Penal e Direitos Humanos,  Rio, 1977,ed. Forense),  Lei de Segurança N acional — uma experiência 

antidemocrática   (Porto Alegre, 1980, ed. Fabris) &Advocacia da Liberdade  (Rio, 1984, ed. Forense). Que falta nos faz,hoje, este morto tão insistentemente vivo.

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TANQUES OU TRIBUNAIS '

 Na aplicação da lei de segurança nacional, durante aditadura militar, alguns juizes invocavam constantemente as“ tradições nacionais” para, distendendo analogicamente otexto legal, condenar membros da resistência democrática.Por exemplo, em certo período pouco importava que umaassociação política clandestina não fosse “ partido dissolvidolegalmente” , como previa a lei, elaborada em vista do PCB:

era algo muito parecido (analogia), afrontava igualmente as“ tradições nacionais” , e tome condenação. Imaginem se tivéssemos efetivamente uma tradição complacente com aanalogia em matéria penal. Pois a China tem. Enquanto noBrasil, desde 1830, formalmente prevalece o princípio de queo juiz não pode condenar ninguém por um fato apenas semelhante ou equiparável a um delito, na extensa e rica tradiçãochinesa uma especial imbricação moral-direito-ábria as portas

 para incriminações como esta: “ quem agir de maneira reprovável receberá 40 golpes de bastão pequeno, e 80 nos casosgraves” . Tal norma, prevista em inúmeras legislações chinesas — da dinastia T'ang   (618-907) à Ch’ing  (1644-1912) —serviu igualmente à punição de um suicida frustrado e de umcopista oficial inábil.

A revolução chinesa não modificou essa situação. Seja

 por preconceito quanto ao princípio da legalidade, cuja gestação e parto estão associados à revolução burguesa, seja pela

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força inercial daquelas tradições, o direito penal comunistachinês manteve e até acentuou o emprego da analogia emmatéria penal. Um manual editado em 1957 sobre princípiosgerais de direito penal da República Popular Chinesa definiacomo crime “ todo fato que expõe a perigo o sistema democrático popular, tenta corromper a ordem social ou é socialmentedanoso, ou ainda deva merecer penas nos termos da lei” .Vê-se a legalidade com uma função complementar na definição do crime. Após o código penal de 1979, as coisas nãomudaram muito. O crime é definido como um ato ofensivo àsoberania do Estado, à integridade do território ou ao regime

da ditadura do proletariado, que solapa a revolução e a edificação socialista e perturba a ordem pública, que ofende bens do povo, bens coletivos das massas trabalhadoras e bens pessoaisdos cidadãos, lesa direitos individuais e democráticos doscidadãos, e ainda todo ato socialmente danoso.

Advogados brasileiros são vít imas constantes daviolência: hoje, assassinados em razão de suas atuações nadefesa de trabalhadores rurais (os chamados “ crimes do

latifúndio” ), ontem presos pela ditadura m ilitar por patrocinarem causas de dissidentes políticos. Também na tradiçãochinesa — cujas concepções do direito objetivo como complexo de deveres morais conferia ao litígio um travo ilícito,enquanto turbação da ordem legal — advogados eram muitomal vistos, quando permitidos (no código dos Ch'ing,  ascondutas de estimular a propositura de uma ação ou redigipporoutrem uma acusação eram criminalizadas). A revolução chi

nesa, depois de fechar os escritórios e proibir a prática forense(1949), tentou reverter essa situação. Sua primeira constituição (1954) admitia expressamente que o acusado tinha o direito de ser assistido por um defensor (art. 76). Leis da mesmaépoca fixavam as circunstâncias da nomeação de tal defensor eos critérios de sua remuneração; tais providências faziam ecoao Kuomitang, que admitira oficialmente o exercício da profissão de advogado. Contudo, a nova Constituição de 1975 não

consagrou uma só palavra ao direito de defesa dos acusados, e

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nenhuma lei incentivou a organização da categoria profissional, que retomou o caráter marginal da tradição. Agora, osfundamentos da marginalização dos advogados estão na técnica jurídica do individualismo burguês, que decompõe asrelações políticas em públicas e privadas, privatizando a contradição entre o indivíduo e a sociedade. (Não cabe mais querecordar como essa é uma questão teórica superada, mesmo

 para ju rista s ocidentais não marxistas.)

 No Brasil, não temos a pena de morte na legislação, masela é aplicada largamente, tolerada e estimulada por discursosque ou desqualificam o acusado (“ ele é ban dido” ), liberan-

do-o à sanha dos esquadrões da morte a soldo de grupos sociais bem caracterizados, ou exercem diretamente a apologia doextermínio ( “ bandido bom é o morto” ). E mais ou menoscomo a tortura: de um lado, acabam os de subscrever a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (Decreto 

 Legislativo n°. 5/89, no D .O . de l°.jun.89), e de outro lado vemum Governador de Estado invocar a eqüidade em favor datortura (“ aqui se bate, mas onde não se bate?” ). Pois a China

tem a pena de morte, e, preocupada com uma incidênciaelevada de criminalidade, promoveu nos últimos anos constantes execuções. Talvez a China detenha o duvidoso primeirolugar em execuções de pena de morte nos últimos 10 anos, comdireito ao cardápio completo (desfile público dos padecentes,com cartazes evocando o delito a ser expiado, execução pública — usam o fuzilamento — , etc). Ignoram-se os resultados

 práticos dessa matança legal, mas não se ignora essa outra

matança, na praça da Paz Celestial. E quem pensar que a praçada Paz Celestial é algo muito distante e remoto, que não podeser a Cinelândia, a Candelária, a Baixada, Volta Redonda,Xapuri, e tantos outros lugares, está cometendo um erro fatal.

Existe uma não suficientemente investigada relação entrea observância da legalidade nos tribunais — integrada peloreconhecimento do acusado como pessoa humana titular dedireitos, entre os quais a defesa — e a opressão política. O

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autoritarismo, de direita ou de esquerda, quer ter um homeminerme e indefeso, sozinho numa praça abandonada, diante deseus tanques ou de seus tribunais.

A MEMÓRIA VÃ

Um julgamento real  coloca uma questão política, articulada através das variáveis juríd icas que controlam o exercício de poder expresso na sentença. Um julgamento simulado  coloca uma questão moral, articulada através da reconstruçãohistórica do acontecimento “ sentenciado” . Nenhum julga

mento é completamente real meio século depois dos fatos, e acrônica que Alaín Finkielkraut empreendeu do julgamento deKlaus Barhíe — ocorrido em 1987, por crimes cometidos em1942 — pode associar, assim, à reflexão moral sobre o genocídio dos judeus pelo aparelho burocrático-m ilitar nazista, sagazes observações sobre os procedimentos punitivos adotadoscontra os responsáveis, de Nuremberg a Lyon.

Para o leitor de formação jurídica, é de especial interesse

a percepção que o Autor tem do problema da obediênciahierárquica à ordem ilícita num aparelho organizado de poder,estudado em direito penal, de forma insuperável, por Roxin.Finkielkraut conhece que aquele extermínio brutalmente mas-sivo foi “ um crime de em pregados” , protagonizado por“ burocratas ou policiais, civis ou soldados que faziam seutrabalho e cumpriam ordens’’, porém assinala que “ o serviçoao Estado não exonera nenhum funcionário de nenhuma buro

cracia de sua responsabilidade como indiv íduo” . E admirávelsua apreciação da talentosa e polêmica empostação adotada pela defesa no julgamento , ressa lvando a função dos advogados (“ esta missão — a defesa — foi-lhes imperativamenteconfiada pelo estado de direito, o qual seria indigno de si casonegasse suas garantias a certas categorias de criminosos” ), bem como sua análise do aresto da Corte de Cassação que

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admitiu ao processo vítimas não raciais (membros da Resistência, igualmente deportados). Há, contudo, dois aspectos quemerecem debate: a importância e efeitos que atribui à criaçãoda classe dos chamados “ crimes contra a hum anidade” e o

entusiasmo com que se refere ao tribunal de Nuremberg.Supõe Fínkielkraut que “ foi exatamente para eliminar do

crime a desculpa do serviço” (ou seja, para subtrair o efeitoexculpante da obediência hierárquica), em confronto com a“ legalidade do m assacre e do tratamento industrial dasvítimas” , nunca antes experimentado em tais limites, “ que seelaborou, entre 1942 e 1945, a categoria geral de crimes contraa hum anidade’ ’, por ele situados num contexto que denomina

“ leis da hum anidade” , filiáveis ao direito das gentes. Nurem  berg deveria ser, portanto , um “ tribunal que falasse em nomedo gênero hum ano” , cujos juizes “ se inscreviam na tradiçãoclássica do direito das gentes” , e portanto, ‘ ‘falaram em nomede toda a sociedade internacional” .

Os delitos juris gentium,   que esboçaram um direito penalinternacional jamais rea lizado, sempre estiveram estritamente

determinados por concretas injunções econômicas, e não poruma essência humanitária supra-históríca, e basta recordar o pioneiro crim e de piralaria. Talvez o pirata não fosse, comosupunham os jurista s, hostis humanis generis,   mas certamenteera um inimigo da nascente burguesia mercantil. Quem afirmaria que atrás da criminalização do tráfico negreiro só haviauma equação ética? “ Crimes contra a humanidade” configuram uma fórmula confortavelmente ampla, que eleva aomáximo grau a abstração da vítima, processo iniciado noséculo XII. Nos campos de extermínio nazistas, uma parte dahumanidade matava e uma parte da humanidade morria; qualquer confusão a respeito simplesmente (con)funde vítima eassassino. Não por acaso o jurista polonês Rafael Lemkin, queem 1944 cunhou o termo ‘‘genocídio' ’, propusera para o novodelito, uma década antes, o nomem ju ris ‘ ‘barbárie’ ’, e para oque hoje chamaríamos de genocídio cultural, “vandalismo”:

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são expressões significativas acerca de uma humanidade dividida e conflituada.

Definir o objeto jurídico de um delito (isto é, o valor

 jurídico protegido pela norma e violado pelo delito) é umempreendimento teórico do qual deve resultar um melhorconhecim ento da estrutura do próprio delito. Aos juristas sem pre agradou a c lassificação do genocídio como crime contra ahumanidade, porquanto permitia distingui-lo do homicídio,crime contra a vida: no primeiro, mata-se uma ou dez ou cem pessoas com o objetivo de extinguir todo o grupo étnico; nosegundo, mata-se uma ou dez ou cem pessoas com qualquer

outro objetivo ou sem objetivo nenhum. Pouco se importandocom a mediatização da morte de um homem, os melhores

 jus-penalistas do mundo (curiosamente, compatriotas dosmais aplicados genocidas do mundo) podiam afirm arem unanimidade, quando seu antigo Código Penal foi reformado parainclu ir o delito de gen ocídio , que este era um “ corpoestranho” entre os crimes contra a vida. Tecnicamente, oraciocínio é impecável, ainda que fosse muito difícil fazê-lo

entender a qualquer das vítimas do holocausto judeu. Nuremberg foi, de fato, a primeira ocasião em que se

exercitou um tribunal penal internacional. Contudo, o poderdaquele tribunal não tinha origem jurisdicional e sim militar.A carta de Londres de 8 de agosto de 1945 não podia suprir asexigências decorrentes dos princípios da reserva legal e do juiznatural, e também nisso há consenso. Asúa, o grande profes

sor espanhol exilado, mencionava a ‘‘radical insatisfação”mesmo daqueles que participaram do tribunal. Segundo Fragoso, Nuremberg representou “ violação evidente de princ í

 pios fundamentais na justiça penal” . Para o insuspeito NélsonHungria, Nuremberg foi “ vingança pura e simples” .

Realmente, caso se exibisse o filme da Segunda Guerra para um jurista marciano, seria árduo justificar a ausência, no banco dos réus de Nuremberg, de quem ordenou e lançou a

 bomba sobre Hiroxima. Por menos simpatia que se tenha pelosabomináveis carrascos nazistas, o uso da jurisdição interna e

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de leis anteriores a seus crimes teria obtido idênticos resultados, sem a vaga insinuação de se estar usando a justiça penalíal como eles próprios a haviam usado a partir de 1933.

 Num dos ju lgamentos de Nuremberg, no processo dosEinsatz-gruppen,   já distante do estrépito do primeiro caso,afirmou-se que o conceito de crime contra a hum anidade não éaplicável a fatos adequadamente reprimidos pelo direito interno de um Estado, e que podem ser tomados em consideraçãoapenas quando o Estado envolvido, por indiferença, impo tência ou cumplicidade, recusar sua apuração e a punição dosresponsáveis. E aí chegam os ao grande sobrevivente da guerrae de Nuremberg, que não escapou ao olho perspicaz de

Finkielkraut: o nazismo. O problema dos chamados crimescontra a humanidade é o problema do terrorismo do Estado quedesconsidera (ou não constrói) controles democráticos. Resol-vê-lo fora daí é resolvê-lo fora da razão. Há cem anos atrás,Tobias Barreto advertia que pesquisar o fundam ento jurídicoda pena pode ser tão inútil como pesquisar o fundamento

 ju rídico da guerra. Um julgamento como o de Barbie — meioreal e meio simulado — acaba sempre também sendo um

 pouco um julgamento sobre a racionalidade do ato de julgar.

TORTURA NUNCA MAIS — OU PARASEMPRE?

O Diário do Congresso Nacional de 24 de maio de 1989estampou o decreto legislativo n? 4/89, que aprova o texto da

Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamen tos ouPenas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, votada por consenso na XXXIX Sessão (1984) e subscrita em 23 de setembro de[985.

 Na semana seguin te , em 2 de junho, o mesmo  D iário do  Congresso Nacion al  publicava o decreto legislativo n? 5/89,que aprova o texto da Convenção Interam ericana para Prevenir 

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e Punir a Tor tura, concluída na XV Assembléia Geral da OEA(1985) e subscrita pelo Brasil em 24 de janeiro de 1986.

Eram boas notícias. Infelizmente, os outros jornais dasmesmas datas não traziam informações compatíveis com ootimismo do “ diário oficia l” . Nos jornais de 24 de maio,cinco pessoas de uma mesma família eram exterminadas, noRio, diante de uma criança, por homens com farda da PolíciaMilitar, e quatro corpos com sinais de tortura eram encontra-dos num carro abandonado; nos jornais de 2 de junho, umsindicalista, em Aracaju, era assassinado por 40 policiais,convocados pela gerência de um hotel para desalojá-lo, por

estar acompanhado da esposa a despeito de haver pago diáriasingle,  e noticiava-se ainda a prescrição — pelo transcurso de20 anos — do seqüestro, tortura e morte do padre AntônioHenrique Pereira Neto, em Recife.

A realidade é feia, porém — como disse José Dias aB en tinho— “ as leis são belas” , e, no caso das duas convenções brevemente vigentes entre nós, caberia acrescentar,como o personagem machadiano: “ belíssimas” . Como essas

 belas leis podem ajudar-nos a transfo rmar a realidade feia?Os textos de ambas as convenções mantêm quase total

correspondência, e as diferenças estão principalmente nosinstrumentos que propiciam: enquanto a Convenção da ONUcriou o Comitê contra a Tortura,   como órgão de coordenação esupervisão das medidas adotadas pelos Estados Partes, bemcomo instância investigatória de nívelThternacional, aquela daOE A, ressalvando as competências da Convenção Americanasobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica),deixou aberto o acesso ao sistema interamericano de tutela dedireitos humanos, notadamente a Comissão Interamericana (com sede em Washington) e a Corte Interamericana de D ireitos Humanos   (com sede em San José).

 No mais, as coisas são sim ples. Suponhamos que o Presidente da República, diante da urgência do assunto — quer pela

nossa infeliz tradição, quer pelo mandamento constitucional

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(art. 5?, inc. XLIII) — , tratasse imediatamente de providenciaras retificações e promulgar por decreto as Convenções; comotimismo, suponhamos que o fizesse hoje. Está o Brasil, dehoje em diante, obrigado a prevenir e punir a tortura, adotando

as medidas legislativas, administrativas e judiciais necessárias para im pedir a ocorrência dessa prática e puni-la , caso sobrevenha. Contudo, o governo — que teve disposição de remeterao Congresso, entre outras, algumas medidas provisórias criminalizando a greve — não encontrou tempo para uma mensagem criminalizando a tortura. Pior do que isso, o tempo escas-seou também para nossos representantes: nenhum deputadoapresentou projeto nesse sentido. Pressupostos das medidas provisórias, segundo a Constitu ição, são a “ relevância e

urgência” da matéria. A tortura, em nosso país, não deve, navisão do governo, ser relevante , e menos ainda urgente; afinal,convivemos com ela há quase 500 anos. Em certo sentido, ogoverno tem razão.

Com as con venções, a tarefa — seja do governo, seja dosdeputados — está fac ilitada. Temos uma proposta de definiçãolegal básica ( “ todo ato pelo qual dores ou sofrimentos físicosou mentais são intencionalmente infligidos a uma pesso a, comfins de investigação — acerca da própria pessoa ou de terceiros — , intimidação ou c astigo ” ), com a ressalva cabível(“ excluem-se do conceito de tortura aqueles sofrimentos quesejam estrita decorrência de medidas legais ou a elasinerentes” ).

Ambas as convenções assinalam que nenhum EstadoParte poderá invocar   circunstâncias excepcionais, tais comoameaça ou estado de guerra, estado de sítio, suspensão degarantias constitucionais, instabilidade política ou qualquer

outra emergência ou calamidade pública como fundamento para a to lerância ou admissão da tortura. Prevenindo umadefesa recorrente nesses casos, as convenções estabelecemque a ob ediência hierárquica (“ ordem de funcionáriosuperior” ) não exim irá o torturador da responsabilidade penalcorrespondente.

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Importantíssima é a regra segundo a qual os EstadosPartes deverão providenciar para que nenhuma declaração quese comprove obtida mediante tortura seja admitida como provanum processo. A proibição de admissibilidade de prova ilícita,formulada pela Constituição de 1988 (art. 5?, inc. LV1), encontra aí um de seus conteúdos, e nossos juizes passam a dispor deum novo fundamento para suprimir do conjunto da prova dosautos confissões extorquidas mediante tortura.

É ainda dever dos Estados Partes providenciar para que oensino e a informação sobre a proibição da tortura integrem

obrigatoriamente os programas de formação dos policiais eoutros funcionários públicos, civis ou militares, que possam partic ipar de custódia , interrogatório ou tratamento de presos.Devem ainda tais Estados Partes garantir apuração imediata eimparcial de quaisquer queixas de tortura que sejam apresentadas, bem como assegurar condições legais para indenização àsvítimas de tortura ou, quando mortas, a seus dependentes.

 Norm as bastantes minuciosas sobre extradição procuram in

viabilizar a impunidade do torturador que abandone o Estadono qual cometeu seu crime.São esses, em linhas gerais, os deveres que o Brasil está

assumindo, como Estado Parte que subscreveu e agora aprovou, no âmbito interno, as duas convenções sobre tortura.Trinta dias passados das publicações no  Diário do Congresso 

 Nacional,   absolutamente nada aconteceu.  Não foi encaminhada mensagem ou apresentado projeto de lei criminalizando

a tortura, neutralizando o efeito exculpante da obediênciahierárquica e prevendo a indenização às vítimas. Alguémouviu falar da inserção de um capítulo sobre tortura nos currículos das academias de polícia? E quem foi convidado para ainauguração da Delegacia contra a Tortura?

As leis, ainda que belas, nada resolvem sem a vontade política empenhada em sua execução. A tortura é alguma coisa profundamente entranhada em nossa história, e talvez o perío

do menos brutal tenha sido aquele no qual a tortura era regulamentada nas Ordenações e estudada em Coimbra. Pelo menos

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um jurista como Pereira e Souza podia recomendar que “ nãose deve aceitar a confissão feita entre as dores dos tormentos,mas só a que se faz depois de relaxados” , ou ainda que “ nãodeve (o réu torturado) ser perguntado a respeito dos cúmplicesdo crime” .

Para os negros escravos, não houve qualquer regra, e oscastigos mais cruéis, requintadamente cruéis, eram aplicadosno âmbito da disciplina privada. Existem livros inteiros dedicados à descrição desses castigos medonhos, e contribuiçõesrecentes desvendam a unidade essencial da intervenção d isci

 plinar (privada) e penal (pública); a tortura não foi a conjuntura e sim a estrutura do escravismo colonial brasileiro. A

tortura era a ordem que afiançava o progresso (em linguagemda ditadura militar, segurança e desenvolvimento). Há deexistir um economista que realize o exercício de calcular —correlacionando os castigos e penas aplicados aos escravos(estimáveis a partir de relatos e registros da época) e a produtividade dos ciclos econômicos — o quanto valeu,  para os outros, â  dor dos torturados.

Todos conhecem a expressão brasileira “ leis que não

 pegaram’ ’. Quem porventura não conheça, pense na carta-ré-gia de D. Pedro II de Po rtuga l, de 1700, coibindo os maus-tra-tos aos escravos. Talvez o exemplo mais escandaloso dessasleis tenha sido aquela de 5 de março de 1790, cujo § 2? 

 proclamava o desuso (dessuetude) dos torm entos. Tal lei diziada tortura ser “ a mais segura invenção para castigar um inocente fraco e para salvar um culpado robusto, ou para extorquir a mentira de amb os” . Poderíamos estar comemorando,em 1990, o bicentenário da abolição da tortura entre nós. Masaquela lei de 1790 definitivamente não “ pegou” .

Devemos comemorar a recente aprovação pelo Congresso das convenções da ONU e da OEA contra a tortura? Vamos banir a tortura, ou não conseguiremos desvencílhar-nos dessefantasma covarde e feroz? Tortura nunca mais —- ou parasempre? Essas convenções vão “ peg ar” ?

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A LÓGICA DE IAGO

As revoluções costumam cometer alguns equívocos noreajustamento da justiça penal. Um deles está no uso do

mesmo autoritarismo judiciário do regime antigo; outro, nàsubmissão às formas tribunalícias da véspera política, impedindo sua'superação por formas capazes de apreender os novosconteúdos confíituais. Pensando numa situação revolucionária extrema, Foucault dizia que seria preciso inventar   anova justiça.

Um dos mais destacados desses equívocos, hoje, consistiria em menosprezar certos princípios jurídicos que clara

mente transcendem a ocasião histórica na qual foram produzidos. Assim, por exemplo, os princípios da reserva legal, daculpabilidade pessoal, da ampla defesa, do juiz natural, dainstrução contraditória, da certeza objetiva como pressupostoda condenação, etc. Reduzi-los a meras construções do direito burguês, para negá-los ou para tolerar modos oblíquos de suaviolação, é um equívoco m onstruoso , pelo qual se paga o maiscaro dos preços. Tais princípios em verdade integram um

acervo inalienável de direitos humanos fundamentais, sobreos quais as garras do Leviatã punitivo não podem estender-se.Isso não é idealism o ou universalismo a-histórico; a conqu istadesses princípios se fez na  história e como  história, e dénenhuma outra se poderia dizer, com mais propriedade, tersido escrita com sangue.

Tais considerações acorrem na ocasião em que se tomacontato com farto ma teria l, distribuído pelo Comitê Européen 

 pour la Défense des Réfu giés et Immigrês  (Cedri), sobre acondenação a 15 anos de prisão de Otelo de Carvalho. Porcerto o desconhecimento dos autos do processo e o elevadoconceito de que desfruta a cultura jurídico-penal portuguesadevem coibir qualquer conclusão precipitada, ou uma apodí-tica condenação da condenação. Porém há certos aspectos do

 processo que merecem divulgação e exame.

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O primeiro deles está no próprio título da condenação, oartigo 288 do Código Penal (“ organizações terroristas” ). Sãoconhecidas as dificuldades para a definição legal do crime deterrorismo. Passamos por elas na comissão redatora do ante

 pro jeto de lei de defesa do estado democrá tico, na primaverade mudanças jurídicas'do ministro Fernando Lyra. O risco decriar-se uma incriminação vaga e indeterminada, violandoaquela função do princípio da reserva legal que Roxin chamade mandado de certeza,  é enorme. A violação do mandado decerteza não tem seu principal inconveniente, como idealistassupõem , em dificultar o conhecimento da matéria proibida por

 parte do cidadão, mas em permitir um desempenho judic iá rio

nos lindes do arbítrio.A conclusão de que Otelo de Carvalho integrava umgrupo terrorista teria se baseado essencialmente no depoimento de quatro co-réus “ arrependidos” e na redação, em1977 (cinco anos antes da vigência do novo Código Penal), deum documento chamado Projeto Global, no qual, diante dorecrudescimento de forças reacionárias, Otelo concebia um

 programa — de difícil realização, assinale-se -— para que

forças populares garantissem os avanços de 25 de novembro.Ramsey Clark, o grande advogado americano, asseguraque “ o uso de quatro ‘arrependidos’ , todos patentementeinseguros (alipatently unreliable), constitui virtualmente todaa prova testemunhai contra Otelo’ ’. É antiga a reserva com aqual devem declarações^em tal situação ser recebidas. Mala-testa, com seu saboroso pragmatismo, registrava que “ domomento em que o acusado julgue que atribuindo fatos dadosao cúmplice diminui a própria responsabilidade, o seu testemunho suspeita-se ditado não pela vontade, mas pelointeresse” .

Esses ingredientes são nossos conhecidos. Incriminaçõesvagas e indeterminadas. Extensas prisões provisórias (Oteloficou detido três anos até o julgam ento). Um documento pro-gramático que passa a funcionar como indício, e é submetido auma interpretação meticulosamente dissociada de sua real

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origem e contexto. Duplas militâncias individuais que sãotomadas por alianças de grupos distintos. Arrependidos decujo confiteor   emerge a paixão alheia. Essa receita é nossaconhecida, e sua aplicação nos países do cone sul mereceu

 precioso estudo de E. Garcia Méndez (Autoritarismo y Contrai Social,  B. Aires, 1987, ed. Hammurabi).

Transformações políticas não podem descurar da transformação nas instituições judiciárias, no seu estilo  de intervenção social. Os tribunais políticos conservadores sempreusaram, na decisão de processos que remeteram milhares dedemocratas e socialistas para o cárcere ou o patíbulo, parafraudar o princípio da certeza objetiva como pressuposto da

condenação , a lógica de lag o, quando se refere ao boato de quealgo teria ocorrido entre sua mulher e Otelo,

Pouco importam o valor dos projetos políticos de Otelo deCarvalho e sua significação como liderança. Gostaríamos deestar certos de que sua condenação não repetiu lago: ‘ ‘I knownot if ’t be true; / But I, for mere suspicion ín that kind, / Willdo as if for surety” (Ignoro se é verdade; mas eu, por umasimples suspeita dessa espécie, agirei como se fosse coisa

certa — ato I, cena III).

O ASILO INVIOLÁVEL

Alguns policiais se queixam de que a nova Constituiçãoveio dificultar seu trabalho. Será mesmo?

A nova Constituição, no seu artigoJ?, inciso XI, diz qu e acasa é o asilo inviolável do indivíduo e que ninguém podeentrar nela sem consentimento do morador, salvo se houver

 flagrante delito , desastre,   ou, durante o dia, ordem judicia l (assinada por um juiz). A diferença da antiga Constituição estáaí, nessa ordem jud icial;   antes, bastava a ordem escrita dodelegado de polícia ou mesmo sua simples presença ao ato.

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Se estiver acontecendo um crime na casa (por exemploalguém agredindo outra pessoa, ou possuindo estoque de

drogas), ou se o criminoso perseguido nela se esconder, a polícia pode — aliás, deve  — entrar e prender, pois isso é flagrante delito.  Também a ocorrência de um desastre  (porexemplo, início de incêndio) jus tifica o ingresso sem consentimento. Entretanto, uma “ ince rta” , uma diligência policialsem motivo concreto e que entre na casa (providência que oCódigo de Processo Penal, no seu artigo 240, chama de

“ busca domiciliar” ), depende agora de uma ordem judicia l. É  claro que o juiz sempre concederá essa ordem quando houver“ fundadas razões” , como diz o Código, para prender criminosos procurados ou fugitivos, apreender coisas produto decrime ou instrumentos para sua prática, obter provas, etc. Mastambém é claro que o juiz jamais concederá essa ordemquando não existirem motivos concretos para a diligência.

O que mudou? Nos bairros ricos, nada mudou. Lá, a casa

sempre foi o asilo inviolável do indivíduo; lá a polícia jamaisfoi entrando, pé na porta, em todos os apartamentos de um prédio até descobrir alguma coisa ou alguém. Lá, para uma busca domiciliar existe sempre uma investigação anterior queforneça um volume aceitável de indícios para autorizá-la.

E nas favelas, ou nos conjuntos habitacionais mais pobres? O trabalhador e sua família estiveram sempre expos

tos a uma visita sem anúncio, a ver sua casa toda revirada,objetos quebrados, e nem ao menos um pedido de desculpas. Não, não é o trabalho policia l que ficou mais difícil com a

nova Constituição. Difícil mesmo para algumas pessoas étratar da mesma forma o apartamento de luxo e o barraco, éconsiderar que ambos são, igualmente, o asilo inviolável doindivíduo.

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“ SEM DOCUMENTOS? TEJE PRESO!”

Muitas pessoas pensam que devem obrigatoriamente sairà rua com algum documento pessoal — carteira de identidade,

carteira profissional, etc, E que se não procederem assim,estarão sujeitas a prisão. Chega o tira , pede os documentos e,diante de qualquer resposta negativa (“ esqueci” , ou “ estãoem ca sa” , por exem plo) , p ro fe re a s en tença : “ Semdocumentos? Teje preso!”

Tudo isso está completamente errado.Em primeiro lugar, quando a polícia aborda um cidadão

que não está armado ou cometendo um crime (em flagrante

delito, como se diz), o agente é que deve se identificar,exibindo sua identidade funcional (“ carteira de po lícia” ).

Em segundo lugar, não existe lei que imponha ao cidadãoo dever de andar sempre acompanhado de documentos queatestem sua identidade. O que existe é o seguinte: todo cidadãoé obrigado a fornecer à autoridade policial informações sobresua identidade (nome, filiação), estado (casado, solteiro, se

 parado, viúvo), profissão, local onde mora e onde trabalhadesde que  ju sti ficadamente   solicitado por ela. Por exemplo:houve um assalto num banco. Pessoas que estavam nas proximidades, na mesma rua, são justi ficadamente solicitadas a seidentificarem. Note-se que ninguém é obrigado a ter seusdocumentos consigo, e sim a fornecer as informações. Quem ,nessas circunstâncias, recusar-se a prestar os esclarecimentos

 pedidos sobre sua identidade, ou prestá-los falsam ente(mentindo sobre seu nome, estado, profissão ou residência),comete a infração prevista no artigo 68 da Lei de C ontravenções Penais, com pena de multa (para a recusa) ou prisãosimples de 1 a 6 meses e multa (para a informação falsa).

É importante lembrar que essa contravenção penal só pode juridicam ente acontecer se a autoridade tiver um motivo  ju s to   para solicitar a identificação (por isso, a lei diz“ justificadam ente” ). Pelo simples capricho ou mera curiosidade do fun cion ário, nenhum cidadão está obrigado a identifi

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car-se. A lém disso, como jã foi visto, mesmo quando existe omotivo justo , a obrigação não é de ter consigo os docum entos,e sim de prestar com veracidade as informações exig idas. Foradaí, a prisão configurará crime de abuso de autoridade para

quem a executou ou ordenou (lei n? 4.898, de 9.dez.65, art.4?, al. a).

O que pouca gente sabe é que ninguém  (seja funcionário público, como um policial, seja outro cidadão, seja umaempresa) pode reter  qualquer documento de identificação pessoal, mesmo que apresentado em fotocópia autenticada, inclusive certificado militar, título eleitoral, carteira profissional,registro civil e outros. Quando a repartição pública ou a em

 presa precisar do documento para algum ato, terá que devol-vêlo no prazo de 5 dias. Aquele — seja policial, seja funcionário de uma empresa, seja simples cidadão — que retiver osdocumentos de alguém cometerá contravenção penal, punidacom prisão simples de 1 a 3 meses, ou multa (lei n? 5.553, de6.dez.68, art. 3?).

Já imaginaram se as leis fossem respeitadas e cumpridasem nosso país? Poderíamos ouvir diálogos assim:

 — É cana. Documentos.:— Estão em casa.

 — Sem documentos? Teje preso. — Quem está preso é o senhor, por abuso de autoridade.Ou como este outro:

 — E cana. Documentos. —  Aqui estão .

 — Guarda aí, Edu, os documentos da criança... — O senhor está preso por retenção de documentos.Sonhos podem realizar-se. Só depende de nós.

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PEQUENO RITUAL DE DEGRADAÇÃO

Quem não é muito afeito aos assuntos criminais certamentenão deu maior atenção à aprovação pela Assembléia NacionalConstituinte, entre os direitos e garantias individuais, do incisoLIX do artigo 5 com a seguinte redação: ‘ ‘o eivilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nashipóteses previstas em lei’ ’. Existe atrás dessa fórmula legal umahistória curiosa, que é em certo sentido a história da última“pena” corporal — agora abolida — no Brasil,

Segundo o Código de Processo Penal, que data de 1942,entre outras medidas tendentes à apuração do crime, deve aautoridade policial “ ordenar a identificação do indiciado pelo

 processo daliloscópico” (art. 6f, inc. VIII). As razões do dispositivo eram óbvias. Em primeiro lugar, tratava-se de assegurar aidentidade física do réu, numa época em que não existiam serviços confiáveis de identificação (relembre-se a campanha gover

namental dos anos 30 em tomo do registro civil). Em segundolugar, providenciava-se sobre os casos nos quais impressõesdigitais fossem detectadas no local do crime. Em terceiro lugar,as fichas datiloscópicas serviriam para o registro da indiciação,naquele caso, e para o levantamento dos antecedentes criminaisdo indiciado.

Com a criação e desenvolvimento dos serviços de identifica

ção nos diversos Estados, tudo mudou de figura. Ao identificar-se eivilmente para obter sua carteira de identidade, o cidadão fazsuas fichas datiloscópicas, que ficam cadastradas no respectivoinstituto. Não há mais qualquer dúvida sobre sua identidadefísica. Não há mais qualquer dificuldade para confrontar suasfichas datiloscópicas com impressões digitais porventura recolhidas no local do crime. A indiciação do caso em que estejaenvolvido é inserida em seu registro por mera anotação, e seus

antecedentes criminais podem ser levantados simplesmente a partir do número de seu registro, constante de sua carteira deidentidade.

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 Não obstante, a medida era sempre adotada» fosse ou não jácivilmente identificado o indiciado, houvesse ou não dúvidasobre sua carteira de identidade. (E claro que o indiciado não identificado,  bem como aquele sobre cuja identidade ou docu

mentação houvesse dúvida, deveria mesmo ser submetido àident i f icação dat i loscópica. ) A medida, na prát ica, é“ vexatória” (Min. Godoy Ilha), e vexatoriamente aplicada. Oindiciado fica com todos os dedos das mãos sujos pela tintaempregada. Em 25 anos de prática criminal, não conheço ura sócaso no qual um solvente eficaz tenha sido oferecido para aremoção das manchas escuras, que resistem à água e ao sabão, Oidentificador comanda o movimento físico do indiciado, para

garantir a extensão da gravura de cada dedo; é o identificador quecontrola a pressão e a rotação de cada dedo. São tomadas no totalquatro fichas completas = 40 impressões. Isso tudo se passa na

 penúltima das salas de uma delegacia (a última é a carceragem),eventualmente entre sorrisos e observações mordazes ( “ a criançavai tocar piano” ). Foucault não hesitaria em reconhecer quetambém nessa situação o corpo do indiciado é “ uma peça essencial no cerimonial do castigo” ; não temos aqui uma execuçãocapital, por certo, mas temos uma “ pena” (informal) que incide

sobre o corpo, cujo conteúdo é o escarmento e a infamação.Desligada de suas finalidades processuais, a identificação

datiloscópica remanesceu sentida e representada por quem aaplicava e por quem a sofria como um constrangimento de cunho“ penal” : um castigü, uma humilhação. O pior é pensar nodestino daquelas fichas: um jogo iria inutilmente para o processo;as demais, no instituto de identificação, seriam inúteis duplicatasdas fichas extraídas quando da obtenção da carteira de identi

dade. Na hipótese de multi-reincidentes, são jogadas no lixo: para que serve o quinto ou sexto conjunto das fichas datiloscópi-cas de um punguista?

Os advogados de indiciados já civilmente identificados começaram, ainda nos anos 50, a requerer a dispensa de sua“ identificação pelo processo datiloscópico’ ’, como reza o Código, por desnecessária a formalidade. Isso abriu duas

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 perspectivas: a do arbítrio da autoridade policial (que desfolhavao malmequer do deferimento de acordo com a condição social e oapadrinhamento do indiciado, vagamente relacionados à gravidade do delito), e a da corrupção do escrevente (que, agraciado,“ despachava” o requerimento). É claro que inúmeras autorida

des policiais dispensavam a formalidade porque honestamenteconvencidas de sua inutilidade; outras não a dispensavam porquesinceramente achavam que deviam cumprir a letra da lei. Logo oassunto chegou aos tribunais.

O tema não era novo. Antigos comentadores do Código deProcesso Penal, como Ari Franco e Espínola Filho, já haviammanifestado sua opinião sobre a dispensabilidade da identificação datiloscópica para indiciados já identificados. Os tribunaiscomeçaram gradualmente a orientar-se nessa direção, inclusive o

Supremo Tribunal Federal. O Min. Aliomar Baleeiro afirmouque a formalidade era “ supérflua e impertinen te” e, em outrocaso, advertiu significativamente que “ o fim da identificaçãonão é punir, nem subm eter o indigitado delinqüente a vexamesinúteis” .

Mas a Corte Suprema que judicou no olho do ciclone daditadura militar, expurgada de Victor Nunes Leal, Evandro Linse Silva e Hermes Lima, já sem o concurso de Adauto Lúcio

Cardoso e outros juizes liberais, inclinou-se, naturalmente, nadireção oposta. Com argumentos à base da subserviência à litera-lidade legal, repassados do espírito da sociedade disciplinar, oSupremo firmou jurisprudência no sentido de que “ a identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda qúe oindiciado já tenha sido identificado civilmente” . Quando se

 prenunciava esse ovo da serpente, René Dotti escreveu um beloartigo, vinculando o assunto ao princípio da presunção de inocência. A edição da Súmula n.° 568, com a redação acima transcrita,

mereceu de Heleno Fragoso, na  Revista de Direito Penal,  umácido comentário: ‘ ‘é lamentável que isso tenha ocorrido” . Ostribunais estaduais foram paulatinamente se submetendo à orientação da Corte Suprema, sem embargo da admirável resistênciade alguns magistrados.

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 Na prática, as coisas ficaram assim: os tribunais não podiamisentar indiciados da identificação datiloscópica, porque o Supremo reformava a decisão; mas as autoridades policiais podiam,condicionando a isenção a um futuro pronunciamento do Promo

tor de Justiça, nem sempre formulado.Foi um mérito do Estado do Rio de Janeiro, sob o governode Leonel Brizola, haver se antecipado ao futuro texto constitucional que motivou essas linhas. Uma Resolução da Secretaria dePolícia Civil (n? 92, de 1986) determinava a dispensa geral deidentificação datiloscópica, sempre que o indiciado jã estivesseeivilmente identificado no Instituto Félix Pacheco, e a obriga

toriedade geral da medida em caso contrário, ou nas hipóteses dedúvida sobre a identidade ou o documento respectivo (carteira).Submetida à crítica de um dos maiores processualistas brasileiros, Frederico Marques, a Resolução foi aprovada. E claro quehouve alguma reação; afinal, dispensar ou obrigar de modo geral,sem atender à classe, prestígio social ou recomendações dedignitários não é bem visto por todos. Soluções democráticasdesagradam a quem conviveu longamente com privilégios. De

outro lado,para quem achava que o corpo do indiciado deviamesmo estar à disposição da polícia para o que der e vier, a perdado pequeno ritual de degradação, por seu atrelamento a umaracionalidade, era insuportável. O último episódio de reação foi avisita — aliás, polida — de um funcionário do Instituto Nacionalde Identificação, que pretendeu cobrar a vigência de um convênio entre seu órgão e a Secretaria de Polícia Civil, pelo qual uma

ficha datiloscópica extra ia para Brasília. Fiz-lhe ver que, seaquele vexame desnecessário não era imposto sequer pela lei,não fazia sentido submeter a ele o mais humilde cidadão doEstado do Rio de Janeiro, só porque dois generais (o convênio erafirmado por dois generais) tinham resolvido fazer um superca-dastro no Planalto Central. Para que não subsistisse qualquerdúvida, pedi-lhe que considerasse denunciado o convênio.

O texto constitucional agora aprovado contém ummandamento: o de que a lei ordinária seja adaptada e interpretadade acordo com o espírito de que o indiciado — seja um assaltante

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contumaz ou um brutal estuprador, seja um vizinho quizilento ouum motorista surpreendido pelo pedestre na autovia — não podeser submetido a uma humilhação inútil. Çhega ao fim a última

“ pena” corporal no Brasil. Como diria Paulo Sérgio Pinheiro,viva 1789!

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ALTERNATIVAS À PRISÃO NO BRASIL

 No final do século XIX , a experiência penitenciária euro péia já havia convencido os ju ristas dos inconvenientes das penas curtas, e a direção dos “ sub-rogados” e “ substitu tivos” penais começava a ser explorada. Ainda que o modeloteórico idealista empregado — como em von Liszt ou nos positivistas italianos — não renunciasse ao mito da ressociali-zação pelo cárcere, as virtualidades corruptoras e os ônussócio-familiares das penas curtas constituíram uma evidência

empírica muito convincente. Era certamente o primeiro golpeque a grande “ pena igualitária” das democracias burguesassofria, justamente no século de seu apogeu tecnocrático(regimes filadelfiano, auburniano , irlandês: silêncio, trabalhodiurno e isolamento noturno, progressão, “ m arcas” , etc) eincontestável implantação como sanção dominante e central.“ Incapaz de redim ir, a prisão cu rta é suficiente para

 perverter’ ’ — este topos da época, repetido por todos (entre osquais Bérenger), gerou muitas propostas e medidas, das quais presta excelentemente conta Padovani (L’utopia punitiva, Milão, 1981, ed. Giuffrè). Paralelamente aos primeiros passos do  probation system   nos Estados Unidos da América, asuspensão condiciona! da execução da pena — o sursis à 1’execution — invadiu a Europa (Bélgica, 1888; França, 1891;Suíça, a partir de 1891; Portugal, 1893; Noruega, 1893; etc).O sucesso do sursis  é explicável por suas características con-

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 firmadoras da pena privativa da liberdade; só impropriamente poder-se-ia dizer deste clássico “ sub-rogado penal” constituir-se em alternativa à prisão. Na verdade, o sursis reinventaa ameaça penal no processo de execução e relegitima   a pena

curta a partir da desobediência do condenado; sua inaptidão para questionar essencialm ente a pena privativa da liberdadeexplica a “ m oda” (a expressão foi usada por Ferri) do sursis na Europa da virada do século.

Para o modo de produção que prevaleceu no Brasil doséculo XIX — escravisino interno, subordinado a relaçõesinternacionais capitalistas — a privação da liberdade (prisãosimples) tinha uma função penal com plementar e acessória. O

controle social penal se exercia predominantem ente através da pena de morte, de penas corporais (açoites) e de medidas quereproduziam a condição social escrava (galés e prisão comtrabalho). O escravo que não fosse condenado à morte'ou àsgalés era necessariamente condenado à pena de açoites e imposição de ferros (art. 60 do Código Criminal do Império),expediente com o qual se preservava sua produtividade emfavor do proprietário e se estabelecia uma ligação explícita

entre o poder penal público e privado, já que correspondia aosenhor trazer o escravo “ com um ferro pelo tempo e maneiraque o juiz o designar” (art. 60). Na verdade, para a grandemaioria da massa escravizada, alocada nas plantações de açúcar do Nordeste ou de café do Sudeste, o senhor não era apenasum órgão que executava, mas freqüentemente o órgão quesentenciava sobre a própria pena. Reverso natural, órgãos

 públicos se encarregavam de aplicar castigos determ inados

 pelo senhor do escravo; no Calabouço, anexo à Casa de Correção, “ em troca de módico pagamento, seviciava-se o escravo, revestindo o castigo de cunho oficial, aplicando-se tantosazorragues quantos os estipulados pelo senhor na guia derecolhimento” (J. Alípio Goulart,  Da Palm atória ao Patíbulo,  Rio, 1971, ed. Conquista, p. 103). Um Aviso de 1879recomendava que não se infligissem castigos  a escravos nacasa de detenção, sem prévio exame médico (Paula Pessoa,

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Código Criminal do Império do Brazil,  Rio, 1885, ed. C.Coutinho, p. 140). A palmatória, o grande instrumento disci

 plinar doméstico, foi contemplado em posturas de Alagoas,Espírito Santo e Goiás, entre outros estados, e o ‘ ‘tronco’ ’ nãoexistia apenas nas senzalas, mas também nas cadeias públicas,

Quando, portanto, no último quartel do século XIX, tem inícioa transição para o capitalismo, que levaria à configuração

 política republicana e federativa, estava em vigor um sistema penal cujo eixo era constituído por penas corporais. Só   em1886-foi abolida a pena-de .açoites. Vestígios desse sistema,signo de uma formação social autoritária e estamental, encontram-se ainda hoje nas práticas penais (dis?)funcionais dastorturas, espancamentos e mortes com as quais grupos margi

nalizados, pobres e negros costumam ser tratados por agênciasexecutivas do sistema penal ou por determinação de novos“ senhores5’.

Por tudo isso, no final do século XIX não tínhamos, noBrasil, uma experiência penitenciária avaliada. Com a repú

 blica, im plantavam-se ao mesmo tempo a ordem burguesa e a pena privativa da liberdade (prisão celular, reclusão, prisãodisciplinar —- art. 43 do Código Penal de 1890); fábrica e

cárcere tardios, porém enlaçados, num processo histórico bemdistinto do europeu. O controle social penal tinha agora outrafisionomia: fábricas-prisões para menores aprenderem o tra balho (a rts . 30 e 49 do C ód igo , e dec. n? 1313, de17.jan. 1891); prisões curtas, com compromisso de “ tomarocupação” logo apó s, ou, na reincidência^remoção para colônias penais nas ilhas marítimas ou nas fronteiras, para vadios,m en digo s e ‘ ‘c ap o e ira s’ ’ (se es tran g eiro s, po sterio r

deportação); privação da liberdade para os homens livres tra balhadores que cometessem algum crime. A equação estavamontada: fábrica ou cárcere. Para a peculiar adaptação da pena privativa de liberdade (a “ extrema divis ib ilidade de suaduração” ) aos fins modernos de “ intimidação , segregação eem enda’ ’, cham ava a atenção Galdino Siqueira em 1921{Direito Pena lBra zileiro, Rio, ed. Jacintho). Numa economia

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■que ainda era predominantemente agrária (café no Sudeste, borracha no Norte e, em menor escala , açúcar e algodão no Nordeste), começavam a surg ir as indústrias (têxtil, alimentos, couros, e mais tarde siderúrgica) que iriam substituir as

importações, indispensáveis no regime anterior. Entre as forças emergentes, situava-se “ a oficialidade superior do exército conquistada à ideologia republicana positivista” , cujo

 peso pode ser medido pela adoção do dís tico “ Ordem eProgresso” na bandeira da república, e que, ao contrário dosideó logos l ibe ra is , p re tendia “ uma repú bl ica mi l ita rautoritária” , na qual lhe tocaria importante papel, dentro doenfoque positivista (M. Maurício de Albuquerque, Pequena 

 H istó ria da Formação Socia l Brasile ira,  Rio, 1981, ed.Graal, pp. 419-421). Isso significa que do sistema penal seexigia uma atuação implacavelmente rigorosa, e se a perspectiva da crítica penitenciária não existia, à mingua de experiência, a chamada perspectiva “ clemencial” ou “ indulgencial”era absolutamente incompatível com a etapa histórica e osinteresses das classes hegemônicas.

A introdução do sursis  no Brasil, em 1924, se dá muito

mais por efeito da mimes is  jurídica que parece ser um legadodo colonialismo do que como decorrência de consciente com provação dos malefícios acarretados pela execução das penascurtas. lá o projeto pioneiro de Esmeraldino Bandeira, de1906, não passava de assumida tradução da lei Bérenger (de26. mar. 1891), com duas alterações: a prim eira, desfiguradoraelevação do teto de cabimento do sursis para penas ate cincoanos (significativa, talvez, de que a problemática das penas

curtas, como disse Padovani, não passa da ponta de um iceberg — op. cit., p. 62); a segunda, perigosíssima restrição aocabimento do sursis,  para crimes cujas circunstâncias‘ ‘revelarem perversidade ou corrupção do delinqüente” (nestemote positivista à Garofalo, os inconvenientes da pena curtacediam diante de um arbitrário “ exame crim inológ ico” doau tor), A Exposição de Motivos do projeto que se converteriano decreto n? 16 .588, de 6.set. 1924, que introduziu o sursis,

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 perseguidos, e quais os sujeitos históricos dessa necessidade.Em 1977, importante alteração (lei 6.416, de 24.mai.77) atenuou o rigoroso sistema do Código de 1940. Uma primorosacrônica do movimento acima referido está em René ArielDotti, Bases e Alternativas para o Sistema de Penas,  Curitiba,1980. Por fim, a lei n“ 7.209, de 21.jul.84, reformou a ParteGerai do Código Penal, introduzindo alternativas para as penas curtas de prisão, quais sejam: penas restritivas de direito(prestação de serviços à comunidade, interdição temporária dedireitos e limitação de fim de semana) e multa substitutiva. Omodelo juríd ico que mais influenciou tal reform a foi o italiano(lei de 26.iug.75, n? 354, e 24.nov.81, n? 689). Após a re

forma, o Código Penal brasileiro permite sempre evitar aexecução de penas curtas (inferiores a um ano) ou decorrentes(sem limite de duração) de crimes culposos, por substitutivosrestritivos de direitos ou multa, neste último caso somente

 para penas inferiores a seis meses (arts, 43, 44 e 60, § 2'.’). Osefeitos deletérios das penas curtas, sintetizados por Trapanicomo “ estigmatização; marginalização social; contágio cri-minógeno típico do ambiente carcerário; infantilização e

desresponsabilização” {Le sanzionipenale sostitutive, Pádua,1985, ed. Cedam, p. 1) estão afastados de nosso cotidiano penal. Cortamos a ponta do iceberg.

O sursis é hoje, en tre nós, um “ substitutivo” de segundalinha; na primeira estão as penas restritivas de direitos e amulta substitutiva. Ocorre refletir, considerando-se que o volume não cumprido de mandados de prisão mais o monumentaldéficit de vagas impediriam — estatística e fisicamente — a

execução dessas penas curtas, sobre a significação de suaformal erradicação do cotidiano penal. Cabe pensar na funçãosimbólica dessa erradicação dentro de uma sociedade cujascontradições impõem maior nitidez na demarcação das exclu-sões. A política dos substitutivos, reservando-a exclusão penitenciária para grupo&margi nalizados de “ verdadeiros” criminosos, legitima sua marginalização. Salvo a rara internação dealgum poderoso (fato que, no plano ideológico, realimenta a

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falsa igualdade perante a lei), o cárcere se depura da polêmicaessencial e se reforça politicamente pelo prisma generalizadode pena de segurança, Há uma diferença sensível entre o

sistema penal implantado quando de nossa transição econômica para o capitalismo e os rumos agora delineados, E provável que a política das “ alternativas” não passe do momentovisível de um grande processo histórico de transformação nas

 práticas penais rumo à planificação do bem-estar consumista.Contudo, as condições da (des)organização social brasileira ede nossa economia dependente colocam interrogações específicas sobre o futuro de nosso sistema penal. Qualquer que seja

a direção que a pós-modernidade imponha ao velho aparelho,contudo, é oportuna a observação de Bricola: as medidasalternativas não devem oferecer pretexto para um afastamentodas garantias constitucionais, às quais a realidade aflitiva da

 prisão confere maior realce, nem para transigência cora os princíp ios da taxatividade ou da personalidade da responsa bilidade penal (Le misure alternative alia pena,  no volumerv-?í7 < - ■ , •/*<" native nell’attuale momento storico ,   Vare-

' ------   '-3 '). Nada nos assegura que o direito penal ao  fí ig tiroih..  • n ' T- •'ineficaz (até porque a miséria, em pa.ses como o Brasil,converte a liberdade em pura ficção científica juríd ica), aondese irá cortar doravante?

REFORMA PENITENCIÁRIA À FRANCESA

O deputado Gilbert Bonnemaison, do Partido Socialistafrancês, encaminhou ao Ministério da Justiça o relatório que

 produzira, na qualidade de mediador do conflito instaurado pelo funcionalismo da área penitenciária. O re latório contém100 sugestões concretas para uma reforma do sistema penitenciário francês. Sem ignorar que nossos problemas estão paraos problemas franceses mais ou menos como um vatapá su

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culento está para um refinado prato da nouvelle cuisine,  vale a pena saborear algumas das propostas.

Á questão da superpopulação é considerada a mais gravede todas, raiz e seiva de diversas outras. As elevadas taxas de

reincidência — entre 60 e 70% (dessa vez, a Europa não securvou diante do Brasil) — representam, como o relatórioregistra, um desempenho insatisfatório da instituição pen itenciária e uma advertência contra as penas curtas de prisão:trata-se de não lançar na esteira de produção dessa fábrica decriminosos quem tenha qualquer possibilidade de ver-se punido mediante uma alternativa penal.

O remédio proposto para a superpopulação é audacioso e

criativo, à altura da doença: numerus clausus  e vigilânciaeletrônica. Traduzindo: se uma penitenciária foi projetada para a convivência de 500 presos, quando chega o 501? aadministração tem que escolher um entre os internos, aquelecom melhor prognóstico de adaptabilidade social, e impor-lheum domicílio vigiado eletronicamente. Ele vai para casa comuma geringonça irremovível no pulso, que emite um sinal tãologo seja transposto um determinado perím etro , dentro do qual

lhe é facultado deslocar-se. E dentro da penitenciária, feita para 500 presos, somente ficariam 5 0 0 presos. Obviamente, aviolação das regras por parte do liberado o reconduziria à prisão, repetindo-se com outro detento a experiência .

O relatório Bonnemaison propõe também uma revisão no programa de ampliação do sisteipa penitenciário . Das 13.000novas vagas que seriam abertas através da construção de novos presídios, não se construiriam mais cerca de 30% (3.400vagas), u tilizando-se os recursos respec tivos na conservação erestauração de prisões já existentes.

Outra sugestão tem a ver com algo que aqui chamaríamosde desburocratização   da administração penitenciária. Trata-se de desconcentrar tal administração, em favor de diretorias regionais, que buscariam inserir os estabelecimentos nacomunidade local, procurando-se um m odelo de gestão financeiramente autônomo.

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 formação do pessoal penitenciário é outro aspectoabordado. Além do curso de oito meses, haveria uma reciclagem obrigatória a cada três anos. A diversificação no recrutamento (supervisorespenitenciários, educadores, médicos, as

sistentes sociais, etc) não deveria impedir uma convergênciade atuações, alinhavada por uma política penitenciária comobjetivos e opções claras, mais a possibilidade de ascensãofuncional e remuneração condigna. A inexistência de unia política de saúde tende a converter os serviços médicos numaespécie de pronto-socorro do caos, e isto é muito perigosoquando se lida, por exemplo, com Aids.

A extensão dos horários, permitindo o funcionamento

dos parlatórios até 19 ou 20 horas (e facilitando, assim, a visitade familiares), é outra idéia interessante.Os serviços de assistência ao egresso (sob a denom inação

Serviço Público de Orientação Penal e Inserção Social) devemser objeto de considerável reaparelhamento. O relatório lamenta que o número total de assistentes sociais em todo osistema penitenciário francês eqüivalha ao da grande Londres.

Representação dos internos junto à adm inistração, visitas

íntimas, defesa eficaz de seus interesses na justiça, são alguns do demais assuntos sobre os quais se detém o documento.Em passagem extremamente feliz, afirma o relatório:

“ Confusamente, nos espíritos, a prisão é concebida com apenas uma porta, a de entrada, o que dispensa a reflexão sobre oestado no qual os presos são libertados” .

As propostas do relatório Bonnemaison são oportunas emerecem a reflexão de nossas autoridades. Se não temos ali

uma exaustiva investigação sobre o futuro da prisão nas sociedades pós-modernas, encontramos um a criatividade e um senso prático incomuns . Como na cozinha francesa, ficamos comuma certa fome, mas o sabor é irrepreensível.

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Algo distinto começou a ser feito, ainda sob a vigência do positivismo, quando o criminólogo se valia do texto literário parailustrar ou esclarecer alguma prática de seu interesse. Entre nós,Roberto Lyra recorreu largamente à literatura: foi de Júlio Ribeiro a descrição que usou da execução da pena de açoites, aplicávelaos escravos. O relato literário, muitas vezes integrado pelaexperiência do autor, quando não explicitamente autobiográfico,não é menos elucidativo do que a objetiva descrição técnica domesmo fato, processo ou instituição: através de Dosíoievskit Recordações da Casa dos Mortos)  aprende-se sobre a penitenciária não menos do que através de John Howard (O Estado das Prisões)  e sua descendência. Um diretor de presídio brasileiroque tenha lido, por exemplo, representantes da nossa literatura comoGracDiano Ramos (Memórias do Cárcere), Plínio Marcos (BarreJa) e Assis Brasil (Os que Bebem como os Cães) compreenderá meihor oque está fazendo.

Interesse especial merece o amplo gênero ao qual se dedicaram escritores como Conatt Doyle, Agatha Christie, GeorgesSimenon e Dashiei Hammett. No romance policial, o crime e adescoberta de seu autor constituem a matéria dominante, e cabeindagar até que ponto algumas vezes a vida imitou a arte, nosentido de uma influência dos métodos dos detetives Hoimes,Poirot, M aigret ou Spade sobre as pautas reais de investigação

 policial adotadas. João Luiz Pinaud percebeu, no estatuto literário do romance policial de países centrais, um preconceito declasse, impeditivo de que empregados e pessoas humildes fossemo procurado autor do crime. Não operaria vigorosamente, na

 prá tica policial de países periféricos, um preconceito similar

apenas com o sinal trocado? A construção de estereótipos criminais, com livre trânsito nos discursos de lei e ordem, recebeucontribuições do romance policial. Recentemente, Ruy Castrolembrava “ a introdução da mulher inescrupulosa, perversa e fria,atuando de igual para igual com os piores sujeitos possíveis” ,feita por Dashiei Hammett. Por fim, cabe atentar para o romance-reportagem, como o famoso A Sangue-Frio de Truman Capote,ou, entre nós, os conhecidos trabalhos de José Louzeiro; aqui, a

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ficção é atropelada pela realidade, e nem sempre é possíveldiscemi-las,

Se um possível efeito criminógeno dos delitos integrantes deenredos literários sobre os leitores jamais ultrapassou o níveltosco de associações mais ou menos arbitrárias (como os suicídios que Sighele atribuiu ao Werther), as coisas mudaram radicalmente com. o cinema. Ainda nos anos 30, estabeleceu-se ahipótese de que o impacto da imagem cinematográfica, exibindocenas medonhas epersonagens movidos, corno dizia Sutherland,“ by goals of easy rooney and sex” , influenciava e alterava

 padrões de comportamento das pessoas, especialmente das crianças. Simplificadamente, podemos dizer que essa hipótese deu

origem a duas correntes opostas: uma ‘ ‘teoria da imitação’ ’ ou da“ identificação” (Blumer, Burt) , segundo a qual o espectador,em particular o jovem, tende a imitar o comportamento do

 protagonista, com quem se identifica, e uma “ teoria da válvulade segurança” (Mannheim), segundo a qual no espectador se

 produziria um efeito catártico inibidor da imitação ou identificação. Há quem concilie ambas as posições, como Edgar Morin, para quem “ o espetáculo da violência ao mesmo tempo incita e

apazigua” .Simplificações costumam ser o melhor atalho para deformar

e às vezes ridicularizar um problema, qualquer que seja a longitude social em que se apresente. No Ocidente, muitos estudosque buscaram relacionar filmes e desajustamentos juvenis esqueceram-se por completo de que para o herói real da acumulaçãocapitalista o dinheiro é algo fácil, e que o sexo é um dos maisrecorrentes motivos na propaganda de seus produtos. Pedrinho

Guareschi lembra que a fetichização dos meios de comunicação permite à classe dominante falar da “ influência perniciosa ede sag rega do ra’’ ou do “ conteúdo vulgar, violento ou pornográfico” dos programas editados por seus próprios veículos . O chefe da delegação da União Soviética ao II Congressoda ONU sobre Prevenção do Delito e Tratamento de Delinqüente(Londres, 1960), adequadamente chamado Smirnov,  garantiu queos filmes de TarZan provocaram um aumento na delinqüência

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 juvenil .. . O tema ensejou inúmeros estudos oficiais, como osinquéritos parlamentares da Inglaterra (1950), dos Estados Unidos (1955 e 1962), e a pesquisa do Conselho da Europa (1966).Tomando o modelo de Brodbeck e Jones (que selecionam quatro

grandes variáveis: a predisposição dos jovens, o conteúdo do programa, o impacto e o comportamento induzido), e submetendo-o a três enfoques teóricos distintos (psicanalítico, aprendizagem social e frustração-agressão), Ferracuti e Lazzari chegam àconclusão de que “ não há atualmente demonstrações concludentes que referendem o temor, difundido em largas esferas daopinião pública, de que a representação de cenas violentas provoque um efeito criminógeno direto e imediato, em indivíduos

dotados de personalidade norm al” . Frisam, contudo, que “ nãose pode dizer o mesmo acerca de indivíduos anormais ou particularmente predispostos a desiquiííbrios psíquicos” . Contestamigualmente o “ efeito catártico” , bem como os efeitos habitualmente atribuídos ao processo de identificação, e recomendam“ uma atitude de autocensura e seleção” na divulgação de cenasde violência.

Como observou Marcos Sá Correa, não só o mordomo (nem

apenas o seletor de canais) abre as portas de casa para o crime;também o jornal, submetendo-se a essa “ fatalidade funcional” ,ingressa no rol dos suspeitos. Não está no formato contemporâneo do jom al o berço da chamada “ crônica vermelha” . Estudando os folhetos que no século XIX narravam os crimes escandalosos , Foucault observava o uso reiterado de subtítulos como“ detalhes” , “ circunstâncias” , que teriam a função de “ mudarde escala, aumentar proporções, fazer aparecer o grão minúsculo

da história’ ’. Espelho das confusas manifestações das violênciasurbanas, a página policial dos jornais brasileiros deste final deséculo está a merecer investigações que decifrem sua estrutura

 básica e os processos seletivos correspondentes. O critério pro posto por Barthes, num trabalho que Carlos Henrique de Escobardivulgou entre nós, levaria a admitir a coexistência da informação criminal “ reconhecida” (admitida e “ classificável” comotal) e da informação criminal monstruosa e excepcional ou exó-

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ticã   e insignificante, mas em qualquer caso não “ reconhecida”(= inclassificável), compondo um amplo mosaico do fa it divers 

 policial. Para exemplificar, em momentos de intensa atividade degrupos de extermínio, notícias de chacinas se incluem docil

mente na informação criminal classificada. As funções legitima-doras da ordem que a página policial desempenha, especialmenteem periódicos populares, igualmente merecem exame. Em seuestudo sobre um desses periódicos, Antônio Serra observavacomo os elementos discursivos promoviam a divisão do mundoem dois: “ de um lado, o mundo normal, cujos índices são aforma organizada de família e a inserção na produção; de outrolado, o mundo marginal, patológico, tentando permanentementese infiltrar e subverter a ordem do primeiro’ ’. Tal maniqueísmo,acoplado a uma história criminal, produz o efeito, percebido porEliane Junqueira, de ‘ ‘revelar e reforçar simultaneamente a relação estabelecida de cada segmento social com as esferas dalegalidade e da ilegalidade, ou seja, com o próprio Estado atravésde seu ordenamento jurídico e de seus aparelhos repressivos” .As dissimulações de violências cometidas por agências da ordem(“ autos de resistência” visivelmente artificiais, diagnóstico“ tranqüilizador” de “ guerra de quadrilhas’ ’, etc) costumam seracriticamente endossadas. “ A publicação da versão policialcomo se fosse a verdadeira’ ’ foi incluída pelo jornalista AncelmoGóes numa relação de erros mais grosseiros na cobertura policial,segundo Chico Nelson. Por outro lado, é chocante a desproporção do espaço distribuído pelas distintas causas de morte emcomparação com sua importância estatística, bastando cotéjar noRio de Janeiro a centimetragem dedicada aos homicídios dotrânsito (equivalentes a aproximadamente 30% do total de mortescriminais) e aquela deferida aos homicídios associados a algumcrime patrimonial (equivalentes a aproximadamente 3%, ou seja,com incidência 10 vezes menor).

Cabe analisar à parte o papel do repórter policial. Constantemente exposto a relações perigosas, está sujeito a permear-se pelas perspectivas ideológicas do discurso de lei e ordem, convertendo-se de (bom) repórter policial em (mau) policial-repórter,

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como parece ter ocorrido algumas vezes no rádio, Â vertente política é sem dúvida importante, mas devemos evitar reducio-nismos ilusórios, que vejam, tal como observado por SteveChibnall, no profissional da comunicação um simples títere manipulado pelo dono do veículo e oprimido por seu poder.

Por fim, é importante considerar a hipótese do chamado“julgamento pela imprensa” (trial by the media),  quando pessoas e fatos relacionados a um processo criminal em andamentosão noticiados ou comentados com teor opinativo, claro ou subliminar. Chico Nelson menciona alguns desses casos, nos quaisacusados ou vítimas foram impiedosamente massacrados antes

do julgamento por uma pena informal de infâmia que faria morrerde inveja o mais feroz legislador do absolutismo. A imprensa temo formidável poder de apagar da Constituição o princípio da presunção de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo. Odesconhecimento geral sobre o Poder Judiciário e seus procedimentos, tematizado por Miranda Rosa e Walter Ceneviva, contri

 buirá para isso, e para que a crônica dos julgamentos seja tãofreqüentemente impregnada de elementos irracionais e míticos.

A contribuição que uma lei de imprensa democrática possaoferecer a essas questões é em si outra — e delicada — questão.Provavelmente, nenhum pesquisador sóbrio conseguirá jamaisdemonstrar efeitos criminógenos de Tarzan, mas haverá semprealguém interessado no princípio legal que estabeleça algumamargem de controle ou censura. Igualmente, nenhum pesquisador crítico obteria a demonstração de que jovens se rebelam porimitação de personagens que recusaram um modo de vida egoís-tico, competitivo e excludente, e não por recusarem eles próprioseste modo de vida — mas haverá gente empenhadíssima em velaro espelho, para que não reflita a realidade. Numa lei de im prensa democrática, o ingrediente básico é a liberdade.

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LEI DA CENSURA E LEI DA IMPRENSA

 Na sala da Faculdade, o professor da Turma Á pergunta aosalunos: “ O que pensam vocês de uma lei que estabelece censurasobre espetáculos e diversões públicas (art, 1?, § 2f); de uma leique enseja castigar a divulgação de fatos verdadeiros (art, 16); deuma lei que pune quem vagamente ‘ofende a moral pública e os

 bons costumes’ (art. 17); de uma lei que, caso alguém impute acertos dignitários a prática de um crime e, por eles processado,deseje provar que sua imputação era verdadeira, ou seja, que odignitário realmente praticara aquele erime, não permite seja tal

 prova produzida (art. 20, § 3.°); de uma lei que faculta ao Ministroda Justiça determinar, independente de ordem judicial, a apreensão da edição de um jornal se nele vislumbrar incitamento àsubversão da ordem ou ofensa à moral pública e aos bons costumes (art. 63)?” Os alunos respondem em coro: “ Essa lei éinsuportavelmente autoritária; é uma autêntica lei da censura" .

 Na sala ao lado, o professor da Turma  B  pergunta aosalunos: “ O que pensam vocês de uma lei que assegura a manifestação do pensamento e a difusão de informações ou idéias inde pendente de censura (art. 1?); de uma lei que garante exclusivamente a brasileiros a propriedade, controle e orientação intelectual e administrativa de empresas jornalísticas (art. 3? e §§); deuma lei que protege o sigilo da fonte e impede seja por essemotivo o jornalista molestado (arts. 7.° e 71); de uma lei queestabelece jamais constituir abuso a crítica inspirada pelo interesse público ou a exposição de doutrina ou idéia (art. 27, incs. VIII

e IX); de uma lei que circunscreve ao autor da matéria, ousucessor legal, a responsabilidade penal, e limita em poucossalários mínimos a responsabilidade civil (arts. 37 e 51); de umalei que tutela eficientemente o direito de resposta (art. 29 ss); deuma lei que assegura ao jornalista profissional, em caso de prisão, condições materiais compatíveis ( ‘sala decente, arejada eonde encontre todas as comodidades’), sem sujeição a rigor penitenciário (art. 66)?” Também em coro respondem os alunos:

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“ Essa lei é admiravelmente democrática, além de nacionalista; éuma verdadeira lei da imprensa".

Por incrível que pareça, ambos os professores falavam da mesma lei, da lei n.° 5,250, de 9.fev.67; apenas, haviam escolhi

do tópicos diferentes, e por isso à repugnância da Turma  A correspondia a admiração da Turma  B.  Skidmore nos recordou que na gênese dessa lei conviveranvo rancor do governo paracom os meios de comunicação (“ um espinho na sua garganta’ ’) ea “ influência da opinião pública e do Congresso” , despeitada

 pela grande reação dos jornais ao projeto original. A lei nP5.250/67 está impregnada desse dualismo congênito, capaz nãosó de causar confusões na hora do recreio, quando os alunos da

Turma  A  encontram os da Turma  B,  mas também de levar à perplexidade os tribunais e expor as autoridades do momento àtentação do arbítrio. Como a violação da liberdade de expressãoestá longe de ser uma questão entre jornais e governo, masinteressa fundamentalmente à sociedade civil e a cada pessoa —não sem razão, Stuart MilI via na censura de uma voz umaespoliação de toda a raça hum ana — , é bem caracterizador dofarisaísmo da “transição democrática” vigente que nenhum es

forço (salvo uma iniciativa na primavera de reformas legislativasdo Ministro Fernando Lyra, frustrada por sua exoneração) sejafeito para a cirurgia que esse texto legal tem que sofrer.

Encerrada a votação do primeiro turno, encontramos nafutura Constituição jts  linhas básicas que a lei ordinária sobreimprensa deverá adotar para submeter-se às diretrizes constitucionais. Entre as garantias individuais arroladas nos diversosincisos do artigo 5.°, estão previstos a liberdade de manifestação

do pensamento, vedado o anonimato (inc. IV); o direito deresposta proporcional ao agravo, e indenização por dano material, moral ou à imagem (inc. V); a independência de préviacensura ou licença para as atividades de comunicação (inc. IX); oacesso à inform ação e o sigilo de fonte (inc. XV). A questão daqualificação profissional foi remetida para a lei ordinária (inc.XIV).

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 Nenhuma grande novidade, como se. vê. Mesmo a vigentelei 5.250/67, esquizofrenia à parte, conhece todas essas diretrizes. Não seria difícil, a partir delas, escoimar de seu texto as

marcas do rancor, da aversão pânica ao opositor e ao diferente; beneficiado este lixo autoritário com doses maciças de liberdade,tolerância e clareza técnica, poderia ele converter-se numa leidemocrática.

 Na elaboração dessa futura lei, temos que levar em conta aexperiência do modelo democrático. Como observou Marcuse,“ com todas as suas limitações e distorções” (e, entre essas,devemos incluir aquela que Vishinsky chamou de “ escravização

da imprensa pelo capital” ) “ a tolerância democrática é, emqualquer circunstância, mais humana que uma intolerância institucionalizada, que sacrifica os direitos e liberdades das gerações

 presentes em benefício das futuras” . Algo como o atual artigo15, que incrimina a simples publicação de segredo de estado ouinformação sigilosa, não pode existir numa lei democrática. Osegredo de estado obriga os altos funcionários públicos que oconhecem e seus cúmplices; só eles podem ser punidos por sua

inconfidência. No célebre processo The New York Times vs The United States o f America, o Juiz William O. Douglas recordou ouso de acusação crim;nal para reprimir “ a divulgação de matériasembaraçosas para o Poder Executivo” . No mesmo caso, o JuizPotter Stewart, considerando os enormes poderes de que, noregime presidencialista, dispõe o Executivo para certas áreas,concebia a “ opinião pública informada e crítica’ ’, consubstanciada numa “ imprensa atenta, conscienciosa e crítica” , como o

instrumento por excelência para, naquelas áreas, ‘‘proteger osvalores de um governo democrático” .

É preciso, igualmente, aprimorar nossa própria experiência,e um bom exemplo está na questão da chamada responsabilidade sucessiva. Segundo-o princípio geral do Código Penal, todas as

 pessoas que concorrem para a prática de um crime respondem porele: se se tratar de um homicídio, por exemplo, responderãoquem mandou, quem vigiou a vítima, quem comprou o revólver e

quem atirou. Imagine-se esse princípio aplicado à imprensa. Um

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colunista comete calúnia contra alguém: responderiam o colunista, o dono do jornal, o editor, o boy, o íinotipista, o motorista,o vendedor... Precisamente em face do valor político da impren

sa em. si, a solução legal é que só responda o autor da ofensa — emais ninguém. Não há muitos problemas em assumir o autor (daofensa) a função técnica de autor (do crime), como em reportagens assinadas, entrevistas ou colunas. Os problemas começamquando o autor da ofensa resulta de ficção legal (por exemplo, odiretor de redação, ou redator-chefe, com. respeito às matériasnão assinadas). Nossos tribunais costumam negligenciar quantoaos requisitos de autor,* nesses casos, contentando-se com uma

responsabilidade “ legal” inadmissível e inconstitucional. Ninguém pode ser condenado por afirmações das quais sequer iomouconhecimento. Interpretada dessa forma, a responsabilidade sucessiva se volta contra a imprensa, negando sua origem histórica.

 No texto da vigente lei n° 5.250/67 convivem, em tensãoirredutível, uma lei da censura  e uma lei da imprensa.  Um......   mnro  >1e 1847. na pequena Gazeta

tienana , conhecia bem a diferença entre ambas: “ A lei da im prensa pune o abuso da liberdade. A lei da censura pune aliberdade como se fosse um abuso.” Em _ r™tempo, a liberdade já foi excessivamente punida.

REPRESSÃO A FAVOR DA ARTE'

Em artigo sobre a falsidade artística, Sylviane Durranderecorda que o falsário David Stein havia pintado 400 telas ‘‘à ’ ’Matisse, Léger, Miro e Braque, e que, segundo estimativa doJuiz Sauret, o famoso Femand Legros houvera vendido cercade dois mil quadros falsos (Revue de Science C riminelle et de 

 D roitPénal Comparé,  1989, n.°4, p. 682). Como estam os , noBrasil, em matéria de proteção penal à obra de arte plástica?

 Não dispomos de normas penais que atendam aos problemas específicos da obra de arte plástica. Quando, em 1980, as

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arqueológico) devem inscrever-se numa seção especial doregistro comercial (a rt, 1.“). Sempre que ocorrer uma venda, otitular da empresa ou organizador da exposição deve colocar àdisposição do adquirente atestados de autenticidade e de pro

cedência disponíveis; na sua ausência, uma'fotografia da obra,em cujo verso se declare sua autenticidade ou se indique sua procedência (art. 2.°). Seguem-se as disposições penais: o tipo básico (art. 3.°) de contrafacção, alteração ou reprodução daobra de arte, com a finalidade de proveito ilícito (que ainda nos

 parece insuficiente para resolver o problema da imitação estilística fraudulenta)  e os tipos “ satélites” de autenticação ou

 períc ia fa lsas dolosas (art. 4?), aos quais se cominam penas privativas da liberdade (3 meses a 4 anos), de multa, de suspensão do exercício do comércio (até 6 meses ou, em caso dereincidência, interdição definitiva) e de publicação da sentença (arts. 5.° e 6?). Normas de caráter processual determinamo confisco das obras falsificadas, bem como retiram a prova

 pericial dos órgãos técnicos ord inários, claram ente incapacitados para tal tarefa, p revendo a intervenção de peritos indicados pelo M inistério da Educação e Cultura, ouvido o ConselhoSuperior de Belas-A rtes, e o próprio artista, quando vivo (arts.

7.° e 9f). No momento em que os jornais anunciam a elaboração de

trabalhos enciclopédicos sobre a arte brasileira, não é excessivo imaginar que, na confluência das atividades das Secretarias estaduais de Cultura com o órgão federal, possa criar-seuma câmara com atribuições para registrar a produção dosartistas e expedir certificados de autenticidade de obras dearte.

Em 1977, um projeto de lei do Senado (n.° 111, subscrito pelo Senador Vasconcellos Torres) propunha que nenhumaobra de arte seria comercializada sem o “ Certificado déAutenticação” , emitido pelo autor, por seus sucessores, ou

 por museus. O assunto poderia ser re tomado.Os artistas interessados em evitar a proliferação frau

dulenta de seus trabalhos, os museus e colecionadores, bem

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como os marchands interessados em negócios honestos e claros, emprestariam por certo toda a colaboração. Em algunsanos, a falsidade artística entre.nós não passaria de um mo

desto resíduo, que dois ou três tipos legais de ilícito bemconstruídos, com penas e procedimentos adequados, se encarregariam de reprimir. Essa é, aliás, a única espécie de repressão a favor da arte.

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VIOLÊNCIA E POLÍCIA

' MORTE CRIMINAL NO RIO DE JANEIRO

Pode parecer estranho, depois que teorias modernas —especialmente o finalismo e suas derivações — reduziramextraordinariamente as funções do resultado   na análise dodelito, aproximar três classes distintas de delito precisamente

 pelo resultado e apreciá-las conjuntamente. Pois é disso que setrata, quando pretendemos exam inar o desempenho estatísticodos homicídios dolosos, homicídios culposos (ocorridos em

circulação viária) e latrocínios ou roubos seguidos de morte,na região metropolitana do Rio de Janeiro, de 1982 a 1986.Claro está que a empresa só se torna justificável e exeqüívelquando se renuncia por completo à perspectiva da dogmática

 jurídico-penal e se procura recupera r o denominador comumdas três classes — o resultado morte — em nível de fato socialcom importantes conotações e significado. Refoge com pletamente à modéstia do estudo qualquer incursão nessas conotações e nesse significado, seja por uma descrição antropológica, à maneira de Philippe Ariès, do que seria a ‘ ‘ mortecriminal” — mors repentina,  não inteiramente despida dos preconceitos da gesta medieval, e ao mesm o tempo “ morteescondida’ ’ pela medicalização, do eventual atendimento hos pitalar à inexorável burocracia da autópsia— , seja pela consideração, à maneira de José Carlos Rodrigues, do papel por elerepresentado na estruturação do poder dentro da sociedadeindustrial.

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 Nos levantamentos estatísticos da Polícia Civil do Estadodo Rio de Janeiro, a região metropolitana é constituída peloMunicípio do Rio de Janeiro e mais 11 municípios contíguos,A população estimada total desses 12 municípios em 1985,

segundo o instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, erade 9.926.717 residentes. Todos os acontecimentos que signifiquem o cometimento de um crime chegado ao conhecimentoda Delegacia de Polícia ensejam um ‘ ‘registro de ocorrência” .Os números aqui empregados resultam da soma desses registros de ocorrência.

Tomamos três espécies de morte que constituem a esmagadora maioria das cifras criminais: a mòrte por homicídio

doloso, a morte por homicídio culposo no trânsito, e a morte por latrocín io ou roubo seguido de morte. A m orte por homicídio doloso (doravante MD) se dá quando alguém é intencionalmente morto por outrem. A morte por homicídio culposo notrânsito (doravante  MT)  resulta da falta de cumprimento dosdeveres de atenção e vigilância por parte de condutores deveículos. Pode haver homicídio culposo fora do trânsito (porexemplo, alguém que imprudentemente brinca com uma arma

carregada, matando um circunstante), porém sua incidência édesprezível perto do volume de mortes associadas à circulaçãoviária. Por último, a morte que se segue a um roubo, ou amorte em latrocínio (doravante  M R),   engloba duas hipótesestecnicamente bem distintas, mas que foram aqui agregadas: ocaso do ladrão que, ao empregar violência para o roubo, seexcede e involuntariamente causa a morte (roubo seguido demorte) e o caso do ladrão que mata intencionalmente para

roubar (latrocínio). É lamentável que, não constituindo delito pela legis lação brasileira a omissão de medidas obrigatórias desegurança do trabalho, e nunca se explorando, salvo por exceção, a vertente de um homicídio culposo em tais casos, este

 jam ausentes de nossas tabelas as v ítimas fatais de acidentes notrabalho.

A soma das MDs, MTs e MRs constitui o total de mortes(doravante TM)  criminais no Rio de Janeiro. Este TM não

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cessou de crescer, de 1982 a 1986 (cf. quadro I). A taxa dessecrescimento é regular, salvo de 1983 para 1984, quando seobserva a maior elevação, O TM, que era 4.246 em 1983, salta

 para 5.192 em 1984 (22,27%). De 1982 para 1983, o TM

aumentara 11,23%; de 1984 para 1985, 7,35%; e de 1985 para1986, 6,24%. 'Dentro desses TMs relativos- a cinco anos, a distribuição

das MDs, M Ts e MRs obedecem a tendências bastante percep tíveis. As MDs apresentam nítida curva ascensional; elas, querepresentavam, dentro do TM de 1982, 59,39%, atingiram71,00% em 1985, e se mantiveram em 70,95% em 1986.Também aqui a maior elevação se deu de 1983 para 1984 (cf.

quadro I), correspondendo a um aumento de 30,41% nas MDs.As MTs sofrem de 1982 para 1984 notável redução (de37,92% em 82, chegam a 28,65% em 84), estabilizando-seneste patamar. As MRs têm seu pique em 1983 e 1984(ocupando, respectivamente, 3,08% e 3,10% dos correspondentes TM s) , reduzind o-se à menor proporção em 1986(1,95% ). É curioso observar que a comoção social produzida edivulgada pelas mortes associadas a roubo, estatisticamente

 pouco sig nificativas, costuma desencadear campanhas de leie ordem — enquanto que a morte no trânsito, estatisticamenteresponsável por quase um terço do total de mortes, no períodoexaminado, é considerada comumente da perspectiva de umepisódio individual “ infeliz” , não se cobrando ao Estado,com a veemência que a proporção sugeriria, as medidas adequadas ao controlemos fatos.

QUADRO I

Ano 1982 1983 1984 1985 1986

n? % n? % n? % n?   %  n?   % 

MDs 2266 59,39 2717 63,98 3543 68,23 3958 71,00 4202 70,95 •*MTs 1447 37,92 1398 32,92 1488 28,65 1477 26,49 1604 27,0SMRs 102 2,67 131 3,08 161 3,10 139 2,49 116 1,95TM 3815 100 4246 100 5192 100 5574 100 5922 100

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A distribuição da incidência de MDs, MTs e MRs pelosmeses dos anos examinados confirmou algumas hipóteses enegou outras. Para cada uma das classes, tomamos os quatro

meses de maior incidência em cada ano.As MDs se concentram principalmente de novembro a

fevereiro. Novembro, dezembro e fevereiro, nos cinco anosexaminados, estiveram quatro vezes entre os quatro meses demaior incidência. Janeiro e abril estiveram, duas vezes.

As MTs assinalam apreciável incidência em janeiro e julho (ambos, três vezes entre os quatro meses de maior incidência durante os cinco anos examinados). São meses de fériasescolares. Surpreendentemente, porém, maio registra maiorconcentração (quatro vezes). Como junho também se apresenta três vezes entre os quatro meses mais carregados, forma-se um bloco de maio a julho — além de, isoladamente, janeiro.

As MRs apresentaram maior concentração nos meses de ja neiro, abril e dezembro (três vezes). Ao contrário do que se poderia esperar, fevereiro; mês da grande festa popular cario

ca — o carnaval — nem uma só vez, nos últimos cinco anosesteve entre os quatro meses de maior incidência. Como outu bro e novembro comparecem duas vezes, seria possível, aexem plo do que se passa nas MDs, pensar que também as MRstendem a concentrar-se nos meses em que a região metropolitana do Rio de Janeiro, a um só tempo, vive sua alta estaçãoturística de verão, com aumento de gppulação flutuante, esofre as campanhas consumistas de fim de ano.

Se um exame individualizado das MDs fosse procedido,em amostragem significativa dos registros de ocorrência, encontraríamos , muito provavelmente, a constatação de queelevadíssima quota dessas mortes está associada à atuação dequadrilhas em choque ou grupos de extermínio (com ou sem participação de funcionários, a cham ada “ polícia mineira” ).Com efeito, a observação revela que quando, em determinadaárea — favela, bairro, etc — , por alguma razão (desde morteou prisão de chefes, até o expansionismo de grupos rivais),duas quadrilhas procuram o domínio do comércio de drogas

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ilícitas, sucessivos homicídios alicerçam a acomodação. Nasfavelas, a ausência do Estado e seus serviços confere ao traficante um status  privilegiado; ele tem a capacidadê de possi bilitar transporte, auxílio para construção, alimentação, dinheiro, etc. Muitas vezes, este traficante-Robin Hoodassume o papel de “ pro tetor” da comunidade e leva tal com

 promisso à morte de assaltantes e estupradores. Nessas áreas,onde se registra este vácuo estalai, pequenos comerciantes,muitas vezes vítimas de roubos, costumam organizar gruposespeciais de proteção (“ polícia mineira” ), com ou sem participação de funcionários, cujo método é um só: o sumárioextermínio dos ladrões. Não temos dúvida em admitir, como

hipótese para pesquisa, que não menos de 70% das MDs daregião metropolitana do Rio de Janeiro podem incluir-se noquadro acima esboçado, e que só uma cifra modesta, que nãoexcederia 30%, se referiria a homicídios integralmente circunscritos a um conflito interindividual. A confirmação dessahipótese coloca em primeiro plano a responsabilidade do Estado na maior parte das MDs.

O mesmo raciocínio pode ensejar investigação interes

sante quanto às MTs. A om issão na fiscalização das normas dotrânsito viria em primeiro lugar. Numa cidade em que há ohábito de não respeitar o sinal luminoso após as 22:00h, édever do Estado colocar um fiscal ao lado de cada sinal. As deficiências de sinalização luminosa ou estatigráfica viriam emsegundo lugar. A inépcia na administração da formação domotorista (exames rigorosos), e, p ior ainda, na administraçãode suas infrações, com imediata cassação da licença sempreque fosse o caso, viria em terceiro lugar. Não há dúvida de que

tais fatores — todos de responsabilidade do Estado — alcançariam elevado percentual, talvez próximo de 50%, caso se

 pesquisassem, de maneira individualizada, os registros deocorrência das MTs e os prontuários dos respectivos autoresno Departamento de Trânsito. A semelhante percentual corresponderiam, aí sim, a imprudência individual, os excessos,ou mesmo a infelicitas fa c ti.

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 Não se pode deixar de notar que a maior incidência dasMDs recai sobre integrantes da população mais carente, maisdistante de qualquer intervenção não-repressiva do poder pú blico. Esse dado, esc larecedor e instigante, se revelaria facilmente se na investigação proposta fosse ele pesquisado. Numareunião sob o patrocínio do Instituto Interamericano deDireitos Humanos, na qual as atenções se voltam para osataques que a vida, como direito humano fundamental previstono art. ÍÍI da Declaração Universal, e no art. I da DeclaraçãoAmericana, pode sofrer dos três ângulos em que vimos a“ morte criminal” , valeria a pena pôr em relevo essa outraforma de matar que o Estado utiliza imperceptivelmente.

Quando o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estipula que o direito à vida “ deve ser protegido pelalei” (art. 4?), não caberia, ao lado das justas restrições à penade morte, cobrar do Estado aqueles instrumentos de proteçãoconcreta pelos quais, há mais de 25 anos, Bobbio clamava?

O GRANDE FACÍNORA Não, brasileiros urbanos, nosso facínora mais atuante, nos

so inimigo público n.° 1, o recordista absoluto em matar-nos emutilar-nos, não é o temível assaltante ou o traficante aquadrilha-do. Essa gente agressiva e freqüentemente cruel não conseguiuultrapassar a média de modestos 2,65% (no Rio), 5,12% (em SãoPaulo), 2,08% (em Salvador) e aproximadamente 2,00% (em

Recife), do total das mortes criminais, nessas cidades, no períodode 1982 a 1986. O superbandido de que estamos falando, aocontrário, foi responsável, ao longo desses cinco anos, por umamédia de 30,61% (no Rio), 38,42% (em São Paulo), 64,74% (emSalvador) e 34,80% (em Recife) daquele total. No país todo, sóno ano de 1986, fez ele exatas 27.306 vítimas fatais e feriu nadamenos que 399.404 pessoas. Isto é, 75 mortos e 1.094 feridos por  dial

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O curioso é que essas vítimas só episódica e raramente seinsurgem contra ele, através de alguma manifestação — quasesempre, de caráter local, e só por exceção ganhando a passarelada grande imprensa. Nosso carrasco é tratado com tolerância e

compreensão. A iniqüidade de suas razias é chamada deinfortúnio; seus crimes  têm por nome acidentes.

A comprovação do papel central que o trânsito desempenhanas mortes criminais urbanas em nosso país, por ocasião doseminário “ Mortes Anunciadas: a (des)proteção da vida naAmérica Latina” , realizado na cidade de Salvador, por louváveliniciativa do Instituto Interamericano de Direitos Humanos e doGoverno Democrático do Estado da Bahia, é um desafio que não

 pode ficar sem resposta.

Os crimes culposos (=• cometidos sem consciência e vontade da realização delituosa, mas sim mediante a violação dedeveres de cuidado) são por excelência os crimes da modernidade. Suas atuais feições eram desconhecidas pelo direito antigo.Costuma-se mencionar a Constituição Criminal de Carlos V(1532) como o mais reconhecível precedente legislativo. Nosso

Código Criminal imperial (1830) simplesmente ignorava os crimes culposos, introduzidos apenas por lei de 1871 (não poracaso, após a implantação das primeiras estradas de ferro, e aoinício do decênio que Caio Prado Júnior assinalou ser “ um dosmomentos de maior prosperidade nacional” ). Talvez por isso,

 por se vincularem historicamente à idéia de progrpsso material (oque bem se reflete na teoria jurídica do “ risco perm itido” ), oscrimes culposos não adquirem nitidamente uma identidade moral

delituosa. E   isso não se passa apenas socialmente; entre os juristas, como observava Quintano, os crimes culposos não selibertaram inteiramente de sua progênie privatística. É como se ohomicídio culposo, bem ao contrário do homicídio doloso(intencional), fosse um assunto em cujo tratamento devessem

 prevalecer as variáveis teóricas e práticas do direito privado(como numa indenização por dano involuntário a coisa alheia), enão do direito público.

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Esse trânsito sanguinário, convertido pela desesperança brasileira em espaço privilegiado daquilo que Jurandir FreireCosta chamou de “ cultura narcísica da violência” , principal

causa de mortalidade infantil (para crianças de sete a 14 anos) emnossas cidades, que zombeteiramente aumenta de ano para ano osalgarismos de sua safra de mortos e mutilados, deve ser objeto deum conjunto de providências urgentes e drásticas.

Ao direito administrativo toca, sem dúvida, um papel fundamental em certas linhas  preventivas  de atuação, como porexemplo chamando à prestação de novos exames ou mesmocassando a habilitação do condutor que superasse determinado

nível de infrações cometidas. Isso pressupõe informatização totaldo cadastro de prontuários dos condutores habilitados, e exaçãoabsoluta mais presença permanente dos guardas de trânsito. Nadafácil, especialmente diante da tradição de nossas repartições detrânsito. Contudo, seria também necessário reformar a legislação, para incluir ou atribuir sanções mais graves a algumasinfrações. Na França, por exemplo, cabe a cassação quando omotorista se recusa a parar para inspeção, ou foge após um

acidente.Ao sistema penal, contudo, toca papel decisivo. Como poderíamos conceber os instrumentos legais e judiciais para essa batalha? Alinhemos alguns tópicos.

1.  Antecipar a proteção penal criando novos delitos.  A justiça penal se ocupa do trânsito basicamente a propósito doscrimes culposos de homicídio e lesões corporais (arts. 121, § 3.° e129, § ó.° CP) e das contravenções de falta de habilitação para

conduzir veículos e direção perigosa (arts. 32 e 34 LCP). A taisinfrações corresponde uma escala penal cujo patamar mínimo éadequadamente baixo, mas cujo patamar máximo é escandalosamente insuficiente (por exemplo, a pena máxima possível parauma lesão corporal culposa grave — suponha-se a perda das

 pernas, ou o resto da vida numa cadeira de rodas — , agravada  pela fu ga,  cometida por reincidente com todas as circunstânciasdesfavoráveis é detenção por um ano e quatro meses (art. 129, §

7 ?CP). A direção perigosa, que necessariamente “ põe em perigo

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a segurança alheia’ ’ , é punida com prisão simples de 15 dias atrês meses ou multa, Â falta de habilitação é punida tão-só commulta.

Em primeiro lugar, é preciso construir novos delitos — emverdade, velhos para outras legislações. A fuga  não pode permanecer como simples agravante do autor de homicídio ou lesãocorporal culposa, devendo constituir, como ocorre em diversos países, delito autônomo. Também a recusa de inspeção,  ou quemelhor nome se possa atribuir ao refus d’objempérer,  deveconstituir um delito. A embriaguez ao volante,  independente da

 produção de qualquer outro resultado de dano ou de perigo, deve

igualmente constituir um delito. A violação de regra de trânsito — inclusive ou especialmente o excesso de velocidade — geradora de  perigo concreto enseja' a construção de uma importantefigura penal (que constava do projeto Hungria). O motorista queviolar a interdição para conduzir que lhe seja imposta, judiciai ouadministrativamente,  deve ser submetido a pequena pena privativa de liberdade executada (insusceptível de suspensão). Porfim, deve-se tentar revitalizar a omissão de socorro, cometida tão

freqüentemente em série diante de uma vítima cujo sofrimentonão sensibiliza o rush.

Em segundo lugar, impõem-se a cominação de penas maisadequadas bem como a revisão das escalas penais, para a devidacorrespondência com a danosidade social de tais condutas.

2. Um problema especial: a embriaguez ao volante. A mais preocupante característica do condutor ébrio assinalada pela cri-minologia descritiva é a reincidência. Middendorff menciona

 pesquisas realizadas sobre grupos de infratores embriagados, queencontraram antecedentes penais nas elevadíssmas taxas de51,20%, 51,33%, 72%, 46,7% e 47,56%. Por isso mesmo, éinsuficiente a criminalização da conduta de embriaguez aovolante, sendo fundamental um programa de reabilitação paratais infratores, como se fez, por exemplo, no Estado da Virgínia.Ao mesmo tempo, um férreo sistema de interdições para dirigir  deve ser usado para esses casos.

3.  Responsabilidade de terceiros não-condutores.  Nacria-

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ção de novos delitos, não se pode esquecer a responsabilidade penal de terceiros não-condutores, e aí temos algo a aprendercom o direito espanhol. Em 1967, o código penal espanhol foialterado no que conceme aos chamados delitos contra a segurança do trânsito, e o artigo 340 bis b passou a punir com prisãoquem colocasse na via pública “ obstáculos imprevísibles” .Sucede que a letalidade dos acidentes que envolvem colisãocontra obstáculo é muito superior aos demais. Em 1971, houvena Espanha 3.621 acidentes'fatais, com 4.247 mortos: isso significa um percentual de 117% de mortos por acidente. Daquelesacidentes fatais, 56 se deveram a choque contra obstáculos, e

 produziram 155 mortos, o que representa um percentual de278,5% de mortos por acidente.

Impõe-se criminalizar a conduta de terceiros que causa ou pode causar o acidente. Pense-se na ação predatória que é exercida impunemente, a despeito de raquítica previsão contraven-cional, contra os sinais estatigráficos em nossas ruas e estradas.Pense-se igualmente no descaso com o qual o poder público, porocasião de obras e reparos em vias de circulação, predispõe emcrateras ou tapumes não sinalizados autênticas armadilhas.

A responsabilidade penal de fabricantes que não observem

 prescrições obrigatórias quanto à segurança dos veículos, emanadas do órgão público competente, é também matéria-prima paranovo tipo penal. Por que nossos carros, para ingressarem nomercado de países centrais, devem fazer tantas adaptações eacréscimos em itens relativos a segurança?

4.  A vítima. A vítima, esse grande esquecido do episódio judiciário-criminal, tem no acidente de trânsito peculiaridades aserem examinadas. Em primeiro lugar, a possibilidade econô

mica de reparação do dano pela responsabilidade civil do condutor (ou da pessoa jurídica de quem seja ele preposto) é aquielevadíssima, ao contrário, por exemplo, das vítimas de assalto.Portanto, deve-se abandonar, aqui, a idéia moderna da organização estatal de um fundo para a indenização da vítima. A admissãono processo, reformada a legislação, da parte civil, faria com quea sentença condenatória criminal já estabelecesse a indenização.

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facínora. Um facínora cujo rosto é um painel caleidoscópico,feito com fragmentos de nossos próprios rostos.

O BANDIDO É O ESTADO

Muitas pessoas, principalmente se já foram ou tiveramamigos ou parentes atingidos pela violência, costumara dizer:“ Essa estória de direitos humanos é uma piada; bandido temmesmo é que morrer.” Na maior parte das vezes, quem dizisso escutou antes algo parecido, e às vezes da boca de um

 policial. Essas palavras, que agora repete, o tocaram, parecen-do-lhe mensagem de solidariedade e conforto.

 Nada mais falso.Direitos humanos são direitos que toda pessoa humana

tem — independente do que seja, tenha, pense ou faça. Nemsempre foi assim. No mundo antigo e na Idade Média, osdireitos eram diferentes de acordo com a condição da pessoa: osenhor feudal, proprietário das terras, tinha direitos diferentes

do servo que as cultivava. No Brasil, no século passado, osescravos não eram considerados gente para o direito, e simcoisa. Até as penas eram diferentes: a pena de açoites sóexistia para os escravos. A idéia principal dos direitos humanos é que toda pessoa tem certos direitos que o Estado não pode tirar nem deixar de conceder: vida, trabalho, remuneração digna, aposentadoria, instrução, liberdade, manifestaçãode pensamento, livre associação e reunião, etc.

E claro que se um homem pratica um crime — um homicídio, um roubo, um estupro , um furto — , ele deve ser processado e julgado . Os documentos dos direitos humanos também

 prevêem isso.Mas não pode ser espancado. Não pode ser torturado.

 Não pode ser m orto. Sua família não pode ser humilhada. Seusvizinhos não podem ser importunados e constrangidos. Casasde inocentes não podem ser vasculhadas.

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Se aqueles que matam, assaltam, violentam crianças oumulheres, furtam não são presos, processados, julgados econdenados, a culpa não é dos direitos humanos. A lei prevê

que um acusado que intimida testemunhas, ou que, ficandosolto, coloca em perigo a vida, a integridade física ou o patrim ônio de te rceiros, pode ser preso. Basta a polícia pedirque a Justiça decreta a prisão. Se o acusado for preso emflagrante, em crimes graves, que não têm fiança, só se ele for primário, de bons antecedentes e inofensivo é que a Justiça pode liberá-lo antes do ju lgamento . E se for condenado, a lei programa que na penitenciária ele deve ser reeducado e apren

der um ofício.Por que nada disso acontece? Por que é tão fácil praticarcrimes? Por que tantos crimes são cometidos? Por que muitosdaqueles que os praticam não são presos e processados? Porque as penitenciárias são imundas escolas superiores docrime? Culpa dos direitos humanos, culpa dos bandidos, ouculpa de instituições que não cumprem com seus deveres?

E fácil dizer que “ bandido tem é que m orrer’ ’, e sair por

aí oprimindo toda uma população, divulgando que os hab itantes das favelas e dos conjuntos e bairros populares têm propensão para o crime.

Propensão para o crime tem é o Estado que permite acarência, a miséria, a subnutrição e a doença — em suma, quecria a favela e as condições sub-humanas de vida.

É fácil dizer que “ bandido tem é que m orrer” e invadircasas de famílias honestas, de trabalhadores, e consentir quedisparos perdidos matem inocentes.

Difícil é cobrar do Estado o respeito à lei e a proteção dosdireitos que toda pessoa tem, a começar pela vida.

Perto da culpa do Estado, a do bandido é pequena. E o bandido, a gente ainda consegue prender, processar, ju lgar econdenar. E o Estado?

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consentimento da “ vítima” (Welzel, Grispigni); para outros, nofato de o “ acusado” estar exercendo regularmente um direito(posição predominante no. Brasil: Fragoso, A. Bnmo); algunsconciliam a intervenção dos dois princípios (Soler). Moderna

mente, o fundamento da adequação social da conduta (Jescheck,Fiore) tende a predominar, ainda que apreendido formalistica-mente (Zaffaroni). Trocando em miúdos: o Estado, através da lei do orçamento, destina verbas para incentivar a prática de esportese através de outras medidas legais organiza serviços que objetivam desenvolver aquela prática, tudo no pressuposto dos benefícios educacionais e sanitários que dela resultam para a população. Logo, a prática de esportes tem que ser entendida como uma

conduta socialmente adequada, que é autorizada  e estimulada  por textos legais. Lesões corporais ou mortes que decorram doregular  exercício desportivo são eventuais conseqüências indesejáveis de uma conduta socialmente adequada, que não podemconfigurar crime. Nesses casos, como disse Delogu em seutrabalho sobre o delito esportivo, “ temos a lesão mas falta ainfração” . Pense-se, por exemplo, no boxe. Anota com propriedade Zaffaroni que uma de suas regras (conhecidas, endossadas e

fomentadas pelo Estado, através de inúmeros atos legais ouadministrativos) prevê como efeito normal de sua prática umgolpe que afete de tal modo a integridade física do contendor, queele não consiga, dentro de 10 segundos, prosseguir o jo g o . Osconstantes supercílios rompidos, narizes fraturados, efeitos neurológicos de médio prazo (a figura fantástica do ex-campeãoarrastando os pés) e mesmo mortés, ocorridas dentro das regrasdo esporte, não consubstanciam juridicamente os crimes de le

sões corporais ou homicídio. (Uma outra questão, que ora não sediscute, é se o boxe, tal como praticado hoje, realiza a aspiraçãogeral dos esportes.)

Existe, porém, outra unanimidade — ees ta, sem discrepância de fundamentos. Todos os teóricos afirmam que a descrimi-nação do fato está “ condicionada à observância das regras do

 jo g o” (Fio re). “ Violado o regulamento , a conduta serácriminosa” (Zaffaroni). Fragoso dizia que “ a ilicitude surge,

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aqui, com o abuso, representado pela transgressão das regras do jogo” . Era suma, quando o jogador abandona as normas da competição   (se se mantiver nelas, pouco importam seus votos

íntimos para que o adversário se machuque) e visa inequivocamente a atingir a integridade corporal do adversário , o quetemos é o crime previsto no artigo 129 do Código Penal. Saímos

'da área esportiva, ingressamos na policial-judiciária.Talvez valesse a pena, como entre nós preconiza há 10 anos

Valed Perry, criar um crime especial para essas hipóteses. Contrariando a opinião majoritária dos teóricos, creio que só cabe aincriminação de condutas intencionais (dolosas), e não daquelas

nas quais ocorreu mera precipitação imprudente do atleta(culposas).  Mas enquanto não se chega a isso, temos lei, e a

 possibilidade de aplicação de uma pena admiravelmente adequada para as lesões leves: a interdição temporária de direitos (artigo47, inciso II do Código Penal). Largou a bola e foi escalavrar ascanelas do adversário? Tudo bem: condenado a não participar decompetições oficiais de futebol por três meses. Ao lado da pena

de multa, a interdição poderia cumprir um papel importantíssimona dissuasão do jogo violento.Há ainda um problema: como processar e julgar esses

crimes? Conhece-se a aversão que a Fifa tem à Justiça comum,recomendando às suas associadas nacionais o uso de juízosarbitrais. Qualquer pessoa que tenha sofrido anos a fio o ir-e-virde um processo dá razão à Fifa. Por outro lado, a autonomia dasinstituições que gerenciam a vida esportiva — entre as quais

tribunais administrativos para as infrações disciplinares — deveser preservada. Penso que a solução pode estar nos juizadosespeciais, criados pela nova Constituição (artigo 98, inciso I),com a participação de juizes leigos. É um mau sintoma que, apósquase seis meses de vigência da Constituição, esses juizadosespeciais (que, ao lado das atribuições conciliatórias de juizes de paz eleitos, foram a única mudança no sentido de aproximar o povo do Poder Judiciário) não tenham despertado maior interesseou entusiasmo. Seria tão fácil termos um tribunal de — digamos

 — cinco membros, presidido por um ju iz de Direito, e integra

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do — por exemplo — por representantes das torcidas, do jornalismo esportivo e dos quadros de árb itros, sorteados delistas democraticamente elabo radas. Com os exames,médicosimediatos, depoimentos orais registrados em fita magnética, e

o tape do jogo, esse tribunal teria condições de decidir em poucos dias, e com a menor margem de erro de toda a Justiçacriminal.

Difícil é explicar para o cidadão que, na porta do botequim,repetiu no peito do torcedor adversário a tesoura voadora que seuídolo desfechara em campo, que ele está sendo preso por umcrime que não é crime quando praticado pelo ídolo. É possívelreagir a este contra-senso antidemocrático, que aguça o senti

mento de que a impunidade está sempre relacionada à condiçãosocial do criminoso.Comumente se tende a admitir, como o argentino (et pour  

causei) Altamirano em seu estudo, que “o futebol é violento emsua essência” . Mas em nossa tradição, creio ser mais adequadofalar-se que o futebol é essencialmente prazeroso. É o prazer de

 jogar futebol que mobiliza nossas crianças e jovens, e que talveztenha construído a glória de nossos maiores jogadores — entre os

quais não figura um só caracterizado pela deslealdade. Talvezfosse mais razoável relacionar a violência esportiva e a admiração que eventualmente desperta na torcida à conjuntura políticaque ainda subsiste. Hannah Arendt, em sua famosa monografia,menciona que ‘ ‘parte da atual glorificação da violência é causada por uma séria frustração da faculdade de agir no mundomoderno” . Impossibilitada de reconhecer-se como agente detransformações numa sociedade estratificada, a torcida observacom tolerância a violência, e espera que Rambo faça o gol.

LAR, DOCE LAR...

A mulher brasileira tem sido historicamente a vítimafavorita do conjunto de ofensas à vida, à saúde, à liberdade

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individual e à honra que se reúnem sob a designação comum de“ violência doméstica” .

Sob o regime do escravismo colonial, as alternativaseram igualmente duras. Se “ livre” , a mulher era escravizada

 por uma tradição jurídica que lhe negava a condição de sujeito

de direitos, outorgando a seu marido poderes disciplinares,tudo agravado, no que se relaciona a sexo, por leis típicasdaquilo que Foucault denominou “ idade da repressão” . Se“ escrav a” , a mulher era livremente espancável e violentável;não tivemos um Código Negro, e assim o direito penal dom éstico que controlava a escravaria não conhecia limitações legais, como os trabalhos sobre castigos e sevícias a escravos tão

 bem demonstram .

A construção política liberal da casa-asilo inviolável nãomodificaria substancialmente o quadro, para as mulheres. Deque serve para alguém dizer tny home is my castle se, ao subir a

 ponte levadiça, deparar com seu algoz deitado na mesm acama? Como Heleieth Saffioti anotou, sob o capitalismo adivisão social do trabalho converte a opressão da mulher nométodo de sua exploração: “ o capital remunera parcialmenteum trabalhador e dispõe de dois em tempo integra l” . O inacre

ditável é que o trabalhador parcialmente pago passa a dedicar-se duramente à disciplina de sua parceira, pela internaliza-ção do machismo promovido pelo regime, transformando-senaquele “ poderoso chefão ” doméstico ao qual se refere Rachel Gutiérrez. Por um fenômeno semelhante, fala-se hojenuma “ indefensão aprendida” das mulheres m altratadas,que as levaria a descrer em qualquer iniciativa para mudar suavida.

A importância de uma delegacia de mulheres não está nosinsumos técnicos e m ateriais de que disponha, e sim em con stituir-se num espâço no qual a mulher maltratada pode libertar-se dos preconceitos com os quais é normalmente recebidanas repartições policiais em geral. Não se trata de equipamentos criminalísticos modernos, ou prisões espetaculares: trata-

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se de estimular a denúncia desses constrangimentos capilari-zados e cotidianos que uma sociedade autoritária e violenta fezdecantar numa família autoritária e violenta. Quando a tem

 peratura se eleva e o episódio do «xuoricídio surge, já não precisamos de delegacia de mulheres.

Essas observações são despertadas pelo artigo 98, inciso ída nova Constituição, que prevê a criação de juizados especiais, que podem ser providos por juizes togados e leigos, para

 ju lg am e n to de in fraç õ e s penais m enores. P enso nasvias-de-fato (empurrões, humilhações), nas lesões leves(tapas, socos, pontapés), nas ameaças (promessas de surra oude morte), nos constrangimentos ilegais (proibições ilícitas,

imposição de tarefas excessivas), nas injúrias, em todo o vasto painel de ofensas que não chegam aos limites das lesões gravesou do homicídio, mas constituem seu caldo de cultura e constanteantecedente.

Sei que a proposta enfrentará várias objeções.A primeira objeção virá pela linha: “já existe a justiça

comum, basta aparelhá-la” . Ledo engano. De um lado, temosaquela tendência, percebida por Pizarro Beleza, de tratar a

violência conjugal como questão civil e não criminal — tendência à qual não escapa a justiça de países centrais, comoInglaterra e Estados Unidos. De outro lado, encontramosaquele conjunto arraigado de crendices que, regra geral, balizam a conduta dos diversos operadores judiciários. Cristina deGerlic fez uma síntese dos mitos mais comuns: 1. os sujeitosdo episódio são doentes (ela, m asoquista ou oligofrênica^e ele personalidade psicopática ou drogadito); 2. ela de alguma

forma o provocou (reducionismo vitimológico); 3. se ela quiser, pode ir embora ou pode denunciar; etc. O importanterelatório de pesquisa empreendida pelo Conselho Nacionaldos Direitos da Mulher (“ Quando a Vítima é M ulher” ), a

 partir de casos concretos em seis capitais brasileiras, revela aconstrução de estereótipos (mulher direita x desobediente,inf iel ; homem beberrão, desempregado x equil ibrado,trabalhador) que freqüentemente condicionam a decisão.

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 Não vem ao caso perceber as funções ideológicas que taiscrendices e estereótipos desempenham na ocultação do p roblema real: indiscu tível é seu manejo no tratamento judicial doscasos, o que a pesquisa de campo revela. Muito adequada

mente, Mariza Corrêa, em admirável investigação sobre processos do gênero , analisa como os atores jurídicos — delegados, advogados e promotores — “ constroem a  fábula   a 'serapresentada aos julga dores” — jurados e juizes — , os quais,

 por seu turno, decidirão dentro das variáveis da fábula. Um ju izado especial com participação popular, que não se elitizas-se como em tantos lugares aconteceu ao tribunal do júri,

 poderia ser um passo para a superação desses paradigmas. Porfim, a eficácia dajustiça com um nesses casos é discutível — e,aí sim, a crônica carência de recursos à qual o Judiciário foicondenado, na ditadura militar por conveniência e na novarepública por um coquetel de incompetência e esperteza, é a

 principal responsável. Quem lê , no citado relatório doCNDM , o caso Laís, convence-se de que não adianta ampliaro sistema: é preciso reformar o modelo. Recente pesquisarealizada no México revelou que o horário favorito da violência doméstica é a noite (73% dos casos aconteceram entre

19:00 e 6:00h), e que os dias prediletos são os de final desemana (metade dos casos). Um juizado especial, com funcionamento à noite e em finais de semana e incrustação comunitária, não parece oferecer vantagens extraordinárias para tra

 balhar essa matéria?Com os juizados especiais, a nova Constituição oferece

uma fecunda perspectiva para a democratização e socializaçãodos serviços judiciais. O pecado, aqui, estará sempre na timi

dez das propostas, não em sua abundância. Juizados especiais para enfrentar a gravíssima questão da violência doméstica poderão vir a ser a mais amadurecida e eficaz intervenção doPoder Judiciário na história amarga do lar, doce lar.

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CRIMINALIDADE E FAVELAS

O banditismo urbano instalado nas favelas do Rio de

Janeiro é hoje um fenômeno bastante conhecido e descrito,graças principalmente ao trabalho de antropólogos como AJbaZaluar e outros, que desenvolveram pesquisas de campo. Ateoria básica da “ ausência do Estado” foi formulada por essesantropólogos e permite compreender como, no vácuo dasresponsabilidades omitidas pelo Estado — saúde, educação,transportes, comunicações, segurança p ú b lic a— , pequenasquadrilhas, organizadas principalmente em torno da explora

ção do comércio de drogas ilícitas (cocaína e maconha), logram controlar imensas comunidades, desorganizadas pelatradicional prática do “ clienlelism o” e pela elevada taxa dedesempregados e subempregados.

 Nesse caldo de cultura , historicamente propenso a negociações oportunísticas de sobrevivência, essas pequenas quadrilhas encontram condições concretas para, através de um‘ ‘assistencialismo ’ ’ que é a versão privada do “ clientelis-mo” , obter um reconhecimento com unitário, cujo conteúdo

 pode variar desde uma certa admiração (criadora do “ bandidosocial” no sentido de Hobsbawm) até um mudo horror, consoante seus chefes exerçam preferencialmente a “ generosidade” ou o terror.

A “ generosidade” é exercida através de auxílios materiais para situações especiais de necessidade (reconstruções,medicamentos, transporte urgente, etc) e da administração da

 justiça (tanto quanto Boaventura de Souza Santos encontrou,anos atrás, a Associação de Moradores detendo a jurisdiçãocivil, José Augusto de Souza Rodrigues em recente pesquisaencontrou a boca-de-fumo como instituição encarregada da

 jurisdição criminal). É ilusório supor que essa “ generosidade” exclua os mais bárbaros atos contra os integrantes dacomunidade que se insurgirem ou questionarem o poder da

quadrilha, como é ilusório presumir-lh© uma potencialidaderevolucionária. Na ve rdade , as quadrilhas subjugam as comu

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nidades e delas se aproveitam, de sua miséria, do escudohumano de seus corpos, para finalidades egoísticas.

De alguma forma, contudo, essas comunidades faveladas percebem intuitivamente que existe algo que as subjuga e delas

se aproveita de forma muito mais egoística e eficaz do que asquadrilhas. Incapazes de perceber os mecanismos econômicose históricos pelos quais o capitalismo sempre pode, e o anar-co-capitalismo dependente e perverso que vivemos no Brasilnecessariamente deve converter, na expressão de Alberto Passos Guimarães, “ reservas do mundo do trabalho em reservasdo mundo do cr im e" , as favelas concentram no ódio à polícia

 — a fase visível da ordem injusta que, num passe de mágica,transforma o desempregado no bandido — uma contrapartidaemocional que é aproveitada de forma muito competente pelaselites conservadoras para sua teoria brasileira das “ classes perig osas” .

O estereótipo do delinqüente se fixa na figura do favelado. Pouco importa que, de 100 mortes no Rio de Janeiro,apenas duas estejam associadas a um assalto e 35 sejam causa

das por motoristas imprudentes (as restantes são episódiosinte rind ivid ua is — ho m icídios doloso s -—■, ou “ mortesinstituciona is” ): nossa figura do matador não é um homem declasse média sentado no seu carro, e sim o assaltante a rmado .Pouco importa que o dano econômico e social produzido porum só dos grandes crimes de colarinho branco (falências fraudulentas, sonegações fiscais, evasão de divisas, etc) supere demil vezes o somatório de todos os roubos e furtos: nossa figura

do ladrão não é um banqueiro desonesto sentado em seu escritório, e sim o assaltante ou mesmo o ventanista.

Os intelectuais dessas elites conservadoras, ao invés dagrosseria de campanhas de lei e ordem (que ficam por conta de

 parlamentares financiados pela direita), esmeram-se em questionar o cruzamento sempre problemático de variáveis econômicas (desemprego, valor real do salário, etc) com as estatísticas criminais, no esforço absurdo de desvincular o crime dosocial e reduzi-lo a um episódio religioso ou moral. Esque-

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TROCANDO EM MIÚDOS

Entre as instituições da área de justiça e segurança pública, a

 polícia é uma espécie de “ gata borralheira” , jamais convidada para os bailes dos teóricos, mas sempre muito comentada neles.Sobre ela incide uma empobrecedora redução dual: violência ecorrupção. Não se trata, por certo, de negar o binômio violência ecorrupção (episódicas ou sistemáticas, conforme a partitura e omaestro). Porém, se estamos interessados em conceber uma

 polícia para o estado de direito democrático, convém superaresse reducionismo cego. Convém, por exemplo, perguntar se

uma sociedade que não exerce, a partir de sua própria forma deorganização, a solidariedade e a fraternidade, ou cujas práticas

 políticas não conheçam a experiência da tolerância e.da participação — em suma, uma sociedade organicamente violenta e produtora de violência — pode ter uma polícia em que o respeito aooutro prevaleça sobre a truculência. Convém igualmente perguntar se num país cuja administração pública tem uma história que éum hino àesperteza, uma sucessão de negociatas, “ comissões” ,

ganhos ilícitos, tudo tradicionalmente impune, poderíamos encontrar na administração policial um óasis de austeridade e zelo.Como comparar os mais escabrosos casos de corrupção policialaos mais discretos episódios de corrupção na área monetária efinanceira, senão como um modestíssimo varejo diante um jamais punido atacado?

Acho que esta aí uma chave importante: o isolamento e oabandono da polícia, em cujo corpo podemos execrar as vergo

nhas gerais da administração do estado, desfrutando ainda de umconfortável ‘ ‘efeito-vacina’ ’. Cerca de um mês após haver assumido, nas circunstâncias especialíssimas que todos conhecem, aSecretaria de Estado de Polícia Civil, participei de uma assem

 bléia com aproximadamente 300 detetives, no inconcluso auditório do CCOS. Disse-lhes exatamente isso: as elites que sempregovernaram o país usaram-nos historicamente, enquanto funcionários do estado, para os serviços mais difíceis, mais brutais e

 brutaiizantes, inclusive algumas vezes para serviços sujos; usa

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ram-nos e mantiveram-nos bem longe-de qualquer coisaimportante; bons para a porta da garagem, porém sem nenhumacesso à sala de visitas. Houve um silêncio de intermináveis 10

ou 15 segundos, e os detetives concordaram com aplausos indignados e maciços. Esse  isolamento é internalizado pelos quadros policiais, que se concebem, assim, desligados da sociedade civil — pela barreira dos preconceitos — e da própria adminis tração pública como um todo.

Algumas vezes tive de recordar, a graduados membros daadministração policial, que a dicotomia “ eles” (outros órgãosgovernamentais) — “nós” (a Secretaria de Estado de Polícia

Civil) nem era politicamente real, nem era hábil para os fins pragmáticos de postular recursos para melhorias, reequipa-mento, etc. Mas o “ princípio do isolamento” pode ser .responsável por algo funcionalmente sério, que poderíamos chamar de“ modelo individual de atuação profissional” . Com tal expressão, pretendo referir-me às inumeráveis hipóteses — predominantes, em se tratando de polícia judiciária — nas quais a determinado  policial, ou a um grupo sob imediata chefia de uma

determinada   autoridade, é confiada determinada tarefa (a investigação de um crime,  a prisão de um condenado, o levantamento das atividades de uma quadrilha, etc). Creio ter perce bido a existência de um abismo entre a notável dedicaçãofuncional nessas hipóteses e uma velada indisposição paracom projetos nos quais a atuação coletiva é que cdoía.

A mais ambiciosa das operações policiais projetadas para overão — certamente responsável por termos passado um verão de

86 um pouco menos violento que o verão de 85 — , a chamada“ Parece que foi Hontem” (consistente em criar, de 20:00h às

■02:00h das sextas-feiras e sábados, sistema de segurança intensiva em áreas de lazer), jamais funcionou integralmente. Pode serque uma função do “princípio do isolamento” seja rejeitar todaforma de atuação que não se apresente cristalinamente como‘ ‘policial” . Nesse terreno, pode florescer um perigoso corporativismo, que estimula e reproduz uma subcultura policial. Penso

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que quebrar esse isolamento, incorporando a instituição à sociedade civil, oxigenando os mais recônditos desvãos subcultura-dos, é um pressuposto para qualquer transformação, e pensotambém que a academia de policia pode ser o instrumento básico — ainda que não exclusivo — para essa faernodíálise. Sobretudo» esse processo não deve, autoritariamente, ignorar osquadros e lideranças funcionais, nem a discussão interna pelaqual o policiai resgate sua própria identidade de cidadão, suasresponsabilidades como funcionário do estado e os compromissos básicos de sua profissão.

De qualquer forma, todo mundo sabe um pouco a políciaque não se quer, ainda que a compreensão negativa da instituiçãosofra o reducionismo violência-corrupção. Mais importante,neste momento da vida nacional, é tentar conceber os serviços

 policiais que o estado de direito democrático deve oferecer àsociedade civil. Gostaria de assinalar cinco aspectos que a ex

 periência me fez parecerem fundamentais:

Em primeiro lugar, o serviço policial deve ter caráter comunitário.  Isso não implica qualquer espécie de “ assistencialismo”e muito menos qualquer interesse em estimular o surgimento deuma horda de alcagüetes. O caráter comunitário significa, em primeiro lugar, o estabelecimento de permanente diálogo com asociedade organizada: associações de moradores, sindicatos, im

 prensa, clubes. Este diálogo pode permitir constantes correçõesde rota, como efeito de oportunas advertências e informações. Atransparência administrativa é condição necessária para esse diálogo. Nos 12 meses anteriores à minha gestão, a média mensal defugas era 81; o mais grave é que nada ou pouco se comentasse arespeito. Esse número foi reduzido a pouco mais que a metade,

 por um conjunto de medidas que principiou pelo debate aberto do problema e pela responsabilização política dos dirigentes superiores da unidade carcerária. Hoje, grave é apenas o número. Porfalar em número, a divulgação periódica das estatísticas, paraconhecimento da opinião pública e exame de pesquisadores eespecialistas, se inclui nessa perspectiva.

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Em segundo lugar, o serviço policial deve ter caráter preventivo. Isso significa, de um lado, inserir a questão da segurança pública em instâncias de planejamento (iluminação, comunicações, localização de lugares com afluência constante de pessoas,etc). O Departamento de Polícia Metropolitana levantou umasérie de logradouros,'no município do Rio e outros circunvizi-nhos, em que era possível associar-se uma incidência criminalelevada a deficiências de iluminação; oficiamos a todos os Prefeitos. De outro lado, o compromisso preventivo implica umatomada de consciência das limitações do serviço policial notratamento da questão criminal, e sua necessária articulação a

outros planos administrativos: educação, trabalho, assentamentos fundiários, etc. Ao contrário dos xerifes do faroeste, a políciade uma grande cidade modema não enfrenta um inimigo de fora,estranho ao organismo social, mas tenta controlar reações agressivas provocadas dentro dele, e não raro vinculáveis a suascaracterísticas organizacionais. Supor que boas penitenciáriasdarão segurança pessoal a todos é o mesmo que equacionar em bons hospitais a saúde pública — esquecendo a alimentação, a

higiene, o sistema de água e esgoto, etc. O serviço policial preventivo se interessa pelas variáveis gerais da mudança social,e dentro delas pelos projetos que diretamente representem umaconsiderável diminuição no número de pessoas disponíveis parao desvio. Os criminólogos do século XIX diziam que construirescolas é economizar em penitenciárias. No Rio de Janeiro dofinal do^século XX, os menores constituem uma espécie de“ exército de reserva” das formas organizadas de crime (por

exemplo, do tráfico de drogas), e provavelmente, para queminsista na solução repressiva, faltará cimento para construir refor-matórios antes que faltem menores para o serviço do crime. Averdade dura é que, se a polícia pode e deve proteger a vida, aliberdade e os bens das pessoas, se essa importante tarefa pode edeve ser cumprida com o mais alto nível de eficiência possível,não existe uma solução policial para a questão da criminalidade.

Em terceiro lugar, o serviço policial deve ser eficaz.  A presença da eficácia está em chegar à raiz dos problemas: a

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receptação de ouro e de carros furtados (as “ bocas de ouro” ealguns “ ferros-velhos” e oficinas clandestinas) é o ponto noqual o garrote pode estancar a hemorragia dos roubos e furtos de

 jó ias e de veículos, e elevar o índice de sua.recuperação. Mas aeficácia também passa pela desburocratização. Encontrei na Secretaria, paralisado há mais de um ano, um convênio com aPastoral Penal, sem ônus para o Estado, para prestação, de assistência judiciária a encarcerados carentes nas delegacias concen-tradoras. Como a informação confiável e atualizada sobre suasituação jurídica é não só um direito do preso, como importantefator de tranqüilidade carcerária, quis assinar imediatamente oconvênio, e fiquei sabedor do motivo, da longa demora: faltava oCGC da Arquidiocese. Assinamos o cônvênio alguns dias de

 pois, sem CGC, mas com benefícios consideráveis para os presose paia a disciplina.

Em quarto lugar, o serviço policial deve ser legal. Combatero crime com os métodos do crime é uma espiral sem Saída.Quando da reforma do Código de Processo Penal, dever-se-ia

 proibir o interrogatório durante o inquérito policial, porque a prática da investigação calcada sobre a confissão é a origem dosmaus-tratos e da tortura. Neste sentido, o desenvolvimento da

 polícia técnica, modernizando os padrões investigatórios, reflete-se antes na legalidade  do que na eficácia dos serviços policiais. A garantia constitucional da inviolabilidade do domicílioera freqüentemente violada com mandados de busca domiciliar“ ao portador’ ’, coibidos j5or recomendação do Diretor Geral daPolícia Civil, no sentido de que ao mandado de busca domiciliarcorrespondesse despacho fundamentado da autoridade no respectivo procedimento. Na vertente da observância estrita da lei, oaspecto policial apenas glosa a difícil afirmação da cidadania noBrasil.

Em quinto lugar, o serviço policial deve ser socializado. Observa-se na prática um cruel teorema: tanto mais carentedeterminado grupo social, tanto maiores suas dificuldades deacesso e atendimento pelos serviços policiais. E claro que esseteorema provavelmente pode ser transplantado para a área de

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saúde ou transportes; importa recordar os efeitos criminógenosque em nossa área produz» estimulando, pela ausência do Estado,a formação de “ polícias mineiras” , grupos de extermínio, etc.

Julgo que estas cinco características podem ser o ponto de partida para um imprescindível debate sobre os serviços policiaisno estado de direito democrático. Há, por certo, muitas outrasvariáveis e algumas contradições a serem consideradas. Porexemplo: funções pedagógicas que tocam eventualmente à instituição policial, como no efeito de impunidade que se apresentaem alguns casos, quase sempre escolhidos pelos meios de comunicação de massas, quando não se consegue levantar provas

contra o suspeito, ou sequer indiciar um responsável. Hã questões importantes, como a mediação policial, na situação degreve, objeto de um painel realizado na Academia de Polícia, ouo papel — esperamos todos marcadamente preventivo — quetocará à instituição policial no processo da reforma agrária (que,de resto, também esperamos todos sobrevenha). Cada uma dessas questões ocupará um largo espaço nesse futuro debate, doqual espero poder participar.

Por ora, fecho o portão sem fazer alarde, e levo minhacarteira de identidade da OAB. Convivi nesses meses comalgumas pessoas admiravelmente leais e dedicadas à sua

 profissão: cabe, portanto, fa lar de “ saideira” e de saudade.Entretanto, nunca saberei se é verdadeira ou falsa a leve impressão de que já vou tarde.

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■ \ D V O Ca  f ' \  Á

i    *. v £ j   \

DE VOLTA AO LAR 

Muitos afirmam que os advogados constituem uma categoria profissional conservadora, e que os quadros dirigentescia OAB são corno que uma vanguarda progressista. Talvez averdade-seja exatamente o oposto: a maioria esmagadora sem

 pre foi progressista , porém tradicionalm ente a OAB era administrada por uma elite conservadora, dotada de grande prestí

gio profissiona l, que conduzia o processo eleitoral com estratégias implacáveis, uma das quais era sonegar o conhecimentodas regras correspondentes. O advogado sabia das eleições

 para o Conselho no dia da votação, e a chapa muitas vezes eraúnica.

Os advogados sempre tiveram idéias avançadas e claras arespeito de coisas importantes. Creio ser possível radicar as

 posições da categoria em favor do avanço no fato de que osadvogados realizam os importantes fins de sua profissão ouvindo, analisando, interpelando, discutindo com os clientes

 — isto é, com os cidadãos, com o povo. O advogado temsempre a possibilidade de adquirir a ótica do oprimido; mesmoquando esteja no pólo oposto da relação processual, e lá esteja

 procedendo com a lealdade e o empenho que timbram o profissional honesto, essa possibilidade existe. Pense-se, por exemplo, na

advocacia trabalhista.Talvez por isso, por ser o necessário mediador entre odireito lesado e sua restauração, entre a pretensão legal e seu

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atendim ento, e principalm ente entre o que o direito jã concedee aquilo que a justiça impõe seja concedido, o advogado

adquire de sua prática urna saudável irresignação, um a capac idade de indignar-se e de lutar que é um pouco a seiva dastransformações históricas.

Quero deter-me aqui sobre a visão que os advogados têmdas questões que costumam reunir-se sob a designação genérica de “ segurança pública” .

Os advogados não cometem o erro de imaginar que hajauma solução policial-penal para a questão da criminalidade.

Sabem que, embora corresponda às institutições do sistema penal, como já veremos, uma contribuição im portante , asvariáveis essenciais do problema são sociais e somente transformações importantes na organização geral da sociedade resultarão em transformações na criminalidade por ela produzida.

Enquanto, como cidadãos, lutam por essas transformações, os advogados sabem que as intervenções do sistema penal devem pautar-se por absoluta legalidade e in tegral res peito aos direitos não atingidos pela condição jurídica deacusado ou preso. Por isso sua luta, do front  das prerrogativas(que é uma trincheira que protege não o advogado, mas atravésda qual ele protege o cliente) ao fro n t  da denúncia e responsa bilização de autoridades arbitrárias. Nessa luta, o advogadoaprende que há primeira e segunda classes também nos proce

dimentos penais, consoante a origem social do passageiro. Não transigem os advogados com violações aos direitoshumanos do suspeito ou acusado, e têm convicção de que ocrime não se combate com os métodos do próprio crime. Entreos grupos de extermínio e os bandos de assaltantes não hádiferença alguma, e contê-los, processá-los e julgá-los é amesma obrigação. Odiamos de longa data a tortura.

Quando, num grupo interdisciplinar, se comenta sobre a

importante colaboração da OAB na resistência democrática àditadura m ilitar, costumo pensar que já estávamos acostumados e evoco com o maior orgulho os 100 mil advogados que,

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diariamente, em todo o país, às vezes assustados pela descortesia, às vezes atemorizados pela arrogância, às vezes ameaçados pela truculência, às vezes assassinados pelo ódio, levam

em seus escritos e em suas palavras a esperança de 100 mil brasileiros.

Sabem também os advogados do fracasso das pen itenciárias, e sabem-no pelo drama, ao qual atendem, da reincidência, dessa indiscutível competência que os presídios revelamem assentar nos trilhos do crime quem quer que passe por láuma temporada.

Conhecem os advogados, e profundamente, que certas

leis penais apenas oferecem a ocasião de p ráticas reprováveis,e não trazem qualquer benefício social ou individual — como, por exemplo, o artigo da lei de tóxicos que criminaliza a posse para uso próprio. Percebem o oportunismo político ou o autoritarismo de textos legais, e lutam para que os tribunais osatenuem. Intuem, sem que ninguém lhes tenha ensinado, quenão é o homem que é feito para a lei, e sim a lei é que é feita para o homem.

Quando circunstâncias críticas muito especiais fizeramcom que eu me convencesse de que era meu dever prestar umserviço ao Estado, assumindo árduas funções na área da segurança pública, levei comigo essas crenças que o advogadoextrai de seu cotidiano profissional, e que se entranham profundamente em sua alma. Respeitei-as intransigentementedurante os oito meses em que permaneci naquele cargo.

Por isso, de volta ao lar, quando me encontro com umcolega no foro, e ele ressalta essa ou aquela medida entãoadotada, respondo invariavelmente: “ Foram nossas idéias’’.E foram mesmo.

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ADVOGADOS DEMAIS?

Quando eu era presidente da Seção do Estado do Rio deJaneiro da Ordem dos Advogados do Brasil, estudantes das■Faculdades de Direito que me visitavam sempre me perguntav a m s o b r e m e r c a d o p r o f i s s i o n a l . I n d a g a v a m e l e s :“ Poderemos viver dignamente de nossa profissão? Não existem advogados dem ais?” Quero divulgar aqui a resposta quesempre lhes dava.

O Brasil é um país dividido em dois países: o pequeno país dos MANDÕES e o enorme país dos MANDADOS.(Poderia usar outras designações, mas essas duas são úteis

 porque têm muito a ver com a questão do direito: a norma jurídica, seja pro ibindo, seja ordenando, seja permitindo,sempre comanda.) Os MANDÕES são aquele pequeno grupode ricos (banqueiros, latifundiários, grandes industriais ecomerciantes) que sempre detiveram o poder, e as categoriassociais médias que, nas mais diversas profissões (seja comofuncionário público, seja trabalhando em grandes empresas,seja em atividades liberais), os ajudam a administrar e manter oestado de coisas. Os MANDADOS são a enorme legião demiseráveis absolutos, os desempregados, os subempregados eos trabalhadores em geral, incluindo-se aí a parte baixa dascategorias sociais médias.

Complicadas relações econômicas explicam como e porque surgem historicamente no Brasil MANDÕES e MANDADO S. Para nós, basta distingui-Ios pela sua configuração jur í

dica.Tentemos colocar num Raio-X jurídico um MAND ÃO eum MANDADO. O que aparecerá?

O MANDÃO consegue participar da elaboração das leis(ou por amigos deputados, ou por lobby). O MANDADOaguarda passivam ente a lei que será elaborada pelos amigos doMANDÃO.

O MANDÃO conhece seus direitos e em caso de dúvida

consulta os melhores jur istas . O MANDADO não tem a menor 

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idéia de seus direitos e só muito raramente duvida de que nãotenha qualquer direito.

O MANDÃO consulta sempre o Código C ivil, onde estãoas regras para as pessoas que são proprietárias. Os MANDADOS de vez em quando resvalam no Código Penal, onde estãoos crimes contra a propriedade.

O MANDÃO que se dirige à Justiça tem excelentes advogados, e algum familiar ou araigo conhece o juiz ou algumfamiliar ou amigo do juiz. O MANDADO que se dirige àJustiça é um homem amedrontado, num imenso corredor poronde trafegam pessoas apressadas e toneladas de papel que o

sufocam. O MANDÃO encontrará um juiz. O MANDADOencontrará uma fila.

Por fim, já que propusemos um jogo de RaioX, o MANDÃO terminará dono do Raio-X e o instalará numa clínica; oMANDADO abrirá a marretadas a bomba e sua filha brincarácom Césio-137.

E agora estamos perto da resposta.

Se o jovem que sai da Faculdade tiver o sonho pequenode, como disse Rui Barbosa, fazer de sua banca de advogadoum banco, e de seus conhecimentos uma mercadoria, sim, eleencontrará um mercado profissional quase, saturado. Aindaassim, pode ficar tranqüilo: os MANDÕES não deixam esca

 par um talento ou uma grande dedicação que deseje inscrever-se na tarefa de deixar tudo como está.

Mas se o jovem quiser sonhar com um país unificado, no

qual todos os direitos sejam respeitados, no qual trabalho,saúde, instrução e lazer não sejam fórmulas cruelmente vagas,ou enganosas palavras numa Constituição insincera, encontrará com promisso profissional para as 24 horas do dia. Em favordos M AN DA DO S, a luta começa para que os direitos já existentes sejam efetivamente exercidos (seja no emprego — dire itos trabalhistas, seja na rua — garantias individuais, seja

 perante repartições públicas — direitos de cidadania — , etc ),

mas a luta continua na. direção da construção de um novo

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Direito, baseado na solidariedade, na liberdade e na igualdade.

Acho que não há melhor caminho para “ viver digna

mente de nossa profissão” do que inserir na militância profissional — sem qualquer preconceito ou. discriminação — a

 perspectiva de que é possível construir uma ordem ju rídica euma Justiça em que não existam, mandões e mandados.

 Não existem no Brasil advogados demais para o trabalhoda Justiça. O que existe é exatamente injustiça demais à esperado trabalho dos advogados.

O JULGAMENTO DA ADVOCACIA

Suponhamos Glauber Rocha redivivo, estreando umfilme com entrecho meio enigmático. Houve num certo paísuma revolução ou um golpe de estado — não se sabe exata

mente — e todas as pessoas começam a ser submetidas aorecém-criado Tribunal de Depuração Política. Os inquisidoresinvestigam, a partir das atividades profissionais dos intelectuais, suas secretas tendências políticas. O jornalista Fulanochefiava a reportagem eísportiva daquele jornal? Condenado.Examine-se detidamente a classe social dos pacientes do psicanalista Beltrano. Condenado. Infeliz destino teve o economista Sicrano, que fizera seus cálculos e projeções como

assalariado de determinada instituição. Condenado. Nos hos pitais públicos, o temor das antigas UTIs foi substitu ído peloterror das novas UTIs (unidades de triagem ideológ ica), encarregadas de evitar que o gesso nacional remodelasse ossoshostis ao novo regime. Quanto aos advogados, bastaria encontrar entre os clientes um inimigo do povo — alguém indiciadoou acusado por alguma autoridade pública — para o veredicto,condenatório. Todos os advogados são condenados, e não

sobra nenhum para a tarefa de defender seus colegas.

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A certa altura do filme, o espectador seria indagado seaquela situação absurda fora provocada por uma revolução,liderada pela esquerda mais obtusa e atrasada, ou por um golpede estado executado pela direita mais reacionária e obscurantista. A resposta certa'seria: por qualquer das duas, indiferentemente.

 Não é por acaso que, escrevendo em 1921, sem. dar-seconta do ovo da serpente, Calamandrei estranhava que a intolerância da “ plutrocracia industrial italiana” para com aadvocacia fosse tão contundentemente agressiva quanto a intolerância dos comunistas. Não é por acaso que as transform ações impostas pela primeira legislação da Rússia soviética àadvocacia tenham sido tão similares a uma reforma ocorridana Prússia autocrática de 1781. Não é por acaso que, em 1980,a interdição para o exercício da profissão imposta à advogadaPricilia Jana em Johanesburgo (África do Sul) tenha sido tão parecida com a in terdição im posta ao advogado Josef Danisz,em Praga (Tchecoslováquia) no mesrno ano.

É explicável essa plataforma comum entre programas políticos tão distintos, e facilmente explicável se nos ativer-mos à advocacia criminal. A partir do momento histórico que échamado de “ expropriação do litígio” , ou seja, aquele —cronologicamente situado em torno do século XII — no qual aví t ima foi subst i tuída, no processo criminal , por um“ personagem no vo ” (Foucault), o procurador do soberano, aadvocacia criminal de defesa começa a constituir-se como

contrapoder.  O litígio criminal não tem dois atores privadosem seus pólos, mas num deles (o da vítima) passa a figurar o próprio poder organizado. Sob os rótu los mais distintos(“ santa fé católica” , ‘‘salvação pública” , “ são sentimentodo po vo ” , “ d i tadu ra do p ro l e t a r iad o’ ’ , s egurançanac ional” ), o poder se implantou e se exerceu em muitoslugares e ocasiões recorrendo à pena e ao sistema penal, querfosse a fogueira da Inquisição, a guilhotina do Terror, a forca

ou os campos nazis tas , os fuzilamentos s talin istas, as prisões e‘‘desaparecimentos” latino-americanos. A advocacia crimi

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vasto campo, desde uma incompreensão básica da atividade p ro f is s io n a l (d an d o o rig e m a e s te re ó t ip o s com o a“ insinceridade” dos advogados, ou as circunlocuções de seusdiscursos), até pormenores ridículos, como por exemplo suaconfraíernidade. Pessoas capazes de se embevecer diante dosabraços que, ao final da luta, são trocados por hoxeurs que seesmurraram barbaramente (Hamelin, em seu Paradoxo do 

 Advogado, mencionava os esgrimistas) estranham os cumprimentos cordiais de causídicos adversos. Tais preconceitosgerais viram-se agravados por episódios de desonestidade oudeslealdade ao cliente e ainda de acumpliciamento (quando a

advocacia criminal cede lugar à advocacia criminosa). Em bora esses episódios atinjam particularm ente os atores nelesdiretamente envolvidos, muitas vezes severamente punidos pelo órgão colegial, é indiscutível que ampliaram e disseminaram aqueles preconceitos. Considere-se, por fim, que recaem sobre os advogados, pela mediação que realizam, todasas mazelas da com plicada máquina judic iária, para com preender a magnitude dos preconceitos que cercam O advogado,

amplamente documentados na literatura.Entretanto, interessam-nos aqui particularmente as restrições decorrentes de uma identificação social do advogado coma causa ou o cliente que defende. Este fenômeno, alheio àAntiguidade e essencialmente político, teve na RevoluçãoFrancesa uma aparição que é pedagógico examinar. Inúmerosadvogados foram mortos pela-simples defesa de idéias, e emdado momento (1794) uma lei (22 de prairial), suprimindo

completamente aos suspeitos o direito de defesa, economizounovas mortes exterminando a própria advocacia.

Vale a pena recordar, a partir da compilação de Moliérac,algumas passagens desse que é um dos mais belos capítulos dahistória da advocacia. A coragem foi uma virtude sempre

 presente. O memorial em defesa de Luís XVI foi redigido portrês advogados: Malesherbes, Tronchet e De Sèze e foi lido

 pelo últim o perante a Convenção. Ao questionar a competên

cia que a própria Convenção se havia arrogado, declarava a

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defesa lisamente: “ Cidadãos, falar-vos-ei com a franqueza deum homem livre: busco entre vós juizes e encontro apenasacusadores” . O notável advogado Chaveau-Lagarde exaltava

 perante o Tribunal a “ nobre pureza” , a “ alm a e abnegaçãosublimes” de ninguém menos que Charlote Corday, nomesmo instante em que toda a Convenção e o povo de Parislevavam o corpo de Marat ao Pantheon.  Chaveau-Lagardeseria preso por causa de sua defesa de Maria Antonieta; aacusação contra si registrava que “ já é tempo de que o defensor da Capeto ponha sua cabeça no mesmo cada falso” . Foisalvo pelos acontecimentos de Termidor, encerrando o Terror.

Ficou célebre a exortação do advogado Nicolas Berryer:“ Trago à Convenção a verdade e minha cabeça; poderá eladispor de uma, após escutar a outra” .

Recentemente, no Brasil, advogados de presos políticoseram vistos com discriminação e reserva. Se não chegamos amatá-los — como se fez, por exemplo, na Argentina —- nãodeixamos de prendê-los e tentar intimidá-los. Para a ditaduramilitar, aqueles advogados — entre os quais se percebiam os

matizes políticos mais distintos — incorporavam a coloratura partidária e até mesmo as estratégias de ação de seus clientes.Para Heleno Fragoso, que foi preso, as perseguições tinham oobjetivo de tentar atemorizar e desmoralizar os advogados:“ Como poderíamos defender os outros se nós mesmos sofría-mos as violências” ? Ou seja: o que estava em^questão, ao fimde contas, era o direito de defesa,  que incomoda os temperamentos autoritários e enfurece os participantes de surtos cole

tivos em favor de linchamentos judiciais.A ampla defesa é uma garantia constitucional fundam ental (art. 5?, inc. LV C.R.), à qual devem obediência legisladores, juizes e advogados. O advogado tem o dever de‘ ‘recusar o patrocínio de causa que considere imoral ou ilícita ,salvo a defesa em processo criminal’ ’  (art. 87, inc. XII da lei4.215 , de 27.ab r.63). Em suas origens, essa regra derivava daconsideração de que o crime implica o imoral e o ilícito; por

esse motivo, como lembra Boyer Chammard, o advogado

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gar com suas regras, em seu exercício profissional, por maisconsciente e crítico que fosse. Vã procura'. A câmera exibe acadeira do acusador, vazia, e segue-se a sentença condena-tória, no espantoso tribunal sem acusação e sem defesa.

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índice alfabético-remissivo de assuntos

Abuso de autoridade 117

Abuso de drogas61, 62, 63, 67

Adultério 86Administração penitenciária 131, 132Advocacia e estado de direito 183Advocacia e direito de defesa 186Bancos de sangue 62Cadeira elétrica 25Capitalismo e greve 36Censura e imprensa 139Cinema e criminalidade 134

Código Criminal do Império 124

Comércio de drogas lícitas 61, 63Condutas desviantes e delituosas 44Contrafacção de obra de arte 143Convenção Interamericana sobre tortura 107

Convenção da ONU sobre tortura 107

Corrupção 44, 68Criança e o Código Penal de 1890 39Crime e  mídia 133

Decapitação 23Delegacia de mulheres 164

Democratização do Poder Judiciário 71, 73, 77

Direção perigosa 154Direito chinês 101

Direitos humanos fundamentais 86, 112, 167Direito à saúde 55

Discriminação 55

Documentos: sua falta não justifica prisão 116Embriaguez ao volante 155

Escravos no Código Criminal do Império 124

Estado de direito e advocacia 183

Estado e omissão de socorro 51Falsidade em obra de arte 142

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Favelas: ausência do estado 173Favelas: poder da quadrilha 173Forca 22 ■

Fuga do local do acidente de trânsito 155Futebol e violência 160Fuzilamento 28Garrote 23Genocídio 47, 104Genocídio por omissão 57Greve e direito penal 35, 41Grupos de extermínio 47, 103Guilhotina 24Heleno Fragoso 94Hélio Pellegrino 91Hospitais e omissão de socorro 50identificação datiloscópica 119Imprensa e censura 139Incriminações vagas e indeterminadas 112Independência do Poder Judiciário • 71, 73Injeção letal 30Instituto Interamericano de Direitos Humanos 47Jornais e criminalidade 136Juiz de Paz 79Juizados especiais 165Julgamento pela imprensa 138Lei Fleury 81Lei de Imprensa 139Lixo nuclear e responsabilidade criminal 52Mão-de-obra infantil 39Médicos e omissão de socorro 50Medidas preventivas no trânsito 154Mulher, violência 163, 164Omissão de socorro 48, .155Ordem judicial 114Pena de morte 15, 18, 103Penas antigas do adultério 87

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Polícia 120Presunção de inocência 95Prisâo-fáhrica 41Recusa de inspeção (infração de trânsito) 155Recrutamento de juizes 74Reforma penitenciária 130Retenção de documentos 117Romance policial e criminalidade 134Serviços policiais no estado de direito democráticoSistema penal: seletivo, repressor e estigmatizante

Sistema penal e genocídio 47, 49Substitutivos penais 129Suicídio judiciário 16Superpopulação carcerária 131Sursis 123Televisão e criminalidade 135Tortura 103, 107Tráfico internacional de drogas 59, 63

Trânsito e mortes criminais urbanas 152Usuário de drogas 68Vadiagem 39, 42Violação de domicílio J 14Violação de regra de trânsito 155Violência 107, 167Violência conjugal 165Violência contra a mulher 164

Violência e corrupção 170.Violência e futebol 160Vitaliciedade de juizes 75

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A   G   O   S

   N   i   l  o

   B  a   t   i  s   t  a