NissoNuncaPensei

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Disertação apresentada em Buenos Aires, em 2013, no encontro entre Psicanálise e Marxismo.

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  • Nisso eu nunca pensei Negao como revelao do pensamento reprimido

    Se verdadeira a tese de Althusser de que se pode traar uma analogia entre o

    inconsciente e o ideolgico, ento: assim como a teoria psicanaltica pode pela negao

    revelar o pensamento oculto ou recalcado; a anlise ideolgica pode pela negao

    revelar partes no reveladas da estrutura normativa do modo de vida. De forma

    mais precisa: a negao sistemtica de determinadas razes, remetidas a seus contrrios

    no contraditrios, podem revelar estruturas ideolgicas ocultadas nas relaes sociais

    de vida, trabalho ou linguagem. Sendo assim: da mesma forma que a negao da

    psicanlise revela o desejo segundo o recalque no conflito da subjetivao e precipita a

    conscincia; a negao ideolgica revela a produo social do valor segundo a luta de

    classes na construo do sujeito histrico e precipita a ao. Trata-se de um processo

    que, ao invs de revelar essncias, revela o vazio ontolgico como fundamento do

    ajuizamento do valor humano e no se caracteriza por precipitar um processo de

    conscientizao mas de liberao dos corpos. Apresenta-se o argumento de Marx de

    mudana de valor do trabalho para valor da fora de trabalho como caso.

    Palavras chave: Pr-ao-contra. Aparato dos corpos. Anlise ideolgica. Pascal. Vcuo.

  • 1. Inconsciente e ideolgico

    A Economia Poltica s pode permanecer como cincia enquanto a luta de classes permanecer latente ou s se manifestar em episdios isolados.

    (MARX 2006: Posfcio da Segunda Edio, pg. 134) A sublimao do instinto um trao bastante saliente da evoluo cultural, ela

    torna possvel que atividades psquicas mais elevadas, cientficas, artsticas, ideolgicas, tenham papel to significativo na vida civilizada. Cedendo

    primeira impresso, seramos tentados a dizer que a sublimao o destino imposto ao instinto pela civilizao.

    (FREUD 2010c: III)

    A proximidade analgica entre inconsciente e ideolgico uma caracterstica

    marcante no pensamento de Althusser e, se tem grande mrito em abrir um tipo de

    racionalidade para o pensamento poltico, no pode deixar de suscitar certos problemas

    operacionais ou terminolgicos.

    Essa aproximao vai de encontro a certo marxismo ortodoxo e ao encontro do

    prprio Freud, que criticava o materialismo por subestimar justamente o carter no

    mnimo mimtico das relaes entre o Super-eu, o indivduo, a sociedade e a ideologia:

    As concepes histricas chamadas de materialistas pecam por subestimar esse fator [de que o Super-eu pode fornecer o entendimento da conduta social humana] Elas o pem de lado com a observao de que as ideologias dos homens nada mais so que produto e superestrutura de suas relaes econmicas atuais. Isso verdade, mas muito provavelmente no toda a verdade. A humanidade nunca vive inteiramente no presente; o passado, a tradio da raa e do povo prossegue vivendo nas ideologias do Super-eu, apenas muito lentamente cede s influncias do presente, s novas mudanas, e, na medida em que atua atravs do Super-eu, desempenha um grande papel na vida humana, independentemente das condies econmicas. (FREUD 2010b, destaque meu)

    Algumas questes, na formulao acima, destacam-se notavelmente por suscitarem,

    com particular preciso, alguns traos marcantes das concepes althusserianas que

    permitem a aproximao entre inconsciente e ideolgico: (a) o anacronismo da

    ideologia; (b) sua independncia frente histria; (c) seu carter de transferncia e

    contra transferncia, isto , que pode extrapolar as condies econmicas, vale dizer, as

    questes de determinismo nas relaes de explorao de classe.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 2

    Antonio HerciMarx, 1848: A luta de classes o motor da histria. Freud, 1914: A teoria do recalcamento o pilar sobre o qual repousa o edifcio da psicanlise. Esses enunciados, sob a forma do aforismo, colocam o conflito como o ponto nodal das concepes de histria e de sujeito admitidas (e transformadas) pela Anlise do Discurso. (FEDATTO 2013)

  • Para Freud, a fora do marxismo estaria na indicao da influncia decisiva que as

    circunstncias econmicas dos homens teriam sobre suas atitudes intelectuais, ticas,

    ideolgicas e artsticas, fazendo que, a partir disso, se descobrissem inmeras

    correlaes e implicaes que antes no havia sido feitas (Cf. FERNANDES 2001).

    Reconhecia que as investigaes de Marx sobre a estrutura econmica da sociedade e

    sobre a influncia de diferentes sistemas econmicos em todos os setores da vida

    humana adquiriram inegvel autoridade nos dias de ento:

    Las indagaciones de Karl Marx sobre la estructura econmica de la sociedad y el influjo de las diversas formas de economa en todos los mbitos de la vida humana se han conquistado en nuestra poca una autoridad indiscutible. (FREUD 1991: 163)

    Mas tambm afirmava que a fora do marxismo no residia em sua concepo da

    histria, nem na previso do futuro baseada naquela, mas em

    Su penetrante demostracin del influjo necesario que las relaciones econmicas entre los hombres ejercen sobre sus posturas intelectuales, ticas y artsticas. (FREUD 1991: 164s.)

    Alm disso, Freud tambm no aceitava a tese de que os fatores econmicos so os

    nicos a afetar o comportamento do indivduo na sociedade.

    No se entiende cmo se podran omitir factores psicolgicos toda vez que se trata de las reacciones de seres humanos vivientes, pues no slo estos han participado en el establecimiento de tales relaciones econmicas, sino que, aun bajo su imperio, los seres humanos no podran hacer otra cosa que poner en juego sus originarias mociones pulsionales: su pulsin de auto conservacin, su placer de agredir, su necesidad de amor, su esfuerzo hacia la ganancia de placer y la evitacin de displacer. (idem, 165)

    Assim como duvidava de que a mudana da esfera econmica mudasse

    essencialmente tal comportamento.

    En la teora de Marx me han extraado tesis como esta: que el desarrollo de las formas de sociedad es un proceso de historia natural, o que los cambios en la estratificacin social surgen unos de otros por la va de un proceso dialctico. En verdad, no estoy seguro de comprender rectamente tales aseveraciones, pero ellas no suenan materialistas , sino, ms bien, como un precipitado de aquella oscura filosofa hegeliana por cuya escuela tambin Marx ha pasado. (dem, 164)

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  • Comparece-se a crtica acima com a proposta althusserianas de um corte

    epistemolgico onde devemos nos livrar do hegelianismo e do idealismo presentes em

    certa parte dos textos de Marx.

    Por outro lado, Althusser considerava que

    Com Marx e Freud, teorias cientficas ocupam, repentinamente, regies at ento reservadas s formaes tericas da ideologia burguesa (Economia, Poltica, Sociologia, Psicologia) ou, melhor dizendo, ocupam, no interior dessas regies posies surpreendentes e desconcertantes. (ALTHUSSER 1985: 75)

    Alm disso, para ele a prpria possibilidade de crtica e interpretaes enriqueciam

    a teoria marxista.

    Digo que tais tentativas de anexao e reviso so mais interessantes que os ataques e crticas, porque significam que a teoria contm seus adversrios o confessam algo de verdadeiro e de perigoso. Onde no existe nada de verdadeiro, no existe, tampouco, nenhuma razo para anex-la ou revis-lo. (...) Cria-se, assim, um crculo, cuja dialtica implacvel. (ALTHUSSER 1985: 78)

    a. Verdade instanciada e pensamento oculto

    Destaca-se, primeiramente, o peculiar modo com que Freud lida com a contradita do

    pensamento materialista. Isso nos revela uma questo metodolgica muito importante,

    uma forma de negao peculiar, que pode ser interpretada a partir da assero: isso

    verdade, mas muito provavelmente no toda a verdade.

    Pascal teria, segundo Althusser (ALTHUSSER 2007: 133) , pronunciado a

    extraordinria [sic] frase: podemos, sem contradiz-los (aos antigos) afirmar o contrrio do que

    eles diziam! (PASCAL 1973, 2005)1.

    Apresentando, assim, a essncia de uma verdadeira teoria da histria, pois pode ver

    que a verdade dependente e instncia da vida concreta: referenciada no em suas

    possibilidades lgicas, mas em suas condies materiais de existncia histrica. (FERREIRA

    JR 2012)

    1 P.ex. nos seguintes fragmentos 384|177; 902|962; 337|90; 315|89; 303|554 etc. [respectivamente a numerao das compilaes Brunschvicg e Lafuma. (OLIVA 2004: Tbua de Converso, pp. 193s)]

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    Antonio Herci[J em 1889] recebi fortes impresses sobre a possibilidade da existncia de processos psquicos poderosos que permanecem ocultos conscincia humana. (FREUD 2010a)

  • [] Sem contradiz-los: porque as condies de nossas experincias cientficas mudaram, e j no so as mesmas que a dos antigos. []

    Frase, infinitamente mais profunda que tudo o que os filsofos do sculo das luzes puderam dizer (no final muito simples, por teleologia) sobre a histria. (Althusser, 2007, p. 133)

    Dessa forma as verdades se revelam instanciadas, ou seja, referidas no em suas

    possibilidades lgicas, mas em suas condies materiais mas, alm disso, as refutaes e

    negaes ao invs de aniquilar ou contradizer o pensamento contrrio, abre novas

    formas de interpretao.

    *9 Para repreender utilmente e mostrar a algum que est errado, precisamos observar de que ponto de vista encara o assunto, porquanto, em geral, verdadeiro para o observador, e ento reconhecer sua verdade, 'mas descobrir-lhe o lado pelo qual falso. Assim, satisfazemos pessoa enganada, porque v que no se equivocava mas deixava to-somente de encarar a coisa de todos os ngulos possveis; ningum se aborrece por no ter visto tudo, porm ningum quer estar equivocado; e talvez isso provenha do fato de no poder o homem ver tudo e de, naturalmente, no poder se enganar dentro do angulo que escolheu.

    A possibilidade de que as verdades e concepes sobre as coisas no vejam tudo, vale

    dizer, tenham por uma espcie de axioma epistemolgico a incapacidade de abarcar a

    totalidade do conhecimento ou mesmo de algum assunto significa que dependendo do

    escopo de onde se observa, podem existir pensamentos ou ideias ocultas ou ocultadas

    sobre diversos tipos de roupagens e graus de abstrao.

    [J em 1889] recebi fortes impresses sobre a possibilidade da existncia de processos psquicos poderosos que permanecem ocultos conscincia humana. (FREUD 2010a)

    No entendimento e conhecimento produzido em sociedade, vale dizer, nos

    discursos proferidos como formas de manter em funcionamento o modo de vida

    existem certezas fundadas em pensamentos ocultos, anlogos a discursos no formulados.

    336 Razo dos efeitos preciso ter um pensamento oculto e tudo julgar por ele, falando entretanto como o povo.

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  • *335 Razo dos efeitos verdadeiro, portanto, dizer que toda gente vive na iluso: pois que, embora as opinies do povo sejam sadias, no o so em sua cabea, porque ele pensa que a verdade existe onde no existe. A verdade est nas suas opinies, mas no no ponto em que imagina. [Assim] certo que se deve honrar os fidalgos, mas no porque o bero seja uma vantagem efetiva, etc.

    Freud se refere ao pensamento oculto como uma das latncias que devem ser

    procuradas nas interpretaes dos sonhos:

    O belo sonho oferecido pelo dr. Odier ao autor pode dar, tambm aos no iniciados, uma ideia da riqueza das associaes onricas, da relao entre a imagem onrica manifesta e os pensamentos latentes ocultos atrs dela e da importncia que cabe anlise dos sonhos no tratamento do paciente. (FREUD 2010d)

    Vale ressaltar que, segundo Ernest Jones esse livro que Freud prefaciara, de Raymond

    de Soussure, filho do consagrado linguista Ferdinand de Soussure, e do qual extrado o

    fragmento, acabou censurado na Frana, justamente sob a acusao de ofensa

    discrio profissional diante da divulgao e anlise desse sonho que revelava

    pensamentos latentes ocultos (JONES 1957: 101).

    b. Carter de ocultao

    Outra das caractersticas fundamentais da analogia entre inconsciente e ideolgico, o

    carter de ocultao da prpria existncia ou operao como constituio de seu

    funcionamento: no est em lugar nenhum e anacrnico, mas com a capacidade

    efetiva, isto , material na vida das pessoas, de produzir uma rede de verdades

    evidentes, subjetivas que constituem a base de qualquer construo do logos, mas que

    lhe escapa como instncia consciente. A negao do carter do inconsciente e do ideolgico so

    as marcas registradas de uma possvel teorizao respeito. Onde houver qualquer trao

    de subjetividade, ou qualquer fragmento de discurso, haver uma difusa tinta dessa

    instncia oculta do mesmo eu.

    O que parece passar-se, assim, fora da ideologia (precisamente, na rua) passa-se, na realidade, na ideologia. O que se passa, na realidade, na ideologia parece, portanto, passar-se fora dela.

    a razo pela qual aqueles que esto na ideologia, voc e eu, acreditam por definio estar fora dela: a negao prtica do carter ideolgico da ideologia pela ideologia um dos efeitos da ideologia. (ALTHUSSER 2008)

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    Antonio Herci328 Razo dos efeitos Passagem contnua do pr ao contra. Mostramos que o homem vo pela estima que dedica s coisas que no so essenciais. E todas essas opinies so destrudas. Mostramos, em seguida, que todas essas opinies so muito sadias e que, destarte, sendo todas as vaidades muito bem fundadas, o povo no to vo quanto se diz. E, assim, destrumos a opinio que destrua a do povo. Mas preciso destruir, agora, esta ltima proposio, e mostrar que continua sendo verdadeiro que o povo vo, embora suas opinies sejam sadias, porque no sente a verdade delas, onde esta verdade existe e porque, pondo- a onde no existe, as suas opinies so sempre muito falsas e muito malss.*337 Razo dos efeitos Graduao. O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hbeis as desprezam, dizendo que o nascimento no uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hbeis as honram, no pelo pensamento do povo, mas pelo pensamento oculto. Os devotos, que tm mais zelo do que cincia, as desprezam, malgrado essa considerao que as faz honrar pelos hbeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes d. Mas os cristos perfeitos as honram por outra luz superior. Assim, vo-se sucedendo as opinies do pr ao contra, segundo a luz que se tem.

  • E logo aqui j aparece uma questo problemtica: se na psicanlise o inconsciente o

    em relao a um sujeito e, de fato, o mesmo sujeito do consciente, isto , o mesmo eu;

    nas relaes de luta de classe no necessariamente o que inconsciente a uma classe o

    para outra, principalmente em se tratando de negcios de Estado e Hegemonia como se

    configura o sculo XXI.

    Veja-se que, mesmo sendo um nus, esse problema nos d uma certa vantagem e

    ganho epistemolgico, com relao teoria marxista ortodoxa sobre a ideologia: o que

    ideolgico para uma classe, instrumento ideolgico para outra, apelidado por Althusser,

    numa referncia direta a Pascal, de aparatos, termo que adotaremos tambm aqui.

    Isso significa tambm que no o mesmo eu que revelado pela ideologia, mas uma

    ciso de um mesmo motor de modo de vida mas que bipartido e conflituoso por

    definio. De uma certa forma, essa identificao inicial como sujeito passa por uma auto

    excluso subjetiva contempornea ao modo de vida: apenas depois da negatividade, na

    considerao de si, com relao propriedade dos bens de produo e da produo de

    um sujeito anacrnico e dissociado, pode entrar em processo a subjetivao

    althusseriana de classe.

    O que nos leva a outro problema, mas parcialmente resolvido, na identificao de

    processos tradicionalmente chamados de subjetividade ou identidade de classe: o que o

    sujeito de uma classe? O partido, diro os mais saudosos de glria; o proletariado, diro

    tecnicamente os marxistas tericos; os trabalhadores, os sindicalistas e trabalhistas; o

    povo, diro outros que acreditam na cidadania e na dissimulao e, finalmente, todos ns,

    uma espcie de ser de todos que deve se mover direcionado por um dever moral que

    determine, no final das contas, quem est e no est includo no que se chamou, no

    comeo do pargrafo, de sujeito de classe. Quem come, quem estuda, quem anda ou no

    de nibus, e faz isso como integrante, mas constitui-se subjetivamente como classe pelo

    pensamento oculto. De fato a soluo da subjetividade na anlise ideolgica resolvida de

    forma negativa, isto , a partir da desvencilhao: apenas fora da histria e excludo do

    lugar da hegemonia pode ser delimitado a alteridade no processo de anlise ideolgica.

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  • Se consideramos que o inconsciente e o ideolgico revelam campos de conflito na

    construo da subjetividade que cedemos em conceder s classes a relao entre

    sujeito e inconsciente surge justamente na reconfigurao de si diante do outro,

    atravessando dipos e espelhos, qui numa cotidiana prova de realidade que fazemos

    para constituir em sujeito o feixe de sensaes e reflexos que nos caracteriza como

    sujeito; no entanto as relaes entre sujeito e ideologia nos levam a um processo de

    aniquilaes: primeiramente, ao constituir-se como classe, aniquilando a outro, a outra

    classe; num segundo momento, ao aniquilar as relaes que determinavam as classes

    vale dizer, a luta de classes, segundo Althusser o que determina as classes num

    processo de auto aniquilao, visando a fundao de outra forma de vida.

    Por fim, mas no menos importante: se existe uma alteridade teraputica no primeiro

    caso, a saber, o psicanalista, qual seria a relao entre alteridade e ideologia, j que no

    existe fora da ideologia, segundo o prprio Althusser? Por outro lado, o que constitui

    exatamente uma terapia quando falamos de uma classe social?

    c. Efetividade no declarada

    Alm disso, a ideologia, segundo Althusser, pode ser comparada ao inconsciente

    freudiano por sua materialidade, no no sentido de ser um objeto no mundo, mas por

    organizar materialmente a vida das pessoas, particularmente atuando na contrio dos

    corpos.

    Tambm o problema ou atritos entre as aproximaes ideologia inconsciente

    so da ordem da alteridade. Pois se o inconsciente est na proporo, como reprimido,

    da negao do juzo, onde reside o sujeito da crena habitual nas formas de opresso?!?

    Que tipo de crena essa? Me parece que aqui reside uma diferena fundamental: a

    crena social no uma iluso, no sentido em que se diz que o inconsciente ou ilusrio

    em relao a uma pessoa, ou o que lhe seja aparncia enganosa.

    O ideolgico , antes de tudo, uma crena na implacabilidade e na fora de aplicao.

    Isso nos aponta uma pitoresca questo: a fora na psicanlise uma aplicao diante de

    um quadro patolgico, de sofrimento, e diante de uma autodestruio iminente do

    sujeito. Mas a aplicao da fora na questo ideolgica de outra ordem:

    primeiramente que a autodestruio legtima, seja como partcipe subjetivo em um

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  • Estado, seja como Classe mantenedoura de outro, a autodestruio est contemplada

    como estratgia. Em segundo lugar, a normalidade e, supostamente, contra o mal

    adverso e pela proteo, que a fora deve ser aplicada na normalidade, independente de

    outra instncia. A crena na fora e implacabilidade o ponto de partida de qualquer

    ideologia.

    Se a caracterstica inicial de aproximao entre as duas apontava para a

    insensibilidade e falta de peso, agora, como uma face oculta, o inconsciente e o ideolgico

    se identificam na produo de uma imensa materialidade e peso sobre a contrio dos

    corpos. (Cf. FERREIRA JR 2012)

    d. HIPTESE

    O presente trabalho defende a hiptese de que existem formulaes discursivas, que

    tratam principalmente de incluso ou excluso [dentro ou fora] nas sociedades e que,

    efetivamente, so discursos anlogos aos discursos do inconsciente: no formulados mas

    efetivos e reguladores. Assim como o inconsciente, a ideologia tambm trava os corpos, no

    entanto tambm garante um lastro com a realidade, de forma que o puro pensar no

    seja capaz de produzir valores e que esteja fora do domnio ou campo operacional da

    conscincia a determinao sobre a vida e a morte do outro.

    Por inconscientes aqui pretendemos nos referir ao conjunto do que compe a

    normatividade sejam leis ou preceitos [morais, religiosos etc], modas culturas que

    tm a caracterstica de se ocultarem como discurso e de terem efetividade, isto , terem

    fora de aplicao.

    Assim como, no mais primordial das consideraes sobre o inconsciente e a

    formulao dos valores, a partir da questo do dentro [prazer] ou fora [desprazer],

    tambm as sociedades tm discursos no evidentes e formulados para a determinao

    do excludo ou do includo. Tais discursos, assim como o inconsciente, so efetivamente

    normativos mas no formulados discursivamente: ao contrrio, so deliberada e

    cuidadosamente escondidos por sob uma roupagem semntica.

    No entanto, a roupagem semntica no ilude, apenas normaliza com poder e fora

    suficientes.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 9

    Antonio HerciPareceria devaneio, mas um caso recente de como a negao pode revelar esse discurso no proferido refere-se a uma das mais vergonhosas e nefastas taxas que o Brasil pode apresentar atualmente: a de violncia e estupro contra a mulher. Todos ns sabemos o significado da palavra no, em negar a continuidade de um ato. No entanto, no caso do estupro e da mentalidade machista que as pesquisas tm revelado, numa crescentes preocupao com o tema, o discurso no formulado de que, no caso das mulheres, dizer no aos homens pode significar um sim, ou talvez ou um quem sabe se der uma foradinha. Dessa forma, excludo do direito ao no, de cara, estariam as prostitutas, seguidas, em um grau de indecncia como valor, das demais mulheres uma hierarquizao de!No est formulado em lugar algum, mas est por toda parte, o fundamento de que as mulheres deflagram estupros por suas provocaes. Se observarmos o conjunto de leis, veremos que nada chega nem mesmo perto disso. No entanto, em qualquer beco, boteco, igreja, delegacia ou hospital, as mulheres so divididas em provocadoras e provocadas, fora ou dentro do direito ao no!

    Antonio HerciO que determina uma das razes pelas quais as culturas humanas se tornariam irredutveis, e seria uma tarefa absurda e interminvel tentar achar um conjunto de valores primrios [invariantes axiolgicas] e gerais do que se poderia, discursivamente, referir-se humanidade, pois os valores mais fundamentais de excluso ou incluso do que seja valor vlido estariam justamente ocultados nessa tabela comparativa de valores estabelecidos.

  • A negao direta sobre a limitao ou contrio dos corpos pela sua mobilidade,

    espao e tempo pode revelar, portanto, tais pensamentos ocultados sob a ideologia,

    revelando o discurso subliminar da normatividade. Ao negar que jovens de periferia

    agreguem-se em espaos pblicos revela, de fato, atravs da negao, o que estava por

    debaixo da normalidade e igualdades democrticas de direito.

    No entanto, ao revelar tais discursos, j no mais carece de cura, nem mesmo

    admite profilaxia, pois, contrariamente psicanlise, o aparato do corpo j rompe com a

    forma ideolgica pois efetivamente est no campo da descontrio, e funda-se no vazio

    da na a-normatividade ao ampliar seus limites de ao. Segundo Althusser a ao

    ideolgica fundamenta-se no vazio proposicional ou essencial. Justamente porque no h

    fora da ideologia, o que nos garante um espao subjetivo onde a ao possa, atravs do

    aparato do corpo, saltar da validade do discurso para a presena e movimento dos

    corpos. Essa exploso dura pouco, antes que se configure uma contra-ideologica ou

    uma normatividade alternativa.

    Portanto essa ao, mesmo sendo de carter teraputico (se assim quiserem alguns

    chamar) est margem da cura.

    A negao revela o vazio ontolgico e de fundamento da estrutura de dominao, vale

    dizer, ao invs de revelaes essenciais ou de novas ontologias, a anlise ideolgica trs

    tona o carter arbitrrio do modo de vida.

    2. Negao e pensamento oculto

    A negao tem posio privilegiada como operador e smbolo em qualquer tipo de

    racionalizao ou lgica. um operador geralmente tomado como primitivo e definvel

    pela consequncia que pode provocar: se A verdadeiro, o que define a negao que

    seu uso permite dizer que A (utilizando-se como cone ou sinal) falso. Se A

    significa Deus existe, A denota que Deus no existe. E assim por diante.

    Quine por exemplo comea toda a exposio sobre os mtodos da lgica, dando

    negao o privilgio de ser o primeiros dos operadores: justamente o que permite dizer

    que o verdadeiro falso ou vice versa, sem o qual no haveria nenhuma demonstrao.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 10

  • Negar uma sentena afirmar outra sentena, conhecida como a negao ou contraditria da primeira. O meio mais comum para formar a negao de uma sentena na linguagem ordinria atravs da anteposio do no (ou no h) ao verbo principal. Mas se o verbo governado por algumas vezes ou sempre, a negao formada pela utilizao do nunca ou nem sempre. (QUINE 1982, 1 Negation, Conjunction, and Alternation: 9s.)

    Outra caracterstica interessante do uso da negao que qualquer um dos quatro

    operadores utilizados na lgica proposicional ou de primeira ordem implicao (),

    equivalncia (), conjuno () e disjuno () tomado sozinho pode definir todos os outros se contar com a negao ().

    Por exemplo: ( ) ( ). O que significa que a expresso se A portanto B verdadeira (V) se e somente se A

    for falso (F) ou B verdadeiro (V)2. As duas sentenas ligadas pelo sinal de equivalncia

    tm o mesmo valor de verdade podendo assim serem definidas uma pela outra. Claro

    que aqui estamos utilizando tambm o conectivo de equivalncia, mas apenas como

    elemento metaterico, para relacionar as duas sentenas a serem definidas uma pela

    outra.

    Na vida habitual a negao responsvel por contradizer ou contraditar

    argumentos, por interditar o prprio discurso ou, em ltima instncia, o corpo:

    analogamente lgica, na vida prtica a negao tambm pode, aliada a um conjunto

    bsico de operadores, ferramentas e smbolos primrios de fora, definir um conjunto

    completo de operadores de um modo de vida, por exemplo seu sistema de implementao

    de direitos.

    Sob o smbolo da negao e com um aparato primrio de fora e aplicao a vida

    concreta pode ser privada de liberdade, o trabalho pode ser privado de retorno, a razo

    pode ser interditada de razes e o corpo pode ser negado em seu espao vital. Tudo

    justificado atravs de uma semntica aceita, em tese, por todos.

    2 Utilizaremos as aspas simples () para indicar elementos citados ou para diferenciar meno de uso de termos quando o texto for ambguo.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 11

  • A prpria regulao do Direito feita por negao, constituindo-se como lei efetiva

    as que probem ou vetam as aes pblicas ou privadas.

    to trivial que a regulao se faz por negao que, mesmo nas placas de trnsito,

    quando esta ltima apresenta uma seta (), ela no est liberando o caminho, mas sim

    vetando o caminho oposto ao impor uma mo nica.

    No caso das leis notamos ainda que leis positivas que garantem direitos, so

    reguladas, na prtica, pela negao. Por exemplo, o que regulamenta o direito de ir e vir

    um conjunto de restries [passaportes, trancas, chaves, cercas] sobre o ir e vir. Por outro

    lado, todos tm o direito de ir e vir, mas NO o podem fazer sem pagar.

    Alm disso, o prprio no pode ser interditado e alienado do universo do discurso

    de qualquer sujeito pela violncia, com efeitos perversos e nefastos: malgrado todos

    saibam o que significa no na interdio do corpo e da ao sobre o outro o Brasil

    hoje bate recordes de estupro talvez a nica forma de crime em que a sociedade

    tende a criminalizar a prpria vtima justamente ao perverter e sequestrar o direito ao

    no; por exemplo, atravs de um velho ditado machista que diz que todo no de

    mulher tem uma dose de sim; seja no sequestro social do direito a dizer no explcito, no

    caso da vtima ser prostituta, ou usar roupas indecentes por exemplo. Segundo essa

    linha perigosa e nefasta de pensamento, algumas mulheres teriam, outras no, o direito

    de interdio da violao de seus corpos.

    O que constitui a caracterstica comum do uso e efeito da negao em todos os casos

    a provocao da inverso, interdio ou veto de alguma coisa, seja esta coisa um valor

    de verdade (como na lgica), seja uma questo de afirmao na esfera do modo de vida

    (como na questo do Direito) seja na ao do corpo (como na questo da implementao

    da violncia e controle sobre o outro, tomado aqui em um caso particular: a violncia

    contra a mulher) seja na afirmao da existncia ou no de algo.

    Vamos chamar genericamente de valor o que invertido pelo smbolo da negao:

    valor positivo ou negativo de verdade no primeiro caso; valor como direito de ou

    interdio do direito de no segundo; como ao ou bloqueio da ao do corpo, onde a

    negao pela violncia sequestrou e constrangeu o direito de negao do outro. E

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 12

  • genericamente tomar a negao como o smbolo sob o qual se invertem, interditam ou

    vetam os valores das coisas.

    a. Negao, juzo e valor

    A negao nos remete diretamente discusso sobre o juzo, faculdade humana

    responsvel por aceitar ou negar que determinadas qualidades, inclusive quanto

    existncia e ontologia, sejam ou no ligadas e determinados objetos dotados de sentido.

    Sob o signo da negao determinados valores, expressos socialmente sob sua

    interdio ou veto, podem trazer tona pensamentos reprimidos ideologicamente.

    Se o paciente cai na armadilha e fala aquilo em que menos pode acreditar, quase sempre est confessando a coisa certa. [...] Portanto, o contedo reprimido de uma ideia ou imagem pode abrir caminho at a conscincia, sob a condio de ser negado. A negao uma forma de tomar conhecimento do que foi reprimido. (FREUD 2011)

    Tomando-se a frase de Freud [sobre as funes do juzo], de A Negao, podemos

    decomp-la em dois momentos:

    A funo do juzo tem essencialmente duas decises a tomar. (1) Deve adjudicar ou recusar a uma coisa uma caracterstica e deve (2) admitir ou contestar a uma representao a existncia na realidade. (Freud, A Negao)

    Segundo uma belssima interpretao do professor Dunker (2009) a frase

    denotaria a precedncia do juzo de valor (atribuio de qualidades) aos juzos

    existenciais.

    No entanto, preferimos aqui a interpretao formal de que, tanto as afirmaes de

    atribuio de qualidades das coisas e seus valores ou qualidades quanto as operaes de

    afirmao ou negao existencial envolvem valores; nesta ltima [existencial] a saber, o

    valor positivo, para o que existe, valor negativo para o que no existe (segundo as provas

    de realidade, por exemplo).

    Portanto no existe de fato precedncia do valor sobre a afirmao existencial, mas o

    valor como substrato de quaisquer consideraes do juzo sejam elas sobre as

    qualidades da coisas, sejam sobre a existncia delas.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 13

    Antonio HerciA partir dessa operao da negao sobre o valor, de invert-lo, interdit-lo ou vet-lo podemos abrir alguns campos de abordagem para a negao: primeiramente se o que negado um valor de alguma coisa ou a forma geral de produo do valor. Se o que negado remete ao contrrio ou contraditrio; se a negativa proferida de modo universal ou existencial.

    Sob o signo da negao apresentam-se consequncias distintas e de diversos tipos dependendo do contexto onde se insere: ontolgicas sobre a afirmao ou negao da existncia; afirmao ou negao de verdades ou argumentos; questes propeduticas que envolvem o juzo sobre o prprio sistema de valores, ou mesmo a revelao de nveis ou escopos de linguagem, quando nos referimos, por exemplo, negao como ferramenta de expresso do pensamento reprimido ou questionamos o lugar do sujeito em um discurso.

  • Dessa forma, a frase acima poderia ser interpretada como a negao diante de dois

    momentos de negao do valor, (1) um de carter universal, (2) outro existencial.

    Freud, na frase acima refere-se, portanto a dois momentos, segundo a diviso entre

    proposies universais e existenciais, pois:

    (1) Asseverar a posse de um atributo equivale a uma proposio universal,

    (2) asseverar a existncia equivale a uma proposio existencial.

    (Cf., por exemplo, DAGORD: Negao lgica e negao do sujeito)1

    tarefa da funo intelectual do juzo confirmar ou negar os contedos dos

    pensamentos. De forma que negar algo num juzo seja efetivamente dizer: Isso algo

    que eu gostaria de reprimir (FREUD 2011)

    Mas o fato que o juzo negativo pode permitir, efetivamente, que algo que deveria

    estar reprimido, sob seu signo, pudesse escapar prpria represso, inscrito justamente no

    campo do impensado. Freud argumenta que atravs do smbolo da negao, que o

    pensamento se livra das limitaes da represso e se enriquece de contedos (FREUD

    2011).

    No h prova mais forte de que conseguimos desvelar o inconsciente do que o analisando reagir dizendo: No pensei isso ou Nisso eu no (nunca) pensei. (FREUD 2011)

    3. Valor

    O problema filosfico que envolve a discusso do valor incomoda at mesmo o

    senso comum e o mais trivial dos cotidianos: a impossibilidade da remisso a uma

    valorao uniforme e aceita por todos, pois sempre existir pelo menos um que no vai

    participar do universo impregnado pelas razes dessa valorao, ou, mesmo

    participando, vai discordar de suas medidas.

    Da que, em uma sociedade onde a convivncia com o outro uma situao

    ininterrupta, o valor no tem como ser pensado sem o sua face oculta: a forma de sua

    aplicao, seja a quem dele participa ou no. Se particular, no sentido de conter alguns e

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 14

  • no todos os humanos como participantes, universal na aplicao, cobrindo os que dele

    participam e no participam.

    Existe hoje um discurso social e mesmo cientfico, que carrega um tom de

    autoflagelao subjetiva quase melanclica, que afirma estarmos ns a sociedade

    contempornea nos distanciando dos verdadeiros valores. Tambm recorrente

    uma pregao, em diversos nveis culturais, do cotidiano aos mais rebuscados

    corredores de academias e palcios dos poderes, que visa ordenar os valores, numa

    razo que iria do mais superficial ao mais verdadeiro, acompanhado de um preceito moral

    e ferramentas adequadas de compensaes no caso da sublimao de um ou outro valor

    mais baixo ou falso para a obteno de outro valor mais alto e verdadeiro. H mesmo

    uma suposta e rapidamente aceita por todos hiptese filosfica que denuncia uma

    degenerao dos valores e uma necessidade inadivel de recuperar os verdadeiros

    valores humanos. Finalmente, na talvez mais bem acabada face do moralismo,

    cotidiano ou cientfico, a crucial crtica da perda [ou afastamento] da essencialidade dos

    valores e o apego aos valores superficiais e falsos.

    Devo dizer que, mesmo respeitando quem quer estar em paz com sua prpria

    conscincia moral ao valorizar a vida que leva, seja l de que ordem for essa

    tranquilidade, no h um interesse maior aqui no estudo dos valores, seja em sua

    classificao, seja em seu ordenamento.

    A axiologia aqui pretendida interpreta, ao contrrio, as formas de produo desse valor.

    Particularmente, nesse processo de valorao, destaca-se a passagem do pr-ao-contra no

    juzo de determinados valores considerados fundantes de uma possvel ordem geral de

    valor. Mas que de fato so tanto indemonstrveis quanto funtamentais, e acabam

    sempre revelando um vazio ontolgico e uma imensido habitual de certezas.

    A abordagem sobre a aplicao e formas de produo do valor passa, por isso

    mesmo, pela considerao sobre a negao, sem a qual no existe converso ou recusa de

    um determinado valor.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 15

  • a. A nica tradio materialista

    Althusser alinha Pascal, Marx e Freud no que chama de nica tradio

    materialista, tradio inaugurada pelo primeiro deles atravs de sua intuio do

    vazio como substrato da matria (ALTHUSSER 1993, 2007).

    Segundo ele, o argumento de Pascal, ao enunciar o vazio como substrato da matria

    significa dizer que se esvazia dela, da matria, uma possvel substncia que no esteja

    ali. A consequncia que Althusser aponta uma direo de esvaziamento de

    fundamentos essenciais para o campo das ideias, vinculando o conhecimento

    organizao material da vida.

    Mas principalmente, podemos tomar esses autores como alinhados tambm pela

    forma como se d, em seus pensamentos, a negao do valor.

    Se entendermos a interpretao do valor como uma tentativa de explicar ou

    descrever o modo como a atribuio de valor se d no cotidiano de uma forma de vida,

    podemos alinhar tais autores se alinham pois suas negativas no se dirigem aos valores,

    mas sim ao modo como so produzidos tais valores.

    Marx, Nietzsche e Freud tem em comum no apenas uma crtica das formas de significao, ou seja, a crtica da estabilidade das hermenuticas tradicionais (metafsicas ou teolgicas), a crtica da ideologia, da verdade ou da conscincia. Tais pensadores so pensadores da suspeita, no apenas porque colocam sub-judice nossos valores, mas tambm por questionarem o modo como se produzem, como se consomem ou como se trocam valores. [...]

    O valor portanto remetido a um outro contexto mais amplo, onde a produo de

    valor passa pela destruio ou desestruturao de um aparato de construo do valor.

    Como tal, ele um valor e ao mesmo tempo a destruio de um sistema de valores ou de uma forma de vida definida como produo circulao e consumo de tais valores. (DUNKER 2009)

    A relao entre a negao e o valor pode ser pensada sob dois escopos ou

    perspectivas de aplicao: a negao aplicada a um valor, remetendo a um valor

    contrrio (invertendo o valor de verdade por exemplo) e a negao aplicada prpria

    forma de produo de valor, neste caso negando o valor do valor atribudo ou crtica a todo

    o sistema de valorao.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 16

  • Tirania [] Esses discursos so falsos e tirnicos: "Sou belo, logo devem temer-me; sou forte, portanto devem amar-me. Sou. . .". [] E tambm ser falso e tirnico dizer: "Ele no forte, logo no o estimarei; ele no hbil, logo no o temerei". (PASCAL 1973 [332], 2005 [58])

    Este fragmento apresenta ambas as formas de negao, a negao do valor de algo e

    a negao de seu sistema de valores.

    A negao do valor de algo apresentada na seguinte dualidade (a) sou forte e

    belo portanto X (b) no forte e belo logo.

    E esse sistema de valorao, que d valor ao belo e forte criticado na seguinte

    formulao: tambm [igualmente] falso e tirnico dizer, mostrando que os dois

    contrrios sobre o grau da beleza ou fora na legitimao do poder so ambos falsos e

    tirnicos.

    Isto , para o pr ou contra da discusso sobre quem deve ter a prerrogativa do

    poder pela beleza e a fora, se a questo colocada a tirania, ambos devem ser

    negados, como valores igualmente tirnicos e falsos, com relao a essa outra forma de

    ver as coisas que alia ou empresta tirania a qualidade do falso.

    Neste ltimo caso, a crtica no estaria contemplada em nenhum dos dois contrrios

    e inauguram um registro meta lingustico em relao ao primeiro, circunscrevendo de

    significado e podendo remete-lo a um novo sistema de valorao, onde seja reconhecida

    a contrariedade inicial, mas garantido um modo de ver a contradio das duas em uma

    relao valorativa com um escopo mais abrangente. Este segundo modo de ver as coisas

    pode ser chamado de privao do discurso.

    So privativos no sentido de que no sistema original de valorao eram valores que

    tendiam para a universalizao da deciso sobre as coisas, afinal, decidido quem tem a

    legitimidade do poder, a consequncia universalizada por todos os que participam

    daquela forma de vida. Em um sistema onde esse sistema original esteja, ele mesmo,

    sob judicie, seu sentido original tem um carter privativo com relao ao novo sistema,

    num jogo aninhado valores e inverso de valores, prs e contras.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 17

  • Razo dos efeitos Graduao. O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hbeis as desprezam, dizendo que o nascimento no uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hbeis as honram, no pelo pensamento do povo, mas pelo pensamento oculto. Os devotos, que tm mais zelo do que cincia, as desprezam, malgrado essa considerao que as faz honrar pelos hbeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes d. Mas os cristos perfeitos as honram por outra luz superior. Assim, vo-se sucedendo as opinies do pr ao contra, segundo a luz que se tem. (PASCAL 1973 [B337; L90])

    4. O inconsciente no discurso do valor do trabalho

    Althusser toma de Marx (MARX, 2009) la transicin de valor del trabajo para

    valor de la fuerza de trabajo, como el punto donde la teoria marxista puede volver

    conocido a lo que fue reprimido.

    Primeiramente Marx nos fala sobre um pensamento desse tipo, quando aponta que

    o fundamento e ordenao jurdico ou trabalhista fundado em relaes invisveis e

    fundadas sobre iluses, mais propriamente, sobre um discurso efetivo e no proferido

    Sobre esta forma de manifestacin, que vuelve invisible la relacin efectiva y precisamente muestra lo opuesto de dicha relacin, se fundan todas las nociones jurdicas tanto del obrero como del capitalista, todas las mistificaciones del modo capitalista de produccin, todas sus ilusiones de libertad, todas las pamplinas apologticas de la economa vulgar.

    La economa poltica clsica tropieza casi con la verdadera relacin de las cosas, pero no la formula conscientemente, sin embargo. No podr hacerlo mientras est envuelta en su piel burguesa. (MARX, 2009) (MARX 2006 Livro I - cap. XVII, Transformao do Valor, Respectivamente do Preo da Fora de Trabalho, em Salrio)

    A releitura althusseriana de Marx inseparvel do mtodo de leitura sintomal que

    Althusser atribui ao prprio Marx, em sua abordagem dos economistas clssicos.

    Este mtodo distingue um primeiro momento, no qual se faz o levantamento dos

    pontos de concordncia e discordncia no campo das ideias, assinalando as lacunas e

    equvocos dentro de um quadro referencial do leitor que l o discurso do outro.

    Portanto o mtodo sintomtico no abre mo de uma anlise, ainda que se funde em

    uma interpretao.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 18

  • O detalhe que essa interpretao deve estar voltada para a prxis, segundo seus

    prprios fundamentos. Por exemplo quando anuncia-se o fim da interpretao da

    histria para comear a muda-la, est implcito que a interpretao ocorre ou j

    ocorreu, mas cabe um lastro explcito no que, em referncia a Pascal e Althusser,

    podemos chamar de aparato dos corpos. Ler sintomaticamente refletir sobre o resultado

    do que se conclur sobre a materialidade dos corpos, principalmente em se tratando de

    leituras nos campos da poltica, esttica ou economia.

    Portanto, para alm dessa primeira leitura, Marx pratica uma abordagem

    intratextual que permite ver o no visto. Sintomal no sentido de perceber, a partir de um

    contexto do prprio discurso formulado, sintomas de um discurso normativo no

    proferido ou inconsciente , que concorre com a teoria principal numa espcie de

    teoria subliminar. Concorre no sentido lgico do termo, isto , ocorre junto com certa

    autonomia e conflito, e no no sentido de competio.

    O equvoco ento no enxergar o que se v; o equvoco refere-se no mais ao objeto, mas prpria vista. um equvoco que diz respeito ao ver: o no ver , pois, interior ao ver; uma forma do ver, logo, [est] numa relao necessria com o ver (ALTHUSSER 1979, p. 20).

    Freud j falara nisso, na relao entre lembrar e no lembrar, ou mais precisamente,

    de como lembrar um processo de esquecer arbitrrio. A anlise ideolgica nos

    revela algo da mesma espcie, com relao aniquilao, segundo sua mxima de que o

    que foi aniquilado ou excludo de um discurso deixa, inevitavelmente, marcas do processo

    de apagamento ou excluso, e pode ser recuperado como sintoma de que ocorreu ali,

    deliberadamente, uma represso ou recalcamento.

    Tomemos o caso exemplarmente paradigmtico, analisado por Althusser, do

    enunciado tomado de Adam Smith e referido originalmente por Marx:

    O valor do trabalho igual ao valor dos meios de subsistncia necessrios manuteno e reproduo de trabalho.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 19

  • A leitura sintomal permite ver o que o prprio texto clssico diz no dizendo e o que no

    diz ao dizer, na medida em que nos faz ver, nos interstcios do texto, que seu silncio

    so suas prprias palavras (Althusser).

    Marx alude a um resultado que admite um inconsciente, um discurso no formulado:

    A inconscincia sobre esse resultado de sua prpria anlise, a aceitao sem crtica das categorias valor do trabalho, preo natural do trabalho etc. como expresses ltimas adequadas da relao de valor examinada, emaranhou a Economia Poltica clssica em confuses e contradies insolveis, enquanto ofereceu Economia vulgar uma base segura de operaes para sua superficialidade, dedicada principalmente ao culto das aparncias.

    Marx nos faz ver o equvoco apontando a repetio do termo trabalho, isto , a

    circularidade da referncia e o vazio ontolgico e essencial que fundamenta o valor.

    O enunciado, segundo Marx, tenta se apresentar como um enunciado pleno e

    completo, uma equao de comparao de valores onde se podem introduzir algumas

    variveis, representadas pelas reticncias (...):

    O valor de (...) trabalho igual ao valor dos meios de subsistncia necessrios manuteno e reproduo de (...) trabalho.

    Ele introduz, em seguida, uma diferena que modifica o enunciado, substituindo a

    referncia ao trabalho, na segunda parte da frase, por trabalhador, ressaltando o

    equvoco e o desacordo:

    O valor do trabalho igual ao valor dos meios de subsistncia necessrios manuteno e reproduo do trabalhador.

    V-se que o procedimento de leitura obedece, de fato, ao desvelamento de um

    sintoma, atestando o que mesmo Lacan j enunciara, magnificamente como: Marx,

    inventor do sintoma (LACAN 1966: p. 234 Funo e campo da palavra e da

    linguagem em psicanlise).

    Se o valor do trabalho equivalente ao valor da reproduo do trabalho, onde

    reside o lucro e a reproduo do prprio capital? Seu valor seria consumido apenas na

    manuteno do trabalhador, fosse ele o valor da reproduo do prprio trabalhador. No

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 20

  • entanto, o trabalhador se reproduz e, alm disso, existe o lucro, o aumento de capital e a

    produtividade.

    O que se esconde a, no discurso sobre a produo do valor segundo a economia

    clssica, diz Marx e ecoa Althusser, a mais-valia: o discurso efetivo e no formulado

    de normatividade, que pode ser revelado ou reconhecido atravs da negao de um

    valor como essencialidade o do trabalho e na revelao da negao como sintoma do

    discurso sobre outro valor fundamentalmente ocultado o da fora de trabalho.

    Ali mesmo onde Adam Smith pretende responder questo do valor do trabalho,

    Marx nos faz ver que

    Essa falta localizada, pela resposta, na prpria resposta, na proximidade da palavra trabalho, nada mais que a presena, na resposta, da ausncia de sua questo, nada mais que a falta de sua questo (ALTHUSSER 1979, pg. 21 e ALTHUSSER; BALIBAR 1973).

    Marx pode colocar a questo no enunciada no enunciado tal como Freud

    pretende preencher as lacunas da memria no tratamento da histeria lendo o texto dos

    sonhos restabelecendo no enunciado o conceito de fora de trabalho:

    O valor da fora de trabalho igual ao valor dos meios de subsistncia necessrios manuteno e reproduo da fora de trabalho.

    Desta maneira, a leitura sintomal torna evidente a equao pela qual, ao vender

    livremente sua fora de trabalho como uma mercadoria, o trabalhador se v tomado no

    circuito da explorao capitalista em que sua liberdade se converte em dominao e sua

    produtividade em alienao de sua fora produtiva. Revelando, como sintoma das

    relaes capitalistas, a produo da mais valia como valor normativo no formulado.

    Assim como esses, outros valores ocultos se revelam, assim como o valor de troca:

    A determinao do valor de mercado dos produtos, portanto, tambm dos produtos da terra, um ato social, apesar de ser um ato executado de maneira socialmente inconsciente e no-intencional, que necessariamente se baseia no valor de troca do produto, no do solo e nas diferenas de sua fertilidade. (Marx)

    Antonio Herci Ferreira Jnior

    Dez 2013

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 21

  • 5. BIBLIOGRAFIA ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan; Marx e Freud. Trad. Walter Jos Evangelista. Rio de

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    1 Cito a professora DAgord, da UFRGS para no ter que demonstrar aqui essas asseres. Mas facilmente pode-se mostrar os caracteres universais e existenciais mencionados.

    Antonio Herci Nisso nunca pensei 23

    Negao como revelao do pensamento reprimido1. Inconsciente e ideolgicoa. Verdade instanciada e pensamento ocultob. Carter de ocultaoc. Efetividade no declaradad. HIPTESE

    2. Negao e pensamento ocultoa. Negao, juzo e valor

    3. Valora. A nica tradio materialista

    4. O inconsciente no discurso do valor do trabalho5. BIBLIOGRAFIA