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NNNNoctívagos
Contos Vampíricos
2
Noctívagos
3
Editora Clube de Autores
“Pois a vida de todo ser vivente está no sangue”.
Levítico 17.11 NTLH
http://clubedeautores.com.br
Contos Vampíricos
4
--Noctívagos --
Contos vampíricos,
Copyright © Luiz Cézar da Silva
Literatura Brasileira
Ficção, terror.
Rio de Janeiro, 2011.
1◦ edição
Noctívagos
5
Sumário
1: Sr. Expedito 7
2: O beijo da noite perpétua 16
3: Caminhando no apagão 23
4: Um estranho na janela 30
5: Meu escapulário 39
6: A meretriz 46
7: Sangue de lobisomem 58
8: Noctívagos 62
9: O invasor 73
10Vampiro 86
11 Regente das ruas 91
12:O rapto noturno de Luessa Teixeira 98
13: Convite dos imortais 114
14: Morlock 126
15: Íncubo 135
Contos Vampíricos
6
Noctívagos
7
Sr. Expedito
Dia 27 de Janeiro 2010.
Nove horas da manhã; o dia estava ensolarado com céu azul e
muitas nuvens, porém o sol parecia um prenúncio de chuva
para aquela tarde; todo o mês de Janeiro tinha cumprido um
ritual que se iniciava com céu claro durante as manhãs, seguido
de muito calor no princípio de tarde; calor esse que chegou a
alcançar mais de quarenta graus em certos dias e, no final das
tardes estava ocorrendo fortes pancadas de chuva que vinham
transtornando a vida de grande parte das pessoas, fazendo com
que os rios transbordassem e inundando vias e casas de vários
municípios.
A ambulância do corpo de bombeiros ficou parada em frente a
uma das casas mais afetadas pela enxurrada que atingiu vários
municípios da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de
Janeiro.
Os para-médicos foram obrigados a pedir auxilio aos homens
da defesa civil para que pudessem entrar na casa; porque ela
estava totalmente trancada, tanto portas quanto janelas. Era um
domicílio antigo localizado em Mesquita, construído no início
do século XX. A casa fora construída abaixo do nível da rua e,
Contos Vampíricos
8
portanto, ainda tinha um pouco da água barrenta trazida pelo
grande volume da enchente que atingira aquela residência dois
dias antes; o quintal pequeno que circundava o lugar não
possuía nada a não ser um varal para estender roupas, sem
nenhuma roupa nele; um tanque para a lavagem da roupa, que
parecia não ser usado há dias e uma enxada velha que o
proprietário provavelmente utilizava para cultivar algum tipo
de pequena horta particular junto ao muro; horta essa que agora
estava submersa em pelo menos três palmos de lama e água
fedorenta deixada pela chuva.
Nas paredes a marca de até aonde a água chegou no dia do
incidente; cerca de um metro. Essa marca parecia uma faixa
amarelada sobre a tinta velha das paredes.
A casa, uma espécie de chalé, tinha apenas uma porta e uma
janela na frente; a tinta era antiga e surrada pela passagem do
tempo, o telhado em formato triangular formado por telhas
confeccionadas em uma olaria antiga no município e que hoje
em dia já não existe mais; a porta de madeira não permitia ver
nada dentro do domicílio, era inteiriça e não possuía nada além
da maçaneta.
A janela de igual modo também tinha toda a armação feita de
madeira, mas possuía os vidros que por sinal estavam
Noctívagos
9
empoeirados e embaçados; eles não permitiam ver muito do
interior até porque por detrás da janela havia uma cortina do
que parecia ser um tecido rendado e isso acabava contribuindo
ainda mais para cortar a visão daqueles que estavam do lado de
fora.
Os homens da defesa civil rodearam a casa e tentaram abrir a
porta dos fundos, mas também encontraram muita dificuldade,
como se algo estivesse servindo de barreira pelo lado de
dentro.
Aquela força de salvamento estava ali presente naquela manhã
por ter recebido um telefonema de um dos moradores vizinhos
à residência, informando que ali morava um homem conhecido
como Sr. Expedito e que desde o dia da enchente as pessoas
não o tinham visto durante as noites que era o seu horário
habitual de perambular pelo quintal; não o viram nem mesmo
para falar sobre a chuva nem o viram tirando água de dentro da
casa; absolutamente o homem havia desaparecido, mas como
nenhum dos vizinhos o viu sair ficaram preocupados com o que
de pior podia ter acontecido com ele e entraram em contato
com a defesa civil que por sua vez acionou o corpo de
bombeiros.
Contos Vampíricos
10
Segundo os moradores locais, que estavam espalhados pela rua
observando atentos no momento em que os homens
vasculhavam o quintal; o Sr. Expedito era um homem recluso,
sempre fora assim, mas de uns tempos para cá estava muito
pior; passou a sair somente durante as noites e em altas horas
para evitar o contato com outras pessoas. Corria um boato nas
circunvizinhanças de que ele estaria sofrendo de uma grave
doença terminal e, portanto, teria ficado desgostoso da vida
procurando assim evitar ao máximo qualquer contato com
outras pessoas para não falar a respeito e também para não ser
visto em seu estado cada dia mais fragilizado. Algumas
vizinhas afirmavam que o tinham visto conversando com um
familiar que o visitou alguns dias atrás.
De fato, embora o Sr. Expedito vivesse completamente sozinho
já há bastante tempo, às vezes ele era visitado por um neto ou
algum outro parente, mas as visitas foram diminuindo
gradativamente até que apenas um homem vinha raramente
falar com ele, ficava pouco tempo, trazia sacolas que retirava
de um carro grande, bonito e preto e em seguida ia embora.
Alguns dias antes da enchente as pessoas viram o Sr. Expedito
conversando no portão à noite com aquele mesmo homem,
supostamente seu neto, ambos entraram e minutos depois o
Noctívagos
11
homem foi embora como de costume. Aquela foi a última vez
que eles viram Expedito.
Depois de voltar até o veículo da defesa civil, os homens
munidos com um pé-de-cabra acabaram por arrombar a porta
da frente da casa, entraram juntamente com os para-médicos e
ficaram surpresos com o estrago que as águas barrentas tinham
feito no interior do lugar. Os móveis estavam cobertos de uma
película feita da mistura de areia, barro, lama e outras coisas
que não conseguiam identificar; mesas, cadeiras, parte da
estante e todo o chão da casa também estava do mesmo jeito. O
lugar ficou parcialmente revirado, provavelmente as coisas que
boiaram durante a inundação haviam trocado de lugar e se
espalharam pelo cômodo e pelos outros cômodos.
Os para-médicos vasculharam cômodo por cômodo até
encontrar o dono da casa, não eram muitos lugares para
verificar; a preocupação maior era que o Sr. Expedito tivesse
sofrido algo por causa de sua suposta doença, algo que o
incapacitara permanentemente impedindo-o de conseguir se
defender da enxurrada erguendo os móveis por exemplo.
A casa pequena possuía apenas um quarto, uma sala, banheiro
e cozinha, tudo nos moldes antigos das construções que já não
Contos Vampíricos
12
se fazem mais, o teto possuía um forro de madeira e o chão era
composto por incontáveis tacos outrora envernizados.
A cozinha estava tão suja quanto o restante da casa e a porta
que dava para os fundos estava escorada pelo lado de dentro
por uma velha geladeira cujo motor queimara quando engolido
pela água e a lama.
Uma verdadeira bagunça se fazia dentro da casa; o espelho do
banheiro estava quebrado no chão e coberto pelo que restou da
lama; havia resquícios de sangue já coagulado, mais em grande
quantidade na pia, como se o dono da casa tivesse expelido o
líquido ali ou cuspindo, ou golfando. Aquilo deixou os
profissionais de saúde ainda mais temerosos quanto ao bem
estar do único ocupante da casa; talvez ele tivesse sofrido
alguma reação ou um ataque ali no banheiro. Não sabiam ao
certo.
De repente alguém gritou do outro cômodo:
_ Aqui está ele! _ Disse um bombeiro.
Ele estava no quarto deitado sobre a cama, mãos cruzadas
sobre o peito e aparentemente sem sinais vitais; rapidamente os
para-médicos iniciaram os procedimentos, mas não
conseguiram nada; não havia respiração, pulso, nem
batimentos cardíacos, nenhum indício de atividade respiratória,
Noctívagos
13
as pupilas não tinham mais nenhum reflexo, ele estava frio, a
pele branca como uma folha de papel, os cabelos escassos
penteados para trás e tanto as bordas dos olhos quanto da boca
e extremidades dos dedos ostentavam uma coloração tênue
arroxeada.
Os para-médicos se utilizaram de uma das macas que tinham
na ambulância para fazer a remoção do Sr. Expedito; levaram
no para fora onde já havia uma pequena multidão de vizinhos e
curiosos. Pediram que uma das vizinhas o reconhecesse.
A reação das pessoas foi de comoção ao vê-lo ser retirado
inerte na maca, mas o que aconteceu em seguida foi o que
realmente marcou os presentes.
Os homens da defesa civil interditaram a casa e foram
conversar com as pessoas, moradores da rua, que se
aglomeravam para ver o corpo sobre a maca, a fim de tentar
descobrir o paradeiro de algum familiar para comunicar o
ocorrido. Os para-médicos foram preparar o interior da
ambulância para acondicioná-lo e fazer a remoção, e, foi então
que tudo aconteceu.
Era por volta de dez horas da manhã, o sol estava começando a
ganhar força, o Sr, Expedito se moveu sobre a maca; primeiro
os olhos embaixo das pálpebras, depois o corpo estremeceu; as
Contos Vampíricos
14
mãos se moveram e levantaram levemente. Algumas pessoas
reagiram ao ver que ele não estava morto, houve um som
generalizado no meio das pessoas, um murmúrio de espanto
que aumentou tão velozmente quando ele se levantou da cama.
O Sr. Expedito numa reação que lhe parecia natural, levantou a
cabeça e olhou para o sol, em seguida tentou proteger os olhos
da luminosidade soberana; a pele branca tinha adquirido quase
que automaticamente um tom amarronzado que escurecia mais
a cada instante; ele fez uma careta dolorosa. Os para-médicos
se interromperam no movimento de ir até o homem sobre a
maca para prestar algum atendimento; eles tiveram medo do
que estava acontecendo; um medo inconsciente e violento.
Expedito olhou para suas próprias mãos que enegreciam
rapidamente, ele tremia quase convulsivamente; tentou correr
novamente para dentro de casa, mas as pernas provavelmente
fracas, não foram capazes de cobrir o percurso; ele caiu, tentou
se arrastar pelo chão enlameado. A imagem daquele homem
agora com a pele negra como carvão lutando para viver
enquanto se arrastava em meio ao lamaçal foi algo fora do
comum.
Os cabelos outrora bem penteados, agora tinham caído por
completo; a pele escurecida como se tivesse sido carbonizada,
Noctívagos
15
estava seca e estalava. As pessoas ali presentes não sabiam ao
certo se os estalos que ouviam eram provenientes dos ossos do
que antes fora o Sr. Expedito ou se dos seus próprios dentes
forçados uns contra os outros numa atitude frenética de repulsa
e assombro.
O fato é que aquele ser que se arrastava pelo chão não teve
forças suficientes para chegar novamente dentro da casa e
assim se refugiar do sol que o castigava tão violentamente; por
fim, acabou gritando; um grito entre dentes e sufocado antes de
parar completamente. Parecia que o sol era uma espécie de
incinerador natural que o dizimou em poucos instantes; foi
talvez a visão mais aterradora que cada uma daquelas pessoas
já teve ou teria na vida. Um homem se tornar algo
indistinguível como um monstro e em seguida ser reduzido a
pó que se misturou na lama espalhada no quintal. O Sr.
Expedito havia desaparecido por completo, já não havia
vestígio algum de que um dia tal pessoa tivesse existido, exceto
pela mancha negra onde a lama e as cinzas se misturaram.
***
Contos Vampíricos
16
O Beijo da noite perpétua
_ Escolha seu novo nome, Agar ou Acácia.
Simone se levantou rapidamente e correu, mas parou no meio
do ímpeto de fugir por estar num lugar muito escuro, a luz
abundante, porém quase fantasmagórica era a luz do luar e a
mulher parecia estar longe de qualquer lugar habitado. Suas
roupas estavam sujas e retaliadas; havia sangue em seu decote,
mas não tinha nenhum ferimento visível em seus seios ou
pescoço.
_ Acácia, vem do grego, significa ressurreição, e foi o que
aconteceu com você nesta gloriosa noite; já Agar é um nome
hebraico e significa estrangeira. Isso é o que você se tornou
hoje; para sempre uma estrangeira no meio das pessoas.
A mulher se voltou girando nos calcanhares e viu um homem
sentado sobre uma lápide e recostado em uma grande estátua
de um anjo, que fazia sombra defendendo aquela pessoa da
luminosidade pálida da lua com suas grandes asas abertas e as
mãos estendidas para frente.
_ Por favor, me ajude, não sei como vim parar aqui. Que lugar
é este?
Noctívagos
17
O outro; puxou as pernas até encostarem no tórax, repousou os
braços sobre os joelhos e disse:
_ Olhe em volta.
Simone parou um minuto e antes de olhar ao redor, percebeu
que aquele homem estava sentado sobre uma sepultura, havia
outra cuja tampa, como uma espécie de sarcófago, estava
aberta e uma terceira também fechada. Finalmente ela se virou
e teve certeza do que já imaginava, viu várias lápides, várias
sepulturas, várias estátuas de anjos; querubins, serafins, santos,
cruzes de diversos tipos e alguns mausoléus. Estava em um
cemitério.
Irrompendo em prantos imediatamente ela caiu com os joelhos
em terra, na verdade, era uma grama verde e umedecida pelo ar
da noite; uma nevoa rasteira se apresentava em alguns lugares
como se fosse um rio formado por almas translúcidas que
serpenteavam pelo solo em busca de alguma entrada para o
centro da terra.
_ Não chore. Nunca mais você vai precisar chorar novamente,
você está livre e fora do jogo; em breve vai entender que
lágrimas não farão parte de sua vida, mas sim daqueles que
zombaram de você.
Contos Vampíricos
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_Fui seqüestrada? Sou sua prisioneira? O que você quer?_
Falou ela no intervalo dos soluços que embargavam sua voz.
_ Não. Você não é nada disso, de fato, jamais foi. Só peço que
você me ouça atentamente, não faça perguntas, meu tempo é
curto e quero dizer tudo o que você precisa saber para
sobreviver.
Ela chorava copiosamente imaginando que seria utilizada e
depois enterrada na sepultura que aguardava com o tampo
pesado de granito aberto.
_Não minha doce sobrevivente, nunca passou pela minha
cabeça usá-la como seus clientes o faziam até a noite passada,
na verdade, agora é você que vai usá-los, nunca mais vai
precisar vender a si mesma em troca de dinheiro, nunca mais
vai precisar sucumbir ao vício e usar tudo o que usava para
perder os sentidos ou obliterar a consciência em troca de
viagens mentais distorcidas. Você minha cara, morreu.
Simone estava deitada em posição fetal e continuava chorando;
em sua mente passava um cem número de coisas e ela ainda
não compreendia nada do que o homem falava.
Ele prosseguiu:
_Eu trouxe você aqui, porque é um lugar tranquilo, o mais
tranquilo que conheço; ótimo para descansar. Você vai gostar
Noctívagos
19
deste lugar com o tempo, quando perceber que não suporta
mais ouvir as vozes e os pensamentos da multidão fervilhante
de pessoas em todas as partes.
_ Minha jovem escute, você não precisa mais fingir, não
precisa mais mentir para si mesma como as pessoas fazem,
você está além dos falsos sentimentalismos humanos; todos os
dias eles sorriem para pessoas as quais não suportam, fazem
violência contra eles mesmos agradando falsamente pessoas
que desejam o pior possível, dizem que conhecem sentimentos
como piedade, amor, esperança, mas negam tudo isso com seus
atos. Eu libertei você.
A maquilagem pesada de Simone agora estava destruída pelas
lágrimas que brotavam incessantemente de seus olhos, os
longos cabelos, desgrenhados, mas havia algo dentro dela, algo
diferente que ela não sabia identificar.
O outro continuou falando:
_Não sei por que você chora, se já a escolhi pela sua total falta
de apego à vida; sim, eu ouvia todas as vezes que durante sua
jornada de trabalho você desejava acabar com tudo; estava
perto quando você, sendo usada por seus clientes como um
trapo humano desejava não ter nascido e se considerava a pior
das mulheres.
Contos Vampíricos
20
Simone tentou se levantar, sentiu o corpo leve, tão leve que
pensou por um momento que seria levada caso soprasse um
vento mais forte.
_ O que houve comigo?_ Perguntou _ sinto-me leve.
O outro estremeceu, parecia sentir dores por dentro do corpo e
fez força para responder.
_ O que você sente é meu sangue correndo em suas veias; eu
lhe dei um presente, um beijo que vai tornar essa noite
perpétua; você vai viver até enjoar, mas devo adverti-la _ ele
parou tossiu e fez mais força para continuar falando _ não vai
ser fácil no começo, alimente-se de seus antigos clientes e dos
novos também, use os dotes físicos que você possui para atraí-
los a cada noite, seja prudente e sorrateira, mas não beba todo o
sangue porque senão ele se tornara como você e você perecerá
como eu.
Ela não compreendia totalmente e ficou olhando o outro
enquanto ele descia do lugar onde estava sentado e deitava no
caixão aberto.
Ele disse:
_ Os próximos dias serão importantíssimos para você, fuja da
luz forte e jamais ouse desafiar o sol, fuja da prata e da água
corrente; alimente-se só o necessário, você saberá; em pouco
Noctívagos
21
tempo tudo o que eu tenho hoje voltará sobre você, não haverá
lugar onde você não possa ir, mente que não possa ler. Simone
não é mais aquela mulher rejeitada pela sociedade dos vivos e
sim uma rainha da noite.
Por fim ele fechou a tampa pronunciando a sua última frase:
_ Até nunca mais.
Ela ficou ali parada um tempo sem saber o que fazer, olhou
para seu próprio corpo pálido e sentia que já não era a mesma
pessoa de um dia atrás, não lembrava como fora parar ali, mas
agora aquilo era o que menos importava. Sempre fora uma
mulher rejeitada por todos principalmente por causa de sua
profissão, mas agora isso mudaria, faria com que todos os que
lhe fizeram sofrer pagassem cada palavra degradante que
dirigiram a ela alguma vez na vida, cada bofetada que levou,
cada vez que teve de se humilhar por um pouco de dinheiro ou
favor; por cada momento em que procurou misericórdia nas
pessoas e não encontrou. Ela tinha conhecido o lado obscuro
das pessoas, o “eu” escondido, a face em que os homens
pareciam apenas animais. Não conhecia afeto, alegria,
tampouco amor, embora tenha procurado e almejado tudo isso
desesperadamente; mendigado até, em busca de tais
sentimentos, mas na verdade ela vivia num nível mais baixo de
Contos Vampíricos
22
existência, um nível em que as pessoas não davam o benefício
de um olhar mais afetuoso ou um sorriso mais acalentador.
Simone sempre fora usada como um objeto, mas ela enxergava
naquela noite que tudo aquilo ia mudar drasticamente.
Daria o troco mesmo sabendo que se tornaria um monstro e
que isso era uma coisa irremediavelmente sem volta.
***
Noctívagos
23
Caminhando no apagão
10 de novembro de 2009; 22 horas e 30 minutos.
Irineu achou muito interessante o modo como as pessoas se
comportaram no exato momento em que as luzes se apagaram;
homens e mulheres, todos, pegos de surpresa pelo fenômeno
pararam por um segundo. As luzes piscaram, diminuíram de
intensidade, voltaram ao normal e finalmente sumiram
completamente.
Todos os postes, casas, lojas e prédios foram tomados
instantaneamente pela mais absoluta escuridão até aonde a
vista alcançava, as pessoas, escravos da eletricidade ficaram
aflitas; por alguns momentos, não sabiam o que estava
acontecendo, pensavam e agiam de modo desencontrado e sem
rumo até que aquela sensação esquisita deixada pela total falta
de claridade ficasse para trás.
Ele por sua vez olhou ao redor, feliz, a escuridão é e sempre foi
seu habitat natural, luzes sempre o incomodaram, a claridade
por mais tênue que fosse feria-lhe os olhos. Retirou os óculos
escuros que costumava usar mesmo durante a noite. Enquanto
havia luz, as pessoas notariam e certamente achariam estranho
um homem andando com óculos de sol em plena noite, mas no
Contos Vampíricos
24
meio das sombras e com todos tentando adaptar a vista àquela
condição que para os homens é adversa, ninguém notaria.
Mesmo assim Irineu retirou o objeto da face e guardou no
bolso da calça tentando se misturar.
O ambiente ao redor estava claro como o dia, pelo menos para
ele; sabia que as pessoas não podiam enxergar com tanta
nitidez nas sombras, mas ele não era uma pessoa já fazia muito
tempo; a noite era seu território, as madrugaras eram suas
amantes e Irineu gostava de andar no meio da sociedade; ele
observava o comportamento dos indivíduos que na noite
costumavam agir de modo muito diferente do dia. Era como se
as pessoas libertassem um outro lado de seus seres, mas não
naquele dia, embora aquela escuridão providencial fosse
deliciosamente revigorante para ele, era tremendamente
estranha para as pessoas comuns.
Os carros que passavam pela rua eram as únicas fontes de
luminosidade ainda vivas e ao enfrentar os faróis de um
automóvel Irineu rapidamente recolocou os óculos, não
arriscaria sua visão. Todas as outras coisas móveis e imóveis
tinham adquirido uma tonalidade, uma nitidez e uma beleza
impar imersas nas sombras, mas só ele e talvez outros como ele
espalhados pela cidade poderiam saborear tal cenário.
Noctívagos
25
Pouco a pouco, outras luzes começaram a surgir como grandes
vaga-lumes multicoloridos em toda parte; eram azulados,
esverdeados, amarelados e alaranjados. As pessoas estavam
sacando de seus telefones celulares a fim de conseguir um
pouco que fosse de luz, algo que mantivesse seus medos
inconscientes e irracionais aprisionados e distantes.
Em pouco tempo por meio dos telefones vieram às notícias;
Rio de Janeiro e mais dezessete estados além de parte do
Paraguai estavam na mais completa escuridão; tratava-se de um
apagão de proporções poucas vezes vistas no Brasil.
Irineu caminhou mais um pouco, chegou a um ponto de ônibus,
verificou o relógio no pulso; um homem jamais seria capaz de
saber das horas naquelas condições, seu relógio não era digital,
tampouco acendia, mas Irineu enxergava claramente. Passava
das vinte e três horas, ele procurou um ponto ainda mais escuro
para ficar, um lugar onde os faróis dos carros não o
alcançassem e quando finalmente percebeu um ponto ideal, lá
ficou, ouvindo as conversas dos transeuntes desavisados.
De repente uma pessoa se aproximou dele dizendo todo tipo de
impropérios e se referindo a empresa prestadora de serviços de
iluminação como uma exploradora. Era uma mulher quem
Contos Vampíricos
26
falava e mesmo sem conhecê-lo ou saber da natureza do
ouvinte ela quis puxar conversa.
_ Era só o que faltava; como vou para casa agora?_ Perguntou
a mulher sem querer, de fato, uma resposta.
Irineu sorriu pra ela, seus dentes alongados não foram vistos
pela mulher que pensava estar falando com uma pessoa normal.
Ele a passou em revista com os olhos desde a cabeça até os
pés; ela era muito normal, não chamou a atenção dele para
outros fins, não possuía atrativos, pelo menos na escala dele,
mas conversar era algo que ele sempre gostou de fazer com
qualquer um mesmo antes de começar a caminhar entre os
vivos e os mortos.
_ Eu gosto do escuro_ ele respondeu tentando ironizar.
_ Um calor infernal nesse Rio de Janeiro, durante o dia deu
quarenta graus, sabia?
Há muito tempo ele não via a luz do dia.
Uma pequena fila se formava lentamente onde eles estavam,
outras pessoas vinham aguardando o transporte coletivo, elas
conversavam, tentando se consolar mutuamente pela falta de
luz e aproveitavam para extravasar todas as suas frustrações;
Irineu conversava com a mulher, mas ouvia todas as vozes ao
redor distintamente.
Noctívagos
27
A noite prometia calor também, aquela falta de luz pegou as
pessoas que iam para casa tanto quanto as que queriam
descontrair nos bares espalhados pela cidade, de forma
desprevenida; sem energia elétrica, a humanidade se via imersa
a contragosto numa espécie de vácuo que remetia às épocas
quando a tecnologia e as facilidades do mundo moderno não
tinham tanta influência sobre a sociedade, épocas onde
pesadelos noturnos como Irineu vagavam e imperavam sem
restrições.
O problema é que a sociedade já não sabe mais viver sem
certas facilidades modernas, mesmo que fosse por pouco
tempo, as pessoas estavam se vendo totalmente confusas. E
sempre havia aquela clássica insegurança velada no coração de
todos que dizia: “Quanto tempo isso vai durar?”.
Outra pessoa se aproximou e disse:
_ Eles fazem isso de propósito! Desligam a força com o
pretexto de economizar.
Era muito interessante essa interação com gente viva, embora
Irineu fosse adepto de abordagens menos sutis, e gostasse
sobremaneira da adrenalina de uma boa noitada em busca de
emoção, diversão e alimento; naquela noite seria apenas um
mero espectador observando e tentando entender o raciocínio
Contos Vampíricos
28
dos outros; nos últimos anos sua relação com pessoas era
unicamente restrita ao combate ou as volúpias; não se lembrava
mais como era ser um homem totalmente vivo, só lhe restaram
poucos prazeres compulsivos.
_ Isso é culpa do governo! _ insistia o transeunte enfurecido.
A mulher olhava para essa terceira pessoa e voltou-se para
Irineu que concordava meneando a cabeça só para incentivar o
outro a continuar enfurecido; era engraçado.
O outro homem parou de reclamar um minuto e disse:
_E esse ônibus que não chega. Vocês estão indo para aonde?
A mulher rapidamente respondeu:
_ Nova Iguaçu.
Ambos se voltaram para Irineu e finalmente perceberam ou
deram-se conta de que ele permanecia com os óculos escuro
mesmo com a mais completa escuridão. Era algo estranho, mas
já tinham visto coisas mais estranhas nos dias atuais e não se
prenderam em tal detalhe.
Ele respondeu:
_ Moro em Mesquita.
Ela disse:
_ É caminho.
Noctívagos
29
Os vivos continuaram conversando sob o olhar atento de Irineu
até que o ônibus chegou; rapidamente a fila se tornou uma
correria para entrar no coletivo e o homem de óculos escuros se
retirou para longe da confusão. Ainda não era hora de voltar
para casa, a noite estava apenas começando, ia procurar um
pouco de diversão, caminhar mais um pouco no meio dos
vivos, se apaixonar mais uma vez, drenar alguma mulher da
noite, arrumar briga em algum lugar e assustar religiosos.
Ele sorriu; feliz porque havia recebido um presente naquela
noite, podia transitar livremente pela cidade sem se preocupar
em se proteger da luz, a luz o limitava e o tornava menos
acurado; a noite era sua mãe; as sombras sua religião e a
escuridão era o seu caminho.
Naquela noite faria com que qualquer vivo que cruzasse o seu
caminho enxergasse a face de um dos pesadelos mais antigos
da terra.
Agradeceu às sombras e prosseguiu.
***
Contos Vampíricos
30
Um estranho na janela
Tum...Tum...Tum...
O barulho insistente e repetitivo se irradiou pelo quarto de
Pauline, ela estava dormindo, havia se deitado cedo, estava
cansada e já não aquentava mais ficar tentando disfarçar o
sono; pensou em ligar o computador, navegar um pouco na
Internet, mas certamente aquilo lhe tomaria muito tempo da
noite e o sono estava pesando cada minuto mais em suas
pálpebras. Achou por bem dormir.
Porém, agora estava sendo chamada das regiões oníricas de
volta para a realidade noturna e acordou devagar, ainda
sentindo o peso do cansaço no corpo; fora retirada de um
sonho; um sonho estranho e absolutamente “sui generis”, mas
as lembranças do mesmo a estavam abandonando tão rápido
quanto água escorrendo pelos dedos.
Ela olhou ao redor, o quarto parcialmente às escuras, um pouco
de claridade entrava por uma porta entreaberta que dava para o
corredor de sua casa; os pais eram praticamente obrigados a
deixar aquela luz acesa porque o irmão menor da adolescente
dormia no quarto no fim do corredor e como toda criança
pequena morria de medo do escuro, o jovenzinho sofria
Noctívagos
31
daquelas clássicas alucinações de monstros no armário ou
embaixo da cama e Pauline não podia fechar nem trancar a
porta do seu quarto por ordem da mãe que a obrigava a correr
para o quarto do irmão toda vez que ele chorava ou gritava de
medo durante a noite. Os pais dormiam no quarto mais
afastado, do outro lado do apartamento, e com isso conseguiam
um pouco mais de privacidade sem a preocupação de ter um
menino entrando abruptamente todas as noites no quarto deles
e dormindo entre os dois, o que era tolerado no começo, mas
que agora já não mais suportado.
Tum...Tum...
Pauline ainda meio atordoada por acordar tão de repente ainda
tentava se situar, não conseguia discernir de onde vinha o
barulho, mas era alto o suficiente para que ela escutasse e baixo
o suficiente para que só ela escutasse.
Sentou-se na cama; o ventilador ligado balançando a parte
móvel para a direita e para a esquerda, como uma sentinela que
observasse o cômodo de um lado ao outro, soprava uma
gostosa brisa mesmo com o ar um pouco carregado naquele
quarto trancado cujas janelas estavam fechadas e a própria
respiração da moça pairava no ar.
Contos Vampíricos
32
As cortinas dançavam quando tocadas pelo vento produzido
pelas pás giratórias e o barulho produzido pelo aparelho não
era o suficiente para sobrepujar o outro. Ela pensou em
levantar e ir ao quarto do irmão, talvez ele estivesse fazendo
alguma traquinagem a fim de espantar os “monstros” da
madrugada.
Algo dentro dela estremeceu, lembranças do sonho. Nele, ela
conversava com alguém, alguém que era ao mesmo tempo
conhecido e desconhecido e esta pessoa lhe fazia um pedido
insistentemente, pedido esse que ela não recordava.
Olhou para o lado das cortinas novamente, pensou em abrir as
janelas escondidas, encobertas pelas cortinas dançantes; ora,
estava no sétimo andar de um prédio de apartamentos,
geralmente ventava naquela altura, mas novamente ela
esbarrava na proibição moral dos pais que não a deixavam abrir
a janela durante a madrugada, não havia nenhuma proteção
externa, nem tela nem grades, porém por duas vezes ela o fez.
Abriu a janela no meio da noite e em uma dessas ocasiões
adormeceu, no dia seguinte foi acordada com um baita sermão
da mãe.
Estava indecisa e o barulho não havia cessado.
Tum...
Noctívagos
33
“Caramba!” _ Pensou ela _ “O que é isso?”.
Finalmente a narcose passageira do sono estava dando lugar à
lucidez completa da realidade, foi então que ela percebeu de
onde vinha o barulho.
Levantou da cama, a camisola que usava também esvoaçou ao
sabor do vento sem ímpeto do ventilador. Pauline estava
curiosa e outro retalho do sonho lhe veio à memória.
Seu conhecido desconhecido, a pessoa que falava com ela no
sonho insistia no pedido e dizia que a estava visitando com a
melhor das intenções, dizia que só queria conversar um pouco,
colocar o assunto em dia, falar de coisas variadas e mostra uma
coisa importante para ela. Ele insistia no pedido, mas ela não se
recordava que pedido.
Tum...
Voltou das memórias do sono com o barulho novamente. Ela
deu um passo trôpego, seus olhos vislumbravam algo estranho;
uma sombra por detrás das cortinas e era dali também que
vinha o barulho.
Pauline olhou ao redor, olhou para seu armário apinhado de
coisas, pensou em pegar uma lanterna, pois não queria acender
a luz do quarto, teve medo. Uma lanterna era mais confiável. A
menina percebeu que estava suando, pouco, mas suando.
Contos Vampíricos
34
O barulho reapareceu mais duas vezes e parou quando ela deu
mais um passo para frente em direção as cortinas.
Tum...Tum.
Um vulto escuro estava atrás da cortina, mas não dentro do
quarto. Estava do lado de fora, mas o que seria aquilo afinal?
Lembrou finalmente de mais uma parte do sonho, lembrou de
algumas das palavras que a outra pessoa disse para ela.
“Puxe a cortina” _ dizia o outro no sonho. Era uma voz doce,
bondosa e extremamente tranqüila, muito convidativa e
insinuadora.
Ela agora estava totalmente amedrontada, ali parada
observando aquele vulto parado na janela do sétimo andar, não
havia varanda por fora. O medo eriçou os cabelos de sua nuca e
em seguida todo o corpo dela reagiu encrespando-se, mas algo
estava diferente.
Mesmo com o medo se tornando algo mais intenso ela não
conseguia recuar, queria saber o que estava ali, mas não
compreendia o motivo de querer tal coisa, era como se
estivesse perdendo parte de sua vontade; sentia-se
morbidamente atraída.
Deu mais um passo á frente, as cortinas agora estavam ao
alcance das mãos. Pauline empertigou-se. “Ouviu” quase que
Noctívagos
35
audívelmente aquela voz falando novamente em sua cabeça,
numa espécie de resquício do sonho.
“Venha, converse comigo. Não tenho com quem conversar faz
muito tempo”.
Mesmo contra a vontade ela agarrou a cortina com uma das
mãos e puxou, afastando devagar e revelando a janela de vidro
por trás. Uma pessoa permanecia parada do outro lado, um
homem, mas ela não o conhecia.
O estranho bateu com uma das mãos no vidro e o barulho que a
retirou do sono se fez ouvir novamente.
Tum.
Uma mão com dedos longos e unhas grandes, mas ela nem
percebera.
Ela sentia-se confortável, e ao olhar para o homem do outro
lado foi como se o medo lhe fosse tirado instantaneamente;
havia ternura naqueles olhos. O homem possuía esses olhos
grandes e escuros que contrastavam totalmente com a
tonalidade da pele que era de um branco mármore de Carrara;
os cabelos negros desgrenhados emoldurando o rosto que
parecia uma máscara de feições finas.
_ Deixe-me entrar Pauline. _ Pediu.
Contos Vampíricos
36
A voz dele era tão convidativa que ela nem percebeu que ele já
sabia o seu nome, tampouco percebeu o tom voluptuoso na fala
mansa do outro.
_ Me deixe entrar_ falou novamente o estranho na janela.
_O que você quer? _ finalmente falou ela meio abobada.
Ele estava tão próximo do vidro que ela podia ver a respiração
do outro embasando parte da vidraça.
_ Estou com fome.
_Você quer comida? _ Perguntou a moça.
_ E quero você.
Ele fez menção de rir, mas seu rosto não foi capaz de transmitir
expressão alguma, era como uma caricatura mal feita de uma
face humana.
Ela quis desviar o olhar para não ver aquele rosto insano, mas
não conseguiu; sua vontade estava presa. Ele ao rir desfez o
rosto fino e bem apresentado e demonstrou rugas como de um
homem de mais de noventa anos, porém aquela careta logo
desapareceu e ele recobrou a face anterior.
Quando riu, o estranho, deixou a mostra seus dentes finos e
longos rodeados por uma boca repleta de outros dentes
menores, mas tão pontiagudos quanto os outros. Pauline não se
Noctívagos
37
apercebeu de nada disso, estava ocupada demais mexendo na
tranca da janela.
_ Só mais um pouco. _ Ele disse.
A luz do quarto acendeu e a voz do pai de Pauline apareceu em
seguida.
_ O que está fazendo aí? _ perguntou ele.
Ela olhou para ele e piscou algumas vezes, balançou a cabeça e
disse balbuciando:
_ Não sei._ O encanto estava se quebrando.
_ Quantas vezes sua mãe disse para não abrir a janela de
madrugada?
A janela! Ela voltou o olhar para lá, mas não havia ninguém;
olhou atentamente e por um momento pensou estar vendo o
estranho translúcido bem em frente à janela, mas não era
verdade, era só a mente dela trabalhando.
_Ouvi um barulho e vim ver o que era. _ resmungou ela.
_ Vá dormir disse o pai desligando a luz e saindo para verificar
o quarto do irmão, mas deixando a porta do quarto totalmente
aberta, banhando o aposento numa quantidade muito maior de
luz vinda do corredor.
Do lado de fora o estranho a estava observando, não tinha ido
embora, apenas escondera-se da luz, mas não molestaria mais a
Contos Vampíricos
38
jovem naquela noite, tinha algo preparado para ela e desejava
entregar em outra ocasião.
***
Noctívagos
39
Meu escapulário
O barulho de uma pesada tampa de concreto se abrindo.
Tiziano ouviu uma pessoa dizer:
_Opa! Este aqui ainda é novato.
Outra voz respondeu:
_ O que ele tem de valor?
_Nada._respondeu o primeiro.
Uma terceira voz entrou na conversa:
_ Cara! Muito estranho esse aí não é?
_É. Lívido como se fosse recente.
Um deles perguntou novamente:
_Ele não tem nada de valor?
Alguém respondeu prontamente:
_Aparentemente não.
Barulhos indistinguíveis.
_Me ajuda aqui, vamos checar. Pode ter algo escondido aqui
dentro.
Outro emendou:
_Dá só uma olhada na roupa dele.
_Olha só; o cara tem um cordão que parece bem caro.
_O que tem nele. É um crucifixo?
Contos Vampíricos
40
_Não.
_Então o que é?
_ Acho que é um escapulário. Deve valer alguma coisa, parece
ouro branco; se for, vai valer um dinheiro extra.
_Então pega.
Alguns segundos de silêncio
_ Pra que serve?
Não houve resposta.
_ Pronto. Peguei.
Logo um deles disse:
_Vamos andar logo com esse aqui, temos mais dois só esta
noite. A grana vai ser boa.
_O que mais estamos procurando, além dos pertences valiosos?
_Não sei, mas o cara disse que era algo muito raro e
saberíamos quando o encontrássemos.
_Tá frio._alguém reclamou.
_Continua procurando.
_Olha só o rosto dele, nem parece que está nessa situação.
Os três riam abertamente.
_Deixa de ser bobo... Situação, o cara já m...
Foi interrompido pelo comparsa.
_Que estranho, olha só; bati em algo dentro da camisa.
Noctívagos
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_Deve ter alguma coisa escondida aí com ele.
Mais risadas.
_Será que é algo muito valioso?
_ O cara prometeu pagar cinco “pilas”.
Dois deles se espantaram:
_Cinco Mil!?_ Disseram em uníssono.
Ao que o primeiro respondeu:
_Para cada um.
Mais felicidade.
_Puxa, vou me arrumar com essa dinheirama toda.
Outro disse:
_Eu nem sei o que fazer com tudo isso.
O terceiro:
Então acho bom nós acharmos logo essa “parada” e pularmos
fora desse lugar.
Todos concordaram.
_Abre a camisa dele e vê o que tem dentro.
Silêncio.
Respirações ofegantes.
Silêncio novamente.
O clima se alterou.
_Cara, isso aí é muito esquisito.
Contos Vampíricos
42
Um falou baixinho:
_É aquele negócio de magia negra.
_Calado._ repreendeu o terceiro_ tira isso do peito dele.
_Eu não! Ficou doido. Tira você.
_ Caramba! Eu tiro. Eu deveria ganhar mais do que vocês dois,
o trabalho pesado sobra sempre pra mim.
Som de esforço.
Respiração ofegante.
Barulhos estranhos, alguém caindo.
_Tá bêbado?_ brincou um deles._Puxa com força.
_Cala a boca. Já tirei.
_ O que é?
_ Uma madeira.
O som ritmado e surdo de uma batida. Depois outra, e outra, e
mais outra...
Cheiro de oxigênio noturno misturado ao orvalho.
Pensamentos diversos inundando sua mente.
Vozes distantes; homens, mulheres, crianças, idosos. Barulhos
diversos; carros, motos, gritos e muitos outros.
Cheiros aos montes; perfumes, odores adocicados e outros não;
relva, flores, lixo e decomposição.
Noctívagos
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Ruídos de animais, roedores, cães, gatos; o bater de asas de
pássaros ou morcegos e uma infinidade sonora.
Forças novamente.
Sentimentos no ar. Apreensão, ansiedade e receio.
Uma dor lancinante se irradiando do peito para o resto do
corpo.
_ Essa madeira estava enfiada nele?!_ perguntaram dois.
_É; não está vendo?
_ Vamos sair fora. Fecha o caixão; ele não tem nada mais de
valioso a não ser o tal escapulário.
Uma rápida consulta na mente dos outros três, uma torrente de
vibrações; dias, meses, anos e algumas impressões.
Mais dor...
...Fúria...
...Fome.
Os sentimentos no ar se transformaram em algo mais familiar,
mais doce, muito mais saboroso. O medo.
Um deles disse em tom nervoso:
_Fecha logo isso; tem algo errado.
O rigor mortis já não o dominava mais.
_Ai, ai, ai; ele se mexeu!
_Ficou louco rapaz, o cara está morto.
Contos Vampíricos
44
A respiração voltou, o coração batia forte e compassado de
novo, não obstante a fenda em seu tórax, o tato se
restabelecera, as suas memórias já tinham retornado.
O primeiro pensamento brotou das sombras da mente:
“Eu sou Tiziano, o venerável”.
A dor alcançou seu clímax, fustigando o interior do outrora
morto e explodiu tão atrozmente que apenas uma coisa podia
acontecer.
Tiziano ergueu-se do túmulo como um relâmpago, deflagrando
um bramido gutural e inumano.
Um dos três homens que estavam roubando as sepulturas
naquela noite caiu no chão em um baque surdo, o susto foi o
suficiente para lhe roubar a vida.
Tiziano tremia violentamente e seu fôlego parecia não se
esgotar, o grito medonho permanecia. Os outros dois já tinham
corrido.
_O morto!_gritavam_ O morto voltou! O morto voltou.
Finalmente o rugido cessou e o ex-morto olhou para o homem
caído próximo a ele, o coração do homem não batia mais,
estava sem pensamento algum; já não pertencia mais a esse
lado. Os outros dois já tinham escapado; não estava nem
pensando neles.
Noctívagos
45
Abaixou e recolheu o que o homem segurava, a estaca de
madeira que tinham retirado de seu peito e o escapulário, que
lhe pertencia, o qual colocou no pescoço novamente.
_Meu escapulário._ disse. Respirou fundo, estava livre e tão
vivo quanto sua natureza permitia.
A dor permanecia.
A fúria também. Mas agora algo novo nascia; desejo.
Olhou em volta, estava num cemitério; ouvia as vozes ao redor,
vivos e mortos; seguiria as vozes dos vivos, se alimentaria, e
seria como outrora. Um deus das sombras entre os vivos;
poderoso e indefectível, tinha muito a fazer.
***
Contos Vampíricos
46
A meretriz
Ele checou o relógio.
Marcelo aguardava no quarto do motel, estava ansioso e
caminhava de um lado para o outro; não tinha certeza de que
era aquilo o que deveria fazer, mas era a única coisa que vinha
em sua cabeça. Rebeca, sua futura ex-namorada, merecia o
troco; ele não sairia do relacionamento levando um prejuízo
daquele tamanho; ela ia pagar pela vergonha que o tinha feito
passar.
Sentia um frio e uma espécie de vazio no estômago. Foi até a
janela, afastou cuidadosamente parte das cortinas e olhou para
fora, não conseguiu enxergar muita coisa porque era noite.
Seu carro estava estacionado na vaga abaixo do quarto, outros
carros também estavam devidamente guardados nas vagas em
outros quartos cujas portas como de garagem permaneciam
fechadas, não havia movimentação alguma no passeio entre a
fileira de quartos onde ele se encontrava e a da frente.
Consultou o relógio; vinte horas em ponto. Fazia apenas cinco
minutos que tinha dado o último telefonema e já parecia ter
passado vinte minutos.
_ Caramba! E esse tempo que não passa!_ Resmungou.
Noctívagos
47
O motel não era dos melhores, o quarto era pequeno e parecia
com a sala dos espelhos de um parque que ele visitava quando
criança; havia um espelho grande em frente à cama, outro na
parede atrás da cama e um no teto; só faltava um no chão, mas
isso seria bizarro demais. Marcelo sorriu sozinho, conseguiu
descontrair um pouco com aquele pensamento. Consultou o
relógio novamente.
Caminhou outra vez da janela até a cama, mas não sem antes
fechar cuidadosamente as cortinas que nem fizeram barulho
correndo no trilho ao serem puxadas. Ao lado da cama redonda
sob uma banca de mármore escuro estava o jornal no qual ele
tinha escolhido cuidadosamente um dos anúncios em que
algumas mulheres ofereciam seus corpos para serviços íntimos.
Tomou o jornal e passou os olhos pela página dos
classificados, havia vários anúncios por toda a parte,
mostravam e ou descreviam mulheres para todos os gostos e
bolsos; morenas, loiras, mulatas, negras, asiáticas; novatas ou
experientes, com preços módicos ou classe A; mas um o tinha
chamado a atenção não havia foto, apenas a descrição; ele
releu. Dizia:
“Eva. Ruiva perfeita; pele aveludada, cabelos longos, olhos
claros, rosto de anjo, corpo esculpido. Impetuosa, voraz e
Contos Vampíricos
48
viciante. Para ocasiões especiais. Atendimento somente às
noites. Cem reais”.
Minutos antes de telefonar, aquele anúncio tinha despertado
nele desejo e curiosidade, sempre gostou de mulheres ruivas;
pensou em Rebeca e decidiu que se ela podia ter traído ele,
então, ele também podia traí-la era uma questão de justiça, ao
menos em sua cabeça distorcida.
Saiu com seu carro da casa da namorada e foi para o primeiro
motel que encontrou na estrada já com o intuito de contratar os
serviços de uma profissional; tinha brigado com Rebeca horas
antes, discutiram bastante quando ela revelou sua traição; ela
disse que preferia que ele soubesse por ela mesma e não por
outra pessoa, aquilo claramente significava que outros já
sabiam do fato, amigos dele e dela, mas ele tinha sido o último
a saber. Pensou num cem número de coisas que podia fazer,
pensou e agredi-la, mas não tinha coragem nem era correto,
violência não fazia parte de sua índole, pensou em sumir e não
procurá-la mais, mas isso não aplacaria a ira que estava
sentindo; Marcelo queria que Rebeca sentisse exatamente o
mesmo que ele, portanto resolveu dar o troco na mesma moeda.
Antes, porém, resolveu contratar uma profissional para aquela
noite.
Noctívagos
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Checou o relógio pela décima vez.
Quando telefonou para a tal Eva, logo que entrou no quarto,
demorou apenas dois toques para ela atender. A voz surgiu do
outro lado com um timbre insinuante.
_ Olá! _ disse a mulher do outro lado da linha. E respirou ao
terminar de pronunciar a palavra; ele ouviu a respiração sensual
que a mulher despejou sobre o fone e sentiu uma sensação
prazerosa se irradiando pelo corpo.
Marcelo estava tão atordoado que não conseguiu pensar em
nada que não fosse repetir a saudação.
_ Olá!?_ disse meio desconfiado, sem muita certeza.
_ Em que posso ajudar.
_ Eu gostaria de falar com Eva. _ Pronunciou quase
murmurando.
_ É ela. Amor.
Ele perguntou as coisas que achou que deveria e acertou o
encontro naquele local onde já estava.
_Quanto tempo até você chegar aqui? _perguntou ele.
_Cerca de vinte minutos.
“Vinte minutos”_pensou.
_ Estou esperando._ disse.
Contos Vampíricos
50
Ela desligou e a partir daquele momento ele passou a olhar
para o relógio, mais ou menos, a cada minuto.
Colocou o jornal novamente sobre a bancada de mármore, a
televisão estava desligada e ele não queria ligar. Levantou-se
da cama, foi até o banheiro contíguo e olhou o cômodo, era
pequeno e de muito mau gosto; havia apenas um vaso sanitário,
um Box com chuveiro e uma pia pequena com um espelho
redondo sobre ela. Na verdade todo aquele quarto de motel
parecia bizarro demais, parecia um lugar saído de um conto
policial antigo ou um cenário de um filme B; o ar parecia
viciado e um cheiro diferente pairava. A noite lá fora também
estava estranha, pacata e letárgica; ele parou por um instante e
tentou ouvir qualquer ruído vindo de fora daquelas paredes,
não conseguiu, mas no fundo Marcelo sabia que era ele quem
estava mal; sua cabeça havia se transformado num verdadeiro
temporal. Rebeca ia pagar.
Deixou aquele cubículo que servia como banheiro e voltou
para o quarto, olhou a cama, o relógio e em seguida as paredes,
e, finalmente percebeu que havia um aparelho de refrigeração
no cômodo, estava sentindo calor, talvez por conta da
ansiedade, ligou a máquina; teve de subir na bancada de
mármore para alcançar os controles do aparelho. Sentiu o vento
Noctívagos
51
começar a sair pelas grades de plástico do ar-condicionado
acompanhado pelo som característico.
Sentou na cama e tronou a levantar, foi até a televisão, ligou o
aparelho também e tomou o cuidado de aumentar o volume;
estava passando um filme com carros explodindo, o ator era
conhecido, mas ele não recordava o nome. Mudou os canais
com uma velocidade incrível, várias vezes, tentando disfarçar
para si mesmo a ansiedade crescente dentro do peito. Nas
outras emissoras ele passou os olhos por um programa de
entrevista, uma novela e um jornal. Nos canais a cabo; passou
por músicas, boletins esportivos, documentários sobre o mundo
animal, um filme adulto e programas de comédia e variedades.
De repente bateram à porta do quarto, Marcelo quase deu um
pulo, o coração disparou e ele desligou o aparelho tão rápido
que nem percebeu que o tinha feito. Caminhou devagar na
direção da porta.
_ Quem é?_ perguntou; estava se achando um perfeito pateta.
O coração trovejava preso dentro do peito e era como se algo
estivesse obstruindo parcialmente sua garganta. A ansiedade
tinha irradiado um sentimento diferente em todo o corpo.
“Adrenalina”_ Pensou.
A voz do outro lado surgiu:
Contos Vampíricos
52
_ Eva._respondeu.
Era ela.
Marcelo finalmente se apressou e alcançou a porta, girou a
chave na fechadura com certa dificuldade por causa da pressa e
então conseguiu.
Quando a porta se abriu, a visão revelada do outro lado tirou o
fôlego do homem de tal modo que a adrenalina disparou; a
mente dele se esqueceu de Rebeca, da briga, da traição e do
troco que pretendia dar, que era o motivo de ele estar ali.
Naquele momento tudo perdeu um pouco do sentido.
_ Olá! _ Disse a mulher olhando fixamente para ele com os
olhos mais azuis que Marcelo jamais viu, certamente eram
lentes de contato. Eva inclinou um pouco a cabeça com um
sorriso irresistível nos lábios; como que o saldando.
“Rosto de anjo.”_ pensou com a mente ainda meio
embaralhada, lembrando do anúncio no jornal.
A ruiva estonteante parada ali no limiar da porta não entraria
até ser convidada, mas Marcelo estava boquiaberto com todos
os atributos da mulher. A pele branca e delicada, o cabelo ruivo
vivo mesmo na pouca luz do lado de fora do quarto, os olhos
grandes e tão azuis que pareciam estar acesos e os lábios
volumosos cobertos por um batom vermelho molhado.
Noctívagos
53
Ela se adiantou um passo, não entrou. Disse:
_ Tudo bem?
Marcelo despertou do transe e sorriu para ela.
_ Entra aí._ Falou finalmente.
O rosto de Eva se iluminou com o convite e ela caminhou
calmamente para o interior do quarto; se aproximou
perigosamente de Marcelo e beijou o rosto dele; numa face e
depois na outra.
Ele retribuiu o beijo, sentiu o aroma doce do perfume que ela
usava.
_ Tudo bem._ A voz saiu quase como um sussurro.
Eva tinha cerca de um metro e setenta, foi o que ele calculou ao
vê-la, e um corpo esculpido provavelmente em horas e horas de
academia, ao menos ele pensou isso. Os cabelos apareceram
balançando nas costas dela quando caminhou para entrar;
chegavam até a cintura e era um complemento perfeito para um
corpo como o dela que possuía curvas sinuosas e provocantes.
Estava trajada com um vestido de tubo negro muito justo que ia
dos ombros até na coxa da mulher, com somente uma alça
segurando-o no ombro esquerdo. Ela passou por ele que levou
mais um segundo para fechar e trancar a porta.
Contos Vampíricos
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Eva usava um sapato de salto, não era alto, mas era muito fino.
Marcelo a olhou por trás a partir dos sapatos e subiu a visão
passando pelas pernas até a cintura com as madeixas
balançando sedutoramente.
Se naquele momento ele tivesse percebido um detalhe, talvez o
desfecho da noite fosse outro, mas estava tão atraído por ela
que não se deu conta. Seguiu a mulher pelo quarto que parecia
uma sala de espelhos.
Ela olhou ao redor reparando no ambiente e falou:
_ Lugar interessante._ o tom do comentário era de brincadeira.
Marcelo percebeu e pensou que ela devia estar acostumada
com lugares mais sofisticados, talvez fosse uma daquelas
mulheres que costumam atender pessoas com muito dinheiro.
Sorriu sem saber o que fazer.
_ Não liga, amor, estou só brincando com você.
Ele relaxou um pouco. Mas seus olhos não conseguiam mais se
desviar do rosto e do corpo de Eva. Ela era extremamente
atraente e sorria com uma doçura e uma pureza difíceis de
serem atribuídas a uma profissional daquele tipo. Aliás, ele
jamais tinha visto em qualquer rosto um sorriso tão cativante
quanto o dela.
Noctívagos
55
_Estou com um pouco de sede._ Ela falou umedecendo os
lábios.
_ Podemos pedir algo para beber.
_ Não, amor, depois.
Ele concordou.
_ E então? Vamos começar?_ Ela falou com um sorriso
malicioso.
_ É claro. _ Teve de forçar para dizer as palavras.
Eva se aproximou da cama e retirou os sapatos deixando-os
encostados num canto, em seguida prendeu os longos cabelos
num rabo-de-cavalo com um movimento hábil e rápido.
_Se importa se eu me lavar primeiro?
_ Não. É claro que não.
Ela tirou calmamente o vestido como num show sensual, ficou
apenas com a lingerie preta e fina que estava por baixo. Sem o
vestido o corpo dela revelou um piercing dourado no umbigo.
_Seu piercing é de ouro?
_ É sim.
_Ouvi dizer que piercings de ouro costumam causar alergia em
algumas pessoas. _ se achou mais demente do que nunca por
fazer um comentário como aquele numa hora que não era para
palavras, mas sim para ações.
Contos Vampíricos
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_ Não em mim._ Ela respondeu e foi em direção ao banheiro
praticamente desfilando o corpo como uma ninfa.
Quando Eva virou de costas para Marcelo, ele sentiu um aperto
no peito; ficou se perguntando o quão desejada ela era. A
mulher também revelou uma tatuagem de uma maçã um pouco
abaixo da cintura, a tatuagem estava sendo parcialmente
encoberta pela lingerie.
_ Você não vem?_ perguntou ela já de dentro do banheiro com
aquela voz insinuante novamente.
_ Vou.
Antes de se dirigir para o banheiro, Marcelo se pegou olhando
para o espelho em sua frente, o que estava errado com ele? Um
detalhe tinha passado despercebido. Mas a presença de Eva no
mesmo ambiente era o suficiente para atrair toda a atenção para
si; talvez aquela sensação não fosse nada além de ansiedade.
Tirou a camisa logo que ouviu o barulho do chuveiro sendo
ligado e da água caindo; foi até lá.
Ela aguardava pacientemente olhando a água que caia no box
ainda vestida com as duas peças mínimas da lingerie.
Experimentou a ducha d’água com a mão.
_ Está fria._ falou.
Noctívagos
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Ele já ia tirar a calça quando percebeu algo; percebeu o que
devia ter notado no momento em que a mulher cruzou a porta e
entrou no quarto. Ao lado do box do chuveiro ficava a pia com
o espelho preso à parede; de onde Marcelo estava ele conseguia
ver o reflexo de todo o pequenino banheiro através do espelho,
Olhou para Eva parada em frente a ducha e olhou novamente
para o espelho; para ela, e para o espelho mais uma vez. Algo
estava terrivelmente errado.
Foi com uma estranheza brutal que ele finalmente se deu conta
de que, através do espelho, na frente do chuveiro, ele não via o
reflexo de Eva.
***
Contos Vampíricos
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Sangue do Lobisomem
Dominic se encostou numa mureta parcialmente destruída e
contemplou o que acabara de fazer.
A besta urrou com a dor da estaca de prata em seu dorso.
Cambaleou e caiu se apoiando sobre uma das lápides urrou
mais uma vez, como que chamando ajuda sem obter resposta.
A lua gigantesca e amarelada que iluminava todo o céu noturno
agora se escondia por trás de algumas poucas nuvens.
O lincantropo possuía quase dois metros de altura, presas e
garras capazes de destrinchar praticamente qualquer material e
uma força descomunal; porém, sua maior arma também era seu
maior defeito. Dominic sabia disto, durante as noites de lua
cheia, toda a sanidade dos escravos da lua era tirada, eles
perdiam completamente o controle sobre seus instintos
animais; somente alguns muito disciplinados conseguiam
resistir a ponto de manter o pensamento humano sobre a fúria
da fera.
A luta entre eles foi algo perto de inacreditável, poucos homens
da mesma raça de Dominic, conhecidos por muitos nomes,
sanguessugas, mortos-vivos, nosferatus, e filhos da noite;
Noctívagos
59
tinham condições de confrontar um lincantropo frente a frente
numa noite de lua cheia.
_ Onde está sua arrogância e fúria agora? _ perguntou Dominic
levando a mão ao rosto.
O monstro uivou alto e forte, mas com uma ponta de medo, não
era um uivo de vitória, e sim um pedido de misericórdia.
Dominic era um homem que contrariava o estereótipo de
vampiro, aliás, ele sempre detestou esse termo, vampiro é um
termo pejorativo que ganhou notoriedade com a estória de um
velho bêbado chamado Bran Stoker, e, que não faz jus à raça
de seres que abençoados ou amaldiçoados eram mais do que
homens; eram deuses.
O lobo gigante começou sua transformação deixando sua face
bestial e tornando-se um simples homem.
_ Vocês_ disse Dominic_ tão arrogantes, tão cheios de si, mas
são apenas humanos; eu por outro lado sou imortal, não sinto
dores nem amores. Tenho um corpo morto que precisa de
sangue para permanecer como antes, porém meu espírito é
indestrutível.
O urro já se parecia um pouco com um grito humano enquanto
a fera se tornava apenas um homem.
_ Olhe para mim, monstro.
Contos Vampíricos
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O homem-lobo tentava se levantar, mas a estaca em suas costas
o havia inutilizado. Ele olhava para Dominic e não podia
entender como fora vencido.
_ Você é apenas um vampiro, nem vivo você é._ retrucou o
homem que agora era metade lobo, da cintura para baixo.
Os olhos de Dominic se inflamaram e ele se aproximou de sua
vítima.
_ A lua já não pode mais lhe ajudar._ sussurrou.
O homem se contorcia de dor e tremia também, sabia que tinha
sido um grande erro tentar surpreender aquele vampiro, mesmo
se utilizando de sua fera aprisionada, mas ainda não era
suficientemente forte para domá-la e pagaria muito carro por
sua inexperiência.
_ Ah! Você pagará muito caro, sim._ disse Dominic
obviamente lendo claramente os pensamentos de seu
adversário_ vai me dar algo muito precioso para nós dois, vai
me dar seu sangue.
De repente o homem com a estaca nas costas retirou forças
sabe-se lá de onde e saltou sobre Dominic, era uma última
tentativa de não ser abatido naquela noite; ele tinha certeza que
causara danos gravíssimos no vampiro e não entendia como
aquilo não o tinha detido.
Noctívagos
61
Dominic esquivou-se sem muitos problemas do derradeiro
ataque do lobo que agora era somente um homem comum e
muito ferido.
O homem caiu no solo úmido e lá ficou bufando e tossindo;
sentiu a estaca ser retirada de suas costas e seu pescoço ser
violado pelas presas do seu oponente vencedor, sentiu sua vida
se esvaindo rapidamente, memórias, lembranças,
conhecimentos; absolutamente tudo o que era estava sendo
drenado e passaria a fazer parte de um outro ser.
Dominic saiu do lugar andando exatamente como entrou,
maltrapilho, pela batalha brutal que travara, mas um pouco
mais forte pela ingestão do sangue do Lobisomem.
***
Contos Vampíricos
62
Noctívagos
Quando o passageiro entrou no taxi, Doni não percebeu nada
de anormal. Estava conversando com um colega ao telefone,
sentado dentro do carro, com os vidros abaixados e a porta do
motorista aberta.
_Boa noite._ Cumprimentou o taxista assim que o passageiro
entrou.
O homem sentou rapidamente e fechando a porta disse:
_ Boa noite._ Tinha uma voz grossa e um tanto rouca com o
sotaque hispânico carregado.
Donizete Martins, quarenta e cinco anos, treze de praça,
dirigindo taxi. Passou a trabalhar à noite porque o trânsito era
menos enlouquecedor do que durante o dia e também porque
depois de certa hora podia cobrar um pouco mais caro, além
disso, sempre conseguia boas gorjetas; nas noites as pessoas
eram mais mão aberta.
O passageiro trajava roupas escuras, provavelmente azul
marinho ou preto; camisa social e paletó sem gravata; Donizete
não conseguiu ver se usava calças jeans ou social. Porém, o
mais estranho era que o passageiro usava óculos escuros,
mesmo durante a noite.
Noctívagos
63
_ Rua Jean-Babtiste Debret, por favor._ disse o passageiro
enquanto retirava os óculos de sol.
Donizete se endireitou no banco do motorista e pôs o cinto de
segurança; bateu a porta e acionou o taxímetro.
_ É pra já.
Ligou o carro, o ar-condicionado, fechou os vidros e
comunicou pelo rádio que havia pego um passageiro e estava
saindo para uma corrida.
Como todo bom taxista, Doni era uma pessoa muito boa de
conversa e sempre procurava puxar papo com seus passageiros
para tornar a viagem um pouco mais descontraída. Gostava de
conversar sobre praticamente tudo, política, economia, futebol,
atualidades, religiões; qualquer coisa. E era muito comum que
as pessoas falassem sobre todos esses temas nas viagens; o
taxista sempre tinha uma opinião ou uma posição firme e bem
definida sobre tudo.
Ele começou:
_ O senhor é estrangeiro?_ desconfiou que o homem não fosse
Brasileiro pelo sotaque.
O carro saiu pela rua, tranquilamente.
O passageiro colocou os óculos escuros num bolso interno do
paletó. Era um homem caucasiano, alto, magro, louro e com
Contos Vampíricos
64
olhos escuros; parecia com um norueguês que certa vez havia
feito uma corrida no taxi; ele tinha aquelas marcas escuras
abaixo dos olhos e a face dura e levemente ossuda, com as
marcas de expressão bem definidas e profundas tanto na testa
quanto próximas do nariz e boca. Donizete olhou pelo
retrovisor interno e percebeu que o passageiro estava olhando
para fora do veículo pelo vidro obscurecido e fechado quando
respondeu.
_ Sim, sou.
Donizete insistiu:
_ Noruega? _ Perguntou mesmo sabendo que o homem não era
norueguês; tinha certeza disso porque ouviu o sotaque
carregado de um espanhol.
Geralmente turistas só se utilizavam do idioma espanhol
quando queriam passar a sensação de que sabiam falar
português, do contrário, sempre usavam o inglês como forma
de comunicação; salvo aqueles que tinham a língua hispânica
como língua mãe.
Donizete já tinha carregado em seu taxi vários turistas suecos,
ingleses, americanos, franceses, noruegueses e muitos
espanhóis e sul-americanos em geral; Argentinos, Uruguaios,
Peruanos, Chilenos etc... O Rio de Janeiro estava cada dia mais
Noctívagos
65
parecido com uma enorme aldeia global; uma espécie de Babel
cultural.
_ Não._ Respondeu ainda olhando pelo vidro provavelmente
para o movimento de pessoas e carros ao redor. O movimento
noturno do Rio de Janeiro é atualmente um dos mais pulsantes
de todo o mundo e com o intenso número de turistas chegando
a cada dia a tendência é aumentar ainda mais.
Obviamente o passageiro era uma pessoa reservada e de poucas
palavras.
_ Americano?_ insistiu Donizete. Apenas para obrigar o
passageiro a falar um pouco.
O motorista gostava de conversar principalmente porque
conseguia conhecer as pessoas dessa forma. No caso do tal
norueguês, o visitante havia conversado tanto que tinha
espantado Donizete; o homem falava o tempo todo mesmo sem
saber falar o idioma nacional, misturava o inglês, às vezes o
espanhol e um pouquinho, apenas, de português. Donizete por
outro lado também não dominava nenhuma daquelas línguas
exceto a sua, é claro, mas arranhava um pouquinho de inglês e
espanhol, apenas o suficiente para manter sua relação
comercial. No caso, Donizete passou a concordar fazendo
Contos Vampíricos
66
sinais de afirmativo com a cabeça em certa hora do trajeto até o
ponto onde deixou o turista da Noruega; um hotel.
_ Sou espanhol._ disse o passageiro.
“Na mosca”_ Pensou Donizete com orgulho de si mesmo.
Investiu mais uma vez.
_ De que parte da Espanha? Tenho um cunhado que está
morando em Madri; ele é irmão da minha esposa.
O passageiro suspirou e deixou de olhar pela janela.
_ Valhadolide. Mas faz um ano que moro aqui.
Donizete balançou a cabeça; não tinha nenhuma informação
sobre esse lugar; Valhadolide. Da Espanha ele só conhecia
Madri porque havia viajado com a esposa e filhos, um ano
antes, para lá em férias programadas durante cinco anos de
economia, mas valeu cada centavo.
_ Não conheço._ disse o taxista.
O passageiro não continuou a falar.
Percebendo isso, Donizete perguntou:
_ E está gostando do Rio?
A resposta foi tão simples quanto as outras.
_ Sim.
Estavam se aproximando do destino e o passageiro se
endireitou no banco. Donizete olhou novamente para ele pelo
Noctívagos
67
retrovisor interno e viu quando ele tirou do bolso os óculos que
estava usando inicialmente, mas não colocou sobre os olhos.
_Falta pouco. A rua Debret é logo no final daquela avenida, à
esquerda.
Donizete sabia exatamente que rua era aquela, quando
trabalhava durante o dia costumava passar por lá para cortar
caminho e evitar o trânsito, mas durante a noite não gostava
muito de fazer esse trajeto. Tratava-se de uma rua repleta de
casarões grandes, antigos, abandonados e também muito mal-
cuidados, além do que, de uns tempos para cá havia se tornado
um lugar ermo. Com muitos moradores de rua transitando pelas
redondezas.
Estava fazendo uma curva acentuada para a esquerda; buzinou
rapidamente para um outro taxi parado no sinal vermelho que
acabara de abrir. No final da via estaria no ponto de destino, o
cruzamento da principal com a Jean-baptiste.
Donizete pensou em alertar o visitante que se tratava de um
lugar complicado, sobretudo, durante as noites, mas logo
desistiu; afinal de contas, se o homem queria ir para lá é porque
sabia como o lugar era. Donizete controlou a vontade de falar
mais alguma coisa, mas permaneceu com a curiosidade; afinal,
o que um residente estrangeiro ia fazer numa localidade tão
Contos Vampíricos
68
esquisita como aquela; não existia nenhum bar, nenhuma casa
noturna, nem mesmo casas de mulherio. O Rio de Janeiro tinha
uma miríade de outros lugares maravilhosos para se visitar à
noite. Nada justificava uma visita noturna àquela área.
Ficou calado.
_ Vou me encontrar com alguns amigos._ Revelou o
passageiro.
Ora! Donizete não tinha dito nada, será que tinha pensado em
voz alta para que o passageiro ouvisse e respondesse; ficou
confuso. Estava chegando à esquina da rua em questão, o
trânsito um pouco mais movimentado havia ficado na avenida,
e como a rua na qual se encontrava era uma via secundária,
logo, estava muito menos movimentada.
Na esquina estavam paradas duas pessoas, aparentemente um
homem, uma mulher e mais ninguém em mais de cem metros
para qualquer lado. Eles vestiam-se também com roupas
escuras e ambos usavam óculos escuros, mas estavam num
lugar onde até mesmo a iluminação dos postes não os
alcançavam.
_ São eles._ disse o passageiro. _ Pode me deixar aqui mesmo.
Donizete encostou o taxi junto ao meio fio torcendo para o
homem sair logo do veículo.
Noctívagos
69
_Pois não.
O passageiro se inclinou para frente e chegou bem próximo do
pescoço do motorista que já ia virar para trás a fim de receber o
dinheiro da corrida quando de relance passou os olhos no
retrovisor e cruzou o olhar com o do outro fixado nele pelo
espelho. Seu sangue gelou na mesma hora.
O homem no banco de trás tinha os olhos esbranquiçados, não
estavam assim minutos atrás, mas aquilo não era o detalhe mais
aterrorizante.
_ Quanto lhe devo? _ perguntou com a voz ainda mais grossa
do que antes e com aquele sotaque ainda mais visível.
As duas pessoas paradas num ponto pouco iluminado da
esquina saíram das sombras e caminharam na direção do carro
assim que viram o veículo parar. Donizete pensou que estava
tendo algum tipo de alucinação; a mulher era pálida como uma
estátua de mármore, assim como o homem, e, o preto das
roupas, dos óculos, dos cabelos de ambos e do batom dela se
contrapunham a palidez mortal deles.
_ Quanto devo a você, Sr. Donizete._ perguntou novamente o
passageiro.
O motorista estava tão apavorado que nem se deu conta de que
o homem o tinha chamado pelo nome, mesmo sem que ele
Contos Vampíricos
70
tivesse revelado durante o trajeto. Só foi perceber aquilo na
manhã seguinte.
Donizete gaguejou para responder:
_ Quin..ze re...re..ais. Quinze reais!_ disse finalmente.
Quando o homem perguntou quanto tinha sido a corrida,
Donizete viu os dentes grandes; caninos, como os de um
animal. Pensou todos os tipos de teorias possíveis para explicar
aquilo, mas o coração estava disparado. A confusão aumentava
dentro dele.
O passageiro se moveu lá atrás e recostou novamente no banco,
em seguida, estendeu a mão para o motorista no banco da
frente com uma nota de cinqüenta reais.
_ Não tenho menor. Fique com o troco.
Os outros dois fora do carro caminhavam olhando a todo o
momento para os lados.
Donizete pegou a nota sem nem olhar para ela, se fosse uma
nota de dois reais ele ficaria satisfeito; tudo o que queria era
sair dali imediatamente.
Os outros alcançaram o taxi. O passageiro recolocou os óculos,
abriu a porta e antes de sair disse:
_ Tenha uma boa vida.
Noctívagos
71
Ele saiu do automóvel e Donizete pensou que fosse sofrer um
ataque do coração, o peito doía intensamente. Pensou na
família, pensou na vida que tinha levado até aquele momento;
tudo tão rápido que pareceu acontecer em um único
pensamento.
O passageiro se juntou aos outros dois; a mulher o abraçou, em
seguida olhou para dentro do carro pelo vidro fechado, retirou
os óculos e sorriu deixando visíveis os mesmos dentes longos e
os olhos incandescentes de um azul bruxuleante. Foi a visão
mais insana que o taxista teve na vida.
Donizete tentou reunir forças para engatar a marcha e sair, mas
não conseguiu.
Os dois homens fora do carro apertaram as mãos como bons
conhecidos e depois eles três caminharam rua adentro sem
sequer olhar para trás; todos andaram até desaparecer
encobertos pela escuridão do lugar.
A dor no peito diminuiu devagar e Donizete arrancou com o
carro tão rápido quanto conseguiu; suava frio e sentia os golpes
pesados do coração contra o peito como marteladas internas.
Ficou aliviado quando saiu daquele lugar e decidiu ainda ali
que não trabalharia mais durante a noite. De repente, foi como
se um véu tivesse sido tirado dos olhos dele, o mundo perdeu
Contos Vampíricos
72
um pouco do sentido que tinha antes e uma nova realidade
nasceu emergindo das sombras na mente do taxista. Pensou que
fosse enlouquecer.
Parou de trabalhar nas noites sem explicar os motivos reais
para ninguém que conhecia, mas a última coisa que ele queria
na vida era voltar a encontrar qualquer um daqueles noctívagos
e passaria o resto da vida se perguntando quantos deles
andariam livremente pelas noites da cidade.
***
Noctívagos
73
O Invasor
A viatura policial parou no outro quarteirão, pois não havia
lugar na rua de onde partiu o chamado; estava acontecendo
uma espécie de festa em uma das casas próximas e duas fileiras
de carros formaram-se, uma de cada lado da rua.
_ Tem certeza de que foi aqui nessa rua o chamado de invasão
de domicílio?_ perguntou um dos policiais.
_ Sim_ respondeu o outro policial ao volante.
Os dois estavam passando pelas redondezas quando receberam
um informe via rádio de que houve um arrombamento em uma
das residências daquela bela rua. As casas em sua maioria eram
grandes e muito bonitas, as pessoas que moravam ali possuíam
um poder aquisitivo bem elevado se comparado com o padrão
do restante do município.
Os dois policiais se colocaram a disposição de averiguar o
acontecido antes do término de seu turno.
A casa é aquela_ disse um deles apontando para uma residência
das mais bonitas da rua; ficava localizada afastada cerca de
quatro ou cinco casas da que estava em festa, mas do outro
lado da rua.
Contos Vampíricos
74
Quando voltaram a pé, pois a fila de carros impedia até o
trânsito de veículos pela rua, o que diria parar perto do
domicílio. Os dois homens da lei avistaram um outro homem
parado junto ao portão da casa em questão.
_Os senhores devem ser os policiais que foram enviados para
ver o que aconteceu na casa de meu irmão_ disse o homem
estendendo a mão de forma bastante amigável.
Era um senhor negro de aproximadamente quarenta anos;
vestido com calça jeans cujas bordas surradas estavam também
desfiadas; usava uma camisa de tecido fino e cor roxa que
parecia brilhar quando tocada pela luz, abotoada quase até o
topo; sapatos de uma espécie de couro de animal, crocodilo ou
cobra; no punho direito uma pulseira de um dourado vivo e um
relógio muito bonito nas cores prata e ouro com pulseira de
couro. Na mão esquerda trazia um anel no dedo mínimo,
trabalhado em dourado com uma pedra grande em seu topo se
destacando; pedra esta de cor púrpura; provavelmente uma
ametista lapidada.
_ Sim_ respondeu um dos policiais_ Viemos para averiguar. O
que aconteceu aqui?
_ Vim à casa de meu irmão para buscar alguns papeis de suma
importância para nós,_ iniciou o homem_ mas quando cheguei
Noctívagos
75
aqui a casa estava aberta, meu irmão não está em casa e ao
entrar percebi que tudo está fora do lugar, reviraram a casa.
_ Então o senhor ligou para a policia? _ o soldado quis saber.
_ Sim; quando entrei na casa tive uma sensação muito estranha,
como se alguém estivesse me observando.
_ É possível que o invasor ainda esteja aí dentro. Há alguma
saída pelos fundos?
O homem pensou um pouco e respondeu firmemente:
_ Não. Quero dizer, os muros nos fundo são por demais altos e
possuem arame farpado em seu topo; ninguém poderia pular
sem a ajuda de uma escada das grandes e além do mais a casa
dos vizinhos de trás possuem segurança particular; seria como
pular dentro de uma fogueira.
Sacando das armas, os policiais resolveram que deveriam fazer
uma rápida busca dentro do domicílio.
_ Vamos entrar_ Disse um deles.
O homem que estava por dono do lugar na ausência de seu
irmão os conduziu até a entrada da frente em cuja porta
divisava com a sala. Sala esta que estava totalmente revirada,
todas as coisas estavam jogadas pelo chão, quadros, pequenos
bustos em mármore, livros, aparelhos eletro-eletrônicos;
aparentemente o sofá havia sido arrastado, existiam algumas
Contos Vampíricos
76
marcas de impacto nas paredes, como se algo pesado tivesse
sido arremessado sobre ela; e no teto também. A grande
televisão estava destruída e por fim algumas manchas do que
parecia ser sangue no chão e no tapete.
_ Qual é o nome de seu irmão? _Perguntou o policial que ia à
frente.
A resposta veio depois de um suspiro:
_ Gabriel.
_ E qual é o seu nom...
Antes de concluir a pergunta os três homens parados naquela
sala revirada do avesso tiveram aquela sensação estranha e
pensaram ter visto as sombras mudarem de lugar no corredor
que estava às escuras ligando a sala a outro cômodo.
_ O que foi aquilo?_ Perguntou visivelmente trêmulo o “dono
da casa”.
O policial destravou a arma.
_ Parece que não estamos sozinhos aqui. _ disse o primeiro.
_Atenção! É a policia, saia com as mãos para cima! _
acompanhou o segundo apontando a arma rumo ao corredor
escuro.
Um silêncio mortal e ensurdecedor estava pairando sobre
aquela sala, a música festiva que havia a cinco casas descendo
Noctívagos
77
a rua não penetrava ali. Não houve resposta alguma por parte
do suposto invasor que estava dentro do imóvel.
_ Cara isso é um tanto quanto estranho_ disse o “dono da
casa”_ não é melhor chamar reforço?
O policial normalmente teria a idéia de chamar reforço, mas
não queria correr o risco de não ser nada, ou seja, não queria
correr o risco de o invasor já não estar mais na casa, e, com a
ajuda de outros policiais descobrir que estava com medo
apenas de um punhado de sombras. Isso Certamente seria
desastroso para sua carreira.
Já o segundo policial estava sentindo aquela sensação de novo,
ele podia jurar que de dentro daquelas sombras no corredor,
estava alguma coisa que emanava maldade e queria de alguma
forma atingi-los.
O dono da casa rompeu com o silêncio fazendo uma pergunta:
_ O que são aqueles furos na parede?
Um dos policiais se aproximou dos pequenos buracos na
parede e constatou que se tratava de orifícios feitos a bala.
_ Alguém disparou uma arma aqui nessa sala_ disse_ e tudo
indica que ouve luta no local, por isso os móveis estão todos
fora de lugar.
Contos Vampíricos
78
_Luta!?_ O dono da casa aparentemente não compreendia o
que estava ocorrendo ali_ Você quer dizer que o invasor lutou
aqui com alguém?
O policial meneou a cabeça positivamente antes de responder.
_ Fiquem atentos, pois pode ser que não fosse apenas um
invasor e sim mais de um, talvez eles tenham encontrado algo
de muito valor e isso deu início a um desentendimento.
A sensação retornou; como uma leve pressão na mente; eles
quase podiam ouvir uma voz que dizia que algo essencialmente
maldoso estava os esperando naquela casa. Mas na verdade os
policiais não podiam se dobrar diante de medos infantis; quem
em uma situação de estresse como aquela não seria remetido
aos seus medos antigos de quando criança; já tinham passado
por situações semelhantes e até piores do que aquela e isso
acontecia sempre; as sombras pareciam mais maldosas do que
realmente eram, o silêncio parecia mais poderoso do que
efetivamente estava.
_ Vamos averiguar nos outros cômodos._ disse o primeiro
policial tomando a dianteira.
_ O senhor tem certeza de que isso é prudente?_ perguntou o
trêmulo “dono da casa”.
_ Fique atrás de mim_ falou o segundo policial.
Noctívagos
79
Juntos, atentos e em fila indiana os três seguiram da sala para
dentro das sombras do corredor; tateando a parede rapidamente
o “dono da casa” encontrou o interruptor e ascendeu a luz;
junto ao interruptor havia uma escada que levava ao andar
superior e do outro lado, na outra parede do corredor estava um
enorme espelho que tomava toda a parede e refletia-os de corpo
inteiro.
Os policiais acharam aquilo estranho, mas gente com dinheiro
sobrando geralmente é estranha.
_ Uma parede de espelho!?_ Disse um deles.
Prosseguiram e foram até a cozinha, onde as coisas estavam
intocadas, não havia nada fora do lugar naquele cômodo;
fizeram uma rápida busca, mas não havia indícios de que o
invasor tivesse se apoderado de algo ali. Voltaram pelo
corredor com o espelho e tomaram a escada para o andar de
cima; no meio do lance de escadas um novo barulho estranho
surgiu, algo como uma porta rangendo.
_ É a porta do escritório_ disse o “dono da casa” tentando
acalmar os outros.
_ O que exatamente você veio buscar aqui para o seu irmão?
_perguntou o policial que estava na frente.
Contos Vampíricos
80
_ O laptop, tem alguns arquivos, planilhas e coisas do gênero
que são muito importantes para o nosso negócio.
_Vocês são empresários?_ perguntou o outro policial. Isso
explicaria o alto padrão de vida.
_ Digamos que temos bons negócios.
Chegaram ao outro andar, e guiados pelo “dono da residência”
foram até o escritório; lá encontraram nada mais do que uma
pequena mesa próxima de uma confortável poltrona estofada
na cor vermelho escuro, as paredes possuíam estantes
apinhadas de livros; sobre a mesinha estava uma garrafa
contendo um líquido pela metade e ao lado da garrafa um
manuscrito confeccionado com uma caligrafia extremamente
bem trabalhada. Ele dizia:
“Aos irmãos. Escrevo à mesa de Mesquita dizendo que não
farei parte da aliança, não me importo com os lincantropos, e
os anjos têm mais com o que se preocupar do que com um
grupo miserável de noctívagos que pensa ter controle sobre
este município. Digam a Cícero que Gabriel jamais vai se
dobrar diante dele e tampouco a Dominic ou Alex crianom;
todos vocês me enojam por não confrontarem os homens, não
me importa, eu o farei”.
Noctívagos
81
Era um trecho muito estranho, mas o policial continuava lendo
enquanto o dono da casa procurava algo em meio aos livros na
estante e o outro policial averiguava o que parecia ser marcas
de novos disparos junto a uma janela cuja armação estava
retorcida.
O segundo trecho dizia o seguinte:
“Não me associarei a mortais como Agamenom nem a outros
seres como Gael; por hora vou dar cabo dos policiais que se
uniram ao padre e depois voltarei minha ira sobre vocês; mas
principalmente contra Cícero”
Havia mais coisas escritas, mas estava em outro idioma e o
policial não soube discernir.
_ Seu irmão era algum tipo de escritor de ficção nas horas
vagas?_ Perguntou o que estava lendo.
_Não tenho certeza._respondeu.
O “dono da casa” se apoderou de alguns livros e finalmente
encontrou o laptop.
O policial que visualizava a janela olhou de repente para uma
das prateleiras da estante sobre a qual estava colocada uma foto
de um homem branco ao lado de duas mulheres, uma ruiva e
uma morena.
_ Já encontrei o computador._ disse o “dono da casa”.
Contos Vampíricos
82
O policial aproveitou o ensejo para perguntar:
_ Quem são aquelas pessoas na foto?
O outro policial também olhou a foto com nítida curiosidade.
_Oh! Sim, aquele é Gabriel e as belas mulheres são suas
namoradas, Monique e Melissa.
Algo não estava se encaixando, Gabriel não era o nome do
irmão dele? Como um poderia ser negro e o outro caucasiano?
_ O senhor não disse que seu irmão se chama Gabriel, como
vocês podem ter tons de pele diferente? São irmãos por parte
de pai? Ou adotivos?
_Não, Gabriel nasceu na Alemanha e eu no Brasil; somos
irmãos porque pertencemos à mesma irmandade.
Aquela conversa estava começando a ficar mais insólita a cada
minuto; mas que conversa era aquela de irmandade.
O policial que avistou a foto, intrigado perguntou:
_ Qual é o seu nome senhor?
O “dono da casa” respondeu tranqüilamente, mas sua resposta
incomodou o outro policial que tinha lido os pequenos trechos
do manuscrito.
_ Eu me chamo Cícero.
Cícero, o nome que estava descrito como claro desafeto de
Gabriel, o verdadeiro dono da casa.
Noctívagos
83
_Você leu o que estava escrito ai neste papel. Não leu?_
perguntou Cícero.
A sensação estranha voltou, agora muito mais forte do que
antes; parecia que algo extremamente ruim pairava sobre as
cabeças deles, mas obviamente Cícero não estava sentindo, na
verdade por um momento o policial chegou a pensar que
aquela sensação estivesse partindo daquele homem.
_ Mas então não houve invasão desse domicílio?
Uma dor de cabeça começou a se insinuar simultaneamente nos
homens da lei enquanto eles ouviram as palavras daquele que
os enganou perfeitamente.
_ Houve sim uma invasão; eu sou o invasor aqui. Gabriel
morreu, e eu ouvi dizer que foram dois policiais que deram
cabo daquele ser desprezível; resolvi verificar, liguei para a
polícia e fiquei aqui esperando na esperança de que fossem
enviados os mesmos homens que o derrubaram. Mas
obviamente para minha frustração, vocês não sabem de nada.
A essa altura ambos os policiais já apontavam suas armas na
direção de Cícero que continuou a falar tão calmamente como
se as armas não representassem perigo algum para sua vida.
_Eu sinto muito; dizem que o conhecimento é uma dádiva, mas
infelizmente para vocês não será; agora vocês já sabem mais do
Contos Vampíricos
84
que outros homens saberão em cem anos de vida e por isso
devem perecer ou vão se tornar caçadores em potencial. Se
vocês fossem para o céu, então isso aqui não importaria muito,
mas eu já olhei suas mentes e creio que para o lugar aonde vão
todas as suas dúvidas serão respondidas e não será nem um
pouco agradável.
No momento em que disse aquilo, a garrafa de bebida sobre a
mesa saltou como se um fantasma a tivesse jogado sobre um
deles, a luz do cômodo se apagou como que por mágica e a
silhueta de Cícero na escuridão do escritório contra a luz vinda
do corredor que desembocava na escada era algo medonho;
seus olhos emanavam um brilho frio como os olhos de um gato
nas sombras quando confrontado por alguma luz, e era como se
a aparência humana simpática de outrora houvesse se
desfigurado a ponto de ser aterrorizante; eles não estavam
vendo a face do monstro, mas em seu íntimo sabiam
exatamente como era terrivelmente desfigurada. Cada fibra de
seus corpos sabia.
O que eles não sabiam era que o próprio Cícero tinha projetado
a imagem de sua face monstruosa em seus corações e mentes.
Apenas dois segundos se passaram desde que a garrafa saltou
sobre os homens e a luz se apagou, os policiais em pânico
Noctívagos
85
dispararam a esmo várias vezes e gritaram como se crianças
fossem. Eles foram rapidamente dominados.
Novamente Cícero, um dos predadores da noite, tinha
cumprido seu papel, era assim há quase um século.
Alguns minutos depois aquele homem que carregava a marca
do mal em sua alma saiu da residência pela porta da frente
trazendo consigo o computador portátil debaixo do braço e dois
ou três livros, chegando do lado de fora, na calçada, retirou do
bolso uma chave com um dispositivo; apertou o pequeno botão
e um dos carros estacionados respondeu com dois ruídos
eletrônicos e com os faróis ascendendo e apagando
rapidamente. Era um belo Citroën C5 preto parado bem a sua
frente.
Gabriel sempre foi um fio solto, mas agora Cícero possuía
todos os seus arquivos pessoais, iria reivindicar junto aos
outros mais espaço para agir em Mesquita; O Invasor de
mentes, como era chamado pelos outros imortais, agora teria
mais força política.
O Citroën saiu sorrateiramente pela rua e dobrando pela
esquina com seus faróis de um branco azulado varrendo tudo
na sua frente, tomou seu caminho e sumiu em meio à noite.
***
Contos Vampíricos
86
Vampiro
Um grupo de policiais deixou a casa no subúrbio carregando
um homem algemado, toda a ação foi coordenada pelo novo
gabinete de gestão integrada da secretaria de segurança do
estado do Rio de Janeiro. As investigações levaram dois meses
e usaram a inteligência e cooperação das polícias civil e
militar; com o respaldo e a consultoria de uma ala específica da
polícia federal.
O homem algemado andava calmamente sendo conduzido por
dois policiais militares e dois agentes da policia civil, parecia
não se importar com o que estava acontecendo; ele não
demonstrava nenhum traço de sentimento na face, seu
semblante era pálido, rígido e sem expressão; a verdade era que
os homens que efetivaram a prisão estavam ainda um pouco
sem saber o que pensar a respeito do prisioneiro.
Do lado de fora da casa, estavam pessoalmente o secretário de
segurança pública do estado e o comandante geral da Polícia
Militar juntamente com o chefe de polícia civil, a ação fora tão
bem orquestrada que foi possível capturar o indivíduo em sua
própria casa e incrivelmente o prisioneiro não reagiu nem
Noctívagos
87
tentou fugir, apenas sorriu enquanto era algemado e retirado de
seu domicílio.
Até onde se sabia Igor monsenhat, o preso, era um enfermeiro
que sempre trabalhava nos turnos da noite em diversos
hospitais do estado, nunca ficava muito tempo em um único
hospital, sempre pedia demissão e sumia sem deixar vestígios.
A polícia chegou até ele depois que uma denúncia foi feita às
autoridades sobre um homem que estaria roubando
medicamentos do hospital onde trabalhava, esse homem era
Igor, mas a verdade era muito mais macabra do que apenas
aquilo.
Quando Igor foi colocado dentro da viatura, o comandante
geral da polícia chamou um agente cujo nome era Douglas e
que era quem estava à frente da ação.
_ O que vocês encontraram lá?_ perguntou o comandante sob o
olhar compenetrado do secretário de segurança.
Douglas era um homem acostumado a certas loucuras urbanas,
já tinha visto praticamente de um tudo em seus dez anos de
profissão, mas o que ele viu dentro da casa de Igor foi algo que
jamais esperava ver.
_ Há duas pessoas lá dentro._ afirmou o detetive.
_Cúmplices?
Contos Vampíricos
88
_Vítimas.
Naquele momento os outros policiais já tinham acionado
alguns paramédicos que tratariam de prestar os primeiros
socorros para as duas vítimas de Igor.
Douglas continuou:
_ Ele mantinha um casal aprisionado dentro de casa, cada um
em um quarto diferente; ainda não sabemos quem são eles, mas
vamos checar com o CNPD e com o Disque-Denuncia; afinal,
foi com a colaboração desse importante órgão que
conseguimos finalmente fechar o cerco sobre Igor.
A sigla citada pelo agente Douglas não era novidade para
nenhum deles ali presente, CNPD, tratasse do Cadastro
Nacional de pessoas Desaparecidas e por vezes o novo
gabinete de gestão integrada da prefeitura do Rio de Janeiro em
suas ações de segurança acabava tendo de fazer contato com o
órgão nacional com a finalidade de obter informações
importantes para várias investigações.
O secretário de segurança se virou momentaneamente para a
viatura e se deparou com o prisioneiro observando-os
atentamente, com um olhar agudo e compenetrado, por um
momento o homem detido pareceu ter perdido a capacidade de
piscar, seus olhos estavam vitrificados; era como se estivesse
Noctívagos
89
ouvindo a conversa mesmo com o vidro da janela do carro
suspenso e com a dificuldade da distância considerável entre
eles.
Finalmente o secretário perguntou:
_ O que eu vou dizer para o prefeito? Esse é o tal homem?
_Sim senhor._Douglas rebateu prontamente; e continuou._
Encontramos uma grande quantidade de sedativos, anestésicos
e relaxantes musculares de vários tipos e sob várias formas
desde clorofórmio, muitas caixas de medicamentos para esses
fins e até um pouco de morfina.
_ E para o que ele poderia querer esses medicamentos em casa?
Igor monsenhat capturava pessoas já há algum tempo, tinha
documentos falsos com os quais conseguia emprego sempre em
hospitais onde roubava, de fato, vários medicamentos de uso
anestésico, mas não só medicamentos, como também
equipamentos; luvas cirúrgicas, seringas e agulhas.
Ele usava os medicamentos em suas vítimas para sedá-los e
então com a seringa retirar o sangue das pessoas, armazenando
em potes de maionese dentro de um freezer.
Douglas disse:
_ Não sei bem o que pensar; se esse homem é um psicopata
frio e calculista, ou se é uma espécie de demônio inumano.
Contos Vampíricos
90
_Deus do céu!_ exclamou o secretário.
Douglas ainda não tinha dado todas as informações, e
prosseguiu:
_ Encontramos também cadernos e mais cadernos dentro do
quarto dele, onde estão escritos, parece, que sonhos
perturbadores que ele vinha tendo e também sobre sua
compulsão pela caçada, ataque, dominação e pelo sangue.
_Ora! Mais o que é isso?_ Interrompeu o comandante de
polícia_ você está dizendo que ele anotava sobre suas vítimas e
sobre seus delírios psicóticos?
_Exato senhor.
Igor não conseguia evitar, era mais forte do que ele; quando se
apercebia já estava cometendo o ato; ele tinha uma estranha
atração pelo sangue e começou a atacar pessoas para aplacar
sua compulsão que o dominava desde sempre.
Loucura ou maldição? A verdade era que Igor não sabia e não
queria saber; se sentia muito bem saciando sua compulsão e
somente isso importava na vida.
***
Noctívagos
91
Regente das ruas
A guerra das ruas. Não era qualquer corrida e sim “a corrida”,
pessoas de vários estados viajavam uma vez no ano para
participar desse evento. Alex Crianom correria pela primeira
vez desde que retornara de sua mais nova experiência e não
temeria nenhum dos pilotos, conhecia o trajeto como poucos;
sua “nova vida” o ajudava a obter vantagem sobre as pessoas e
disso ele gostava muito, ainda estava se adaptando com todas
as facetas de seus pensamentos, mas uma coisa sabia. Venceria
e esse seria o início de sua fama no circuito secreto das
corridas.
Logo que o céu escureceu os carros apareceram vindos de
todas as partes convergindo para o bairro escolhido nessa
ocasião, o local sempre mudava e esse era um dos pontos de
dificuldade do circuito.
“Sinto-me tão bem que poderia voar”._ Pensou Alex parando o
carro junto aos demais participantes.
Ele não sairia do veículo para não assustar os que estavam por
perto, seu “dono” estava lá fora cuidando dos detalhes, iam
colocar muito dinheiro na corrida; antes ele não era um piloto
Contos Vampíricos
92
assim tão bom, até que conheceu Tymoti; empresário inglês
dono de uma das mais badaladas casas noturnas da cidade, um
homem rígido e de princípios, embora possuísse vícios
estranhos.
Na época Alex não possuía um carro poderoso o suficiente para
competir, mas sua audácia e arrogância chamaram a atenção de
Tymoti.
Dentro do carro ele pensava se tinha realmente valido a pena
fazer tal pacto em troca de poder e fama.
“O poder que posso dar será seu durante séculos, mas haverá
uma cobrança que os homens comuns não podem pagar e nem
suportar”_ Foram as palavras de Tymoti no dia do presente.
_Aceitei, e agora não poderei voltar mais atrás, o presente já
foi dado e só poderá ser retirado em alguma virada dos séculos
vindouros, pela força e coragem de um homem que não tema o
desconhecido.
O ruído dos motores se ergueu sobre todas as vozes ao redor;
as pessoas olhavam atentas para a largada e alguns dos carros
blefavam como se fossem largar antes da hora, seus canos
cuspiam fogo como bestas draconianas e alguns respiravam
jatos de fumaça através do capô, suas pinturas artísticas
reluziam à luz do ambiente e as rodas brilhavam tão prateadas
Noctívagos
93
quanto se tivessem sido feitas com o próprio metal em diversas
formas e tamanhos.
“Chegou a hora”_ Alex Crianom olhou ao redor e por detrás do
vidro obscurecido viu claramente quando Tymoti tomou lugar
próximo das pessoas na linha de partida. Subindo o som ao
volume máximo do seu aparelho, ele se deliciou com as
vibrações sonoras que quase podiam adentrar por sua pele,
ouvidos comuns nunca suportariam tamanho estresse sem
serem prejudicados.
A bandeira tremulou nas mãos de uma jovem bem à frente dos
veículos dando início à prova e em segundos passaram por ela
a legião dos gladiadores do asfalto, os carros envenenados
arrancaram quase que simultaneamente e lado a lado dividiam
a rua em três blocos distintos.
O Mitsubishi eclipse negro rugia alto como um tornado e
ganhava velocidade a cada milésimo de segundo. Alex prestou
atenção no lado direito por onde surgia um Golf prateado que
trazia a inscrição N.O.S na lateral inferior da porta e desenhos
psicodélicos em todo o corpo do veículo, em seguida
apontando pelo flanco esquerdo arrancava um Honda Civic EX
em cuja pintura retratava o anjo com sua lança luminosa em
mãos e asas demonstrando velocidade. Alex sabia que esta
Contos Vampíricos
94
noite aqueles seriam seus adversários e pisava firme e fundo
sobre o pedal do acelerador, engatando as marchas com uma
destreza que não pensava ser capaz de desenvolver.
O Honda passou à dianteira e o Golf tomou na força do motor a
segunda posição, isso não era o suficiente para o corredor
dentro do Eclipse, pois além de se tratar da corrida das
corridas, também era uma prova de fogo para ele, Tymoti o
estava testando para saber se poderia incluí-lo na “família” de
uma vez por todas.
Tudo que Alex via de onde estava era a luz néon azulada do
Golf ziguezaqueando em sua frente e estava perdendo o contato
com o seu maior rival que mantinha-se em primeiro lugar
ganhando espaço e devorando o asfalto; de repente o carro
balançou como que atingido por algo na traseira, uma rápida
olhada no retrovisor revelou outro concorrente tentando agarrar
sua chance de aparecer, um Mazda laranja rasgava em
velocidade bem colado em sua traseira e tentava empurrá-lo
para fora da pista que ia se tornando cada vez mais estreita.
A velocidade já estava vertiginosa, mas seu mais novo
oponente se aproveitara do vácuo produzido por sua máquina e
jogando ao seu lado passou como um raio laranja, o aerofólio
do Mazda também possuía uma lâmpada néon esverdeada que
Noctívagos
95
aos novos olhos de Alex pareciam emanar um brilho
especialmente atraente; tudo era novo mas não podia se dar ao
luxo de ser derrotado, não naquela noite e nunca mais a partir
daquele momento. Usando da mesma técnica que o piloto do
carro laranja e imprimindo mais velocidade ao potente motor
do carro lembrou-se de algumas palavras que ouviu de Tymoti
antes de entrar no Mitsubishi:
_ Para cada membro de nossa família há uma lenda. É hora de
criar a sua_ pronunciou em meio ao som pesadíssimo que
ouvia dentro de sua cabine.
Firmando as mãos no volante, Alex saiu detrás do Mazda
puxado pelo vácuo e sentiu como que uma barreira de ar
tentando impedir seu avanço, mas já era tarde para o
adversário, já fazia parte do passado.
Separado por alguns segundos ele podia ver claramente à frente
as duas outras máquinas se digladiando por uma posição de
destaque, lado a lado Golf e Honda chocavam-se produzindo
faíscas e seus canos exibiam labaredas amareladas que
tornavam a visão ainda mais interessantes. Quando as chamas
sumiram a velocidade dos carros diminuiu e Alex notou que
era a hora de fazer a diferença, após uma curva de alta
velocidade à esquerda a pista se partiria em três retornando
Contos Vampíricos
96
para unificar-se no exato ponto de entrada em um túnel no qual
só cabiam dois carros lado a lado.
Quando a pista tornou-se três Alex acionou o Sistema de Oxido
Nitroso e teve a sensação de que a realidade se abriria bem na
frente de seu capô, mas quando ouve a convergência o Honda
estava milésimos atrasado; lado a lado o Mitsubishi e o Golf
rosnavam dentro do túnel e a multidão se amontoavam metros
na frente da saída onde estava a linha de chegada, depois de
outra curva extremamente fechada para o lado direito, lado
onde o Eclipse estava imponente engolindo os quilômetros.
Agora eram faíscas produzidas pelo atrito entre estes dois
carros que iluminavam a rua e nas calçadas próximas pessoas
fotografavam e filmavam o combate épico que se desenrolava
através da noite. Metros antes de entrarem na curva o piloto do
Golf baixou os vidros dele numa clássica atitude de
provocação, obviamente se achava melhor e gostaria de ver
quem ousava desafiá-lo daquela forma tão desrespeitosa;
realmente aquele piloto era o atual vencedor da última edição
da guerra das ruas, e conhecido por todos pela sua falta de
sentimentos ao volante, não foram poucas as vezes que para
vencer uma corrida ele usou de artifícios que acabaram
ceifando as vidas de outros competidores e essa era a missão de
Noctívagos
97
Alex Crianom naquela noite; plantar terror no coração de seus
oponentes. Com um toque no botão os vidros do Mitsubishi
desceram e ambos os pilotos estavam sem capacete ou
qualquer proteção que fosse; a curva estava sobre eles e não
haveria espaço para dois carros àquela velocidade. O horror
tomou conta da mente do piloto do Golf quando seus olhos se
cruzaram com os de Alex que iluminaram-se como se fossem
bravas incandescentes; Alex rosnou deixando à mostra os
longos dentes, o vento beijava-lhe a face deixando seus cabelos
desgrenhados; o Golf vacilou de um lado para outro e entrou na
curva de maneira displicente, Alex derrapou e quase perdeu a
traseira, mas com extrema habilidade trouxe a máquina às suas
ordens novamente e por fim avançou só para a linha de
chegada.
Estava feito. As ruas possuíam um novo regente e os outros
corredores em batalhas futuras não sabiam se era um homem
ou era um monstro errante, se era vivo ou não. As histórias
sobre ele correram por todas as partes do circuito secreto das
corridas. Ninguém jamais saberia.
***
Contos Vampíricos
98
O Rapto noturno de Luessa Teixeira
Regina continuava deitada dentro de um carro desconhecido, as
mãos e pés muito bem amarrados; braços e pernas voltados
para trás e os joelhos dobrados, a cabeça pendia encostada no
assento e da maneira como ela estava deitada, não conseguia
ver direito a pessoa que dirigia o veículo.
O carro sacudia levemente enquanto fazia um trajeto que ela
não conhecia, tampouco podia ver em quais ruas estavam
passando; era prisioneira ali e estava desesperada.
No banco da frente estava uma pessoa dirigindo o carro; era
noite e tudo o que ela conseguia ver eram as luzes
provavelmente de postes e letreiros luminosos passando como
tochas pelos vidros molhados do lado de fora, mas era só.
O interior carro cheirava mal, ela não sabia ao certo, havia uma
mixórdia de mofo, cheiro de lixo, e aroma de desinfetante de
pinho barato; certamente alguma coisa estragada tinha sido
carregada ali e tinham tentado disfarçar o cheiro. Regina se
surpreendeu com o fato de chegar àquela conclusão.
Mesmo na escuridão do interior do veículo ela torceu o
pescoço com esforço, moveu a cabeça e pode ver sua bolsa
jogada no assoalho do automóvel, tentou novamente mover os
Noctívagos
99
braços, mas sem sucesso; estavam amarrados firmemente às
costas dela, assim como suas pernas. Fez mais força e obteve o
mesmo resultado.
Sempre tinha ouvido falar de seqüestradores, mas ela não
possuía assim tanto dinheiro ou bens que a credenciassem para
ser uma vítima de seqüestro; o que eliminava essa motivação;
restava apenas uma conclusão. Aquilo podia não ser um
seqüestro por motivo financeiro, mas sim com uma motivação
mais sórdida e depravada; Regina era uma mulher
relativamente bonita, capaz de atrair para si alguns olhares por
onde passava e sabia manipular o próprio corpo com esse fim.
Vestia-se de modo insinuante, sobretudo no trabalho.
Ao volante do carro uma figura alta, ombros largos e bem
curvados para frente, seguia dirigindo como se não houvesse
uma mulher amarrada e deitada no banco de trás, não era
possível ver o rosto da pessoa; ela aguardou alguns minutos,
mas o motorista não olhava para averiguar se sua vítima já
tinha despertado ou não. Como se não bastasse tudo aquilo o
motorista ainda usava um boné, o que dificultava ainda mais a
visualização de qualquer traço peculiar da cabeça dele.
A noite tinha iniciado normalmente; Regina tinha acabado de
sair do trabalho. Trabalhava como vendedora numa loja de
Contos Vampíricos
100
roupas femininas de um shopping em Nova Iguaçu no horário
de 16:00 às 22:00 hs já fazia um ano. E todas as noites quando
saía do shopping tinha de caminhar pela rua do
estabelecimento até chegar em frente à Prefeitura do
município; um trajeto curto, pouco mais de duzentos metros.
Em Nova Iguaçu, por mais incrível que possa parecer, a
prefeitura municipal fica exatamente ao lado do cemitério
municipal, eles são separados apenas por uma rua estreita e
diariamente Regina passava ali, geralmente o lugar era
movimentado, a não ser, claro, em dias mais frios e chuvosos o
que era exatamente o caso. Nesse dia também ela tinha se
demorado mais do que o normal e só tinha saído do shopping
por volta de 23:10, estava atolada de tarefas até o pescoço;
eram as vendedoras, Regina e mais uma, quem arrumavam a
loja para o dia seguinte todas as noites após o expediente,
limpavam, separavam o lixo, arrumavam as vitrines trocando
algumas peças do mostruário, limpavam os vidros e espelhos,
fechavam o caixa e deixavam tudo devidamente em ordem para
o próximo dia. Isso geralmente era feito pelas duas moças e
desse modo terminavam tudo rapidamente, nunca passava de
trinta minutos esse trabalho extra, mas por algum motivo,
Karen, a outra vendedora, havia faltado e todo o trabalho teve
Noctívagos
101
de ser realizado por Regina. Havia mais uma menina que
trabalhava na loja, mas ela pertencia ao horário da manhã, das
10:00 até as 16:00; fazia faculdade à noite e não pôde ficar para
dobrar o dia de serviço e ajudar a amiga.
Quando finalmente saiu do shopping Regina caminhou pelo
mesmo trajeto de sempre, mas sem ver ninguém nos pontos de
parada de ônibus até a prefeitura, o cemitério estava fechado e
também não tinha pessoa alguma no lugar onde ela tomava o
coletivo.
Logo que chegou ao ponto, uma fina garoa voltou a cair do céu
noturno e intensamente nublado; Regina averiguou em sua
bolsa para pegar o dinheiro da passagem e deixá-lo logo à mão;
o ônibus que ela tomava todas as noites não costumava
demorar e daquele lugar até o município de Queimados, onde
ela morava, também não demorava muito com o trânsito
liberado da noite.
O carro onde ela estava parou de repente; ouviu-se um barulho
que Regina não conseguiu distinguir; o motor foi desligado
rapidamente e então ela pode escutar o tamborilar da chuva
sobre o automóvel; aquele som estava sendo ocultado pelo alto
ruído do carro em movimento que além de ter um motor
Contos Vampíricos
102
extremamente barulhento ainda parecia estar com peças soltas
em algum lugar.
O motorista abriu a porta e saiu do veículo; o ar noturno entrou
no carro renovando o oxigênio pesado do interior, Regina
pensou em gritar por ajuda, mas sufocou o grito ao pensar que
poderia chamar atenção desnecessária para si, não sabia onde
estava e nem quem estava lá fora, tampouco imaginava o que
ele ou eles estavam fazendo ou intentando fazer. Além do
obvio é claro.
A porta bateu com certa violência e por cerca de vinte minutos
tudo foi silêncio. Ela estava com muito medo.
Naquela noite o ônibus demorou a aparecer e Regina tirou o
telefone da bolsa para ligar pra casa, mas não chegou a fazer
isso. Sentiu um puxão no ombro e tombou para trás, porém o
corpo não chegou a cair, foi amparado por alguém e uma mão
apertou seu rosto na altura do nariz e da boca com força,
tapando-os; não conseguiu gritar. Sentiu o cheiro forte que a
deixou tonta e com vontade de vomitar, em seguida apagou.
Quando a pessoa que dirigia o carro voltou, entrou e bateu a
porta; ela ouviu o barulho de uma sacola de papel,
provavelmente sendo depositada no banco ao lado, depois
Noctívagos
103
sentiu um cheiro conhecido e muito mais agradável do que o
que estava sentindo até então. Um cheiro de hambúrguer.
A música do rádio começou a tocar logo que o motor voltou a
fazer seu barulho característico, mas era uma música que
Regina não conhecia. O carro voltou a andar e junto ao som do
motor e do rádio havia agora também um terceiro; o som
resmungante do limpador de pára-brisas fazendo seu trabalho.
O motorista murmurou alguma coisa ao volante, estava
acompanhando a música debilmente, sem seguida o som do
saco de papel novamente. A velocidade do carro tinha
aumentado consideravelmente e ela tentou se mover sem ser
notada, seus braços e pernas estavam com sensação de
formigamento e o pescoço já doía de tanto forçar para manter a
cabeça levantada. Nesse momento ela ouviu a voz do homem
que dirigia; uma voz grossa, mas não era o que ela esperava;
era calma, extremamente calma para um sujeito que estava
seqüestrando uma pessoa.
_ Está acordada._ disse. Não foi uma pergunta e sim uma
constatação.
Regina teve medo de dizer qualquer coisa e manteve o silêncio.
_ Devo ter usado pouco sufocante; nunca consigo acertar a
quantidade desse líquido. Detesto fazer isso.
Contos Vampíricos
104
Ele falava como se estivesse com a boca cheia, estava
comendo algo, e ela se lembrou do cheiro do hambúrguer que
agora já não conseguia mais sentir.
_ Não quer conversar comigo?_ Agora sim uma pergunta
direta.
Como não houve resposta ele disse:
_ Ótimo. Faça como quiser.
Muita coisa estava passando pela cabeça dela naquele exato
momento e também estava sendo uma dificuldade tremenda
manter os pensamentos ordenados e não entrar totalmente em
pânico.
Por fim ela perguntou:
_ O que eu estou fazendo aqui?
O motorista se inclinou levemente para o lado, Regina tinha a
impressão de que ele a observava pelo espelho retrovisor
interno embora ela não estivesse vendo claramente.
_ É complicado. _ foi uma resposta curta e dúbia.
_ Quem é você? Onde está me levando? Por que estou
amarrada? Isso é um seqüestro?_ Regina despejou as perguntas
que estavam presas na garganta tal como foram saindo, fez
todas elas sem pensar que poderia não gostar das respostas.
Noctívagos
105
_ Sabe; você está muito calma para uma pessoa que tem tantas
dúvidas. Outros já estariam se desfazendo em lágrimas e
implorando por suas vidas._ disse o motorista sinceramente
impressionado, mas com um toque de sarcasmo na voz.
Regina piscou algumas vezes, o choro que ela mesma estava
lutando para manter dentro do peito subiu com violência até a
garganta também e por muito pouco não abriu caminho para
fora de boca. O máximo que ela se permitiu fazer foi fungar.
_ Onde você está me levando? _ repetiu.
_ Para conhecer uma pessoa. _ O motorista respondeu
friamente.
_ Que pessoa?
_ Uma pessoa especial; acredite, você vai gostar.
Uma série de cenas medonhas envolvendo submissão física
passaram pela mente de Regina; seu coração disparou e a
respiração aumentou a velocidade.
_ Me deixe ir.
Não ouve resposta. O carro continuava em velocidade; pelo
tempo que estavam viajando ela já sabia que deviam estar
longe de Nova Iguaçu, isso sem contar os momentos em que
esteve desmaiada.
Contos Vampíricos
106
_ Você tem família? Digo, filhos, marido? _ perguntou o
motorista se virando momentaneamente para trás pela primeira
vez.
_ Não, mas tenho Pa...
Foi interrompida pela voz dele:
_ Geralmente procuro pessoas sem muitos conhecidos ou
parentes que possam sentir suas faltas; sabe como é; fugitivos,
andarilhos, moradores de rua, pivetes; às vezes um ou outro
turista viajando sozinho e hospedado em albergues, quando
dou sorte, esse tipo de pessoa. Mas nem sempre é possível
manter o padrão. Essa gente não desperta tanto interesse nem
chama tanta atenção e isso, para o meu dono, é o ideal.
_ Por favor, o que você vai fazer comigo?
_ Eu não farei nada, não gosto de sangue humano, mas...
Agora foi ele que se interrompeu obviamente percebendo que
estava revelando mais do que devia. A última coisa que queria
ali era uma mulher histérica dentro do carro; já tinha
acontecido algumas vezes. E era uma situação difícil de
contornar; teria que parar o veículo e usar mais solução
sufocante; ou como também já aconteceu quando ele ainda não
se utilizava aquele líquido, teria de fazê-la parar o escândalo à
moda antiga, porém isso fazia muita sujeira. Por vezes acabou
Noctívagos
107
perdendo a vítima e seu dono-mestre-e-senhor gostava do
alimento ainda vivo para poder saborear todo o pavor que
provocava. Da última vez que a vítima se perdeu pelo caminho
e não chegou viva até o destino ele recebeu uma punição tão
violenta que nem gostava de recordar; seu mestre não
costumava perdoar erros por menores que fossem e aquele
motorista já fazia esse tipo de serviço por tanto tempo que
tinha medo até de cogitar o que poderia acontecer se essa sua
nova vítima não chegasse com vida.
_ Procure relaxar_ disse finalmente, tentando desconversar.
Parte do que Regina ouvia estava se perdendo, ela não
conseguia manter a concentração na conversa; sua mente
estava totalmente voltada para buscar uma forma de sair
daquele carro. Forçou novamente os pulsos e braços na
esperança de afrouxar as amarras que a mantinham presas e ao
mesmo tempo virou o pescoço em busca de algo dentro do
carro que pudesse ser usado como arma. Não achou nada.
A sensação de formigamento nos membros estava se tornando
em dormência e ela sentia dores nos ombros, joelhos, pulsos e
pescoço por causa do esforço brutal que vinha fazendo.
Contos Vampíricos
108
_ Você vai conhecer uma pessoa incrível._ Recomeçou o
motorista_ Não se preocupe, depois de alguns minutos juntos
você vai implorar para nunca mais deixá-lo.
Regina não compreendia o que aquele homem estava dizendo e
não conseguia pensar em outra coisa que não fosse ser
submetida a perversões; afinal, não havia motivo para um
homem atacar e seqüestrar uma mulher no meio da noite;
lançá-la num carro fedorento, rodar durante horas visando
desnortear sua vítima se não fosse com aquela finalidade.
Lembrou-se rapidamente da história que pessoas contavam vez
por outra nos bairros da periferia do município, quase uma
lenda urbana; falando sobre um tarado num carro escuro que
atacava mulheres desavisadas; ouvira aquilo muitas vezes
desde a infância e estava começando a achar que seria mais
uma a fazer parte das estatísticas. A dúvida que restava era se
após aquilo ela seria libertada em algum lugar com vida ou
não.
_ Por favor, moço, me deixe ir, juro que não conto nada a
ninguém. _Ela estava decaindo de sua aparente tranqüilidade
para um patamar mais normal de pânico inicial.
Ele já tinha visto aquilo muitas vezes e sabia que ainda estava
dentro do tolerável, essa mulher parecia ter uma cabeça forte e
Noctívagos
109
por incrível que parecesse geralmente as mulheres tinham
muito mais domínio em situações como aquela do que os
homens; os homens desmoronavam em prantos logo que
percebiam que não sairiam vivos ou que o grau de sofrimento
pelo qual passariam seria enorme, choravam como crianças,
apenas alguns destoavam desse padrão.
Já as mulheres que ele havia raptado ao longo dos últimos anos
tinham se portado relativamente bem, exceto uma ou outra que
reagiram muitíssimo mais violentamente do que todas as
demais, mas suas estatísticas particulares mostravam que era
muito melhor uma vítima do sexo feminino, geralmente mais
fácil de se conseguir, não lutavam tanto quanto os homens e
muito melhores de se transportar. Por isso, quando ele viu
aquela jovem mulher parada sozinha num ponto de ônibus
próximo ao cemitério municipal de Nova Iguaçu, não teve
dúvidas; aproximou-se sorrateiramente e a atacou com a
rapidez e a destreza de um assassino serial.
As dores aumentavam pelo corpo, Regina não conseguia mudar
de posição para melhorar a dormência.
_ Qual é o seu nome? _ perguntou o motorista.
Regina não respondeu, estava ocupada gemendo baixo
enquanto tentava girar sobre o seu próprio corpo.
Contos Vampíricos
110
_ Colabore, querida.
Ela respondeu com a voz já meio embargada.
_ Regina Luessa Texeira.
_ Sabe Regina._ Emendou _ Estamos chegando, espero que ele
goste de você.
_Quem é ele? E o que quer comigo? _ Ela perguntou meio sem
acreditar que haveria outra pessoa a espera deles em algum
lugar; Regina pensava que o motorista estava apenas ganhando
tempo enquanto buscava um lugar propício para efetuar seus
intentos.
No meio das coisas que ele tinha dito até aquele momento ela
tinha conseguido identificar palavras tais como sangue, e isso
era um mau sinal.
_ Ele é Magnífico!_ exclamou o outro _ E tudo o que ele quer é
seu sangue, não é nada pessoal, você estava no lugar errado na
hora errada. Assim é que é a vida; mas acho até que ele pode
gostar de você e talvez não matá-la hoje. É bem raro quando
isso acontece, mas depois de conseguir pessoas para ele se
alimentar durante tanto tempo eu acabei descobrindo as
preferências dele, sabe; é isso que um servo tem de fazer,
descobrir as preferências de seu senhor-e-mestre e fazer o
possível para agradá-lo.
Noctívagos
111
Regina estava chorando nesse momento; ao que tudo
demonstrava não se tratava de um seqüestro de cunho sexual e
sim uma ação para aplacar a sede de sangue de um assassino
desequilibrado mental.
_ Por favor. Não faça isso... Não...
As palavras da mulher se reduziram a um murmúrio baixo e
repetitivo. Como se estivesse agora se agarrando a rezas que
certamente não poderiam livrá-la do que viria a seguir.
_Chegamos._ Disse o motorista secamente.
A palavra caiu como uma bomba sobre Regina e finalmente o
choro ganhou força, abrindo caminho desde o interior da alma
dela.
O motor do carro parou de funcionar e produzir aquele barulho
característico, a chuva também parecia não cair mais do céu, o
tamborilar sobre a lataria do carro não era mais ouvida. O rádio
baixo que ela tinha ignorado durante quase todo o trajeto desde
que o motorista o ligara agora fora silenciado.
A porta se abriu e o motorista saiu.
Do lado de fora uma voz desconhecida disse:
_ Você está atrasado._ Era uma voz firme.
Regina chorava bastante dentro do carro, o rosto já
completamente molhado com as lágrimas e os soluços já quase
Contos Vampíricos
112
a engasgavam; ela se contorcia tentando se desvencilhar das
amarras.
O motorista respondeu:
_ Demorei para conseguir uma pessoa do seu gosto._ A voz do
motorista soava submissa.
_ Homem ou mulher?
_ Mulher.
_ Ela está muito nervosa, posso sentir;
_ Procurei mantê-la calma, mestre.
_ Excelente.
_ Creio que o senhor vai poder bebê-la durante várias noites.
_ Deixe-me vê-la.
Regina continuava chorando copiosamente; revolvera-se tanto
que caiu do banco traseiro e parte do seu corpo estava de ponta
a cabeça. Ela pensava em todas as pessoas que conhecia;
familiares, colegas de trabalho, antigos colegas de escola.
Pensou em como eles ficariam quando ela não voltasse para
casa naquela noite, nem para o trabalho no dia seguinte e
jamais desse notícias.
Uma das portas de trás se abriu com um ruído grotesco e o
motorista a puxou de forma bruta praticamente ignorando o
peso dela. Regina bateu a cabeça em alguma coisa e finalmente
Noctívagos
113
avistou a face do homem que a raptara, um rosto comum, mas
o outro; o mestre, não era nada comum, aliás, era
completamente medonho.
Sem poder mais se controlar, Regina, ao ver aquele semblante
inumano; aquela face monstruosa; irrompeu num grito
terrivelmente alto que ecoou pela noite.
***
Contos Vampíricos
114
Convite dos imortais
_Quem são estas pessoas?_ Perguntou Agamenon assim que
entrou no escritório de casa e o viu cheio de gente.
Seu filho estava sentado numa das confortáveis poltronas de
veludo que faziam parte da decoração de sua sala particular.
Dentro do escritório estavam também mais três pessoas. A
primeira, um homem trajado com um belíssimo terno feito sob
medida, com caimento perfeito; trazia no pulso um relógio
IWC e uma corrente do que parecia ser ouro branco, possuía
cabelos castanhos escuros e olhos negros como pedaços de
carvão; do bolso frontal do paletó, pendia uma corrente fina
dourada que combinava com o prendedor de gravata,
provavelmente tal corrente estava presa a um outro relógio de
bolso daqueles modelos antigos feitos somente pelos mestres
na arte da relojoaria.
O filho de Agamenon apresentou este primeiro:
_Pai._ disse ele_ Este é Tymoti Lane Argaiol. Mas pode
chamá-lo de Timóteo.
Agamenon sempre foi um homem cauteloso quanto a conhecer
novas pessoas, e principalmente em se tratando das mais
recentes amizades de seu filho Alexander.
Noctívagos
115
Não respondeu, limitou-se apenas a andar através do cômodo
para sentar atrás de sua mesa enquanto encarava os outros dois
estranhos.
A segunda era uma das mais belas mulheres que Agamenon, no
auge de seus setenta anos, havia visto, e não foram poucas; ela
aparentava ter entre vinte e cinco e trinta anos; trajava uma
roupa preta que delineava seu corpo com perfeição, era morena
com os cabelos tão escuros que quando tocados pela luz
pareciam refletir um brilho azulado, olhos de um verde-água
límpidos e vivos; era como olhar para duas pequenas jóias. Ela
sorriu sorrateiramente pelo canto dos lábios pouco pintados,
porém grossos e belos. O velho logo percebeu que encerrado
naquele sorriso havia muito mais malícia do que ela queria
demonstrar; ele era muito bom em reconhecer pessoas se
escondendo por trás de máscaras, fizera isso durante toda a
vida e se tornara um especialista.
Seu filho também os apresentou:
_ Esta é Diana Benjamim Walker._ disse apontando com a mão
para a mulher._ Diana, este é meu pai; Agamenon.
Diana trazia no pescoço um adorno no mínimo diferente e o pai
de Alex logo se atentou para aquilo; um cordão prateado em
Contos Vampíricos
116
cuja frente estavam penduradas duas grandes presas de algum
tipo de animal de grande porte, um leão ou tigre talvez.
_ De que animal são estas presas que adornam seu colar
menina?_ Perguntou presumindo que fossem presas de
verdade.
_ Pertenceram ao meu pai.
Alex sorriu com a resposta aparentemente confusa da mulher.
O terceiro membro daquele estranho grupo era um rapaz tão
jovem quanto seu filho, talvez até mais jovem; por volta de
vinte anos. Vestia roupas bem menos sofisticadas que seus
colegas, camisa preta, calça jeans muito desbotada e tênis
rasteiros sem marca aparente; a única coisa realmente estranha
no jovem era um conjunto de tatuagens reproduzindo um
desenho tribal extremamente complexo em seus braços, que,
Agamenon vira há muito tempo e não sabia o significado.
Alex tomou a frente e apresentou por fim este jovem.
_ E este é Sebastiam Crianom. Pai.
Aquele cujo nome era Timóteo se aproximou da mesa de
Agamenon e com um sotaque inglês bem carregado disse
algumas palavras que inquietaram a mente treinada do pai de
Alex.
Noctívagos
117
_É uma grande satisfação ser apresentado à sua pessoa. Seu
filho é um homem com muito potencial e bem conceituado em
minha família; breve terá grandes responsabilidades no meu
ramo de negócio._ disse estendendo a mão de forma cordial
para um aperto de mão que não foi correspondido. E
continuou_ Como você já deve estar imaginando, fomos nós
que presenteamos seu filho com, digamos, a nova forma de
vida que ele tem hoje.
_ Ou seja, é a vocês que devo agradecer por terem seduzido,
enganado e matado meu filho._ disse secamente encarando de
maneira fria o outro.
Timóteo riu e sentou-se na cadeira à frente de seu anfitrião
mesmo sem ter sido convidado a fazê-lo.
_Seu filho parece morto? Não parece morto pra mim. Pelo
contrário, agora ele pode fazer coisas que nunca poderia antes e
nem você nem nenhum outro homem poderiam conceder o
presente que dei a ele.
_Seu filho é imortal agora._Retrucou Diana de um canto da
sala; ainda sustentando aquele sorriso malicioso.
Agamenon apertou calmamente os olhos com os dedos polegar
e indicador como se quisesse espantar uma dor de cabeça.
Contos Vampíricos
118
_Você chama isso de imortalidade._ disse com desdém_ Eu
digo que conheci mais imortais do que qualquer outra pessoa
da minha geração, e, no entanto, estão todos mortos. Vocês
tornaram meu filho numa aberração do inferno.
Timóteo cruzou as pernas com a clássica elegância britânica e
apoiou o cotovelo direito sobre o descanso para braço da
poltrona, em seguida repousou o queixo sobre o punho direito
fechado.
Enquanto isso Sebastiam mexia na estante apinhada de livros
atrás de todos, junto da porta, sem dar muita atenção às coisas
que estavam sendo ditas na sala.
E agora foi a vez do próprio Alex se manifestar.
_ Não sou uma aberração pai, agora sou um ser perfeito; penso
mais rápido, enxergo mais longe, pressinto acontecimentos,
meu corpo tornou-se praticamente invulnerável, minha audição
se amplificou, posso ouvir pessoas conversando a um
quarteirão de distância. Posso sentir o medo dos mortais. Sinto
tanta força correndo na minha corrente sangüínea que acho que
posso fazer qualquer coisa.
_ E pode._ Afirmou Timóteo bruscamente._ Seu sangue agora
pertence a uma das mais puras linhagens de “noctívagos”_ fez
o sinal das aspas com os dedos das mãos_ que existe; Alex
Noctívagos
119
deixou de ser simplesmente seu filho, deixou de fazer parte de
uma simples família mundana e passou a ser meu filho
também, membro da minha linhagem, sangue do meu sangue
hoje e para sempre. Ele usará o sobrenome que marca nossa
família desde o século XVII.
Aquilo causou um calafrio em Agamenon.
Sebastiam pareceu achar algo interessante nas prateleiras,
retirou um livro com capa dura e antiga; em seguida levou para
Timóteo ver do que se tratava.
_ Vejo que você tem procurado estudar nossa, digamos, raça._
disse Timóteo_ Sabe. Não é algo que esteja documentado em
muitos livros, afinal, quem sabe nossos segredos não costuma
escrever porque são como nós e tudo o que se fala a respeito na
literatura é romanceado demais.
Diana aproximou-se de Alex e o abraçou enquanto Timóteo
falava:
_ Livros como esse que se propõem a falar sobre o que
chamam por aí de “filhos da noite” são apenas uma sucessão de
bobagens, mas se você de fato quiser conhecer nossos segredos
ou saber como ajudar seu filho a partir de agora; eu posso
ajudar, existe um caminho para isso e eu não ofereceria isso a
você se Alex não nos fosse tão especial.
Contos Vampíricos
120
Agamenon se debruçou sobre a mesa, na direção do que antes
falava e surpreendeu Timóteo, pois o encarava profundamente
nos olhos como poucos vivos haviam feito. Embora idoso, ele
demonstrava frieza suficiente para manter seus pensamentos
alinhados frente àquelas “pessoas” que provavelmente
deixariam inquietos muitos tipos de indivíduos por mais
centrados e controlados que fossem.
Agamenon era velho e estava impedido de realizar sua
vocação; as dores físicas o debilitaram acumulando-se em anos
e anos de caçadas noturnas, mas ele ainda era um homem
muito altivo; as criaturas diante dele estavam realmente
impressionadas com a forma como ele estava se portando
diante daquela conversa, principalmente tratando veladamente
de um tema tão obscuro.
_ Eu conheço muitas histórias sobre mortos-vivos, bebedores
de sangue; homens e mulheres que passaram a vagar pela noite;
estudei os mitos nas mais diversas culturas; egípcias, helênica,
africana, hibérica e outras. Tenho uma missão a fazer e
pretendo cumpri-la, é uma pena que meu filho, sangue do meu
sangue, a quem eu preparei para me suceder como caçador de
“seres”_ Vez o sinal das aspas com os dedos das mãos numa
clara demonstração de ironia à forma como Timóteo falava
Noctívagos
121
também usando aquele sinal_ como vocês aqui no Rio de
Janeiro não possa mais fazê-lo. É realmente uma pena que ele
tenha se tornado um de vocês, porque mais cedo ou mais tarde
ele vai ser achado pela luz, pelo fogo ou pelas lâminas de
algum caçador e será destruído; assim como vocês também.
Timóteo, Diana e Sebasteim riram.
Alex se incomodou com as palavras do pai, deixou os braços
afetuosos de Diana e se aproximou da mesa.
_ Você está falando como um louco, Pai!_ Ele bateu com as
mãos sobre a mesa com força numa atitude de raiva_ Nós
somos superiores.
_ Superiores aos homens._ completou Diana.
_Superiores aos anjos._ emendou Sebastiam.
_Somos deuses!_ arrematou Alex.
Tymoti Lane Argaiol se deleitava observando aquela cena; seus
olhos mudando de cor involuntariamente, repousavam fixos
sobre o pai de seu mais novo discípulo.
_ Coloquei seu filho encarregado de um território que, julgo,
você vai gostar. Ele será parte de uma congregação formada
por gente como nós em uma cidade da baixada chamada Nova
Iguaçu; este lugar tomou muita visibilidade na mídia nos
últimos anos, além do que, a regra é: A família que se
Contos Vampíricos
122
estabelecer primeiro tem a primazia sobre o lugar. Seu filho
será o “sacerdote” de nossa religião, o príncipe da cidade e o
juiz de tudo o que ocorre naquela região. Ele terá poder, meu
velho, para governar como bem entender e isso poucos
conseguiram.
Sem resposta alguma Agamenon resumiu toda a sua indignação
em única uma pergunta.
_ O que vocês querem de mim?
Uma aparente felicidade transpareceu na face de todos os
visitantes.
_Seu Tempo está terminando e mesmo contra os preceitos que
temos seguido há séculos, venho lhe oferecer o dom que dei ao
seu filho. Posso perpetuar seus dias, dar força,
invulnerabilidade e todos os privilégios de ser um de nós; tudo
o que o sobrenome Crianom tem para oferecer._ Disse Tymoti.
_ Quero que você torne-se um de nós pai, compartilhe do poder
que há no sangue e viva através dos tempos até que o dia do
julgamento aconteça, se é que você realmente acredita nisso. O
que você tem a perder?_ concluiu Alex.
_Minha alma.
Noctívagos
123
_Pense bem._ observou Timóteo_ O que estamos fazendo aqui
é algo sem precedentes em nossa família, não se convida
pessoas para se tornar como nós.
_Imortalidade? Com o preso de me tornar um escravo da noite,
viciado em sangue, assassino! Seu tolo, já vi anjos, demônios e
toda sorte de coisas que habitam entre o céu e a terra, mas só
um ser tem valor real nesse emaranhado universal; o homem,
mesmo sendo mau e desesperadamente corrupto. Não quero
seu dom, ou devo dizer, maldição, realizarei meus atos até
quando meu corpo agüentar e não me importo de cumprir meus
dias porque o legado de um homem é seu filho e isso eu já não
tenho mais.
_ Mas eu estou bem aqui pai!
_ Mas agora você não é meu filho; é uma abominação. Está
livre para fazer o que bem entender de sua dita imortalidade;
quanto a mim, não aceito seu convite.
Agamenon parou de falar e respirou asperamente como se
aquelas palavras estivessem doendo dentro dele.
Timóteo percebeu aquilo e gostou do som. Em seguida se
levantou da poltrona, não estava contrariado, mas intrigado, em
sua cabeça todas as pessoas desejavam a oportunidade de
vencer a morte ou enganá-la; não era o caso ali.
Contos Vampíricos
124
_Mas pa..._Alex foi interrompido pelo pai tão bruscamente que
perdeu a voz por um momento.
Agamenon disse:
_ Saia dessa casa; você não é e jamais será bem vindo aqui
novamente.
_Pense a respeito _ disse logo que recuperou a voz.
Mas sabia que nunca faria com que aquele homem mudasse de
pensamento, olhou para Timóteo e em seguida para os outros
que saíram sem pronunciar palavra alguma.
As luzes do escritório estavam acesas, e quando a porta bateu
atrás de Sebastiam que foi o último a deixar o cômodo elas
piscaram rapidamente; Agamenon recostou-se em sua poltrona
como se ela fosse um trono; ele estava cansado e qualquer um
que o visse naquele momento de angustia íntima poderia jurar
que ele estava sustentando cem quilos sobre os ombros.
Abriu uma gaveta da mesa que estava em sua frente retirou
uma caixa que continha seus antigos artefatos de trabalho, já
não os usava mais, porém mantinha-os sempre por perto para
lembrar das coisas pelas quais já tinha passado.
Abrindo-a visualizou rapidamente a estaca de metal polido e o
martelo que tantas e tantas vezes já tinham sido usadas no
passado; fechou e guardou tudo rapidamente. Tempos atrás ele
Noctívagos
125
tinha pensado em presentear Alex com aqueles objetos, era
uma tradição familiar que não mais seria observada, seu filho
tinha cruzado uma linha sem retorno e já não podia mais ser
um caçador, pertencia ao outro lado.
Agamenon, por um momento chegou a considerar a proposta
que tinha recebido, mas isso seria trair tudo o que ele já tinha
feito na vida. Não poderia cometer o erro terrível de seu filho
mesmo amando-o.
Infelizmente Alex agora era só semelhante a um homem, breve
ele começaria a fazer exatamente o que se esperava de
monstros como eles; e mesmo assim Agamenon não teria
coragem de eliminá-lo. Teria que torcer para que outro o
fizesse, porque era melhor morrer do que existir preso a uma
quase-vida amaldiçoada.
Se levantou e foi ao interruptor na parede e desligou as luzes;
rejeitou o convite que o levaria para uma vida no meio da
escuridão, mas curiosamente naquele momento ele preferiu
ficar sentado e isolado com ela.
***
Contos Vampíricos
126
Morlock
A água fedia tanto que em outros tempos ele poderia até
mesmo vomitar caso simplesmente chegasse perto de um
esgoto como aquele.
Os lixos flutuavam sobre a superfície escura e espessa das
águas que vinham dos encanamentos de esgotos sanitários e
caixas de gordura de muitos pontos da cidade trazendo todo o
tipo de detritos; desde dejetos humanos, passando por lixo
doméstico como cascas de frutas, legumes e verduras; pacotes
e caixas de comidas e guloseimas infantis, tais como biscoitos,
e doces variados, até papéis, tecidos, garrafas pet, sacos de
mercado vazios ou cheios de lixo, pedaços de móveis
destruídos e como se não bastasse tudo aquilo, ainda tinha os
retos apodrecidos de animais.
Muitas pessoas costumam jogar seus animais domésticos
mortos, devidamente ensacados, como se o saco envolvendo o
corpo do animal fosse algum tipo de substância capaz de dar
sumiço ao cadáver. Jogavam seus bichos em valas ou esgotos;
outros eram abandonados nas ruas e com as chuvas e as
enchentes produzidas por elas eram trazidos para os
Noctívagos
127
encanamentos e galerias subterrâneas onde Ciro vivia já fazia
muito tempo.
Ciro se ergueu do meio das águas fétidas como se fosse um
morto retornando à vida, o que em parte era verdade. A galeria
de esgoto estava completamente às escuras, não havia nenhuma
réstia de luz que pudesse penetrar naquele lugar e era por esse
motivo que Ciro preferia viver ali.
A galeria era bem abaixo da rua, localizada num pondo longe
dos bueiros e bocas-de-lobo ou de qualquer tipo de saída para a
superfície, porém o local era constantemente inundado e
recebia todos os restos de tudo que a humanidade poderia
produzir na cidade acima.
A escuridão não era um problema para Ciro, já estava tão
acostumado com aquilo que enxergava tão perfeitamente como
se o ambiente estivesse iluminado; seus olhos eram adaptados
para as sombras e por isso ele quase não subia à superfície
porque só podia fazer isso durante a noite e mesmo assim os
letreiros luminosos, as luzes dos postes de iluminação, faróis
dos carros e toda e qualquer fonte luminosa o incomodava
muitíssimo. Seus olhos doíam tanto que quase não conseguia
mantê-los abertos quando num ambiente claro por mais tênue
que essa claridade fosse; e também por esse motivo,
Contos Vampíricos
128
principalmente, ele ficava dias, semanas, às vezes meses sem
sair de sua toca sombria e úmida. Preferia assim, mas havia
somente uma coisa capaz de fazer com que ele abandonasse
seu buraco lúgubre. A fome.
A fome era algo tão violento que por si só já era o suficiente
para lhe roubar a sanidade que ainda tinha restado desde que
passara a viver como uma espécie de demônio, condenado
àquele tipo de existência sem sentido e torturante. Quando Ciro
era acometido por aquele sentimento profano, não tinha
escolha a não ser deixar seu buraco apodrecido e subir à
superfície a fim de conseguir aplacar a vontade de ingerir
alimento. Fazia muito tempo que ele já não se considerava
mais uma pessoa, sabia que não era humano e nem se parecia
mais com um.
A força da fome o transtornava e a única saída era solver uma
vida por inteiro para que seu espírito e, por que não dizer, sua
carne doente se aquietassem. Ele já estava acostumado, mas
detestava ser dominado por tal animalismo, por isso preferia
aguardar o máximo que pudesse antes de subir para consumir
alguém, afinal, era extremamente complicado achar uma
pessoa que estivesse em condição de ser atacada sem deixar
vestígios. Desse modo ele saía apenas quando já começava a
Noctívagos
129
sentir os efeitos iniciais da devastadora fome, mas antes que ela
tomasse o controle absoluto.
Ciro nunca soube exatamente como sua vida tinha decaído até
aquele patamar terrível; dez anos antes, quando ele acordou
num bueiro não tinha certeza de como fora parar lá. A única
lembrança que ainda tem de antes daquela noite foi um
acidente com seu carro numa noite chuvosa. Ele lembrava de
ter derrapado, perdido a traseira e a direção do veículo, e sem
conseguir recuperar o controle do automóvel foi parar dentro
de um canal; lembra de ter quase se afogado, estava bêbado e
drogado; mas foi retirado de dentro do automóvel por alguém
que ele não viu; apenas sentiu ser puxado com muita violência.
Nesse processo fraturou vários ossos, e a dor foi o suficiente
para fazer com que perdesse os sentidos, provavelmente ele
não sobrevivesse aos ferimentos se uma coisa não acontecesse.
Uma coisa que ele ignora até hoje em dia, mas que já não faz
assim tanta diferença; aparentemente Ciro morreu dias depois e
o que restou foi uma espécie de simulacro malévolo no lugar.
Ele sentia como se ainda estivesse vivo, pensava como se ainda
estivesse vivo, dormia como se ainda estivesse vivo e até
sonhava como um vivo, mas sabia que já não estava totalmente
Contos Vampíricos
130
vivo. Ciro não conseguia chorar, nem uma gota sequer, já tinha
tentado, mas aparentemente era impossível.
Ao acordar algum tempo depois do acidente ele já não se sentia
o mesmo; seu pescoço estava dilacerado, assim como seus
pulsos; havia marcas e cortes por todo o corpo, mas não havia
sangue algum sendo vertido ou nas proximidades; sua pele
antes morena e rígida estava esbranquiçada e flácida ao
extremo; seus cabelos negros e volumosos resumiam-se a
pequenos tufos desgrenhados, tinha perdido quase toda a vasta
cabeleira; e seus olhos castanhos estavam sem cílios e sem
coloração alguma, mas aquilo não era tudo. O pior ainda estava
por vir.
Ele pensou que fosse morrer, mas ao invés disso o que ocorreu
foi uma bizarra metamorfose que o tornou uma espécie de
morto-vivo. Certa vez ao subir à superfície para conseguir
alimento Ciro vagou pelas ruas durante a madrugada em busca
de um homem ou uma mulher que pudesse atacar, mas antes
que isso acontecesse ele se viu refletido numa janela de um
automóvel e a visão foi tão aterradora; o monstro no qual havia
se transformado era tão infernal que a única reação foi uma
explosão de ira que culminou com a destruição de todos os
vidros e espelhos do carro. Naquele momento Ciro decidiu
Noctívagos
131
nunca mais se olhar novamente em qualquer vidro ou espelho
que fosse, parte por medo de ver que a cada vez estava se
transformando numa besta mais e mais hedionda e parte porque
aquilo desencadeava nele uma fúria tão terrível quanto a fome
que o tentava controlar.
Ciro se tornou um ser tão horripilante que uma simples olhada
para sua imagem seria o suficiente para inutilizar uma pessoa
comum. Foi nesse momento que ele se lembrou de um livro
que tinha lido quando ainda era uma pessoa comum em seus
áureos anos de vida na superfície, antes dos vícios, antes das
loucuras e orgias, antes do acidente na noite chuvosa que foi o
crepúsculo de sua vida. O livro escrito pelo britânico Herbert
George Wells chama-se “A máquina do tempo”.
No livro, uma raça de seres monstruosos, repulsivos e canibais
habitava os subterrâneos num futuro distante, se alimentando
de pessoas, exatamente como Ciro estava condenado a fazer.
Atualmente ele era apenas uma sombra, uma forma decadente
do que antes fora um ser humano; uma prova de que o caos
poderia reivindicar vidas alheias aleatoriamente para fazer o
que bem entendesse; um lembrete de que um mal insano
caminhava sobre a terra recrutando e arrebatando almas para
suas fileiras ou para seus bestiários particulares.
Contos Vampíricos
132
Seu corpo agora era coberto de feridas não curadas ou
cicatrizadas, seus dentes agora eram presas enormes e
pontudas, o hálito era tão terrível quanto o fedor do esgoto no
qual vivia, suas unhas eram prolongações afiadas de dedos
alongados e esqueléticos, e, tudo aquilo ainda podia piorar.
Ele estava sentindo aquela pontada de dor que caso não fosse
saciada explodiria na fome compulsiva que era cada vez mais
arrebatadora; não podia permitir que isso acontecesse, pois era
muito difícil retomar o controle depois. Da última vez tinha
demorado um dia inteiro.
Ergueu-se no meio do esgoto e caminhou pela escuridão por
entre o emaranhado de galerias e túneis abaixo das ruas, como
se fosse apenas um vulto errante; tomou o cuidado de evitar
túneis abaixo de ruas muito movimentadas onde as tampas de
bueiro pudessem ser facilmente abertas. Ele já sabia como se
movimentar abaixo da cidade, evitava várias galerias e cortava
caminho por outras, nos quase dez anos se movendo sob a as
ruas e avenidas, atacando pessoas desavisadas ele tinha criado
uma espécie de mapa mental de toda a cidade e conseguia se
localizar tão bem como se tivesse uma bússola.
Quando se aproximou da rua conseguiu ouvir os sons
característicos do trânsito lá encima, os túneis mais largos
Noctívagos
133
tinham ficado para trás, ele rastejava por manilhas apinhadas
de sujeira, lodo e lama; sabia muito bem aonde aquele caminho
ia levar. Sua respiração estava ofegante e por fim achou o lugar
de saída.
Uma tampa de ferro batido em forma arredondada, enferrujada
por baixo e que tinha sobre ela a inscrição “águas pluviais” na
parte de cima; ela era a única numa pequena rua sem saída e
sem iluminação também, parte das luzes dos postes tinham sido
destruídas por vândalos e a outra parte simplesmente não
funcionava, descaso. Pouco importava, a única coisa certa era
que aquele descaso custaria o sangue de alguém.
Ciro levantou a tampa sem fazer esforço, ignorando o peso que
necessitava de dois homens para removê-la, olhou ao redor,
não havia ninguém. Se arrastou para fora do bueiro como uma
anomalia que a terra estivesse regurgitando de suas entranhas,
um fantasma que logo desapareceria e com ele uma vida
inocente, se é que isso existia.
Não demoraria muito para que alguém desavisado cruzasse o
seu caminho e se arrependesse para sempre; Ciro saiu em busca
da vítima daquela noite; ficou em posição de alerta e ataque.
Ao longe vinha alguém. Pobre pessoa, a vítima jamais poderia
Contos Vampíricos
134
imaginar que naquela noite teria um encontro marcado com a
pior criatura que podia existir.
***
Noctívagos
135
Incúbo
A sombra escorregou sorrateiramente para dentro do quarto do
casal, a janela era deixada apenas encostada durante toda a
noite e havia uma fresta considerável na junção das armações
de alumínio. Eles moravam num apartamento no décimo andar
do prédio e todos os sons da rua e da madrugada ficavam muito
abaixo, não se preocupavam em fechar a janela totalmente; o
bairro era muito tranquilo, portanto também não havia nenhum
cuidado com relação a invasões domésticas, sobretudo naquele
andar.
O prédio não possuía nenhum modo de ser escalado pelo lado
de fora e as janelas eram muito espaçadas entre si não dando a
possibilidade de alguém alcançar qualquer janela a partir de
outra, mais baixa, e assim subir gradativamente pelos andares.
Além disso, possuíam proteção de metal em forma de grades
do lado externo, o que praticamente eliminava a possibilidade
tanto de quedas e acidentes com crianças quanto de invasão de
qualquer pessoa. Ao menos de humanos.
O quarto estava às escuras e sobre a cama de casal dormiam
marido e esposa de forma desleixada sob os lençóis. A sombra
tomou forma num canto e ficou ali parada olhando ao redor
Contos Vampíricos
136
como um pesadelo que escapou de algum sono violentamente
atormentado. Ele averiguou todo o lugar, a escuridão não era
problema para ele, via perfeitamente tudo nos mínimos
detalhes, muito embora qualquer pessoa que se deparasse com
aquilo parado no canto do quarto diria que a criatura não tinha
olhos na face. Possuía a forma humana, mas apenas os
contornos; era um simulacro sem olhos, sem boca, sem
cabelos, sem rosto e sem qualquer característica humana mais
específica; mas ainda assim com a forma de uma pessoa;
cabeça, tronco e membros.
A criatura preferia aquela forma porque no passado era assim
que ele vivia antes de se recolher completamente e se isolar em
regiões inferiores. Por muito tempo ele viveu no meio das
pessoas, dos humanos, dos mortais, mas depois de muitas
décadas, o sangue parecia já não ter mais o mesmo gosto e
também não transmitia mais a capacidade de sustentá-lo.
O marido se virou na cama e fez um barulho enquanto dormia,
em seguida tossiu como se estivesse engasgado, depois voltou
ao estado de antes, dormindo tranquilamente. Ele estava
usando um short, sem camisa e usava meias também.
A criatura olhou rapidamente para o homem sobre a cama
tentando adivinhar o que ele estaria sonhando, mas
Noctívagos
137
rapidamente se concentrou no motivo de sua visita ali. A
mulher.
Ela havia se desvencilhado dos lençóis e usava uma camisola
branca e leve que deixava as longas e belas pernas descobertas;
devia estar calor, a criatura jamais sentiu a temperatura do
ambiente. Aquilo parado ali num canto do quarto via
claramente as formas suaves e sinuosas do corpo da mulher
sobre a cama e já quase podia sentir todas as vibrações que
aquele corpo quente emanava; a respiração dela estava tão
calma quanto de uma criança, o corpo corado, o sangue
correndo nas veias e artérias era algo que em outros tempos
seria o suficiente para fazê-lo procurar rapidamente pela
jugular dela, mas não agora.
Provavelmente os sonhos nos quais a mulher estava
mergulhada fossem algo muito pacífico, mas aquilo estava
prestes a mudar.
Vagarosamente a sombra abandonou seu canto e caminhou
pelo cômodo, não fazia o menor barulho, parecia flutuar, seus
pés quase etéreos tocavam o chão, mas não exerciam pressão
alguma sobre o piso acarpetado do quarto. Ao lado da cama
havia um pequeno móvel sobre o qual estavam um copo
d’água, um livro e uns óculos. O monstro obscuro olhou
Contos Vampíricos
138
rapidamente para tudo aquilo e voltou novamente o foco para a
mulher. Ela se moveu levemente, estremecida, como que
percorrida por um calafrio.
O vulto se aproximou com todo o cuidado, inclinou-se e
observou o rosto da mulher bem de perto, sentiu a respiração
pausada saindo pelas narinas da vítima adormecida. Ela tinha
cabelos longos, negros e bem escovados, talvez tivesse perdido
tempo antes de dormir escovando os longos cabelos, e estavam
soltos, o que era um pouco diferente do comum. O rosto fino e
de feições quase bem definidas, nariz afilado e lábios delicados
e rosados. Um corpo esbelto, longo e belo, com curvas
harmoniosas, parcialmente escondidas por baixo das poucas
roupas.
Se ela abrisse os olhos naquele momento ia se deparar com
uma enorme mancha sombria sem face inclinada sobre si, mas
ela não abriu os olhos, continuava entregue ao merecido sono,
mas breve teria uma experiência deliciosamente tenebrosa.
A criatura sentou-se sobre a cama bem ao lado da mulher
adormecida; a cama não se incomodou e nem apresentou ruído
algum, afinal, o espectro parecia não ter massa corporal ou
peso, embora mantivesse um formato humanóide todo o tempo.
Era apenas como um fantasma escuro.
Noctívagos
139
No teto do quarto girava um ventilador de três pás e o vento
produzido por ele, embora fraco, soprava devagar todos os
tecidos finos sobre a cama, desde os lençóis até partes da
camisola dela. A criatura fixou o olhar novamente na
vestimenta da mulher, mas não era a camisola que ele olhava e
sim o que estava além dela, a roupa branca praticamente
deixava visível o tecido que a mulher usava por baixo.
O vulto estendeu a mão que deixou um rastro de nevoa escura
no ar e tocou a testa da vítima devagar, em seguida apoiou toda
a palma da mão e sentiu. O corpo estava maravilhosamente
quente. O espectro deixou a mão correr pela cabeça dela,
deslizando e alisando calmamente os cabelos da mulher que
não respondeu. Permaneceu dormindo com a face voltada para
o lado do marido, assim era melhor por enquanto.
A mão escorregou para o rosto belo e fino, sem maquiagem,
depois de alguns minutos; tocou os olhos fechados, o nariz, as
bochechas, os lábios, o queixo e um ponto atrás da orelha. Ela
respondeu pela primeira vez; ressonou, seus lábios se abriram e
deixaram escapar a respiração, mas era uma respiração um
pouco mais intensa.
O fantasma desceu a mão para o pescoço longo e frágil que
ostentava um pequeno cordão de prata fino com diminuto
Contos Vampíricos
140
pendente praticamente repousando para o lado. Continuava
vidrado na beleza dela e percebeu quase que instantaneamente
quando a viu que aquele corpo era repleto de energia, libido e
volúpia. Ela era perfeita e ele acariciava a pele aveludada com
uma delicadeza quase sobrenatural a fim de provocar nela a
excitação de que necessitava.
Tempos atrás ele faria tudo ao seu alcance para colocar suas
presas num pescoço como aquele; tão frágil e ao mesmo tempo
tão cheio de vida, mas agora tudo era diferente e havia
descoberto algo muito melhor do que o sangue, algo que o
libertou do vício e revelou o que realmente importava; a
criatura agora buscava e se alimentava de uma coisa muito
mais poderosa, muito mais pujante; ele se alimentava de prazer
puro, e, para isso tinha que incitar suas vítimas a um grau de
excitação capaz de provocar violentas sensações venéreas. Era
fácil perceber que aquela mulher possuía um grande potencial
de sensualidade.
Preferia invariavelmente mulheres e sempre enquanto
dormiam; nunca acordadas, porque assim as defesas delas
estavam tão baixas que era extremamente fácil ludibriá-las e
fazer com que se entregassem por vontade própria o que
tornava o ato mais natural e muito mais vigoroso, gerando
Noctívagos
141
muito mais prazer e alimentando-o muito mais. Dessa forma
não precisava visitar várias mulheres numa noite, uma bastava.
O desejo também era de uma importância vital, portanto a
sombra violava primeiro a mente da vítima, infiltrava-se nas
regiões oníricas e lá seduzia antes de atacar; criava uma
fantasia de acordo com o que a vítima desejava de modo que a
induzia a se entregar completamente em sonho, sem pudor ou
barreira alguma. A vítima nunca sabia que estaria também se
entregando fisicamente. O fantasma percebia e assumia a forma
que mais fosse atraente para as vítimas, a forma que mais
provocasse desejo ardente nelas; desejos lascivos. Era muito
simples, o sono entorpece a razão das pessoas e todas se abrem,
revelam tudo nos sonhos; suas vontades, preferências, desejos,
frustrações e absolutamente tudo o que a razão por motivos de
segurança mantém escondido ou controlado.
Nos sonhos as pessoas podiam fazer tudo o que não deviam
fazer fora dele. Até se entregar a desejos ardentes ou proibidos
nos braços de um homem viril e atraente, no caso das
mulheres, sem ter que conviver com qualquer culpa por tais
atos. Em sonho elas podiam usufruir do prazer da relação
repetidas vezes de uma forma tão intensa quanto a real, e era
Contos Vampíricos
142
isso o que o espectro usaria para exaurir a vítima quase
absolutamente.
A criatura tocou os ombros da mulher e acariciou por alguns
segundos enquanto via claramente o que ela desejava; que tipo
de homem a atraía e em que tipo de situação seria mais fácil se
entregar a um estranho. Depois, passou a induzir o sonho da
vítima com aquilo que tinha percebido.
Se naquele momento a mulher tentasse acordar, não seria mais
capaz, estaria presa como num pesadelo, mas raramente
alguma vítima desejava acordar depois de sentir os primeiros
toques do vulto; além do mais, as sensações produzidas por ele
eram tão reais, tão gostosas e tão profundas que quando
terminava, caso a vítima não tivesse sido completamente
exaurida, elas costumavam desejar que acontecesse novamente,
e aquele desejo trazia a assombração de volta noites seguidas
até que a mulher começasse a enfraquecer e sucumbir.
O Monstro começou a sentir o desejo aumentando dentro da
mulher deitada; ela virou-se e arqueou o corpo
momentaneamente, o rosto outrora voltado para o marido agora
estava virado na direção da criatura. A respiração dela estava
mais rápida acompanhando o que estava acontecendo em seus
sonhos. Estava chegando à hora.
Noctívagos
143
Ela ofegou, umedeceu os lábios com uma língua vagarosa e
silenciosa, em seguida mordeu levemente o lábio inferior,
passou a mão pelo rosto sem abrir os olhos; já estava
completamente seduzida pela fantasia lúbrica da sombra.
A criatura já sentia todo aquele desejo luxurioso sendo
produzido pelo corpo da mulher, os sintomas físicos estavam
surgindo; as mãos nebulosas da criatura desceram rapidamente
dos ombros para o ventre dela novamente deixando um rastro
tênue de névoa obscura no trajeto. A mulher respondeu com
um gemido baixo; a vítima abriu a boca num grito mudo, a
respiração se alterou ainda mais, ficou ainda mais rápida.
Mentalmente eles já estavam ligados; naquele momento a
mulher estava se entregando à outra face da criatura, a face
onírica do monstro devorador de libido, como se o fantasma
sombrio usasse parte de sua consciência para violar o sonho da
vítima enquanto sua forma espectral fazia o mesmo com o
corpo dela. O ato já havia começado.
As longas e belas pernas se moviam e esfregavam os pés um no
outro, a cabeça também virava de um lado para outro,
lentamente; os cabelos longos estavam espalhados pelo
travesseiro.
Contos Vampíricos
144
A sombra levantou-se no quarto escuro; a indefesa adormecida
segurava os lençóis inconscientemente sem saber que aquilo
que estava acontecendo no seu sonho era produzido por uma
criatura ominosa presente no quarto de sua casa; tampouco
sabia que quanto mais prazerosas as sensações fossem, mais
drenariam de sua própria vitalidade, o demônio sugaria tanto a
libido quanto tudo o que pudesse da vítima e ela ficaria cada
vez mais fragilizada; não sentiria nada de imediato porque a
luxúria esconderia os sinais, mas quando acordasse seria
vitimada por uma fadiga quase incurável. Muitas mulheres não
resistiam e com uma única noite de relacionamento com a
criatura desfaleciam sem nem saber o que aconteceu.
Aquela, entretanto, era tão poderosamente cheia de vida, de
desejo, de lascívia e de prazer que certamente a sombra
retornaria outras noites para ter novas fantasias e relações com
ela. E, Assim drenar toda a sua vida dia após dia.
Pouco a pouco aquela mulher perderia seu brilho, murcharia
como uma flor perdendo a vida e era hora de fazer com o corpo
dela o que no sonho já estava ocorrendo.
Finalmente o espectro que estava parado ao lado da cama, a
sombra funesta, se deitou cuidadosamente sobre a vítima que o
recebeu calidamente, transbordando de desejo, sem saber que
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ao ser violada estaria entregando muito mais do que apenas o
corpo.
***
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