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NORMAL E PATOLÓGICO Octavio Domont de Serpa Jr. Professor Adjunto do IPUB/UFRJ

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NORMAL E PATOLÓGICO

Octavio Domont de Serpa Jr.Professor Adjunto do IPUB/UFRJ

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“A existência começa a se descozer. Com a fascinação da criança que desfaz a malha puxando o seu fio, que vê os seus castelos de areia se apagarem sob o ataque das ondas do mar; com esta fascinação e passividade, eu vejo a minha vida prévia desaparecer sob a lâminas poderosas de um corpo enlouquecido”

(Marin, Hors de moi, 2009, p.16)

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O Normal e o Patológico – Georges Canguilhem (1943)

Medicina:

“...uma técnica ou uma arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita (...) uma técnica de instauração e restauração do normal, que não pode ser reduzida ao simples conhecimento.”

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Normal e Patológico Concepção ontológica e concepção

dinâmica da Saúde/Doença Concepção quantitativa/concepção

qualitativa

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Concepção quantitativa de doença :

- Broussais e a “irritabilidade”

- Claude Bernard : “toda doença tem uma função normal correspondente da qual e apenas a expressão perturbada, exagerada, diminuída, anulada.

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Normal e Patológico : fato ou valor?

Patológico : conceito idêntico ao de anormal?

Patológico : contrário ou contraditório de normal?

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Illness: experiência humana dos

sintomas e do sofrimento; como o doente, os membros de sua família ou sua rede social mais ampla percebem, convivem e respondem aos sintomas e incapacidade; experiência vivida de monitoramento de processos corporais

Disease: o que o clínico produz

processando as queixas em termos técnicos; é o problema vista da perspectiva do clínico; em termos do modelo biomédico trata-se de uma alteração da estrutura ou do funcionamento biológico

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“Não existe nome para esta dor. Os nomes das doenças não refletem os tormentos que elas infligem. Eles só exprimem as fantasias dos médicos, talvez os seus medos obscuros, o seu orgulho de descobridores. Eles pensam que assim fazem o seu trabalho. Mas a doença nos possui. Nomeá-la, compreendê-la, só nos oferece um poder ilusório sobre ela”

(Marin, op.cit, pp.21-22)

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Saúde : a vida no silêncio dos órgãos

Não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência

A medicina existe porque há homens que se sentem doentes e não porque há médicos que os informam de suas doenças

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“Eu não me identifico mais com a minha imagem

refletida no espelho. As transformações físicas

são rápidas demais para que o esquema corporal

interior se adapte a elas. A memória conserva

piedosamente a relíquia daquela que eu era. Ela

se aproveita para idealizá-la e torna ainda mais

cruel a comparação”(Marin, op.cit., p.23)

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É possível/desejável reduzir a

diferença entre saudável e doente a

uma diferença quantitativa?

obedecer ao espírito das ciências

físicas, que só podem explicar os

fenômenos por sua redução a uma

medida comum

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Doença : julgamento de valor virtual

(valor negativo)

Normal : valor e fato - equivoco facilitado

pela tradição realista, pela qual toda

generalidade indica uma essência, um

caráter comum adquire valor de tipo ideal

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“A diferença de valor que o ser vivo estabelece entre a sua vida normal e a sua vida patológica seria uma aparência ilusória que o cientista deveria negar?”

“...fato patológico só pode ser apreendido enquanto tal ao nível da totalidade orgânica; e, em se tratando de organismos humanos, ao nível da totalidade individual consciente(...) Ser doente é, para o homem, viver uma vida diferente, mesmo no sentido biológico”

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“Podem me colocar em uma tabela de estatísticas, me converter em números, me oferecer uma previsão em percentagem, pouco importa. Podem traçar toda cadeia causal que se desenrola desde que a doença tomou conta de mim, ainda assim se passa ao largo da pergunta principal: por que eu estou doente?”

(Marin, op.cit., pp.66-67)

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Normal : assim considerado porque visado como fim pela terapêutica ou visado como fim pela terapêutica porque considerado normal pelo doente?

Nenhum ser vivo teria desenvolvido uma técnica medica se nele a vida fosse indiferente as condições em que se encontra

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A vida que faz do normal biológico um conceito de valor e não um conceito estatístico

“...a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível...a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor...a vida é, de fato, uma atividade normativa

Patológico deriva de pathos: afecção, “...sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada.”

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Um traço humano seria normal porque freqüente ou seria freqüente porque normal?

Média: equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de normal ou de norma?

Como decidir, só com base em procedimentos estatísticos, dentro de que intervalos de variação com relação à uma posição média teórica os indivíduos ainda podem ser considerados normais?

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É a atividade normativa biológica dos organismos que avalia e prefere certos estados e comportamentos com referência a determinados meios e por isso os escolhe, tornando-os mais freqüentesAs médias fisiológicas não registram objetivamente o normal tal como ele é, sempre foi e sempre será. O que elas registram são as “latitudes funcionais” conquistadas pela espécie humana.

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“A fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para diversos indivíduos considerados simultaneamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo considerado sucessivamente. Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas situações, pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O indivíduo é que avalia essa transformação porque ele é que sofre suas conseqüências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação lhe impõe.”

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Normatividade Biológica : normas sãs e normas patológicas

anormal patológico

homem normal : homem normativo

Patológico : não se trata de ausência de normas mas de norma diferente, repelida pela vida

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K.Goldstein (1878-1965)

inicialmente seguidor de Wernicke, em Breslau.

Critica a correspondência entre sintoma e localização de função → vários mecanismos convergem para a formação do sintoma

Sintomas: respostas do organismo como um todo às solicitações do ambiente.

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““Esta espécie de composição que ocorre entre o organismo e o mundo ambiente é o que nós chamamos da lei biológica fundamental(...) a mesma mudança exterior, o “mesmo estímulo”, pode agir de modos muito diferentes” (Goldstein, 1934[1983], p.96)

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“Os sintomas são respostas que o organismo dá a

certas questões bem determinadas que lhe são

colocadas” (Goldstein, 1934[1983], p.18)

“...sintomas nada mais são do que respostas dadas à

certas questões especiais feitas pelo examinador. E

estas questões não são fortuitas pois dependem das

idéias teóricas fundamentais do examinador no que

concerne ao fenômeno por ele examinado.”

(Goldstein, op.cit, pp.18-19, grifo do autor)

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“Pode-se dizer que o ambiente é extraído do mundo pela existência do organismo, (...) que um organismo só pode existir se ele consegue encontrar, se ele consegue talhar, no mundo, um ambiente adequado” (Goldstein, op.cit., p.76).

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Jakob von Uexküll (1864-1944) → Umwelt

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Doença: não mais uma situação de privação, de falta de um atributo ou capacidade que faz do doente um ser diminuído. O doente é um ser modificado em sua individualidade que mesmo quando é capaz de chegar aos mesmos desempenhos de que era capaz antes da doença agora o faz percorrendo caminhos diferentes dos anteriores

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Doença: Primeiro momento imperativo de criação:

ao doente é exigido o estabelecimento de novas

normas que permitam a continuidade da vida

Doença: Segundo momento imperativo de

conservação: o doente só é normativo se a norma

permanecer a mesma, tornando-se vulnerável às

modificações do meio

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“O discurso da doença é quase sempre negativo, discurso da restrição e da renúncia. Ele lembra o que não podemos fazer. Código da vida, revisto e empobrecido. (…) Mas a doença também desperta uma sensibilidade que estava adormecida.(…) Ela introduz um novo ritmo. Não, como poderíamos crer, o ritmo lento daqueles cujos corpos são freados pelas dores. Ao contrário, ela acelera a existência. (…) A doença exalta e excita. (…) Ela

nos mergulha no vivo da vida, na sua desmedida…” (Marin, op.cit., pp.9-10)

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Saúde: margem de tolerância às infidelidades do meio

“...limitar os esforços e os riscos mata pouco a pouco as esperanças. A gente se fecha em uma existência na qual nada mais nos motiva, nos excita, na qual nada mais nos mantem vivos. Uma existência morna, repetitiva, enevoada(...)”

(Marin, op.cit., p.18)

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Inversão do senso comum, que atribui à saúde uma posição fixa e definida dentro de certos limites fisiológicos e à doença uma indefinição quanto aqueles marcos de funcionamento no corpoCura: restauração de normatividade? Retorno ao estado anterior?

“Aprender a curar é aprender a conhecer a contradição entre a esperança de um dia e o fracasso no fim. Sem dizer não à esperança de um dia. Inteligência ou simplicidade?”

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“Pode-se praticar objetivamente, isto é, imparcialmente, uma pesquisa cujo objeto não pode ser concebido e construído sem referência a uma qualificação positiva e negativa; cujo objeto, portanto, não é tanto um fato mas, sobretudo, um valor.”

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Values-Based Medicine (VBM) – Fulford (2003/2006)

EBM é uma resposta para a crescente complexidade dos fatos relevantes; VBM é a resposta para a crescente complexidade dos valores relevantes.

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Foucault e o Biopoder

Dois pólos de desenvolvimento no exercício de poder sobre a vida:

Disciplinas: anátomo-política do corpo humano;

Intervenções e controles reguladores: biopolítica da população;

Sociedade de normalização: não é uma sociedade disciplinar generalizada mas uma sociedade na qual se cruzam e se articulam a norma da disciplina e a norma da regulação

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“Os progressos da medicina poderão muito bem fazer desaparecer a doença mental, como a lepra e a tuberculose; mas uma coisa permanecerá, que é a relação do homem com os seus fantasmas, com o seu impossível , com a sua dor sem corpo, com a sua carcaça de noite; ... O patológico, uma vez colocado fora de circulação, o sombrio pertencimento do homem à loucura será a memória sem idade de um mal apagado na sua forma de doença [maladie] mas se obstinando como infelicidade [malheur]. Na verdade, esta idéia supõe inalterável o que sem dúvida é o mais precário, muito mais precário do que as constâncias do patológico: a relação de uma cultura com aquilo mesmo que ela exclui, e, mais precisamente, a relação da nossa com esta verdade de si mesmo, longínqua e invertida, que ela descobre e recobre na loucura.” (Foucault, 1994)