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NUVENS DE ICEBERG DE JÔ BILAC

NUVENS DE ICEBERG - Cultura.rj · futuro, quando eu lembrar de você, será como buscar em mim uma sombra trêmula que no primeiro feixe de luz, se desfez, assim como tudo o que havia

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NUVENS DE ICEBERG

DE JÔ BILAC

Sequência de cenas em pontos diferentes da cidade

(Drive in. Um beijo escandaloso interrompido. confessa)

Elisa: Queria trocar uma palavra contigo.

Mariano: (ainda tonto de desejo) Daqui a pouco, vem cá vem. (avança no beijo)

Elisa: (afastando-o) Daqui a pouco não. (firme) Agora.

Mariano: (sacana) Então fala, fala aqui no meu ouvidinho, fala…

Elisa: É sério.

(Mariano suspira fundo e busca controle. Arruma os cabelos. Som do filme ao fundo. )

Mariano: Olha, Se for pra falar do concurso...

Elisa: (por cima) Eu so quero saber...

Mariano: (numa careta) Cismou!

Elisa: Não é cisma, é precaução.

Mariano: Pra mim, ta parecendo exigência.

Elisa: Não era hoje que saia o resultado da Justiça Federal? Fiquei nessa duvida...

Mariano: Voce quer falar disso agora, Elisa?

Elisa: (maravilhada) Já pensou: Você, na Justiça Federal! Poxa, Mariano...

Mariano: É só nisso que você pensa, né? ( caricatural) Na Justiça Federal!

Elisa: É que eu morro de medo.

Mariano: Mas a gente não combinou?

Elisa: Combinou sim, eu sei, mas até quando, Mariano? Até quando eu vou ter que esperar?

Mariano: A gente pode casar agora.

Elisa:Minha pensão pode ser pouca, mas é garantida. De fome não morro. Casando: o governo corta e ai? Fico como? Como ‘e que faz pra viver? Voce desempregado, eu pagando aluguel, Me diz Mariano, o que que faz? Arruma espaço aonde? (suspira saturada. Som do filme ao fundo. Os dois sem se olhar, em silencio por um tempo. Elisa, abstrata) nascer pobre ‘e sina, casar com um mais pobre que você ‘e burrice! Eu quero ter filho... mas tem filho como? Como faz? Custa muito... e não para... e so aumenta... e tem o imprevisível, seja por saúde ou por delinquência... Se eu tiver um delinquente como filho? ‘e mais caro. E se for menina, mais caro ainda. Porque a sociedade cobra. E quem paga? Filho ‘e pior que aluguel. (devaneia) Hoje de manha eu vi uma mendiga gravida tomando um resto de sorvete do bobs de alguém que ela achou no lixo... tinha uma guimba de cigarro, ela catou do sorvete, jogou pro pombo... a mendiga gravida me deixou tao... a criança dentro da mendiga me deixou tao... quase fui abatida por um ônibus. Dai a ficha caiu, sabe? Girei a chave... a vida tem sim suas prioridades e eu quero dar espaço pra elas.

Mariano: Então faz você um concurso público. Vai ter uma renda segura, não e isso que você quer...

Elisa: Eu quero um parceiro, não quero vagabundo.

Mariano: Que isso, Elisa? Voce sabe que não ta fácil pra ninguém.

Elisa: Não ta fácil. (dura, sincera) Pois ‘e. Era isso. Inclusive, que eu tava querendo falar com você... Olha Mariano, sei não, ‘e que... ta puxado, eu sei que todo mundo tem seus motivos e tal, eu sei que ta todo mundo matando cachorro a grito e achando que ‘e isso a coisa mais normal do mundo e tal... mas olha, comigo tem essa não. Desculpa. Nem adianta. To sendo logo sincera. Prefiro. Entendeu? Pra depois não ficar... Entendeu? To sendo honesta. A gente já ta junto um tempo bom, já deu pra entender, tudo lindo, maravilhoso, mas e ai? Ne...vai pra onde...? tem que pensar no futuro ne, Mariano. Esse negocio de viver so de agora, do hoje, gozar toda

hora, não da... tem que se planejar... Eu tava, inclusive, lendo um artigo esse dias, que falava disso... No futuro vao ser mais de não sei quantos mil idosos, todos pobres, beirando a miséria, porque ninguém se planeja. Voce paga previdência? Voce vai se aposentar com quantos anos? Recebendo quanto? Já fez as contas? Quem vai pagar? Olha, eu sei que to parecendo meio escrota,

Mariano: Ta mesmo.

Elisa: Eu sei, mas olha, olha pra mim... eu te amo... de verdade. mas ‘e que... eu não quero ir pra fila do posto de saúde, madrugada, pegar número pra ser atendida meio dia, entendeu? Não quero, Mariano, Não quero. Ser esmagada no trem, no ônibus, na rua, almoçar cachorro quente, não quero. Dormir quatro horas por dia e trabalhar quinze, pra poder colocar filho em escola particular e se Tremer inteira vendo a lista do material escolar, Olha, (mostra o braço nu) fico toda arrepiada só em pensar. Passa num concurso público, Mariano, pelo amor de deus!

Mariano: (Amargo) Sabe o que me dá mais raiva, Elisa? É você pensar que é fácil passar numa merda dessas! Pelo amor de Deus digo eu, e além do mais, você ‘e nova, tem saúde e o governo não precisa ficar te bancando não...

Elisa: Que isso Mariano? Se metendo na minha vida. Que intimidade ‘e essa? Ta me julgando.

Mariano: (por cima dela) Eu não to julgando ninguém...

Elisa: (por cima dele) Est’a me julgando sim senhor! Dizendo que eu não sou digna de...

Mariano: (por cima dela ) Eu usei essas palavras? Eu disse que você não ‘e digna? Quando foi que eu disse que você...

Elisa: (por cima dele) ´O governo não precisa me bancar`? Que que você tem a ver com isso? Eu te perguntei alguma coisa? So me responde isso, rapidinho, eu te perguntei alguma coisa? (continua falando)

Mariano: Não coloque palavras na minha boca! Nao diga que...voce vai deixar eu falar? Eu apenas falei que, você vai me deixar falar?!!!

(tensão)

Mariano: Eu so to dizendo que se você estudasse para um concurso, iria entender o esforço que estou fazendo. Ia ver que se fosse fácil, todo mundo entrava. Elisa. Eu Estudo feito condenado, não faço nem metade das coisas que meus amigos fazem, pra ficar com a fuça enfiada nos livros, você acha mesmo que eu quero ser sustentado por mulher? Olha pra mim. Olha a minha idade. Não ta fácil. Quem quer pegar numero no posto de saúde?

Elisa: O seu mal, Mariano, é que você não encara a vida de frente. Funcionario publico, quer coisa melhor? Dinheiro certo,

Mariano: Dinheiro , você adora esse assunto, so não sei por que você ta comigo.

Elisa: Foi isso que pensei vindo pra ca... por que que a gente ta junto, Mariano?

Mariano: Você quer dar um tempo?

Elisa: Eu quero dar um prazo!

Mariano: Você quer um marido ou um empregado?

Elisa: Eu não sei o que eu quero... eu so sei que não quero muito coisa, inclusive perder tempo. Com essa mentalidade colonizada, você não passa nem em concurso pra mico de circo!

Mariano: Pois é isso mesmo que eu deveria ser: Mico de circo! (ironia violenta) Esse foi o único concurso que eu ainda não fiz e talvez seja a minha verdadeira vocação. Virar mico de circo.

Elisa: Olha o escândalo...

Mariano: (falando muito rápido, preciso e franco) Eu vou falar bem rápido pra você entender e colocar uma coisa definitivamente na sua cabeça. Porque você so entende as coisas em escalas frenéticas, consumindo e consumida como um parasita que não mata e nem sai de cima, eu vou falar mais rápido, pra tentar alcançar a velocidade dos absurdos que você assume como verdade e não se da ao trabalho de refletir sobre e nem tomar

partido de algo que esteja fora do alcance da sua esfera, algo que te interesse para além dos seus interesses, e assim acelerado, talvez eu consiga te aproximar de um mundo horizontal onde em cima e baixo ‘e so uma questão de perspectiva e mesmo que você não se sinta comprometida em participar do mundo de forma realmente produtiva, não vai poder negar que ‘e responsável pela espessura do ralo no qual escorre toda essa merda, então pra não continuar atravancando a sua vida e nem a minha, vou sair discretamente pela porta de serviço sem chamar a sua atenção, deixando livre o seu caminho pra que você possa fruir com pessoas que compartilhem do mesmo ponto de vista que o seu, assim a gente não perde tempo e já que pra pessoas como você tempo ‘e dinheiro, eu vou te poupar dessa matemática. Não precisa se incomodar, o carro ‘e seu, eu pego um taxi no caminho e a gente se fala por email. Tchau. ( tira um jornal de sua bolsa e joga na cara da noiva. Sai do carro.)

Elisa: ( sem olhar o jornal) Volta aqui, Mariano! Eu não vou falar duas vezes! Volta aqui! Mariano! Volta aqui!!! Mariano!!! Mariano!!! O noivo já está longe. O jornal, ainda muito irritada, abro. É a folha dirigida, na página central um círculo feito de caneta bic, no meio o nome do noivo. Mariano. Aprovado . Funcionário público. Levemente tonta. Taquicardia. `Funcionário público…` jornal contra o peito , corro para alcançar o noivo. Meio rindo, meio chorando. No alvoroço da emoção, um carro violento, ali, não percebo, uma curva, um segundo, um momento, uma trombada que me arremessa para outro lado da rua. Cabeça ensangüentada. Os dentes moídos na boca. O tórax perfurado. Um silencio. Uma roda de curiosos ao redor. visão turva, mal respiro, não sinto as minhas pernas. As unhas tingidas de sangue_ cravadas no jornal_ Uma lágrima escorrendo dos olhos, desaguando numa poça de sangue, espesso, quase preto. Infância: galinha: degolada: correndo: com a cabeça pendendo. Lembrando do Leo, da Silvia, Rodrigo, Reinaldo, Patricia, Luciano, Tia Jussara, tio Ricardo, dr. Carlos alberto, minha avo, Eduardo, Daniel, Mariano... Meu noivo... a delicadeza do amor... funcionário público… agarrada ao jornal. Morre. O corpo só é levado pro IML, 16 horas depois.

____________________________________________________ (Lanchonete barata da rodoviária Novo Rio, numa mesinha no canto Júlio, chupando distraidamente o restinho de refrigerante na sua garrafa. Tudo o que têm coube em sua mochila jeans manchada. Surge, Giovana, vai até ele.)

Giovana: (seca) Antes que você diga alguma coisa, eu queria deixar bem claro que está tudo acabado entre nós. Que não há mais nada a ser feito e que nossa história não passou de um rabisco descuidado que demorou a ser apagado. Não, por favor, não diga nada. Isso só faria piorar as coisas. Suas palavras pra mim, agora seriam a conclusão do fracasso da nossa incapacidade de aceitação do que é feito da vida. Tem certas coisas que devemos simplesmente fingir que nunca aconteceram, é melhor assim. No futuro, quando eu lembrar de você, será como buscar em mim uma sombra trêmula que no primeiro feixe de luz, se desfez, assim como tudo o que havia entre nós. Ontem cedo, quando eu voltava da sua casa, o sinal fechou. Do ônibus, vi uma mulher equilibrando um cubo de metal, distraindo os motoristas com sua performance quase que hipnótica. Eu Pensei em nós dois. Eu sou essa mulher e você é o meu cubo de metal que até agora eu exibia, numa tentativa inútil de equilíbrio. Foi tão triste, que tive vontade de chorar, daí eu achei lindo. Lindo demais. Eu, chorando. Muito poético. Foi quando eu percebi que em mim havia algo de belo e nobre, que por mais que eu quisesse tentar, jamais seria abafado: A minha capacidade de amar. Isso é mais que suficiente para aceitar um novo amanhecer, repleto de possibilidades. Percebi que você, assim como os outros, não me ama de fato, fica impressionado _ encantado... _ com a minha intensidade em amar e com isso vaidoso, aceita o meu amor. O amor está em mim, e por isso não se esgota. Acredito na força do amor, sendo assim me vejo forte e concreta. Acredito na vontade de mudar as coisas. Na intensidade de uma paixão. Na tristeza de uma desilusão. Contudo, não acredito no que possa derivar do nosso encontro. Amor de aceitação é amor bolorento, paralítico, é desamor. Amor que resseca, racha a boca de frio, amor desprovido de amor. Amor de aceitação não tem gosto, não tem dente pra morder, nem língua pra chupar. Amor de aceitação é amor envenenado, cancerígeno. Eu te liberto do meu desamor. Júlio: você não foi um erro. Mas Por favor, não me procure mais. Júlio: esqueça de mim, uma vez por todas. Júlio... Adeus. (sai) (Tempo) (Giovana volta. Senta-se na mesa com Júlio) (Os dois se encaram) (Júlio sem nenhuma reação. Como se a alma tivesse escapado pelo ouvido)

Giovana: (pegando uma carteira de cigarro na bolsa) Você tá legal, cara? (sem resposta) Giovana: ? (oferece o maço) (sem resposta) Giovana: (natural) Quer um copo dágua com açúcar? Não sei... Uma dose... Eu posso pedir pra você. (sem resposta) Giovana: Não? Nada? Ok. (acende seu cigarro) Posso fazer sua garrafinha de cinzeiro? (sem resposta) Giovana: (tirando da bolsa uma revistinha de palavras cruzadas. Rabisca algumas coisas nela. ) (tempo) Giovana: (retida numa palavra) Epizeuxe... O que é (numa careta) Epizeuxe? (sem resposta) Giovana: (repara no rapaz) Olha, não fica assim: não ia dar certo. Vai por mim, não é o fim do mundo. Não esquenta a cabeça com isso. Eu sei que fui um pouco fria e direta, mas espero que você compreenda as circunstâncias... (traga violenta) Você vai pra serra, né? Tá levando casaco? Ta uma friagem de congelar diabo. Eu gosto da serra... Acho a serra tranqüila, longe dessa selvageria toda, essa matança de leão diária... Às vezes eu fico Exausta... Dá vontade de largar tudo e ir pra um lugar longe, sabe? Mas paciência! Eu não tenho tempo nem pra trocar essa porcaria de sapato! (ri sem entusiasmo) Comprei semana passada, uma fortuna!, mas me aperta até a alma, ta dando calo lá! Mania, né. Meu número é 37, mas têm uns 36 que dão certinhos, depende da fôrma. Mas é um inferno, se eu pudesse ficava o dia todo de molho, só na maré mansa, mas daí to lascada,

ainda mais se... Júlio: (corta, num fiapo de voz) Por que você tá fazendo isso comigo? (silêncio) Giovana: (tragada reflexiva, pra organizar o pensamento) Olha Júlio... Eu já estou bem descolada nesse enredo, levei muitos chutes na bunda, mas também já dei tantos... Nunca é gostoso, muito menos quando é a nossa bunda que está em jogo... Mas que remédio? Coloca gelo em cima e parte pra outra. É espinhoso e nem quero diminuir o que você está sentindo. Mas se existe alguém que quer ser feliz e que percebeu que o lance desandou, não tem como evitar. Júlio: (quase infantil) Mas por que assim? Desse jeito? Agora... Estava tudo certo pra viagem, tudo tranqüilo, organizado, tudo bem... Giovana: Aí é que tá. Você pensava que estava tudo bem. Mas você não teve a sensibilidade de perceber o que de fato estava acontecendo. Poxa, Júlio. Faz um esforço. Júlio: Mas eu não queria que isso acontecesse, juro. Giovana: Sabe qual é o problema, é que vocês homens nunca verbalizam o que sentem, não dá pra adivinhar o que o outro está pensando, certo? Júlio: Certo, mas eu também não podia adivinhar a proporção disso... Giovana: (discando novamente o telefone) Pára Júlio. É claro que você sabia. Você só não queria admitir pra você mesmo... Júlio: Não é verdade... Giovana: É verdade sim. Sua tristeza tem mais haver com vaidade, orgulho ferido do que outra coisa. Júlio: Você me acha um poço de frieza. Giovana: Eu só acho que você perdeu algumas oportunidades pra demonstrar o contrário.

Júlio: E você é a dona da verdade, capaz de adivinhar pelo brilho do olhar do outro o que realmente está sentindo! Incrível! Olha, eu realmente estou muito surpreso! Você é fantástica! O que vê nos meus olhos agora, héin? Giovana: Ironia gratuita como forma de defesa. Natural, estamos avançando na escala dos rejeitados! Júlio: Você se acha muito esperta, né... Mas eu olho pra você e vejo uma mulher que não sabe nada a respeito de amor e que tem um discurso muito do chinfrim à respeito de tudo! Porque se... Giovana: Se meu pai fosse mulher eu teria duas mães! Agora fecha o bico, porque pra mim isso também não está sendo nada fácil! (tempo) Giovana: (disca violenta o telefone. Atendem. ) Boa tarde, aqui é Giovana do “Falamos por você”, com quem eu falo? (__ ) Oi Camila... O seu pedido foi concluído com sucesso e aguardamos o depósito do restante do pagamento. (__) Sim... (__) Não. (__) Evidentemente... Ok. Pra confirmar:

Agencia 033, número da conta 145 3367 830. Repetindo: Agencia 033,

número da conta 145 3367 830. Assim que o depósito for efetuado, a devolução dos bens será concluída imediatamente.(__) Imagina, “Falamos por você” é que agradece a preferência e lhe deseja uma boa tarde. (desliga) Júlio: (com um brilho no olhar) Era a Camila? Giovana: (seca) Sim. Júlio: Ela perguntou por mim? Giovana: (contundente) Não. Júlio: ( murcho) Por que ela não quer falar comigo? Por que ela não veio aqui me ver... Giovana: (cruel) Porque ela NÃO QUER! Por isso contratou os serviços do

“Falamos por você”. Ela não quer te ver nem pintado de ouro! Júlio: Vocês retêm os bens dela? Giovana: Não é da sua conta. Júlio: (puxa violento o braço de Giovana) Escuta aqui moça, não tira farinha com aminha cara! Respeito é bom e eu gosto. Giovana: Vai fazer o que? Me agredir?Estou sendo agredida! Estou sendo agredida! ( (ele solta o braço dela) Giovana: Pro seu governo, os bens são dela sim, mas foram dados por você. Assim que ela nos pagar, estaremos enviando para o seu endereço. Se ela não pagar, ficamos com tudo, aí você processa a Camila, manda prender e etc. Júlio: (tomando-se de uma agitação violenta) Estou me lixando pra essa porcaria! Giovana: Tá nervosinho, tira as calças pela cabeça, mas não vem com grosseria pro meu lado. Júlio: Escuta aqui... Giovana: Escuta aqui você, meu camarada. Eu estou fazendo o meu serviço e não tenho nada haver com o que você pensa ou deixa de pensar. NÃO ESTOU INTERESSADA! (silêncio) (silêncio) (silêncio) Júlio: Desculpa... Giovana: (ignora) Sabe se por aqui tem ônibus pra Pavuna? Júlio: Não.

Giovana: Nào tem ou você não sabe? Júlio: Não sei... (tempo) Giovana: To com medo... Esse lance de colocarem fogo em ônibus...Sei não... Pavuna... É chão... O Prefeito falou pra gente não ter medo...mas ele não pega ônibus pra Pavuna... O povo é que paga o pa... Júlio: (corta) Quanto ela pagou...? Giovana: Não discuto isso com terceiros. Júlio: 350 pratas. Com sinal de 100. Eu já vi o anuncio de vocês nos jornais. Giovana: (seca) Pois é. Verbalizar o que se está sentindo pode custar caro. Júlio: Mas esse preço é porque se trata de um rompimento. Declarações de amor são mais baratas. Não são? Giovana: Se sabe por que tá perguntando? Júlio: Quase ninguém mais faz declarações de amor hoje em dia, ou se faz fala na lata, não precisa de ninguém pra falar por elas _ neguinho não está disposto a torrar grana com declaração de amor_ então vocês baixam o preço, faz promoção... Giovana: É mais simples: fazendo esse papel me arrisco em levar um soco na fuça. Daí cobro mais caro. Júlio: Não é só isso... Não é fácil romper. Seja lá qual for a natureza desse rompimento. É preciso ser profissional pra fazer sem sofrer. (muda o tom) Você sabe o que exatamente ela está devolvendo...? Giovana: (ainda arredia, tira a contragosto um a lista de sua bolsa) Um disco do Paul Simon, quatro ursos de pelúcia, uma camiseta azul marinho com estampa de veleiro, dois shorts de algodão, um casaco verde musgo com zíper, (Júlio vai se encolhendo, e ä medida em que a lista avança ,

minguando ainda mais. Tudo muito triste.) uma camisa de manga comprida preta, um colar prateado com pingente de golfinho, um chinelo de dedos de borracha, cinco livros da coleção “Grandes Filósofos”, a biografia do John Lennon, o mapa de Londres, dois óculos : sendo um escuro e outro de grau, com a lente esquerda quebrada, um tênis branco encardido, uma máscara de carnaval, uma lata de achocolatado, uma miniatura do Chaplin, duas calças jeans puídas na barra, uma jaqueta jeans faltando dois botões, o carregador do seu celular, dezenove fotografias suas_ variando entre férias, datas festivas e uma da infância_ uma caneca de cerâmica da cor bordô, uma Polaroid quebrada , uma calça de moletom cinza, um batom ameixa, seis anjinhos de porcelana, uma escova de dentes com cerdas macias e um isqueiro pequeno vermelho . Júlio: (perdido) O que é que eu vou fazer agora...? Giovana: Vai pra serra. Vai passar... Se não passar, aqui está o meu cartão, pedidos de “Volta pra mim” sempre rola um desconto... Não me olhe assim, ganho por comissão. (faz que vai sair, ele a interpela) Júlio: Espera. (ela volta-se) Júlio: (tira do bolso umas notas de dinheiro) Eu compro. Giovana: O que? Júlio: Uma declaração de amor. Eu compro. Giovana: Não é assim, você tem que ligar pra agência, marcar hora, deixar seus dados... Júlio: Não! Eu quero agora... Eu preciso agora. Eu pago. Por favor. Giovana: (suspira) É pra Camila? Porque se for, eu acho... Júlio: Pra mim. Eu quero comprar uma declaração de amor pra mim mesmo. Giovana: Acho que não vai dar...

Júlio: Não pode comprar uma declaração de amor pra si mesmo? (tempo) Por favor... Faz isso por mim... Giovana: ( pensa. Por fim se decide. Respira fundo. Pega o dinheiro. Olha nos olhos do rapaz) Não quero amar desesperadamente, contudo, desesperadamente já te amo. O amor caiu como uma rocha gigantesca em minha cabeça. Esmagadoramente : Já te amo. Te amo por imaginar no que você possa me dizer, te amo por reconhecer seu cheiro mesmo sem nunca ter te cheirado, te amo por saborear seu gosto em minha boca mesmo sem nunca em ti ter provado, te amo por questionar o que deve estar se passando por sua cabeça agora, se gosta de café, se já foi a Buenos Aires, se tem alergia a camarão, se prefere frio ou calor... Te amo por imaginar a série de coisas que possa me ensinar, te amo pela lindeza do que sinto por você, pois só você foi capaz de despertar em mim essa força tamanha que desconheço, que me orgulha e que me entristece...........muito. Me entristece por perceber que te amar em sonho é por enquanto tudo o que posso fazer. Amo à queima roupa. Amo assim, loucamente, ansiosamente, já com saudade de amar. Amo você por toda a sinceridade que existe em nosso amor, amo você por te querer tanto, por aguardar silenciosamente o seu sorriso pra mim. Amo você, amo você, amo você.... (ele vai até ela e de supetão lasca um beijo ) (ela o empurra e o esbofeteia. Os dois se encaram) (desejo incontrolável, ela o agarra e vem um beijo cinematográfico.) (Ficam por ali se beijando deliciosamente......... Em poucos instantes já não é mais possível vê-los no meio da multidão) _______________________________________________________________

(carnaval, concentração da escola de samba, Reporter de tv avista

Muriel, rainha de bateria. Muito barulho do samba, o que dificulta a

conversa entre os dois. )

Reporter: ( com tom de voz elevado, por conta do som da escola de

samba. Para o câmera) Estamos direto da concentração da escola de

samba grêmio recreativo prestes a sair na avenida. Muita emoção. Muita

energia. Nada como o carnaval pra colocar os pingos nos is dessa gente

que anda com a corda no pescoço o ano inteiro. Estou aqui com ela,

maravilhosa, passista, você ‘e homem ou mulher?

Muriel : (sempre sambando e efusiva, com sotaque paulista) Estou muito

feliz com essa grande festa! Onde o povo se solta, e se sacode e se

esquece os problemas e isso ‘e tao bom, ne? Isso ‘e brasil, tem que

esquecer os problemas, Carnaval ‘e a terapia do povo!

Reporte: Oi?

Muriel: Carnaval ‘e a terapia do povo!

Reporter: Esse ano a escola veio falando da desigualdade social e do lugar

do negro dentro disso, historicamente, como ecos da escravatura, numa

sociedade que pouco valoriza a cultura africana e gerou toda essa

polemica e eu queria saber de você sobre isso.

Muriel: O que?

Reporter: Tem poucos negros nos camarotes e muitos na avenida, a casa

grande e a senzala tem a ver com a ala vip?

Muriel: Muriel.

Reporter: Quem?

Muriel: Sim, quem, caras, veja, todas maravilhosas, sempre dando essa

forca para o desenvolvimento da inteligência da nação. So gente

inteligente. Adoro! Assino e compartilho!

Reporter: Voce como figura publica acha importante se colocar publicamente?

Muriel: Acho, claro, por isso eu vivo colocada, ‘e preciso colocar, quem não tem coloca ne... ta todo mundo colocando... so não sei de onde tao tirando tanto!

Reporter: Por que?

Muriel: Porque depois tem que devolver ne... ta todo mundo tirando pra colocar aonde... ‘e uma questão a ser pensada, mas so semana que vem!!

Reporter: Semana que vem tá muito longe, meu amor! O imediatismo contemporâneo faz com que o amanhã seja uma possibilidade distante e abstrata!

Muriel: (puxa o foco) Sim, alias falo disso no meu livro!

Reporter: ‘E uma autobiografia onde você conta tudo o que rolou na casa?

Muriel: Que casa?

Reporter: A casa do caralho.

Muriel: O que?

Reporter: Seu livro é sobre o que exatamente?

Muriel: OI ?

Reporter: Seu livro ...Quem ta comprando? Quero nomes!

Muriel: Ah, ‘e sobre todas essas relações liquidas que estão por ai na sociedade, ne, onde os valores das coisas estão se resignificando o tempo todo e isso acaba gerando uma incomunicabilidade geral, e as pessoas vao se dispersando uma das outras, porque ta todo mundo com preguiça do outro, menos no carnaval ne| pelo menos pra mim!

Reporter: oi?

Muriel: Eu não to com preguica de gente! No carnaval! Depois sim, depois fico com muita preguica de gente. ( Muriel sorri débil)

Reporter: Vou fazer um bate bola, tá.

Muriel: Oi?

Reporter; Um bate bola! Um ping pong. Eu falo você responde numa palavra.

Muriel: Uma bem fácil hein!!!!

Reporter: Uma mulher elegante.

Muriel: Me acho sim.

Reporter: Uma mulher elegante, outra...

Muriel: Ata, Sei la, A primeira dama.

Reporter: Um sonho de consumo.

Muriel: Tudo muito lindo! (sorri débil)

Reporter: Um tom de vermelho.

Muriel: Passo.

Reporter: Um sabor.

Muriel: Repasso.

Reporter: Uma paisagem.

Muriel: 23.

Reporter: Você posaria nua?

Muriel: Concordo.

Reporter: Você mataria por amor?

Muriel: Muito amor, muito amor na avenida!!! O mundo ta precisando de amor!!! Paz!!!

Reporter: É proibido proibir?

Muriel: Campea!!!!

Reporter: Voce da esmola ou fingi que não ve?

Muriel: Acho muito importante, alias fica ai o alerta para sociedade!

Reporter: Quem Você levaria para uma ilha deserta?

Muriel: Hidratante.

Reporter: Uma palavra que te resume?

Muriel: Atitude! Se eu to onde eu to, sem precisar pisar em ninguém,

passar por cima de ninguém, consegui meu espaço, minha carreira, com

atitude. Fora os políticos safados, mais atenção pra saúde publica e

educao, e mais respeito com o cidadão! E sexta estarei na coroação do

momo, e fica essa dica pra quem quiser ver, enfim! Me perdi, o que você

perguntou mesmo?

Reporter: Oi?

Muriel: Voce perguntou?

Reporter: Sim!

Muriel: O que ‘e?

Reporter: Oi?

Muriel: Voce.

Reporter: O que eu sou? Filosoficamente falando?

Muriel: Oi?

Reporter: (assumindo um tom mais reflexivo, quase melancólico) Eu não

sei exatamente, eu fiquei me perguntando isso a semana inteira, terça, me

olhei no espelho e me perguntei, quem ‘e você. O que você ta querendo...

o que você ta fazendo? que sentido tu ta buscando... que vazio você ta

ocupando? Querendo ocupar... por que? ta caro, ta barulhento, ta quente,

ta cheio, ta violento, ta descarado, ta humano, desumano, ta ruim de

engolir, ta pra melhorar, ta mudando, e você ta no meio, ta mexendo, ta

pensando, ta em duvida, ta vendo primeiro antes de comprar, ta querendo

falar, ser ouvido, ta querendo acreditar, mas ta sem saco, ta com conta

vencendo, ta com dor de coluna, ta afim de outra coisa, que coisa? Pra que

tanta coisa...? (angustiado com as próprias questões) pra que tanta coisa...

pra quem... eu... qual ‘e a chave que eu tenho que virar?

(a conversa ‘e abafada pelo crescente da escola de samba, ate que nada

mais seja ouvido)

(ele ensanguentado, ela limpando.)

Ela: Por que você o matou?

Ele: Por causa dos olhos.

Ela: O que tinha os olhos?

Ele: Estavam infeccionados.

Ela: Alguma alergia?

Ele: Não.

Ela: O que era?

Ele: Fungos. Os olhos dele estavam cobertos por fungos. Uma espécie de camada fofa, mofada, esponjosa, cobrindo todo o globo ocular.

Ela: E isso te causou repulsa? Vontade de matá-lo?

Ele: Sim.

Ela: Você o conhecia?

Ele: Não. Esbarrei na rua. Meu ombro bateu no dele e nos encaramos por alguns segundos. Suficientes para gravar aqueles olhos infeccionados que não sairam da minha cabeça.

Ela: Nojo?

Ele: Aflição…

Ela: Descreve.

Ele: Um arrepio fino… Os olhos estampados em minha mente…

Ela: Não conseguiu esquecê-los?

Ele: De modo algum. Tentei… Mas aquela imagem me fazia estremecer toda vez que eu lembrava… Aqueles olhos apareciam na hora do meu almoço… Na hora do meu banho… Antes de eu dormir, estavam lá os olhos… Como duas bolas de pelo, brancas. E eu me via com esses olhos. Imaginava meus olhos assim. Mofados. Como no dia em que eu morrer. Dentro do meu caixão. Em silêncio. Sentindo meus olhos mofando. Não conseguia pensar em mais nada além disso. Os meus olhos podres.

Ela: Não precisava matá-lo. Você ficou impressionado. Apenas.

Ele: Era mais que isso.

Ela: Estou ouvindo…

Ele: Eu fiquei com a sensação de que jamais me esqueceria daqueles olhos. Por mais que eu tentasse, eles estariam lá. Me espreitando. Aquele homem me condenou… Eu sei que não foi culpa dele. Mas a inevitabilidade daquela imagem, diariamente, na minha cabeça… Entende isso? Os olhos infeccionaram a minha alma.

Ela: E matando-o, achou que poderia matar essa imagem na sua cabeça…

Ele: Sim.

Ela: E a imagem?

Ele: O que tem?

Ela: Desapareceu…?

Ele: Não.

Ela: Os olhos?

Ele: O que tem?

Ela: Ainda estão em sua cabeça?

Ele: Sim.

Ela: Você quer que eles desapareçam agora?

Largo da Carioca, uma da tarde, Celso e Gusmão fumando o cigarro digestivo.

Celso: (tom grave) Gusmão, quero te falar uma coisa séria.

Gusmão: (sorri) Hoje é sexta feira, rapaz. Não topo seriedade.

Celso: Ouve. É grave.

Gusmão: Espera segunda.

Celso: Escuta, rapaz.

(Gusmão percebe a gravidade do problema)

Gusmão: Ok. Fala.

Celso: (tragada violenta. Voz baixa) Seu nome.

Gusmão: O que tem?

Celso: Está na boca do povo.

Gusmão: (numa careta, sem entender)

Celso: Sou seu amigo, no seu lugar gostaria que fizesse o mesmo por mim.

Gusmão: Do que está falando?

Celso: Um alerta.

Gusmão: Qual é, Celso? Fala de uma vez.

Celso: Tão dizendo aí… Bom…

Gusmão: O que foi? Fala Celso!

Celso: Tão dizendo aí que você vai rodar.

Gusmão: (impactado)

(tempo)

Celso: Gusmão?

Gusmão: Quem tá dizendo isso?

Celso: O povo todo.

(tempo)

Gusmão: Por que?

Celso: Crise. Parece que vai rolar corte e você… Bom.

(tempo)

Gusmão: Dei motivos?

Celso: Não!!! Não… É a crise. Pelo menos é o que estão dizendo.

(tempo)

Gusmão: E por que eu?

Celso: Ah… Tinha que ser alguém.

Gusmão: Mas logo eu? Nunca tive uma reclamação! Umasinha!

Celso: É a crise…

Gusmão: (revoltado) O Paulo. Por que não foi o bosta do Paulo? O Paulo não quer nada com a hora do Brasil. Todo mundo sabe disso! Estou mentindo?

Celso: nada. O Paulo é maior 171.

Gusmão: Ou aquele menino… Qual o nome dele?

Celso: Jean?

Gusmão: O magrelo!

Celso: Jean, pô…

Gusmão: Então, o Jean… Solteiro, não tem filho… É novo. Não vai ter problema de arrumar um trabalho agora…

Celso: É verdade…

Gusmão: E a Dilma! Aquela vaca interesseira… Por que não mandam a Dilma embora? Aquele rabão dela não serve pra nada… O Gustavo também, aquele merda, zero à esquerda. Vive chegando atrasado, indo embora cedo…

Celso: Isso é verdade…

Gusmão: Até você mesmo Celso.

Celso: Que isso, Gusmão…

Gusmão: Desculpa a sinceridade, Celso, mas você é um pilantra.

Celso: Qual é, Gusmão…

Gusmão: Vai me dizer que não? Você é bom pra tomar cerveja, mas pra trabalhar… Vamos combinar que não dá.

Celso: Eu aqui te dando um toque e você me esculhambando!

Gusmão: Toque é um cacete! Esses escroques estão botando na bunda errada e você quer que eu fique na boa?

Celso: Sou o único a tomar partido seu, Gusmão! O povo fica falando que você é um otário e eu tomo as suas dores!

Gusmão: (numa melancolia abrupta) Eu sou melhor que você, sabe disso! Não tem sentido… Não tem…

Celso: (orgulho ferido, palminha no ombro) É, meu querido. Mas é você que vai colocar o bloco na rua e tratar de procurar outra coisa. Vou voltar pro escritório.

(Celso sai)

(Gusmão sozinho em silêncio)

(Gusmão atravessa lento o Largo da Carioca)

(Um indo e vindo infinito de gente)

(Gusmão vai olhando pra cada um. A bunda flácida das outras, a cara feia dos demais, a cor indefinida de todos…)

(No meio de tudo, Gusmão avista uma mulher empurrando um carrinho de bebê. A mulher está distraída conversando com a amiga ao lado.)

(Gusmão está fixo no bebê. Uma criança com um pouco mais de dez meses. Com as duas mãos na cabeça. Esfregando o couro cabeludo. Num pavor mudo. Olhos esbugalhados. Boca desdentada, um fio de baba metalizado pela luz solar. As bochechas suadas. E as mãos. Nervosas por toda a cabeça, arrancando os pensamentos com as unhas.)

(Aquele carrinho atravessando o Largo da Carioca, carregando um bebê apavorado.)

(Gusmão ficou com aquela imagem na cabeça pelo resto do dia)

(aeroporto internacional, indo e vindo infinito. Lars aborda Camila)

Lars: (sussurra ao pé do ouvido da moça) Mira a sua boca na minha e atira…

Camila: (distraída) Oi?

Lars: Você tem um cigarro que possa me dar?

Camila: Hum… Desculpa esse é o último…

Lars: (faz que vai sair)

Camila: Ei!

(ele volta)

Camila: Eu posso dividir com você se quiser… Sem problemas.

Lars: Imagina, o último é sagrado.

Camila: Pega. (estende o cigarro ao rapaz.)

(tempo)

(ele pega.)

(traga, quase litúrgico. )

(tempo)

(devolve o cigarro)

Lars: Chegando?

Camila: Partindo.

Lars: Você vai pra onde?

Camila: Madri…E você?

Lars: Índia.

Camila: Sério?

Lars: (sorrindo de lado) Não. Eu vou pra Blumenau. Mas eu sempre quis conhecer a Índia.

Camila : E por que não vai?

Lars: Ah…Complicado.

Camila : Nem tanto.

Lars: É uma baba… E eu estou num perrengue…! To juntando uma grana, quando ficar bacana, Aí sai de baixo! Vou conhecer tudo, Índia, China, Luanda… Madri…!

Camila: E Blumenau?

Lars: Família. Madri?

Camila: Fuga.

Lars: ?

Camila: Você quer ouvir um segredo?

Lars: Se você quiser contar…

Camila: (ao pé do ouvido dele) Matei um industrial e estou fugindo com o cadáver na minha mala… Agora que te contei talvez eu tenha que fazer o mesmo com você…

Lars: Ah… Você está brincando, né?

Camila: Sua Mãe nunca lhe disse pra não conversar com estranhos? (tempo) Eu posso ser uma assassina perigosa… A mulher do presidente… Atriz de cinema mudo… Um homem disfarçado… Uma louca que anda com malas pra cima e pra baixo… Cantora de ópera… Veterinária… Uma alucinação sua… Um fantasma do passado… A irmã gêmea má trocada na maternidade reivindicando vingança… Um anjo da guarda… Um demônio da sorte… Alguém que vai te matar.. Ou te amar eternamente…

(silêncio)

Lars: Estou meio tenso…

Camila: Medo de voar?

Lars: Não… Medo de me apaixonar por você…

Camila: Ai, que brabo! (risos) Franco atirador.

Lars: Sério… (enquanto fumam o cigarro) Você acredita no destino?

Camila: (desdém) Destino…

Lars: Acha mesmo que foi mero acaso a gente ter se esbarrado aqui, agora? (galanteador) Estamos predestinados um pro outro…

Camila: (rindo)

Lars: Não ri… É sério. Quando meus olhos bateram nos seus eu vi que alguma coisa aconteceu! Eu não sei explicar, mas acelerou alguma coisa em mim, e desde então eu não consigo parar de olhar pra você.

Camila: (incrédula) Você está falando sério?

Lars: É sério.

Camila: Pára.

Lars: Olha, eu sei que você deve estar me achando meio doido, mas tem certas coisas que simplesmente não tem explicação.

Camila: Você me conheceu não tem nem cinco minutos.

Lars: E foi suficiente pra descobrir em você tudo o que eu precisava.Você não acredita em amor ä primeira vista? Almas gêmeas? Fica comigo. Não vai embora.

Camila: Não posso.

Lars: Pode sim, é só você querer.

Camila: Não é assim…

Lars: Chuta o balde.

Camila: Eu vou te fazer sofrer…

Lars: Mas sofrer de amor é maravilhoso.

Camila: Não é não…

Lars: É sim… Sofrer de amor é luxo. Olha, eu não quero sofrer por fome, ou doença, ou por alguém querido que morreu, ou por dor de dente, ou por falta de grana, ou por falta de amor. Pelo contrário, quero sofrer por muito amor. Muito. Aquele tanto que não cabe, mas a gente empurra goela a baixo, amor que engasga, amor que dilacera , amor grande, amor insuportavelmente amado. Com certeza se eu tiver que morrer, que eu morra de amor. Não porque me faltou um, mas pelo excesso, que em meu peito explode _ e que se doesse, sorrir seria insuportável. Quero morrer assim: com o amor explodindo o meu coração como um balaço alucinante. Caramba: Eu quero morrer agora de amor! (puxa a moça e beija)

(abre o cenário e é revelado ao público que a cena que acabamos de ver faz parte de um filme que passa na tela de um cinema)

(no escurinho do cinema, está Rô e Fil, ela uma gordinha com cara melancólica, ele meio saturado e barbudo, os dois acompanham a cena na telona.)

Rô: (de olho no filme, sussurra para o marido) Fil…

(tempo)

Rô: Fil…

(tempo)

Rô: Ei, Fil…

Fil: (de olho no filme, enchendo a boca de pipoca) Que é, Rô?

Rô: (sussurra triste) Eu também quero morrer de amor…

(tempo)

Rô: (infantil) Fil… Eu estou falando com você… Fil… Fil…

Fil: Terça que vem.

Rô: Que tem?

Fil: Morre de amor terça que vem. Agora fica quietinha pra gente ver o filme.

(tempo)

(Rô triangula com o filme e compara com o aspecto do marido. Observa com certo desprezo a pipoca caindo da boca até o colo.)

Rô: (ainda sussurrada e doce) Não. Eu quero morrer de amor agora.

Fil: Dá um tempo Rô.

Rô: Fil… Eu quero morrer de amor agora.

Fil: (vira-se irritado) Que aporrinhação! Você enche meu saco pra vir ao cinema e quando venho, você fica falando mais do que pobre no sol! Se continuar a ladainha: me levanto e te deixo aqui sozinha.

(Rô volta-se para o filme)

(cena do filme, Lars e Camila ainda se beijando muito e a música muito alta) (Rô muito ressentida com tudo.) (Rô respira fundo e dispara)

Rô: Por que você me quer pela metade? Por que não olha pra mim? Por que demora? Por que me ignora? Por que não sorri ? Por que não me faz acreditar? Por que não diz que quer me beijar? Por que não é direto? Por que faz isso comigo? Por que me desrespeita? Por que não me quer? Por que não pede pra eu ficar? Por que não tenta? Por que não me pede? Por que você não me diz coisas bonitas? Por que não me chama pra tomar um café? Por que não me manda flores? Por que não diz que sente falta de mim? Por que faz com que eu me sinta como um estorvo no seu caminho? Por que você faz com que eu me sinta feia? Suja? Sem jeito? Por que? (eleva a voz) Me surpreenda. Me faça dormir sorrindo. Me faça sonhar com você. Me faça te esquecer de vez. Me faça acreditar que pode ser diferente. Me leva pra dançar. Me apresenta um livro que eu nunca li. Me canta uma musica que eu adoro ouvir. Me deixa um bilhete . Me deixa ter vontade. Me deixa bem. Me elogia. (eleva mais a voz, o marido vai virando-se lentamente pra ela) Você não vai me magoar mais, não vai mais me fazer esperar. Não vai me deixar sem saber. Não vai fazer com que eu me ache incapaz de ser amada. Vai passar. Eu sei que vai. Eu vou esquecer você, eu vou esquecer de te lembrar. Eu não quero mais você. Você me machuca tanto. Me faz triste. Faz com que tudo perca a graça. Eu não quero mais isso. Não quero mais ficar presa nisso. (abre a luz)

Voz microfonada: Corta! Ok. Valeu.

Atriz que interpreta Rô: (natural) Eu posso ir do começo se você quiser, sem problemas pra mim.

Voz microfonada: Foi ótimo.

Atriz que interpreta Rô: Mesmo? Eu achei o finzinho meio forçado…

Voz: Foi maravilhoso, fica fria. Cinco minutinhos e a gente continua. Pode ser?

Atriz que interpreta Rô: Sem problemas.

Ator que interpreta Fil: Juju, eu vou dar uma lida na próxima cena e depois você bate o texto comigo novamente?

Atriz que interpreta Rô: Claro, amor. Ator que interpreta Fil: Juju. Posso te contar uma coisa?

Atriz que interpreta Rô: Claro.

Ator que interpreta Fil: É uma coisa muito séria…

Atriz que interpreta Rô: (com ar preocupado) Aconteceu alguma coisa?

Ator que interpreta Fil: (com uma lágrima escorrendo pelo rosto) Jura que não conta…

Atriz que interpreta Rô: O que aconteceu?

Ator que interpreta Fil: Eu não queria…

Atriz que interpreta Rô: (mais preocupada) Você está me assustando. O que aconteceu.

Ator que interpreta Fil: Eu juro, Ju. Eu não queria…

Atriz que interpreta Ro: Fala!

Ator que interpreta Fil: É na verdade eu estou completamente…

(A fala é abafada por um som grave de turbinas de avião) (luz abre, estamos dentro de um avião) Aeromoça: (catuca o passageiro que cochila)

Passageiro: (desperta sonolento)

Aeromoça: Chegamos senhor.

Passageiro: (sorri e imediatamente liga seu telefone. Disca muito entusiasmado. Cai na secretária eletrônica.) Oi meu querido, sou eu, Renato. Desculpa te ligar essa hora, é que acabei de ter um sonho muito louco e acho que dá samba, aí to te ligando pra não esquecer… Parecia tão real… Poxa, que pena que você não atendeu… Enfim… Eu acabei de chegar, passo na sua casa e explico melhor a idéia. Acho que rende um texto pro seu site… O tema da semana é Aéreo, não é? Ok, te explico melhor quando chegar. Beijão, Jô. (desliga)

Luz cai em resistência, foco nas mãos de Jô Bilac, digitando tudo às 4:50 da manhã. Digita uma última palavra: Fim.