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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO O ABORTO DE FETO ANENCÉFALO: UMA ABORDAGEM DOUTRINÁRIA E LEGAL SOBRE OS DIREITOS DA MULHER E DO FETO CÍNTIA REGINA ODORIZZI Itajaí (SC), novembro de 2008.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

O ABORTO DE FETO ANENCÉFALO: UMA ABORDAGEM DOUTRINÁRIA

E LEGAL SOBRE OS DIREITOS DA MULHER E DO FETO

CÍNTIA REGINA ODORIZZI

Itajaí (SC), novembro de 2008.

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II

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

O ABORTO DE FETO ANENCÉFALO: UMA ABORDAGEM

DOUTRINÁRIA E LEGAL SOBRE OS DIREITOS DA MULHER E DO FETO

CÍNTIA REGINA ODORIZZI

Monografia submetida à Universidade

do Vale do Itajaí – UNIVALI Campus de

Itajaí, como requisito parcial à obtenção

do grau de Bacharel em Direito

Orientador(a): Profª.MSc ANDRIETTA KRETZ

Itajaí (SC), novembro de 2008

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III

AGRADECIMENTO

Agradeço em primeiro lugar a Deus, que desde o início de minha caminhada está

comigo sendo meu amparo e fortaleza, superando derrotas me proporcionando grandes vitórias. Obrigado pelo dias de

glória, confiei em você, e tive a prova que tudo podemos quando fizemos com fé e

com Deus no coração.

Aos meus pais Maria e Celestino Odorizzi a vocês que me deram a vida e me

ensinaram a ser forte e vivê-la com toda a dignidade, nunca desistir dos meus ideais.

Iluminaram meus caminhos me apoiando nos momentos mais difíceis e sempre

acreditando em mim. Ensinaram-me a crer e acreditar que se pode fazer tudo quando se tem um ideal, toda a minha eterna gratidão.

Ao meu irmão Ederson Luciano Odorizzi, que de todas as formas possíveis,

sempre me apoiou, foi um exemplo de vida para mim, exemplo de pessoa que luta por ideais e enfrenta o mundo por eles, a você querido irmão quero que saiba que te amo

mais e mais a cada dia.

A minha orientadora Andrietta Kretz, pela excelente professora que é, pela

paciência que teve para me orientar no desenvolvimento desse trabalho.

Aos meus amigos, por tantas horas que passamos juntos pela oportunidade que ofereceram com sua companhia durante os

cinco anos de faculdade. Aos professores que transmitiram conhecimentos e

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IV

mostraram as dificuldades encontradas na vida profissional.

A todos, que de alguma forma contribuíram para a realização deste sonho,

quero dizer obrigado com amor. Ter vocês por perto foi muito importante, lembranças ficarão em nossa memória e uma enorme

saudade dos momentos que passamos juntos todos os dias.

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V

DEDICATÓRIA:

Dedico esta monografia especialmente a meus queridos pais,

Celestino Odorizzi e Maria Odorizzi, meu irmão Ederson Luciano Odorizzi e meu sobrinho Ederson Gustavo que sempre

me apoiaram com muito carinho, nunca deixaram faltar nada em minha vida...

Que de uma forma muito carinhosa sempre me orientaram em todas as

minhas decisões, oferecendo a chance de poder chegar onde estou, aplicando

em meus estudos e meu futuro. Me educaram e me ensinaram que na vida

tudo se conquista com esforço e dedicação. Hoje com todo orgulho digo

a vocês que venci, e conquistei mais uma etapa da minha vida e isso por

vocês...

Dedico também a todos os meus amigos, próximos e mesmos os distantes,

que estiveram presente em minha vida neste período de estudos e dedicação,

em especial, minha melhor amiga Thalita dos Santos, que durante cinco anos se

tornou importante em minha vida, estando ao meu lado nas horas boas e

ruins com sua amizade incondicional.

“Nada faria sentido e os obstáculos seriam intransponíveis se não tivesse

onde me fortalece. Ao chegar ao fim é com vocês que quero compartilhar esta conquista e dizer obrigado por fazerem

parte da minha vida”.

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VI

“Talvez não tenha conseguido fazer o melhor, mas

Lutei para que o melhor fosse feito... Não sou o que

deveria ser, não sou o que irei ser.

Mas graças à Deus, não sou o que era.”

(Martin Luther King)

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VII

PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito

da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI – Campus de Itajaí, elaborada

pelo(a) graduando(a) CÍNTIA REGINA ODORIZZI, sob o título O aborto de

feto anencéfalo: uma abordagem doutrinária e legal sobre os direito da

mulher e do feto, foi submetida em 18 de novembro de 2007 à Banca

Examinadora composta pelos seguintes Professores: Andrietta Kretz

(orientadora e presidente da banca), Maria da Graça Mello Ferrocioli

(membro) e aprovada com a nota ______ (________________________).

Itajaí (SC), novembro de 2008.

________________________________ MSc. ANDRIETTA KRETZ

Orientadora e Presidente da Banca

____________________________ Professor MSc Antônio Augusto Lapa

Coordenação da Monografia

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VIII

DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total

responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho,

isentando a Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI – Campus de Itajaí, a

Coordenação do Curso de Direito e o Orientador de toda e qualquer

responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí (SC), novembro de 2008.

_______________________________ CINTIA REGINA ODORIZZI

Graduando (a)

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IX

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Art. Artigo

CC/1916 Código Civil Brasileiro de 1916

CC/2002 Código Civil Brasileiro de 2002

CP

CPP

Código Penal de 1940

Código Processo Penal

CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil

IEG Interrupção Eugênica da Gestação

ITG Interrupção Terapêutica da Gestação

ISG Interrupção Seletiva da Gestação

IVG Interrupção Voluntária da Gestação

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X

ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

FETO

Aquele que já está concebido no ventre materno ou simplesmente formado,

mas que já apresenta a forma de um ente humano1, ou seja, organismo

humano em desenvolvimento no período que vai da nona semana de

gestação ao nascimento.

ABORTO

De acordo com o sistema jurídico aborto tem como conceito nascer

prematuramente, ou seja, antes do tempo. A lei não estabelece limites para

idade gestacional em que ocorre a interrupção da gravidez, isto é, aborto é

a interrupção da gravidez com o intuito de morte do concepto, seja ela

desde a fecundação até os momentos antes do início do trabalho de

parto. Já na visão médica, o aborto é considerado a interrupção da

gravidez, espontânea ou propositada, desde o momento da fecundação do

óvulo pelo gameta masculino até a 21º semana de gestação, pois da 21º

semana até a 28º semana fala-se em parto imaturo; e da 29º até a 37º

semana tem-se o chamado parto prematuro. Portanto, a medicina só

admite a hipótese de aborto dentro das primeiras vinte e uma semanas de

desenvolvimento do ovo.

1 SILVA, de Plácido. Dicionário jurídico. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 353.

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XI

ABORTO EUGÊNICO

Aborto eugênico ou eugenésico é aquele praticado para evitar o

nascimento de criança portadora de anomalia física ou psíquica.

Interrupção provocada da gestação, quando há suspeita de que o

nascituro apresenta doença ou anomalia grave. Também conhecido como

aborto terapêutico. Nosso ordenamento jurídico ainda não admite essa

hipótese de aborto

ANENCEFALIA

A anencefalia consiste em malformação rara do tubo neural acontecida

entre o 16° e o 26° dia de gestação, caracterizada pela ausência total ou

parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de

fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Esta é a

malformação fetal mais freqüentemente relatada pela medicina, o feto não

apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do

tronco encefálico.2

2 BEHMAN, Richard E.; KIEGMAN, Robert M.; JENSON, Hal B. Nelson.Tratado de Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. p. 1777.

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XII

SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................XIV

INTRODUÇÃO.............................................................................................................1

CAPÍTULO 1

CONSTITUCIONAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ....................................................................5

1.2 ASPECTOS HISTÓRICOS .......................................................................................5

1.2.1 O ABORTO NOS PRIMÓRDIOS..........................................................................7

1.2.2 O ABORTO NA GRÉCIA ..................................................................................10

1.2.3 O ABORTO EM ROMA.....................................................................................12

1.2.4 O aborto na Idade média.............................................................................13

1.3 CONTEMPORANEIDADE DO ABORTO...............................................................14

1.3.1 ABORTO NO BRASIL ........................................................................................15

1.4 CONCEITO DE ABORTOS ...................................................................................20

1.5 DO DIREITO À VIDA ...........................................................................................25

1.6 DOS DIREITOS DO NASCITURO..........................................................................28

Capítulo 2

ABORTO - ESPÉCIES E CONSIDERAÇÕES JURIDICAS

2.1 O CRIME DE ABORTO NO CÓDIGO PENAL VIGENTE......................................,32

2.2 DAS MODALIDADES DO ABORTO .....................................................................33

2.2.1 DO ABORTO NATURAL OU ESPONTÂNEO......................................................33

2.2.2 DO ABORTO PROVOCADO ..........................................................................34

2.2.2.1 ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE OU COM SEU CONSENTIMENTO...

..................................................................................................................................35

2.2.2.2 ABORTO "CONSENTIDO" E TEORIA MONÍSTICA DA AÇÃO.......................37

2.2.2.3 Aborto provocado sem consentimento da gestante ............................39

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XIII 2.2.2.4 Aborto provocado com consentimento da gestante............................41

2.3 SUJEITOS DO CRIME DE ABORTO...................................................................43

2.4 TIPOS OBJETIVO E SUBJETIVO NO CRIME DE ABORTO ....................................44

2.5 DA FIGURA QUALIFICADO DO ABORTO..........................................................49

2.6 EXCLUDENTES ESPECIAIS DA ILICITUDE: ABORTO NECESSÁRIO E ABORTO

HUMANITÁRIO.........................................................................................................50

2.6.1 ABORTO NECESSÁRIO OU TERAPÊUTICO ............................................................52

2.6.2. ABORTO HUMANITÁRIO OU ÉTICO ..............................................................54

2.6.3.ABORTO NECESSÁRIO OU HUMANITÁRIO PRATICADOS POR ENFERMEIRA .................................................................................................................................56

2.6.4. ABORTO EUGÊNICO .....................................................................................59

Capítulo 3

ABORTO ANENCÉFALO NO SISTEMA JURÍDICO ATUAL

3.1 DEFINIÇÃO.........................................................................................................66

3.2 A VIDA E A MORTE NO PLANO JURÍDICO........................................................68

3.3 FATO TÍPICO OU ATÍPICO..................................................................................72

3.4 INVIABILIADE DO SER ........................................................................................75

3.5 O TRAUMA MATERNO........................................................................................77

3.6 MORTE ENCEFÁLICA.........................................................................................78

3.7 A VISÃO RELIGIOSA .........................................................................................79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................81

REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS ......................................................................83

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XIV

RESUMO

A presente monografia trata da autorização judicial

frente ao Ordenamento jurídico Brasileiro, para abortamento de fetos

anencefálicos, anomalia incompatível com a vida extra-uterina. Expõem-se

os limites da questão jurídica do aborto do anencéfalo. Apresenta como

aspectos introdutórios, um histórico do aborto, fazendo um

acompanhamento deste a antiguidade até os dias atuais. O segundo

capítulo trata-se de uma abrangência de forma especifica sobre os abortos

permitidos e como crime no Código Penal Vigente, falando sobre

modalidades, sujeitos e tipos de aborto. Por fim o terceiro capítulo objetiva

demonstrar as diversas respostas sobre a questão da legalidade do

abortamento de fetos portadores de anencefalia, relata as reflexões sobre

os aspectos de mudança de entendimentos pelas instituições jurídicas

brasileiras frente à possibilidade de inclusão do aborto eugênico no rol dos

abortos permitidos, pelo Código Penal Brasileiro, visto não existir essa previsão

legal.

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1

INTRODUÇÃO

O tema abordado por este trabalho contempla uma

espécie de aborto o eugênico, realizado em caso de fetos que apresentam

anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina. Neste caso foram

analisados os casos de anencefalia que é proveniente de um defeito de

fechamento da parte anterior do tubo neural, tendo como principal

característica a falta de desenvolvimento da calota craniana, couro

cabeludo e hemisférios cerebrais.

Diante da tecnologia do avanço da medicina,

acompanhando o desenvolvimento fetal é possível detectar com precisão

anomalias que tornam incompatível a vida extra-uterina. Uma vez

diagnosticada a mal-formação, não há nada para fazer quanto a esse feto.

Acredita-se que o direito não pode ficar estático e não evoluir no sentido de

autorizar a interrupção da gestação.

O referencial central da questão, ou seja, se o Direito

penal deve ou não regular a matéria relacionada com a interrupção da

gestação de um anencéfalo, visto que atualmente tem decisões

judiciais favoráveis e contrarias a pratica do abortamento. As decisões que

autorizam baseiam-se por analogia ao problema da saúde mental da

mulher gestante.

A autorização da Justiça para se fazer o aborto de fetos

anencefálicos é algo difícil de ser aceito nos tribunais e, muitas vezes, em

razão da lentidão do judiciário, quando concedido, a mãe já teve o dever

de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza,

que não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração.

Além de todas as ameaças físicas e psicológicas ao feto

e a gestante, existe a convivência diária com realidade e a lembrança

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2 ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que raramente irá completar um

ano de vida, podem ser comparadas à tortura psicológica.

Assim sendo, quando se dá, entretanto, interrupção da

gravidez, seja qual for o momento da gestação, por deliberação da mulher,

isoladamente ou com a intermediação de terceiro, disso resultando a morte

do feto, ocorre aborto voluntário, a teor dos artigos 124 a 128 do Código

Penal, classificados entre os crimes contra a vida, que não deixam de ser

uma subclasse dos delitos contra a pessoa.

Deste modo, a presente monografia tem por objeto a

análise da legalização do aborto de fetos anencefálicos perante o atual

momento jurídico brasileiro.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, explanações dos

aspectos histórico do aborto desde os primórdios ate a atualidade, com um

conhecimento do tema na Grécia, Roma e Brasil, uma abordagem acerca

do direito a vida, da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico

brasileiro os direitos e garantias do nascituro, ao final conceituando ao final o

aborto na visão de vários doutrinadores, de uma forma especifica.

No Capítulo 2 far-se-á explanação sobre o aborto no

direito penal brasileiro, o crime do aborto no Código Penal Vigente, as

modalidades do aborto, neste sentido aborto pode ser natural, acidental ou

provocado por ação humana, os tipos objetivos e subjetivos do aborto, os

sujeito passivo e ativo, bem como um apanhado geral do aborto Eugênico.

Por fim, o terceiro e último capítulo tratará da

anencefalia, sua definição, o aborto anencéfalo no sistema jurídico atual,

tratando da inviolabilidade do ser e o trauma materno que pode causar os

casos de anencefalias.

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3

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos

destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das

reflexões sobre os aspectos de mudança de entendimentos pelas instituições

jurídicas brasileiras frente à possibilidade de inclusão do aborto eugênico no

rol dos abortos permitidos, pelo Código Penal Brasileiro, visto não existir essa

previsão legal.

Para a presente monografia foram levantadas as

seguintes hipóteses:

• O aborto de fetos anencefálicos não é permitido pelo

direito brasileiro e, portanto, não possui fundamento de legalidade.

* A gravidez de um feto anencéfalo, pode causar um

trauma materno, podendo colocar em risco a vida da gestante, sofrendo a

mesma abalos psicológicos.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na

Fase de Investigação3 foi utilizado o Método Indutivo4, na Fase de

Tratamento de Dados o Método Cartesiano5, e, o Relatório dos Resultados

expresso na presente Monografia é composto na base lógica Indutiva.

3 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do

Referente estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.

4 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104.

5 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26.

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4

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as

Técnicas do Referente6, da Categoria7, do Conceito Operacional8 e da

Pesquisa

6 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado,

delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 62.

7 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 31.

8 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 45.

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Capítulo 1

ABORTO E SUA RELAÇÃO HISTÓRICA E LEGAL COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Se é verdade que Hipócrates jurou que a nenhuma

mulher daria substância abortiva, Aristóteles, por sua vez, sugeria o aborto

para manter o equilíbrio populacional. Já os romanos consideravam o feto

uma parte do corpo da mulher, que dele podia dispor, como lhe

aprouvesse. Com o tempo, entretanto, o aborto passou a ser incriminado,

também em Roma, principalmente depois da influência do cristianismo.

Ainda hoje a incriminação do aborto é discutida entre

todos os povos, com algumas sociedades considerando-o lícito, outras o

tipificando como ilícito, mas justificando sua conduta excepcionalmente.9

O Código Penal Brasileiro considera aborto crime, porém

admite sua prática lícita em duas situações que serão melhor analisadas no

decorrer do presente.

1.2 ASPECTOS HISTÓRICOS

O aborto é a opção de intervir na formação fisiológica

de um feto que poderia vir a nascer, é o poder de privar e intervir no ciclo

natural da gestação.

9 TELES, Ney Moura. Direito Penal: Parte Especial II. São Paulo: Atlas, 2004. p. 171.

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6

Este poder de intervenção e privação é contra a

Constituição, brasileira e de alguns países do mundo que regem leis que

resguarda o direito ao feto.

É importante ressaltar aspectos históricos de alguns

países que proibiram e que autorizaram a prática do aborto.

Dworkin mostra que a Alemanha ocidental embora

muito rigorosa, passou por um processo de liberalização nos anos 70 e ainda

sim exigia um certificado médico da necessidade de abortar, mesmo no

início da gravidez. Assim, os abortos eram praticados somente se houvesse

uma necessidade confirmada pelos médicos.

Já na Alemanha oriental, Dworkin mostra que:

"[...] o aborto era permitido [...], e muitas pessoas viam-no como um

método normal de controle de natalidade. [...] Em 1922, [...] –

permitiu que as mulheres grávidas decidissem por conta própria se

precisavam abortar nos três primeiros meses de gravidez [...]” 10

Segundo histórico de Nelson Hungria, o aborto nem

sempre foi uma conduta criminalizada:

“[...] A prática do aborto é de todos os tempos, mas nem sempre foi

objeto de incriminação: ficava, de regra, impune, quando não

acarretasse dano à saúde ou morte da gestante. Entre os hebreus,

não foi senão muito depois da lei mosaica que se considerou ilícita,

em si mesma, a interrupção da gravidez [...]”. 11

10 DWORKIN, Ronaldo. Domínio da vida, Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São

Paulo: Martins Fontes, 2003. 1. ed. 11 HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. 5 v. p. 269.

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Diante disso, várias razões são apontadas para a

liberação do aborto: um país que não pode manter seus filhos não tem o

direito de exigir seu nascimento; a ameaça penal é ineficaz porque o aborto

raramente é punido; a proibição leva a mulher a entregar-se a profissionais

inescrupulosos. Atualmente, grande número de países não incrimina o aborto

quando provocado até o terceiro mês de gestação, como Suécia,

Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, entre autor. O

Código Penal Brasileiro, por sua vez, não contempla sequer o chamado

aborto honoris causa como tipo de crime privilegiado.12

1.2.1. O ABORTO NOS PRIMÓRDIOS

O aborto foi tratado como conduta criminalizada pela

primeira vez no Código de Hamurábi.

Os primeiros indícios de métodos abortivos são do século

XXVIII a.C. descobertos na China, porém o primeiro documento jurídico que

se tem notícia é o Código de Hammurabi (1728 – 1686 a.C.), onde havia a

imposição de pena pecuniária ao provocador do aborto, levando-se em

consideração a qualidade da gestante. A acidentalidade ou a

voluntariedade do ato, e nos casos de aborto provocado, o pai da gestante

receberia a reparação civil.

12 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 93.

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Apesar de no Egito antigo não constar previsões para o

aborto, na Índia, a Lei de Manu, previa punições, que em certos casos,

poderia, quem provocasse o aborto era submetido desde castigos corporais

até a morte, sendo em partes parecidas com as punições do Código do

Hammurabi, ainda sobre a questão do aborto no Código de Hammurabi,

Ivanildo Alves cita um trecho do Código que traz algumas

punições:

“[...] Se alguém bate em uma mulher nascida livre, de maneira que

ela perde o seu feto, deverá pagar seis siclos de prata pelo feto. Se

ela morrer, a ele deverá ser morta a filha. Se uma mulher não livre,

em conseqüência de agressões, perder o feto, aquele que a

agrediu deverá pagar cinco siclos de prata. Se a mulher morreu

deverá pagar meia mina. Se aquele bate em uma escrava e esta

perde o próprio feto, pagará dois siclos de prata. Se a escrava

morre, deverá pagar um terço de mina [...]” 13.

Nos séculos XIV a VII a.C., os assírios puniam também o

aborto ocasionado por terceiros com diversos tipos de penas, desde golpes

até a decapitação, dependendo da gravidade do resultado, como

também puniam o auto- aborto.

Assim ao se punir a prática do aborto realizado por

terceiro sem a autorização da mulher ou quando esta o realizava em

desatendimento aos sentimentos do genitor, estavam na verdade

13 ALVES, Ivanildo Ferreira. Crimes contra a vida. Belém: UNAMA, 1999. p. 193.

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protegendo a mãe no primeiro caso, ou o pai no segundo caso, de danos

que eventualmente pudessem ocorrer.14

O Código de Hamurabi, por volta do ano de 1.700 a.C.

tipificava o aborto como um crime contra os interesses do pai e de lesões

quanto à mulher.15

No Livro do Êxodo 1000 a.C. encontra-se a seguinte

mensagem:

“[...] Se homens brigarem, e acontecer que venham a ferir uma

mulher grávida, e esta der à luz sem nenhum dano, eles serão

passíveis de uma indenização imposta pelo marido da mulher, e que

pagarão diante dos juízes.. Mas, se houver outros danos, urge dar

vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por

pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe

[...].” 16

Aqueles que nascessem com alguma deformidade, que

sobreviviam por algum período, ou que já nasciam mortos ou sem a cabeça,

eram seres pecadores ou,ainda,era um castigo por a família haver praticado

o mal, e assim Deus lançara a sua fúria sobre aqueles que haviam

desobedecido a Sagrada Escritura.17

14 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.21. 15 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.21. 16 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 21, versículos 22 à 25. 17 FARIA, Emerson Luiz de. Idade Média. Disponível em: < www.nomismatike.hpg.ig.com.br/IdadeMedia.html>. Acesso em 01 set. 2008.

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1.2.2 O ABORTO NA GRÉCIA

As mulheres gregas da época clássica eram vistas

somente em função de seu ventre, de suas capacidades para gerar, para

dar à luz crianças aos homens. Reproduzir é um dever, o único papel social

possível para elas no seio da cidade. Mas este filho, que vem como a

primavera, é freqüentemente indesejado. Então, os médicos e biólogos dos

séc. V e IV a.C., que tratavam de doenças femininas, conhecem e fazem

uso de métodos contraceptivos e abortivos, por vezes curiosos, e muitas

vezes perigosos, para “fazer passar” esta criança que não se quer.

Todas as sociedades conheceram dificuldades e

planejaram modos de vida ou técnicas próprias para evitar o excesso

populacional. Se hoje o parto é uma experiência, na Grécia clássica era um

estado. As mulheres não podiam se furtar ao dever da reprodução, a mulher

era considerada durante toda a sua vida como um ser enquadrado na

minoridade, não tendo autonomia sobre si, vivendo sob a tutela do pai, do

esposo e, na falta destes, o Estado. Os filhos eram considerados propriedade

do pai, que tinha direito de vida e morte sobre eles. Em caso de aborto, sem

o consentimento do marido, a lei previa pena de morte.

Ao que parece, Sócrates era a favor de facilitar o aborto

quando a mulher o desejasse, Platão prescrevia o aborto às mulheres de

mais de 40 anos, como condição de contenção do aumento populacional,

isto é, como parte de planejamento da cidade.

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Na antiga Grécia, o aborto era preconizado por

Aristóteles como método eficaz para limitar os nascimentos e manter estáveis

as populações das cidades gregas. Também no interesse democrático e

eugênico, Aristóteles argumentava favoravelmente ao aborto, desde que o

feto ainda não tivesse adquirido alma. Por sua vez, Platão opinava que o

aborto deveria ser obrigatório, por motivos eugênicos, para as mulheres com

mais de 40 anos e para preservar a pureza da raça dos guerreiros.

Os bebês nascidos com alguma deformidade física eram

abandonados no alto de uma montanha. Na opinião de Platão e Aristóteles,

a morte dos bebês deformados deveria ser imposta pelo Estado. Segundo

Nelson Hungria:

“ [...] acreditavam que era melhor pôr fim a uma vida que

começara inauspiciosamente do que tentar prolongá-la, com todos

os problemas que ela poderia acarretar [...]”. 18

O aborto sempre foi uma conduta bastante utilizada

pelas mulheres, que, devido aos mais diversos motivos, não desejavam gerar

um feto. Desde a Grécia, o aborto era usual e não se restringia, como hoje, a

nenhuma classe específica, afinal, a preocupação de não levar uma

gestação a termo existe em qualquer classe social. Somente o tratamento

concedido às mulheres é que é diferenciado em uma classe social mais

18 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.5. Rio de Janeiro: Forense, 1942. p.233.

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elevada em relação à outra mais baixa. A possibilidade de um melhor

atendimento e de condições mais seguras são garantias para aquelas que

podem pagar por esses serviços.

Sócrates aconselhava às parteiras, por sinal profissão de

sua mãe, que facilitassem o aborto às mulheres que assim o desejassem.

A legislação sobre o aborto em Esparta distinguia-se um

pouco da restante da antiga Grécia. Juridicamente, o aborto era proibido,

mas o Estado poderia decidir sobre o destino dos nascidos malformados,

onde eram eliminados pelos defeitos, o envolvimento de Esparta com a

defesa militar do território grego talvez explique algo desse procedimento,

onde o aumento populacional era importante para a formação de exércitos

guerreiros.

1.2.3 O ABORTO EM ROMA

Na Roma Antiga, o aborto era uma prática comum, até

o surgimento de Jesus Cristo, que imprimiu novos valores para a sociedade,

sendo a vida o maior deles.

Segundo o direito romano, não se considerava persona

ao nasciturus, pelo que na Roma Antiga o aborto era permitido, embora se

lhes reconhecesse direitos. Por exemplo se a mulher grávida fosse

condenada à morte, suspendia-se a execução até o nascimento.

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A situação de dependência da mulher não diferia muito

daquilo que vigorava na Grécia. A anticoncepção era também conseguida

a partir de poções à base de plantas. O aborto não era a princípio,

considerado um crime. O feto não tenha autonomia em relação à mulher,

era considerado como parte integrante de seu corpo e se ela abortasse,

nada mais fazia a não ser expor seu próprio corpo. O aborto era uma prática

comum.

Em outro momento, Roma passou a responsabilizar o

marido (assim como na Grécia), onde esse tomava as decisões direito de

vida ou morte de sua família. Em Roma os direitos do nascituro estavam

resguardados. Tanto é que entre os romanos havia a lei régia, segundo a

qual caso uma mulher grávida morresse seria feito uma espécie de cesárea,

com o intuito de salvar o filho que ainda se encontrava no ventre. 19

1.2.4 O ABORTO NA IDADE MÉDIA

Na Idade Média, de acordo com o “Ancien” Antigo

Regime da França, condenava-se à morte os réus de aborto. A Lei Carolina

(Carlos V, 1553) também condenava a pena de morte, pela espada a quem

fizesse uma mulher abortar, e por afogamento para a mulher que

provocasse o auto-aborto, desde que o feto fosse animado.

19 ALMEIDA, Silmara J.A Chinelato e. Tutela Civil do Nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 22

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Sobre essa época, confirma Celso Papaleo ao comentar

que:

[...] autores do abortamento e seus cúmplices era condenados à

morte e padeciam o confisco de seus bens e valores. A tortura do

culpado antes do enforcamento era imposição das leis dos juízes,

irredutíveis em seu dogmático rigor, que tinha de ser para a

exemplificação dos demais[...]”20.

Verifica-se assim que o aborto neste dado momento

histórico era punido com excessivo rigor, sendo posteriormente denunciado

pelos filósofos do século XVIII, que buscavam a abolição da pena de morte.

E para o crime de aborto, a pena de morte foi sendo abolida aos poucos,

até o momento de ser a pessoa punida somente com a prisão.

Portanto, a liberação do aborto vem se expandido cada

vez mais, aumentando o número de países que autorizam a provocação do

aborto com liberalidade, em diversas circunstâncias, como um direito a ser

exigido pela gestante e a seu critério.

1.3 CONTEMPORANEIDADE DO ABORTO

Há, contudo, três tendências nas legislações atuais. Uma

bastante restritiva, como se faz notar no Código vigente. Outra mais

permissiva, que consente o aborto num maior número de casos (prole

20 Papaleo, Celso Cezar. Aborto e Contracepção – atualidade e complexidade da questão.

Rio de Janeiro: Renovar, 1993. p. 22.

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numerosa e casal sem recursos, idade avançada da mulher, morte ou

incapacidade do pai, mulher não casada). Um terceiro grupo de leis,

bastante liberais, condiam à decisão à mulher e permitem que o médico

decida quanto ao aborto (Japão, Suécia, Rússia, Hungria). A Suprema Corte

dos Estados Unidos decidiu, em 1973, com base na privacy, a legalidade do

aborto nos três primeiros meses de gravidez. Essa tendência liberal abortiva

acelerou-se em vários países, a partir de 1967.21

Conforme asseverado acima, várias são as posições

dentre os mais variados povos acerca da incriminação ou não do aborto,

razão pela qual, torna-se viável seu estudo em algumas civilizações

específicas.

1.3.1 ABORTO NO BRASIL

No Brasil Colônia, durante a vigência das Ordenações

(afonsinas, manuelinas ou filipinas) e em suas leis extravagantes, não

mencionavam o aborto, mas durante o Reino este era punido, como

equiparado ao venifício.

No Império, o Código Criminal do Império de 1830 não

criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Punia somente o

realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante.

Criminalizava, na verdade, o aborto consentido e o aborto sofrido, mas não 21 COSTA JUNIOR, Paulo José da. Direito Penal Objetivo. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2003. p. 203.

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o aborto provocado, ou seja, o auto-aborto. A punição somente era imposta

a terceiros que interviessem no abortamento, mas não à gestante, em

nenhuma hipótese. O fornecimento de meios abortivos também era punido,

mesmo que o aborto não fosse praticado, como uma espécie, digamos, de

criminalização dos atos preparatórios. Agravava-se a pena se o sujeito ativo

fosse médico, cirurgião ou similar.22

O artigo 199 do Código Criminal do Império definia

como crime, conforme transcreve Maria José Araújo:23

“[...] ocasionar aborto por qualquer meio empregado, interior ou

exteriormente, com consentimento da mulher pejada [...]”.

E tinha como pena a prisão com trabalho durante cinco

anos, quando da tentativa ou da cumplicidade no aborto.

A mesma norma, ainda previa a duplicação da pena,

quando o crime fosse praticado “por médico, boticário ou cirurgião ou

ainda praticante de tais artes”, considerado como crime muito grave, com

pena superior ao da provocação do aborto com o consentimento da

gestante.

22 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 126. 23 Maria José Araújo. O que é o Aborto. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.12.

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Importa-se comentar, que conforme Genival de França,

o Código Penal do Império era falho, no sentido de que não previa punição

em caso de morte da gestante, bem como, ao não prever o aborto

necessário.

O Código Penal de 1890, por sua vez, distinguia o crime

de aborto caso houvesse ou não a expulsão do feto, agravando-se se

ocorresse a morte da gestante. Esse Código já criminalizava o aborto

praticado pela própria gestante. Se o crime tivesse a finalidade de ocultar

desonra própria a pena era consideravelmente atenuada. Referido Código

autorizava o aborto para salvar a vida da parturiente; nesse caso, punia

eventual imperícia do médico ou parteira que, culposamente, causassem a

morte da gestante.24

Já o Código Penal de 1940, trazia em seu bojo três

figuras de aborto: aborto provocado (art. 124), aborto sofrido (art. 125), e

aborto consentido (art. 126).

As concepções médicas discordantes da presunção do

Código Civil merecem consideração e, concretamente, são fundamentais

na seara criminal, que não convive com meras presunções legais ou não.

24 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 127.

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18

Porém, o Código Penal de 1940 foi publicado segundo a

cultura, costumes e hábitos dominantes na década de 30. Passaram mais de

sessenta anos, e, nesse lapso, não foram apenas os valores da sociedade

que se modificaram, mas principalmente os avanços científicos e

tecnológicos, que produziram verdadeira revolução na ciência médica. No

atual estágio, a Medicina tem condições de definir com absoluta certeza e

precisão eventual anomalia do feto e, conseqüentemente, a inviabilidade

de vida extra-uterina. Nessas condições, é perfeitamente defensável a

orientação do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal,

que autoriza o aborto quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis

anomalias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico

ou piedoso.25

Diante disso, é que atualmente no Brasil existe a proposta

de um Anteprojeto de Lei, que está tramitando no Congresso Nacional,

alterando o Código Penal, inclui uma terceira possibilidade quando da

constatação anomalias fetais.

Esta situação já vem sendo considerada pela Justiça

brasileira, apesar de não estar ainda legislada. Desde 1993, foram

concedidos mais de 350 alvarás para realização de aborto em crianças mal

formadas, especialmente anencéfalos. Os juízes inicialmente solicitavam que

o médico fornecesse um atestado com o diagnóstico da mal formação, 25 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 127.

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além de outros três laudos para confirmação, um outro laudo psiquiátrico

sobre o risco potencial da continuidade da gestação e um para a cirurgia.

Ao longo deste período estas exigências foram sendo abrandadas. Em

algumas solicitações os juízes não aceitaram a justificativa, e não

concederam o alvará tendo em vista a falta de amparo legal para a

medida.

Até porque, o Código Penal, que atualmente vigora em

no país, data de 1940. Os dois primeiros, de 1830 e 1890, já anteriormente

mencionados, eram bem mais rigorosos que o atual, não prevendo a

exceção do aborto para salvar a vida da mãe ou em caso de gravidez

decorrente de estupro, conforme se tem hoje. Segundo o Código Penal hoje

em vigor, estas duas modalidades de aborto previstas por lei só podem ser

praticadas por médicos; o auto-aborto é punido, teoricamente, da mesma

forma que o praticado por terceiros, sendo menor a pena para o primeiro

(detenção de 1 a 3 anos, de acordo com o artigo 124).

Nesse diapasão, o Código Civil procurou definir, no art.

1.597, a duração da gravidez, nos seguintes termos:

[...]Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I -

nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a

convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subseqüentes à

dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial,

nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação

artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a

qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,

decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por

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20

inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia

autorização do marido [...].26

Constata-se que referido diploma legal estabeleceu

dois limites para a duração da gravidez: um máximo, de 300 dias, e um

mínimo, de 180. Evidentemente que há um descompasso entre essa pre-

sunção do Código Civil e o entendimento dos especialistas em Medicina

Legal. No entanto, embora o ponto de vista jurídico não se confunda com o

ponto de vista médico, era necessário garantir a segurança e a paz da

família, estando autorizado, portanto, o legislador a adotar algum limite

como parâmetro. Quanto às previsões constantes dos incisos III, IV e V, por

ora nao demandam, em termos penais, nenhum comentário.

Atualmente a Constituição Brasileira de 1988 reconhece

a igualdade de direitos e de qualificações relativamente à filiação, havida

ou não da relação matrimonial, proibindo quaisquer designações

discriminantes (art. 227, § 6°, da CF). Perdeu significado aquela presunção

juris tantum do Código Civil. Assim, é absolutamente proibido adjetivar

filiação com as designações "filhos legítimos", "naturais", "adulterinos",

"incestuosos" etc.27

26BRASIL. Código Civil. In Vademecum Saraiva. Organizado por Antonio Luiz de Toledo Pinto,

Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. art. 1597.

27BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 128.

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1.4 CONCEITO DE ABORTO

A palavra aborto advém do latim (ab “privação” e ortus

“nascimento”), significando a interrupção da gestação e a conseqüente

expulsão do feto, resultando na sua morte. O Direito Brasileiro prescreve

como sendo crime a prática do aborto, no entanto, permite flexibilizações.

O aborto é considerado como a interrupção da gravidez

com a morte do feto. Preferem alguns o termo abortamento para a

designação do ato de abortar, uma vez que a palavra aborto se referiria

apenas ao produto da interrupção da gravidez. Outros entendem que o

termo legal, aborto, é melhor, quer porque está no gênio da língua dar

preferência às formas contraídas, quer porque é o termo de uso corrente.

No âmbito jurídico a definição do aborto encontra-se na

doutrina, associação entre a interrupção da gravidez com a morte do

produto da concepção, em qualquer fase do ciclo gravídico. Com muita

propriedade pode-se destacar o conceito de aborto na doutrina de

Mirabete:

“[...] Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do

produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas da

gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três

meses), não implicando necessariamente sua expulsão [...]”28

28 MIRABETE,Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. v. 2, 2005, p.93

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No mesmo sentido, Ney Moura Teles define aborto como:

“[...] Aborto é a interrupção da gravidez com a morte do ser humano

em formação. A gravidez, que começa com a fecundação do óvulo

pelo espermatozóide, é o processo de formação do ser humano que

termina com o início do parto [...].”29

Segundo Delmanto é “a interrupção do processo de

gravidez, com a morte do feto”.30

Antônio Chaves comenta que o aborto é “a interrupção

voluntária da gravidez, com expulsão do feto, provocada pela gestante ou

por terceiro, com ou sem o consentimento dela, com a conseqüente morte

do produto da concepção”.

Ao longo da obra Domínio da Vida de Dworkin, pode-se

perceber como define o aborto:

“[...]O aborto, que significa matar deliberadamente um embrião

humano em formação, e a eutanásia, que significa matar

deliberadamente uma pessoa por razões de benevolência,

constituem, ambos, práticas nas quais ocorre a opção pela morte.

No primeiro caso, opta-se pela morte antes que a vida tenha

realmente começado; no segundo, depois que tenha terminado

[...].”31

29TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: artigos 121 a 212, v. 2. São Paulo: Atlas,

2004. 30 DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.268. 31 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.01

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Paulo Nogueira conceitua que o aborto “consiste na

interrupção da gravidez com a morte do feto, sendo irrelevante que a morte

ocorra no ventre materno ou depois da prematura expulsão provocada”32

Colaborando com este entendimento, assim define Hélio

Cláudio Fragoso, acerca do conceito de aborto:

“[...] O aborto consiste na interrupção da gravidez com a morte do

feto. Pressupõe, portanto, a gravidez, isto é, o estado de gestação,

que para os efeitos legais, inicia-se com a implantação do ovo na

cavidade uterina. (...). A ação incriminada consiste na interrupção

da gravidez, destruindo-se o produto da concepção ou

provocando-se a morte do feto, sem que se exija a sua expulsão[...]”. 33

Desta feita, no rigor etimológico, abortamento é o ato de

abortar, aborto é o produto morto, ou expelido. Em regra, o feto é expulso.

Por vezes, interrompida a gestação, há a dissolução e e reabsorção do

embrião. Ou poderá ocorrer a mumificação ou a calcificação do feto, que

permanece no útero sem ser expulso.34

Para alguns doutrinadores, há diferença do vocábulo

aborto quando da concepção jurídica ou médica. Sua definição médica

consistiria na interrupção da gravidez no período em que o feto não é ainda

viável podendo esta ser natural como determinada, não importando se a

32 Nogueira, Paulo Lúcio. Em defesa da vida: aborto, eutanásia, pena de morte, suicídio, violência, linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995. p.10. 33 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Bushatsky, 1976.

p 127-128. 34 COSTA JUNIOR, Paulo José da. Direito Penal Objetivo. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2003. p. 203.

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expulsão do feto resulta ou não de manobras abortivas adequadas.

Enquanto que juridicamente é a destruição ou aniquilamento do produto da

concepção em qualquer dos momentos anteriores ao término da gravidez,

sem se levar em conta os requisitos de viabilidade, idade e formação

regular.

Nesse sentindo, Almeida Jr. E Costa Jr. ensinam que:

“[...] Aborto é a interrupção da gravidez antes do tempo normal,

produzindo a morte do produto da concepção. Os obstetras

distinguem entre aborto e parto prematuro: usam aquela expressão

quando a gravidez se interrompe antes do sexto mês; usam esta

quando se interrompe depois. Para o médico-legista, havendo morte

do produto, trata-se de aborto [...].” 35

Continua ainda o autor, relatando que na verdade o

legislador deveria ter se utilizado do termo abortamento, pois esta indica o

ato de abortar. No entanto acabou-se por optar pela palavra aborto por ser

esta mais comumente empregada.

O aborto é crime de forma livre, ou seja, para o direito

penal não importa a forma como tenha sido praticado, o importante é que

da conduta advenha o resultado descrito na norma. Desta forma, havendo

prova da gravidez, e que a ação ou omissão do agente, ocasionou a morte

do feto, haverá o enquadramento no tipo.

35 Almeida Junior, A. e Costa Junior. Lições de Medicina Legal. v.1, 2003 . p. 86

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Assim, verifica-se um tema bastante polêmizado, eis que

o bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora,

rigorosamente falando, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da

concepção - feto ou embrião - não é pessoa, embora tampouco seja mera

esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns

doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento

autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto é provocado por terceiro, o

tipo penal protege também a incolumidade da gestante.

Comparativamente ao crime de homicídio, apresentam-

se duas particularidades: uma em relação ao objeto da proteção legal e

outra em relação ao estágio da vida que se protege: relativamente ao

objeto, não é a pessoa humana que se protege, mas a sua formação

embrionária; em relação ao aspecto temporal, somente a vida intrauterina,

ou seja, desde a concepção até momentos antes do início do parto.

O Código Civil também assegura os direitos do nascituro

desde a concepção (arts. 1.609, 1.611 e 1. 799).36

1.5. DO DIREITO À VIDA

O direito à vida é o primeiro dos direitos naturais, daí o

seu caráter inviolável, intemporal e universal. Todos os direitos são invioláveis;

não existe direito passível de violação e a Constituição Federal fez questão

36 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 128.

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de frisar a inviolabilidade do direito à vida exatamente por se tratar de direito

fundamental.

Trata-se, pois, de direito fundamental do homem, porque

é dele que decorrem todos os outros direitos. É também um direito natural,

inerente à condição de ser humano. Por isso, a Constituição Federal do Brasil

declara que o direito à vida é inviolável. Diz o artigo 5º da Constituição:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida...” 37

Em sua obra, Comentários à Constituição, José

Cretella Junior, institui que:

“[...] Bastaria que se tivesse dito ”o direito“ ao invés de ”a

inviolabilidade do direito à vida“. Se ”vida é um direito“ garantido

pelo Estado, esse direito é inviolável, embora não ”inviolado”. Se eu

digo que é “inviolável” (a correspondência, a intimidade, a

residência, o sigilo profissional), “ipso facto”, estou querendo dizer

que se trata de rol de bens jurídicos dotados de inviolabilidade

(inviolabilidade da correspondência, da intimidade, da residência,

do sigilo profissional)... O direito à vida é o primeiro dos direitos

invioláveis, assegurados pela Constituição. Direito à vida é expressão

que tem, no mínimo, dois sentidos, (a) o “direito a continuar vivo,

embora se esteja com saúde” e (b) “o direito de subsistência”. O

primeiro, ligado à segurança física da pessoa humana, quanto a

agentes humanos ou não, que possam ameaçar-lhe a existência; o

37 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 63- 64.

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segundo, ligado ao “direito de prover à própria existência, mediante

trabalho honesto [...]”.38

No mesmo sentido tem-se as considerações de Maria

Helena Diniz:

“[...] O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os

demais direitos da personalidade. A Constituição Federal de 1988,

em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou

seja, a integralidade existencial, conseqüentemente, a vida é um

bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a

concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da

formação da pessoa[...].”39

No que diz respeito à Constituição da Repúlbica

Federativa do Brasil de 1988 esta guarda ao bem-jurídico vida, em seu artigo

5°, caput, e também pela disposição do tema na legislação

infraconstitucional, o aborto é prática que afronta incisivamente o direito à

vida. O desrespeito aos direitos do nascituro, as funestas técnicas usadas

para extirpar a vida humana de seu nascedouro, os medicamentos

abortivos, são rotinas infelizes em hospitais e nos anais da polícia, neste

sentido é correto afirmar que o aborto, fora dos casos legais e morais, fere o

direito fundamental à vida, deixando entrever casos de sua inexigibilidade

jurídica.

38 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. v. I, art. 1º a 5º,

LXVII. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p.182/183. 39 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 22/24.

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Nesse sentido o constitucionalista Alexandre de Moraes:

“[...] A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a

lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros

e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O

direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se

constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais

direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida,

cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a

primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se

ter vida digna quanto à subsistência [...]”.40

A Constituição atual estabelece como um dos

fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (Art 1°), fazendo

assim, uma proclamação do valor universal e fixando, definitivamente, a

inviolabilidade do direito à vida (art. 5°) como direito fundamental, firma o

pensamento constitucional brasileiro em relação ao direito de todos à vida e

a respeito à sua dignidade.

Neste sentido qualquer ação contra a vida, toda medida

que permita interrompê-la em seu desenvolvimento intra-uterino ou em

qualquer fase da existência, seja qual for a justificação, comparece,

inequivocamente, como inconstitucional.

1.6 DOS DIREITOS DO NASCITURO 40 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª edição, São Paulo: Atlas, 2002, p. 63 e

64.

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29

O ponto de partida é: a vida é um bem indispensável. A

defesa dessa tese, no caso do tema do aborto, leva a seguinte questão:

Onde começa a vida humana? Onde começam os direitos do nascituro?

Não se tem uma unanimidade se a vida inicia-se com a fecundação, com o

nascimento ou ainda entre estas duas fases.

Dentre vários conceitos, nascituro é o ser já concebido,

que está gerado, para nascer, desde a concepção até o nascimento com

vida, o embrião é um nascituro, gerado e concebido com existência no

ventre materno. O Código Civil protege as expectativas de direito do

nascituro, que se confirmam se houver nascimento com vida.

Sendo assim, desde a concepção, deve o nascituro ser

protegido, haja possibilidade de vida, o início do ser humano ocorre quando

o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozóide masculino sendo

formado o zigoto, que seria o óvulo fertilizado, se dando assim o início da

concepção

Passando fase da fertilização, ocorre uma segunda fase,

onde o zigoto passa a ser denominada mórula, fase atingida depois de três

dias em que ocorreu a fertilização. Nesta fase o ser humano está pronto,

vindo da trompa uterina para fixar-se no útero da mulher. Logo após a

formação das células desenvolvidas, dar-se-á origem ao embrião, a partir

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desse momento, o embrião passa a ser chamado de feto e dá-se início ao

período fetal, que vai da nona semana até o nascimento.

Diante da discussão, o autor Washington de Barros

Monteiro, com a experiência de um grande civilista esclarece:

"[...] Discute-se se o nascituro é pessoa virtual, cidadão em germe,

homem in spem. Seja qual for a conceituação, há para o feto uma

expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não

pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos. Mas

para que estes se adquiram, preciso é que ocorra o nascimento com

vida. Por assim dizer, nascituro é pessoa condicional; a aquisição da

personalidade acha-se sob a dependência de condição suspensiva,

o nascimento com vida. A esta situação toda especial chama Planiol

de antecipação da personalidade [...]".41

O Código Civil brasileiro42, em vigor desde janeiro de

2003, propõe, em seu artigo 2º, que: "A personalidade civil da pessoa

começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a

concepção, os direitos do nascituro”.

O nascituro, embora não tenha personalidade, tem

capacidade para adquirir por testamento SÍLVIO RODRIGUES diz:

“[...] Suponha-se que um indivíduo morreu deixando esposa grávida;

se a criança nascer morta, o patrimônio do de cujus passará aos

41 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v.1: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 90. 42 BRASIL. Código Civil Brasileiro: principais alterações comentadas: anotações, legislação.

São Paulo: Saraiva, 2003.

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herdeiros deste, que podem ser seus pais, se ele os tiver; se a criança

nascer viva, morrendo no segundo subseqüente, o patrimônio de seu

pai pré-morto passará aos herdeiros do infante, no caso, sua mãe

[...]" 43

Ressalta-se ainda a disposição feita pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), em seu art. 7º, ao prever que a

criança e o adolescente “têm direito à proteção, à vida e à saúde,

mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o

nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas

de existência”.

43 Sílvio Rodrigues. Direito das Sucessões. 15a ed. São Paulo, Saraiva, 1988, p. 192.

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Capítulo 2

ABORTO – ESPÉCIES E CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS 2.1 O CRIME DE ABORTO NO CÓDIGO PENAL VIGENTE

Conforme exposto no capítulo anterior, entende-se por

aborto a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da

concepção.

Com o advento do Código Penal de 1940, por sua vez,

foram tipificadas três figuras de aborto: aborto provocado (art. 124), aborto

sofrido (art. 125), e aborto consentido (art. 126). Na primeira hipótese, a

própria mulher assume a responsabilidade pelo abortamento; na segunda,

repudia a interrupção do ciclo natural da gravidez, ou seja, o aborto ocorre

sem o seu consentimento; e, finalmente, na terceira, embora a gestante

não o provoque, consente que terceiro realize o aborto.44

Vem ainda, regulamentado nos arts. 127 e 128 de

referido diploma legal. Sendo que, traz o art. 127 sua forma qualificada; e, o

art. 128, as possibilidades em que não há punição no aborto.

Cabe transcrever referido dispositivo:

“[...] Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

44 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 127.

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II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de

consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu

representante legal[...]”.45

Tutela-se em referidos artigos a vida humana em

formação. Protege-se também a vida e a integridade corporal da mulher

gestante no caso do aborto provocado por terceiro sem seu

consentimento.46

2.2 DAS MODALIDADES DE ABORTO

O aborto pode ser natural, acidental ou provocado por

ação humana.

2.2.1 DO ABORTO NATURAL OU ESPONTÂNEO

O aborto natural ou espontâneo é aquele ditado pelo

próprio organismo da gestante, pelas mais diversas causas. É a própria

natureza atuando no sentido de não permitira conclusão do processo

gravídico, o que as vezes acontece sem que a gestante o perceba,

mormente nas primeiras semanas.

45 BRASIL. Código Penal. In Vademecum Saraiva. Organizado por Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. art. 128. 46 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 21. ed. São Paulo: Atlas,

2003. p. 94.

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Aborto acidental ocorre em razão de uma causa

externa, um traumatismo decorrente de uma queda, a ingestão de uma

substância inadequada, mas cujo poder destrutivo era desconhecido, enfim,

por qualquer razão externa não dominada pela vontade de provocar o

aborto.

2.2.2 DO ABORTO PROVOCADO

Aborto provocado, por sua vez, é aquele causado por

condutas humanas dirigidas à interrupção da gravidez, com o fim de impedir

o desenvolvimento e nascimento do ser humano em formação. Pode ser

crime ou não.47

Como crime de forma livre, qualquer meio e qualquer

forma de comportamento podem ser utilizados na "provocação" do aborto,

desde que tenha idoneidade para produzir o resultado. Assim, benzedeiras,

rezas, despachos e similares não são idôneos para provocar o aborto e

caracterizam crime impossível, por absoluta ineficácia do meio (art. 17 do

CP).48

A ação de provocar o aborto tem a finalidade de

interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção. Ela se exerce

sobre a gestante ou também sobre o próprio feto ou embrião. E só há crime

47 TELES, Ney Moura. Direito Penal: Parte Especial II. São Paulo: Atlas, 2004. p. 172. 48 BRASIL. Código Penal. In Vademecum Saraiva. Organizado por Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Art. 17.

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quando o aborto é provocado; se é espontâneo, não existe crime. Se os

peritos não podem afirmar, por exemplo, que o aborto foi provocado, não

há certeza da existência de crime, e sem tal certeza não se pode falar em

aborto criminoso.

O núcleo dos tipos, em suas três variações, é o verbo

provocar, que significa causar, promover ou produzir o aborto. As

elementares especializantes, como "em si mesma", "sem o consentimento da

gestante" e "com o consentimento da gestante", determinarão a

modalidade ou espécie de aborto, além da particular figura "consentir", que

complementa o crime próprio ao lado do auto-aborto. Assim, tem-se as

figuras do aborto provocado (auto-aborto) ou consentido (duas figuras

próprias); aborto consensual (com consentimento) e aborto sem

consentimento da gestante.49

O crime de aborto exige as seguintes condições

jurídicas: dolo, gravidez, manobras abortivas e a morte do feto, embrião ou

óvulo.

2.2.2.1 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

O art. 124 do Código Penal Brasileiro tipifica duas

condutas por meio das quais a própria gestante pode interromper sua

49 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 130.

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gravidez, causando a morte do feto: com a primeira, ela mesma provoca o

abortamento; com a segunda, consente que terceiro lho provoque. Tratase,

nas duas modalidades, de crime de mão própria, isto é, que somente a

gestante pode realizar. Mas, como qualquer crime de mão própria, admite

a participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a

instigar, induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o auto-aborto como a

consentir que terceiro lho provoque. Contudo, se o terceiro for além dessa

mera atividade acessória, intervindo na realização propriamente dos atos

executórios, responderá não como co-autor, que a natureza do crime não

permite, mas como autor do crime do art. 126 do CP.

A conduta típica, com efeito, no auto-aborto, consiste

em provocar o aborto em si mesma, isto é, interromper a sua própria

gestação; mas a gestante pode praticar o mesmo crime com outra

conduta, qual seja, a de consentir que outrem lhe provoque o aborto. Nesta

segunda figura, consentir no aborto, exigem-se dois elementos: a)

consentimento da gestante; b) execução do aborto por terceiro.

Concluindo, a mulher que consente no aborto incidirá

nas mesmas penas do auto-aborto, isto é, como se tivesse provocado o

aborto em si mesma, nos termos do art. 124 do CP. A mulher que consente

no próprio aborto e, na seqüência, auxilia decisivamente nas manobras

abortivas pratica um só crime, pois provocar aborto em si mesma ou

consentir que outrem lho provoque é crime de ação múltipla ou de

conteúdo variado. Quem provoca o aborto, com o consentimento da

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gestante, pratica o crime do art. 126 do mesmo estatuto e não o do art. 124.

Assim, por exemplo, o agente que leva a amásia à casa da parteira,

contrata e paga os seus serviços é autor do crime tipificado no art. 126,

enquanto a amásia, que consentiu, incorre no art. 124. Enfim, o aborto

consentido não admite co-autoria entre o terceiro e a gestante,

constituindo uma das exceções à teoria monística da ação, que é a

consagrada pelo Código Penal. E quem provoca aborto sem

consentimento da gestante incorre nas sanções do art. 125.50

2.2.2.2 Aborto "consentido" e teoria monística da ação

A segunda figura do art. 124 do Código Penal - consentir

que lhe provoquem o aborto - encerra dois crimes: um para a gestante que

consente (art. 124), outro para o sujeito que provoca o aborto (art. 126).

Em relação à gestante que consente e ao autor que

provoca materialmente o crime de aborto consentido não se aplica o

disposto no caput do art. 29 do CP, constituindo uma das exceções à teoria

monística da ação, que é a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro.

Na verdade, referida teoria não faz qualquer distinção

entre autor e partícipe, instigação e cumplicidade. Todo aquele que

concorre para o crime causa-o em sua totalidade e por ele responde

integralmente. Embora o crime seja praticado por diversas pessoas,

50 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 130-131.

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permanece único e indivisível. O crime é o resultado da conduta de cada

um e de todos, indistintamente.

Essa concepção parte da teoria da equivalência das

condições necessárias à produção do resultado. No entanto, o fundamento

maior de tal teoria é político-criminal, que prefere punir igualmente a todos

os participantes de uma mesma infração penal.

Essa foi a teoria adotada pelo Código Penal de 1940,

que evitou uma série de questões que naturalmente decorreriam das

definições de autores, partícipes, auxílio necessário, auxílio secundário,

participação necessária etc.

A reforma penal de 1984 permanece acolhendo essa

teoria. Procurou, contudo, atenuar os seus rigores, distinguindo com precisão

a punibilidade de autoria e participação. Estabeleceu alguns princípios

disciplinando determinados graus de participação. Adotou, como regra, a

teoria monística, determinando que todos os participantes de uma infração

penal incidem nas sanções de um único e mesmo crime e, como exceção,

a concepção dualista, mitigada, distinguindo a atuação de autores e

partícipes, permitindo uma adequada dosagem de pena de acordo com a

efetiva participação e eficácia causal da conduta de cada partícipe, na

medida da culpabilidade perfeitamente individualizadas.

Na verdade, os parágrafos do art. 29 do Código Penal

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39

aproximaram a teoria monística da teoria dualística ao determinar a

punibilidade diferenciada da participação. 51

2.2.2.3 Aborto provocado sem consentimento da gestante

Esta modalidade de aborto, trata-se da mais grave no

ordenamento jurídico. Ao contrário da figura típica do art. 126 do Código

Penal, não há o consentimento da gestante no emprego dos meios ou

manobras abortivas por terceiro. Esta ausência de consentimento constitui

aspecto elementar do tipo penal. 52

Esta modalidade de aborto (sem consentimento da

gestante - art. 125 do CP) - aborto sofrido – além de punição mais grave,

pode assumir duas formas: sem consentimento real ou ausência de

consentimento presumido (não maior de 14 anos, alienada ou débil mental).

Nessa modalidade de aborto, a ausência de consentimento constitui

elementar negativa do tipo. Logo, se houver consentimento da gestante,

afastará essa adequação típica.

Logicamente que, em se tratando de aborto, o eventual

consentimento não elimina simplesmente a tipicidade, mas apenas a

desloca para outro dispositivo legal, pelas peculiaridades do próprio crime

51 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 132. 52 CAPEZ, Fernando. Direito Penal: Parte Especial. 11. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2004.

p. 78.

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de aborto, que pode ser com ou sem consentimento.53

Há ainda, outros casos em que o legislador considera

inválido o consentimento da gestante, como no caso da menor de 14 anos,

por não ser livre e espontâneo, de modo que, ainda que aquele esteja

presente, a conduta do agente será enquadrada no tipo penal do art. 125

do Código Penal. Assim tipifica-se o crime do art. 125 e não do art. 126 do

Código Penal ainda nas seguintes hipóteses:

“[...]Violência: é o emprego da força física. Por exemplo: homicídio

de mulher grávida com o conhecimento da gravidez pelo homicida.

Fraude: é o emprego de ardil capaz de induzir a gestante em erro.

Por exemplo: médico que, a pretexto de realizar exames de rotina

na gestante, faz manobras abortivas.

Grave ameaça: é a promessa de um mal grave, inevitável ou

irresistível. Por exemplo: marido desempregado que ameaça se

matar se a mulher não abortar a criança, pai que ameaça expulsar

a filha de casa se ela não abortar [...]”.54

Desta feita, é errônea a idéia de que o agente que

provoca aborto sem consentimento da gestante não responde pelo crime

de constrangimento ilegal, uma vez que esse constrangimento integra a

definição desse crime de aborto, cuja sanção é consideravelmente superior

em razão exatamente dessa contrariedade da gestante.

53 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 132. 54 CAPEZ, Fernando. Direito Penal: Parte Especial. 11. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2004.

p. 79.

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Para provocar aborto sem consentimento da gestante

não é necessário que seja mediante violência, fraude ou grave ameaça;

basta a simulação ou mesmo dissimulação, ardil ou qualquer outra forma de

burlar a atenção ou vigilância da gestante. Em outros termos, é suficiente

que a gestante desconheça que nela está sendo praticado o aborto. Essas

são formas de ausência de consentimento real, que também pode ser

presumida, quando estiverem presentes aquelas condições elencadas no

art. 224.55

Distingue-se, ainda, a provocação do aborto sem o

consentimento da gestante do homicídio, que ocorre quando a conduta de

matar o agente é posteior ao início do parto. Distingue-se do crime de

lesões corporais seguida de aborto pelo elemento subjetivo: havendo dolo

direto ou eventual quanto à interrupção da gravidez, há aborto em

concurso material com lesão corporal; havendo culpa, apenas o crime de

lesão corporal.56

2.2.2.4 Aborto provocado com consentimento da gestante

Aborto com consentimento, ou aborto consensual (art.

126 do CP), constitui exceção à teoria monística adotada pelo Código.

Quem provocar aborto com consentimento da gestante não será co-autor

55 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 132. 56 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 995.

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do crime capitulado no art. 124, a despeito do preceito do art. 29 do CP,

mas responderá pelo delito previsto no art. 126.

Essa exceção à teoria monística, no crime de aborto

consensual, fundamenta-se no desnível do grau de reprovabilidade.que a

conduta da gestante que consente no aborto apresenta em relação à

daquele que efetivamente pratica o aborto consentido. Com efeito, a

censura da conduta da gestante que consente, na ótica do legislador, é

consideravelmente inferior à conduta do terceiro que realiza as manobras

abortivas consentidas. O desvalor do consentimento da gestante é menor

que o desvalor da ação abortiva do terceiro que, concretamente, age, isto

é, realiza a atividade de provocar o aborto. Consentir merece determinado

grau de censura, ao passo que executar a conduta consentida, definida

como crime de aborto, recebe uma censurabilidade bem mais elevada,

pois implica a comissão do aborto criminalizado: a conduta da primeira

assemelha-se à conivência, embora não possa ser adjetivada de omissiva,

enquanto a do segundo é comissiva.

Convém destacar que o aborto consentido (art. 124, 2ª

figura) e o aborto consensual (art. 126) são crimes de concurso necessário,

pois exigem a participação de duas pessoas, a gestante e o terceiro

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43

realizador do aborto, e, a despeito da necessária participação de duas

pessoas, cada um responde, excepcionalmente, por um crime distinto.57

2.3. SUJEITOS DO CRIME DE ABORTO

De acordo com as figuras tipificadas no Código Penal,

têm-se assim divididos os sujeitos ativos dos crimes de aborto.

Sujeito ativo no auto-aborto e no aborto consentido (art.

124 do CP) é a própria mulher gestante. Somente ela própria pode provocar

em si mesma o aborto ou consentir que alguém lho provoque, tratando-se,

portanto, de crime de mão própria.

No aborto provocado por terceiro, com ou sem

consentimento da gestante, sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,

independentemente de qualidade ou condição especial.

Sujeito passivo, no auto-aborto e no aborto consentido

(art. 124 do CP), é o feto, ou, genericamente falando, o produto da

concepção, que engloba óvulo, embrião e feto (há divergência

doutrinária). Nessa espécie de aborto, concorda-se com Heleno Fragoso, a

57 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 133.

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44

gestante não é ao mesmo tempo sujeito ativo e sujeito passivo, não

havendo crime na autolesão. Ela é somente sujeito ativo do crime.58

Há que se falar ainda, que alguns doutrinadores

apontam o Estado como sujeito passivo nessa modalidade de aborto, já

que, é o interessado no nascimento, e não o feto, ou seja, o produto da

concepção, que não é titular de bens jurídicos, embora a lei civil resguarde

os direitos do nascituro.59

A gestante é sujeito passivo no aborto provocado por

terceiro sem seu consentimento. Nessa espécie de aborto, há dupla

subjetividade passiva: o feto e a gestante.

No crime de aborto não se aplica a agravante genérica

do art. 61, II, h (crime contra gestante), pois fica subsumida no tipo central.60

2.4. TIPOS OBJETIVO E SUBJETIVO NO CRIME DE ABORTO

De modo geral, os Códigos Penais não definem em que

consiste o aborto, dando origem à dúvida sobre se é suficiente a expulsão

do feto ou se é necessária a ocorrência da morte para caracterizá-Io. O

atual Código Penal também não o define, limitando-se a adotar a fórmula

58 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 128. 59 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 988. 60 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 128.

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neutra e indeterminada "provocar aborto", algo semelhante a, somente

para exemplificar, "provocar homicídio", em vez de "matar alguém".

O Direito Penal protege a vida humana desde o

momento em que o novo ser é gerado. Formado o ovo, evolui para o

embrião e este para o feto, constituindo a primeira fase da formação da

vida. A destruição dessa vida até o início do parto configura o aborto, que

pode ou não ser criminoso. Após iniciado o parto, a supressão da vida

constitui homicídio, salvo se ocorrerem as especiais circunstâncias que

caracterizam o infanticídio, que é uma figura privilegiada do homicídio (art.

123).

Aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o

limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a

concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intra-uterina.

Para se configurar o crime de aborto é insuficiente a simples expulsão

prematura do feto ou a mera interrupção do processo de gestação, mas é

indispensável que ocorram as duas coisas, acrescidas da morte do feto, pois

somente com a ocorrência desta o crime se consuma.61

Hélio Gomes dá a definição, a nosso juízo, mais completa

do aborto criminoso, nos seguintes termos:

61 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 129.

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"[...] É a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja

ou não expulsão, qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a

concepção até momentos antes do parto [...]".62

Essa definição, além de destacar que a interrupção

deve ser ilícita, ou seja, não autorizada por lei, sustenta, com absoluto

acerto, a irrelevância de eventual expulsão do feto e estabelece o

momento derradeiro em que a conduta pode tipificar o crime de aborto,

qual seja, "momentos antes do parto".63

O crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é

indispensável que o feto esteja vivo. A morte do feto tem de ser resultado

direto das manobras abortivas. A partir do início do parto, o crime será

homicídio ou infanticídio.

Os processos utilizados, por sua vez, podem ser químicos,

orgânicos, físicos ou psíquicos. Assim, são substâncias que podem provocar

a intoxicação do arganismo da gestante e consequente aborto o fósforo, o

chumbo, o mercúrio, o arsênico, e asquininia, a estricnina, o ópio, a

beladona, etc. Jás os meios físicos são os mecânicos como o traumatismo

do ovo com punção, dilatação do colo do útero, curetagem do útero,

microsesária; já os térmicos são bolsa de água quente, escalda-pés, etc. Os

elétricos, por sua vez, são modalidades de choque elétrico por máquina

62 GOMES, Hélio. APUD, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial –

Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 126. 63 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 129.

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estatica, dentre outros. Os meios psíquicos ou morais são os que agem sobre

o psiquismo da mulher, como, sugestão, susto, terror, choque moral e etc.

Sendo o meio empregado inteiramente ineficaz, como

ocorre na aplicação de injeção sem efeito abortivo, haverá crime

impossível. Há também tentativa inedônea, diante da impropriedade

absoluta do objeto, nas manobras abortivas praticadas em mulher que não

se encontra grávida ou dirigidas à feto já morto.64

Há que se falar ainda, que se trata de crime material, já

que o tipo penal descreve conduta e resultado. É também, delito

instantâneo, já que a consumação ocorre em um dado momento e então

se “esgota”. Todavia, exige-se uma prova de que o feto estava vivo quando

do emprego dos meios ou manobras abortivas, do contrário poderá

caracterizar-se como crime impossível pela absoluta improidade do objeto.

Não é necessário, contudo, comprovar a vitalidade do feto, ou seja, a

capacidade de atingir a maturação; exige-se tão somente que esteja vivo

e que não seja produto patológico.

Por ser crime material, a comprovação de sua existência

virá pelo exame de corpo de delito (direto, realizado à vista do material

retirado do útero do corpo da mulher), suprível, na impossibilidade, pela

64 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 95.

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prova testemunhal ou documental (exame de corpo de delito indireto), mas

não só pela palavra da gestante.65

O elemento subjetivo do crime de aborto, por sua vez, é

o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de interromper a

gravidez, matando o produto da concepção ou, no mínimo, assumindo o

risco de matá-Io. Na primeira hipótese, configura-se o dolo direto, na

segunda, o dolo eventual, embora este também possa decorrer da dúvida

quanto ao estado de gravidez.

Matar mulher que sabe estar grávida configura também

o crime de aborto, verificando-se, no mínimo, dolo eventual; nessa hipótese,

o agente responde, em concurso formal, pelos crimes de homicídio e

aborto. Se houver desígnios autônomos, isto é, a intenção de praticar os dois

crimes, o concurso formal será impróprio, aplicando-se cumulativamente a

pena dos dois crimes, caso contrário será próprio e o sistema de aplicação

de penas será o da exasperação.

Heleno Cláudio Fragoso sustentava que, "se o agente

quis apenas praticar lesão corporal na mulher (cuja gravidez conhecia ou

não podia desconhecer) e sobrevém o aborto em razão da violência, o

crime será de lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2°, V)". No entanto, nas

mesmas circunstâncias, se o agente quis matar a gestante, conhecendo ou

65 CAPEZ, Fernando. Direito Penal: Parte Especial. 11. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2004. p. 74-75.

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não podendo desconhecer a existência da gravidez, responde pelos crimes

de homicídio em concurso com o crime de aborto; o primeiro, com dolo

direto, o segundo, com dolo eventual. Da mesma forma, quem desfere

violento pontapé no ventre de mulher visivelmente grávida, acarretando-lhe

a expulsão e a morte do feto, pratica o crime de aborto provocado e não o

de lesão corporal de natureza gravíssima, previsto no art. 129, § 2°, V, do CP.

O aborto culposo é impunível, restando somente a

eventual reparação de dano.66

2.5. DA FIGURA QUALIFICADO DO ABORTO

O art. 127 do Código Penal Pátrio prevê duas causas

especiais de aumento de pena, que impropriamente recebem a rubrica

"forma qualificada", para o crime de aborto praticado com ou sem

consentimento da gestante: pela primeira, lesão corporal de natureza

grave, a pena é elevada em um terço; pela segunda, morte da gestante, a

pena é duplicada.

Segundo a dicção do referido dispositivo, somente a

lesão corporal de natureza grave ou a morte da gestante "qualificam" o

crime de aborto. As ditas "qualificadoras" aplicam-se ao aborto praticado

por terceiro (arts. 125 e 126 do CP) e não ao aborto praticado pela própria

66 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 134.

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gestante (art. 124 do CP). Aliás, nem teria sentido, pois não se pune a

autolesão nem o ato de matar-se. É indiferente que o resultado "qualifi-

cador" - morte ou lesão - decorra do próprio aborto ou das manobras

abortivas. Significa dizer que a majoração da pena pode ocorrer ainda

quando o aborto não se consume, sendo suficiente que o resultado

majorador decorra das manobras abortivas.

Se em decorrência do aborto a vítima sofre lesões

corporais leves, o agente responde somente pelo crime de aborto, sem a

aplicação da majorante constante do art. 127, pois essa lesão integra o

resultado natural da prática abortiva.

Para que se configure o crime qualificado pelo resultado,

é indispensável que o evento morte ou lesão grave decorra, pelo menos, de

culpa (an. 19 do CP). No entanto, se o dolo do agente abranger os

resultados lesão grave ou morte da gestante, excluirá a aplicação do art.

127, que prevê uma espécie sui generis de crime preterdoloso (dolo em

relação ao aborto e culpa em relação ao resultado agravador). Nesse

caso, o agente responderá pelos dois crimes, em concurso formal- aborto e

homicídio doloso ou aborto e lesão corporal grave.67

2.6. EXCLUDENTES ESPECIAIS DA ILICITUDE: ABORTO NECESSÁRIO E ABORTO

HUMANITÁRIO 67 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 136.

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O art. 128 do CP determina as hipóteses em que o aborto

não é púnivel, são elas classificadas, com o nomen juris de "aborto

necessário", ao primeiro, e "aborto no caso de gravidez resultante de

estupro", que doutrina e jurisprudência encarregaram-se de definir como

sentimental, humanitário.

É uma forma diferente e especial de o legislador excluir a

ilicitude de uma infração penal sem dizer que "não há crime", como faz no

art. 23 do mesmo diploma legal. Em outros termos, o Código Penal, quando

diz que "não se pune o aborto", está afirmando que o aborto é lícito

naquelas duas hipóteses que excepciona no dispositivo em exame. Lembra,

com propriedade, Damásio de Jesus que "haveria causa pessoal de

exclusão de pena somente se o CP dissesse 'não se pune o médico", que

não é o caso.

No entanto, a despeito de o art. 128 não conter

dirimentes de culpabilidade, escusas absolutórias ou mesmo causas

extintivas de punibilidade, convém ter presente que, como em qualquer

crime, pode haver alguma excludente de culpabilidade, legal ou

supralegal, quando, por exemplo, apresentar-se a gravidez e a necessidade

ou possibilidade do aborto, mas faltar algum dos requisitos legalmente

exigidos pela excludente especial, não haver médico disponível.68

68 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1360.

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2.6.1 ABORTO NECESSÁRIO OU TERAPÊUTICO

O aborto necessário também é conhecido como

terapêutica e constitui autêntico estado de necessidade, justificando-se

quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante.

O aborto necessário exige dois requisitos, simultâneos: a)

perigo de vida da gestante; b) inexistência de outro meio para salvá-Ia. O

requisito básico e fundamental é o iminente perigo à vida da gestante,

sendo insuficiente o perigo à saúde, ainda que muito grave. O aborto,

ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso

contrário o médico responderá pelo crime. Logo, a necessidade não se faz

presente quando o fato é praticado para preservar a saúde da gestante ou

para evitar a desonra pessoal ou familiar.

Quando o perigo de vida for iminente, na falta de

médico, outra pessoa poderá realizar a intervençãol5, fundamentada nos

arts. 23, I, e 24. Na hipótese de perigo de vida iminente, é dispensável a

concordância da gestante ou de seu representante legal (art. 146, § 32, do

CP), até porque, para o aborto necessário, ao contrário do aborto

humanitário, o texto legal não faz essa exigência, que seria restritiva da li-

berdade de agir e de decidir.

Nessa linha de orientação, têm-se que o aborto

necessário pode ser praticado mesmo contra a vontade da gestante. A

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intervenção médico-cirúrgica está autorizada pelo disposto nos arts. 128, I

(aborto necessário), 24 (estado de necessidade) e 146, § 32 (intervenção

médico-cirúrgica justificada por iminente perigo de vida). Ademais,

tomando as cautelas devidas, agirá no estrito cumprimento de dever legal

(art. 23, III, F parte), pois, na condição de garantidor, não pode deixar

perecer a vida da gestante. Enfim, o consentimento da gestante ou de seu

representante legal somente é exigível para o aborto humanitário, previsto

no inciso II do art. 128, todos do Código Penal.

É fundamental essa cobertura legal do "expert",

garantindo a licitude de sua conduta profissional, mesmo contra a vontade

da gestante, pois esta não pode sacrificar a sua vida em prol do nascituro, o

que, no entanto, não impede que o faça ou, pelo menos, tente. No

entanto, tratando-se de perigo mediato, ainda que haja exigência legal, é

recomendável que obtenha o consentimento da gestante, sem o qual não

deve proceder ao aborto.

Cumpre destacar que o Código Penal, não legitima a

realização do chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que

a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Contudo,

sustentamos que a gestante que provoca o auto-aborto ou consente que

terceiro lho pratique está amparada pela excludente de culpabilidade

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inexigibilidade de outra conduta, sem sombra de dúvida.69

2.6.2 ABORTO HUMANITÁRIO OU ÉTICO

O aborto humanitário, também denominado ético ou

sentimental, é autorizado quando a gravidez é conseqüência do crime de

estupro e a gestante consente na sua realização. Pelo nosso Código Penal

não há limitação temporal para a estuprada grávida decidir-se pelo

abortamento.

Para se autorizar o aborto humanitário são necessários os

seguintes requisitos: a) gravidez resultante de estupro; b) prévio

consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal.

A prova tanto da ocorrência do estupro quanto do consentimento da

gestante deve ser cabal.

O consentimento da gestante ou de seu representante

legal, quando for o caso, deve ser obtido por escrito ou na presença de

testemunhas idôneas, como garantia do próprio médico.

Atualmente, doutrina e jurisprudência admitem, por

analogia, o aborto sentimental quando a gravidez resulta de atentado

violento ao pudor, que é tão indigno e repugnante quanto o crime de

estupro. Embora tecnicamente distintos, a semelhança de situações e de

69 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 137.

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gravidade do resultado justifica essa orientação. Com efeito, em razão das

situações em que esses horrendos crimes ocorrem, e da semelhança tanto

nas conseqüências pessoais quanto nas morais, seria profundamente injusto

punir o médico pelo crime de aborto ou simplesmente desautorizá-Io por

puro prurido técnico-dogmático.

A prova do crime de estupro pode ser produzida por

todos os meios em Direito admissíveis, apesar de que a lei não se refere à

necessidade de qualquer prova.70

É desnecessário autorização judicial, sentença

condenatória ou mesmo processo criminal contra o autor do crime sexual.

Essa restrição não consta do dispositivo, e, conseqüentemente, sua

ausência não configura o crime de aborto. O médico deve procurar

certificar-se da autenticidade da afirmação da paciente, quer mediante a

existência de inquérito policial, ocorrência policial ou processo judicial, quer

por quaisquer outros meios ou diligências pessoais que possa e deva realizar

para certificar-se da veracidade da ocorrência de estupro. Acautelando-se

sobre a veracidade da alegação, somente a gestante responderá

criminalmente (art. 124, 2ª figura) se for comprovada a falsidade da

afirmação. A boa-fé do médico caracteriza erro de tipo, excluindo o dolo,

e, por conseqüência, afasta a tipicidade.71

70 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 1001. 71 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 137.

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A excludente em exame estende-se ao crime praticado

com violência ficta (art. 224). A permissão legal limita-se a referir-se ao crime

de estupro, sem adjetivá-Io. Como o legislador não desconhece a existência

das duas formas de violência, elementares desse crime - real e ficta -, ao

não limitar a excludente à presença de qualquer delas, não pode o

intérprete restringir onde a lei não faz qualquer restrição, especialmente

para criminalizar a conduta do médico. Com efeito, interpretação restritiva,

no caso, implica criminalizar uma conduta autorizada, uma espécie de

interpretação extensiva contra legem, ou seja, in malam partem.72

2.6.3 ABORTO NECESSÁRIO OU HUMANITÁRIO PRATICADOS POR ENFERMEIRA

A análise dessa questão é complexa e exige uma série

de considerações que, circunstancialmente, podem alterar as

conseqüências da ação praticada, pois não se pode perder de vista que o

Código Penal Brasileiro exclui a ilicitude de duas espécies de aborto, ou,

melhor dito, por dois fundamentos distintos: um por estado de necessidade e

outro por razões sentimentais ou humanitárias.

Na primeira hipótese - aborto necessário -, não havendo

outro meio de salvar a vida da gestante, nem a enfermeira nem qualquer

pessoa que lhe faça as vezes responderá por crime algum16. Na verdade, a

previsão do art. 128, I, é absolutamente desnecessária 17, pois, em estado

de necessidade, todas as condutas proibidas no Código Penal são 72 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 138.

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excepcionalmente autorizadas, afastando-se a proibição.

Assim, nesse caso, a enfermeira não responde pelo crime

de aborto, mas com fundamento no art. 24 do CP e não no art. 128, I, do

mesmo diploma legal, uma vez que, não sendo médica, não pode invocar

essa excludente especial. É bem verdade que, a despeito de desnecessária

a previsão em exame, sua prescrição facilita, simplifica e agiliza a atividade

médica ante um caso de emergência, e, só por isso, em todo caso, já

estaria justificada a excludente especial.

A despeito do afirmado, convém destacar que, apesar

das semelhanças que apresentam, a previsão do art. 128, I, não se

confunde com o estado de necessidade disciplinado no art. 24 do CP, pois

há diversidade de requisitos intrínsecos e extrínsecos.

Na segunda hipótese - aborto proveniente de estupro - a

solução é diversa.

Para Damásio de Jesus:

"a enfermeira responde pelo delito, uma vez que a norma permissiva

faz referência expressa à qualidade do sujeito que pode ser

favorecido: deve ser médico".73

73 JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal: Parte Especial. 22. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva,

1999. p. 124.

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Na verdade, a conduta da enfermeira, na hipótese, não

está acobertada pela excludente especial da ilicitude, que exige uma

condição especial - ser médico -, não possuída pela enfermeira. Logo, essa

conduta reveste-se de tipicidade e de antijuridicidade. Contudo, isso não

esgota a análise casuística dos fatos. Queremos dizer que é de todo

recomendável analisar, na fase seguinte, a hipótese de poder configurar-se

a inexigibilidade de outra conduta, que, se reconhecida, excluirá a

culpabilidade. Somente se, concretamente, se afastar essa possibilidade a

enfermeira deverá responder pelo crime de aborto.

Por fim, se a enfermeira auxilia o médico na realização

de qualquer das modalidades de aborto legal, deve responder pelo crime?

Ora, se o fato praticado pelo médico, que é o autor, for

lícito, não há como punir o partícipe, e o fundamento da impunibilidade da

conduta da enfermeira, enquanto partícipe, respalda-se na teoria da

acessoriedade limitada da participação, a qual "exige que a conduta

principal seja típica e antijurídica.

Isso quer dizer que a participação é acessória da ação

principal, de um lado, mas que também depende desta até certo ponto.

Não é necessário que o autor seja culpável. É suficiente que sua ação seja

antijurídica, isto é, contrária ao direito, sem necessidade de ser culpável. O

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fato é comum, mas a culpabilidade é individual". 74

2.6.4 ABORTO EUGÊNICO

Têm-se entendido que não há excludente de

criminalidade no chamado eugênico, que é aquele “executado ante a

suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança

dos pais”.

Há décadas, surgiu o problema do nascimento de

crianças com graves deformações em virtude da utilização pela mãe,

durante a gestação, da substância conhecida como thalidomide. Escreve a

respeito Basilei Gracia:

[...] Se há um caso de abortamento eugênico em que a punição

seria desaconselhada pela piedade, esse é o trazido a debate pela

Thalidomide [...]”.75

Já que, sendo lacunosos os Códigos, que tendo

eliminado a repressão a título de crime do aborto sentimental e em certa

medida do terapêutico, consideram suscetível de pena o abortamento

eugênico.

Há, entretanto, uma tendência à discriminação do

aborto eugênico em hipóteses específicas.

74 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 139. 75 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. v. 1-2. São Paulo: Max Limonad, 1982. p. 108.

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Vez que, transcorridos mais de sessenta e cinco anos da

promulgação do Código Penal brasileiro de 1940, cuja Parte Especial ainda

se encontra em vigor, questionam-se muitos dos seus dispositivos,

entendendo-se que o mesmo deveria ser adaptado à realidade atual

mediante os métodos de interpretação, dando-se-Ihe vida e atualidade

para disciplinar as relações sociais deste início de novo milênio.

Com efeito, o Direito Penal não pode ficar alheio ao

desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem corno

da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma

sociedade em constante mutação.

O Direito Penal - não ignora essa realidade - é um

fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um

interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e trans-

formadora por natureza. Vive-se esse turbilhão de mutações que

caracteriza a sociedade moderna, e que reclama permanente atualização

do direito positivo que, via de regra, foi ditado e editado em outros tempos,

e somente pela interpretação do cientista ganha vida e atualidade,

evoluindo de acordo com as necessidades e aspirações sociais,

respondendo às necessidades da civilização humana.76

Primeiramente, as locuções indicação eugênica ou

76 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 146.

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61

aborto eugênico devem ser analisadas racionalmente, sem a indesejável e

prejudicial carga de rejeição emocional que pode até inviabiliza um exame

mais aprofundado e que leve a alguma conclusão mais racional. Deve-se,

de plano, afastar-se aquela concepção que lhe concedeu o nacional-

socialismo alemão: não se pode mais falar em aborto eugênico com a

finalidade de obter-se uma raça de "super-homens" e tampouco para a

conservação da "pureza" de uma raça superior. Esse período, o mais negro

de todos os tempos da civilização humana, está morto e enterrado, e

somente deve ser lembrado para impedir o seu ressurgimento, em qualquer

circunstância.77

A doutrina especializada (da área médica) apresenta

uma classificação de situações de aborto que, genericamente, oferece um

espectro interessante e, ao mesmo tempo, abrangente que serve à doutrina

penal para fazer o exame jurídico, nos seguintes termos:

1. Interrupção eugênica da gestação (IEG), que são os

casos de aborto ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações

em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos.

Comumente sugere o tipo praticado pela medicina nazista, quando

mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, AIganas ou negras.

2. Interrupção terapêutica da gestação (ITG), que são os

casos ocorridos em nome da saúde materna, isto é, situações em que se 77 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 6. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997. p. 209.

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interrompe a gestação para salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em

face do avanço tecnológico experimentado pela Medicina, são cada vez

mais raros os abortos inscritos nessa tipologia.

3. Interrupção seletiva da gestação (ISG), que são os

casos de abortos ocorridos em nome de anomalias fetais, em que se

interrompe a gestação pela constatação de lesões no feto, apresentando

patologias incompatíveis com a vida extra-uterina, como é o caso da

anencefalia.

4. Interrupção voluntária da gestação (IVG), que são os

casos de aborto ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da gestante

ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a gestação porque a

mulher, ou o casal, não mais deseja a gravidez, seja ela fruto de estupro ou

de uma relação consensual. Muitas legislações que permitem a IVG

impõem limites gestacionais à sua prática.78

Com exceção da primeira hipótese - Interrupção

eugênica da gestação - IEG, todas as demais formas de aborto levam em

consideração a vontade da gestante ou do próprio casal. O valor da

autonomia da gestante é um dos pilares da teoria principialista, a mais

difundida na Bioética da atualidade, mas que não poderá ser objeto de

análise neste espaço.

78 DINIZ, Débora e Marcos de Almeida. Bioética e Aborto, in Sérgio Ibiapina Ferreira Costa.

Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 6.

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Até porque, parte-se do princípio de que nenhuma

mulher quer abortar, pois não desconhe que o aborto é uma agressão

violenta, não apenas contra o feto, mas também contra a mulher, física,

moral e psicologicamente, e que, naturalmente, a expõe a enormes e

imprevisíveis riscos relativos à sua saúde e à sua própria vida.

Quando a mulher opta pelo abortamento, não se pode

ignorar que ela tomou uma decisão grave, com sérios riscos que podem

produzir conseqüências irreversíveis sobre sua vida, seu corpo, sua psique e

seu futuro.

Nesse sentido, acrescenta Marco Antonio Becker:

"certamente, a manutenção da gravidez indesejada de um anencéfalo

acarretará graves distúrbios psicológicos na gestante, em decorrência da

tortura sofrida e de um tratamento degradante, vedado pelo art. 52, inciso

III, da Constituição da República Federativa do Brasill".79

No Brasil, a atual "lei de transplante de órgãos" (Lei n.

9.434/97) autoriza a extração destes, com o simples reconhecimento

médico da - na terminologia médico-moderna - denominada "morte

cerebral. Ou seja, a simples "morte cerebral" - que mantém os demais

órgãos do corpo humano "vivos" - autoriza a extração de todos esses

órgãos, imediatamente, isto é, enquanto vivos, pois, mortos, de nada

serviriam -, consagrando o reconhecimento não apenas médico, mas agora 79 BECKER, Marco Antonio. Ancefalia e possibilidade de interrupção da gravidez. Revista

Medicina – Conselho Federal de Medicina. n. 155. maio/jul: 2005. p.10.

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também legal, de que a vida não se encerra somente quando "o coração

deixa de bater".80

Referida lei, por certo, não está autorizando um

homicídio, ainda que se lhe reconheça "fins humanitários", ou que uma vida

"suprimida" pode representar a preservação de várias, ou, ainda, que

aquela vítima teria apenas uma sobrevida etc. Não, certamente não,

especialmente para um país católico, com formação cristã e que jamais fez

concessões a orientações de cunho neo-socialista. Diante dessas

constatações, sempre teve grande dificuldade em admitir que a expulsão

antecipada de um feto, sem vida, pudesse configurar aborto, provocado

ou consentido, criminoso ou não.

Pois agora, aflorado esse debate, aumentaram-se as

convicções em sentido negativo. Tratava-se pois, de mera convicção pes-

soal, produto de elaborado raciocínio lógico-jurídico, de alguém leigo em

medicina. Têm-se, porém, a confirmação científica, emitida por especialistas

da área médica, que concluem nesse sentido, sendo lapidar a afirmação

do médico Marco Antonio Becker, Secretário do Conselho Federal de

Medicina, que sustenta:

"[...] Quando a mãe pede para retirar esse feto e o médico pratica o

ato, isto não configura propriamente aborto, com base no art. 126

do Código Penal, pois o feto, conceitualmente, não tem vida. A

morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito jurídico

80 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 144.

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de morte considera um determinado ponto desse processo

biológico. Durante séculos adotouse a parada cardiorrespiratória

como índice demarcador da vida [...]".81

O entendimento do legislador brasileiro, não há dúvida

alguma, seguindo a evolução médico-científica, reconhece que "a morte

cerebral" põe termo à vida humana. Ora, se a "morte cerebral" significa a

morte, ou, se preferirem, ausência de vida humana, a ponto de autorizar o

"esquartejamento médico" para fins científico-humanitários.

Em síntese, para se configurar o crime de aborto é

insuficiente a simples expulsão prematura do feto ou a mera interrupção do

processo de gestação, mas é indispensável que ocorram as duas coisas,

acrescidas da morte do feto, pois o crime somente se consuma com a

ocorrência desta, que, segundo a ciência médica, nesses casos de

anencéfalo, acontecera antes.82

81 BECKER, Marco Antonio. Ancefalia e possibilidade de interrupção da gravidez. Revista Medicina: Conselho Federal de Medicina. n. 155. maio/jul:2005. p.10. 82 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a

pessoa. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 144.

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Capítulo 3

ABORTO ANENCÉFALO NO SISTEMA JURÍDICO ATUAL

O aborto anencéfalo, também conhecido como aborto

eugênico ou eugenésico, é um tema controverso no sistema jurídico

brasileiro atual e tem, em tempos recentes, suscitado discussões, seja no

âmbito jurídico, seja entre a população de modo geral. Tratando-se de

assunto tão polêmico e sujeito à variadas interpretações, impossível, assim,

abordá-lo em sua totalidade.

3.1 DEFINIÇÃO

Antes de se conceituar o que é aborto anencéfalo,

interessante saber o que é encéfalo, o que é anencefalia e que é o feto

anencéfalo.

Consoante entendimento do Professor Ângelo

Machado83, encéfalo “é a parte do sistema nervoso central situada dentro

do crânio neural. [...]. No anencéfalo, tem-se cérebro, cerebelo e tronco

encefálico.”.

Já, a anencefalia seria:

[...] uma patologia congênita que afeta a configuração encefálica e dos ossos do crânio que rodeiam a cabeça. A conseqüência deste problema é um desenvolvimento mínimo do encéfalo, o qual com freqüência apresenta uma ausência parcial ou total do cérebro (região do encéfalo responsável pelo pensamento, a vista, o ouvido, o tato e os movimentos). A parte posterior do crânio aparece sem fechar e é possível,

83 MACHADO, Ângelo. Neuroanatomia funcional. Livraria Ateneu, 1987. p. 11.

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ademais, que faltem ossos nas regiões laterais e anterior da cabeça.84

E o anencéfalo, segundo Maria Helena Diniz85:

[...] pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). Como nos centros de respiração e circulação sangüínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o anencéfalo poderá nascer com vida, vindo a falecer horas, dias ou semanas depois.

Para Keith L. Moore86, embora a condição anteriormente

descrita por Maria Helena Diniz:

[...] seja frequentemente chamada de anencefalia (grego an, sem, mais enkephalos, encéfalo), em geral há a presença de um tronco encefálico rudimentar (medula oblonga, ponte, e mesencéfalo). Por essa razão, ‘meroanencefalia’ (grego, meros, parte), constitui um nome melhor para esta malformação.

Warley Rodrigues Belo87, conceitua anencefalia como

sendo:

[...] um má formação estrututal, consubstanciada na ausência da capota cerebral. A anencefalia, ou ausência dos dois hemisférios cerebrais, é a ausência da função total e definitiva do tronco cerebral. Em alguns casos, o feto poderá sobreviver poucos dias fora do claustromaterno. A afecção impede de

84 Disponível em: http://www.mmhs.com/clinica/peds/spanis/neuro/anenceph, do Martin Memorial. 85 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 281. 86 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S/A, 1988. pp. 304-305. 87 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspctos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 83.

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forma definitiva qualquer tipo de consciência e de relação com outro.

Ainda:

A anencefalia é um defeito congênito (...). Começa a se desenvolver bem no início da vida intra-uterina. A palavra anecefalia significa “sem encéfalo”, sedo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central contidos na caixa craniana. Não é uma definição inteiramente acurada, pois o que falta é o cérebro com seus hemisférios e cerebelo. Uma criança com anencefalia nasce sem o couro cabeludo, calota craniana, meninges, mas contudo o tronco cerebral é geralmente preservado. Muitas crianças com anencefalia morrem intra-útero ou durante o parto. A expectativa de vida para aqueles que sobrevivem é de apenas poucas horas ou dias, ou raramente poucos meses.88

Assim, pode-se perceber que a anencefalia é a má

formação fetal congênita específica; sendo a definição de aborto

anencéfalo daí retirada, consistindo em interrupção da gravidez de feto que

apresente uma má formação congênita. Percebe-se, então, a

impossibilidade da vida extra-uterina do feto anencéfalo.

3.2 A VIDA E A MORTE NO PLANO JURÍDICO

Cabe, agora, esclarecer o que seria a vida e a marte no

plano jurídico, para melhor entendimento do termo abordado.

Genival Veloso de França89 discorre que:

O Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do ovo, depois embrião e feto, começam a tutela, a proteção e as sanções da norma penal, pois daí em diante se reconhece no novo ser uma expectativa de personalidade

88 Disponível em: <http://www.anencephalie-info.org/p/perguntas.htm#per1> Acesso em 31/10/2008. 89 FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S/A, 2001. p. 243.

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a qual não poderia ser ignorada pela lei .[...]. Mesmo que se quisesse falar em vida num sentido mais técnico relativamente ao feto, não se poderia esquecer que ele é dotado de vida biológica ou vida intra-uterina, o que não deixa de ser vida. O feto tem capacidade de adquirir personalidade, é pessoa virtual, um ser vivente.

Warley Rodrigues Belo90 coaduna do mesmo

entendimento, relatando que:

O nascituro é indubitavelmente um ser vivente que cresce, tem metabolismos orgânicos, batimentos cardíacos e, até, na fase mais avançada da gravidez, se movimenta com animus próprio. [...] o feto, e isso é óbvio, tem, sim, vida, e vida própria, não importando o momento da gestação materna. Verdade é que se encontra transitoriamente ligado, pesas deficiências de uma fase de sua evolução, ao corpo materno, de quem tem dependência direta. [...]. Não há, pois, confundir vida do processo fisiológico da gravidez – com o conceito de vida autônoma, adquirida pelo feto só após o início da respiração e do rompimento do cordão umbilical.

Falando, mais especificamente, em aborto, do que em

morte, Heleno Cláudio Fragoso91, comenta que:

Investigando ontologicamente o tipo incriminador temos que o objeto da tutela jurídica é a vida da pessoa em formação, o que justifica a classificação do fato, embora a rigor não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção (feto ou embrião) não é pessoa, mas também não é mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno (portio viscerum ou pars ventris), pois é considerado autonomamente pelo direito para certos efeitos.

90 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspctos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. pp. 25-26. 91 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. São Paulo: Bushatsky, 1976. v. 1. p. 126.

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Verifica-se, então, consoante entendimentos doutrinários

acima transcritos que a concepção, seja na forma de ovo, feto ou embrião,

tem vida própria, mas vida esta que depende do útero e do organismo

materno; ocorre que a proteção jurídica é decorrente da vida em formação

sendo omissa nos casos da viabilidade ou não da vida extra-uterina.92

Agora, falando em morte, Heleno Cláudio Fragoso93

define o momento em que ela ocorre:

Hoje, através dos critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nr. 1.480/97), a morte, pelo menos quando da parada total e irreversível das atividades encefálicas, está definida pelo que se chama de morte encefálica. Este conceito vem substituindo dia a dia o de morte circulatória, tida como a parada definitiva das atividades do coração. [...].

Atualmente, a tendência é dar-se privilégio à avaliação da atividade cerebral e ao estado de descerebrarão ultrapassada como indicativo de morte real. [...].

A Resolução 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina,

em seus artigos 1º, 2 º, 3 º, 4 º e 6 º, dispõem sobre a morte encefálica,

vejamos:

Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.

Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no "termo de declaração de morte encefálica" anexo a esta Resolução.

92 MACEDO, Jorge Ferreira de. Novos Estudos Jurídicos. v 10, n 2, jul/dez. 2005. Pg 557. 93 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. São Paulo: Bushatsky, 1976. v. 1. pp. 308-309.

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[...].

Art. 3º. A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida.

Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia.

[...].

Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca:

a) ausência de atividade elétrica cerebral ou,

b) ausência de atividade metabólica cerebral ou,

c) ausência de perfusão sangüínea cerebral.

Entretanto, a morte se caracteriza no plano jurídico

através da Lei 9.434 de 04 de fevereiro de 1997 – Lei de Doação de Órgãos,

a qual dispõe sobre a retirada de órgãos e tecidos e partes do corpo

humano para fins de transplantes e tratamentos.

O artigo 3º da Lei 9.434/97, dispõe sobre a morte

encefálica enunciando que:

Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinadas a transplantes ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

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Ocorre, que houve a necessidade de regulamentar a Lei

9.434/97 e, para isso, adveio Decreto 2.268 de 30 de junho de 1997, que em

seu artigo 16, parágrafo 1º, trata da comprovação da morte encefálica, in

verbis:

Art. 16. A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo poderá ser efetuada no corpo de pessoas com morte encefálica.

§ 1 º. O diagnóstico de morte encefálica será confirmado, segundo critérios tecnológicos definidos em resolução do Conselho Federal de Medicina, por dois médicos, no mínimo um dos quais com título de especialista em neurologia, reconhecido no País.

[...];

Verifica-se que a regulamentação da Lei 9.434/97, pelo

Decreto 2.268/97, foi no sentido de que há a necessidade de um dos

médicos, dos quais irá constatar a morte encefálica ser neurologista.

Contudo, o ponto de estudo desse trabalho é o feto

anencéfalo, devendo as abordagens sobre vida e morte voltar-se à vida e

formação e à malformação congênita.

3.3 FATO TÍPICO OU ATÍPICO

Na presente monografia analisa-se o fato típico ou

atípico sob o ponto de vista da moderna teoria da imputação objetiva

defendida por Claus Roxin e Günther Jackobs, que com o funcionalismo

desses, o tipo penal ganhou uma tríplice dimensão: a) objetiva; b)

duplamente normativa e c) subjetiva. E do sistema finalista de Hans Welzel.

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Luiz Flávio Gomes94, assevera que:

A teoria da imputação objetiva consiste basicamente no seguinte: só pode ser responsabilizado penalmente pó um fato (leia-se: a um sujeito só pode ser imputado o fato), se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante e, ademais, se o resultado jurídico decorreu desse risco.

Grande parte dos acontecimentos inexplicáveis foram

explicados pela moderna teoria da imputação objetiva. Todavia não se

pode admitir que a teoria da moderna da imputação objetiva leve a

conduta que envolve o aborto anencéfalo à atipicidade, ou seja, a

ausência de fato materialmente típico.95

De acordo com os defensores da moderna teoria da

imputação objetiva, o risco criado nos casos de anencefalia:

[...] não é desaprovado juridicamente. [...]. Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao agente. No aborto anencefálico, não existe uma morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto, (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito para a tutela de outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade etc.). Não se trata, então, de uma morte arbitrária. Por isso que é fato atípico.96

E, mais, aduz Ives Granda Silva Martins97 que:

94 GOMES, Luiz Flávio. Direito penal – parte geral: teoria do delito (inédito), v. II. Apud GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, v. III, 2004. p. 109. 95 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese, v. 1, n. 1, abr./maio, 2000. Pg 79 96 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefalia e imputação objetiva: exclusão da tipicidade (II). Revista síntese de direito penal e processo penal, n. 33. p. 06. 97 MARTINS, Ives Granda da Silva. O supremo e o homicídio uterino. Artigo publicado no Jornal do Brasil de 15/07/2004.

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A Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou malformados, sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte apenas a decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada de convicções ideológicas.

A corrente que defende a moderna teoria da

imputação objetiva, declara que mesmo sendo inviável, a vida é protegida

juridicamente.

Já, a doutrina finalista procura explicar a questão do

aborto anencéfalo sob o ponto de vista da ausência da tipicidade, pois

para os defensores do sistema finalista o feto anencáfalo já estaria morto,

nos termos da Lei 9.434/95.

Pois, em conformidade com o artigo 1798, do Código

Penal, não se configura crime quando o objeto material for absolutamente

impróprio, sendo assim, estando morto, estaria excluída a adequação típica

e, conseqüentemente, a tipicidade.

Porém, Eduardo Gomes de Queiroz99, diz que os

defensores do sistema finalista esqueceram de:

atentar para o art. 3º da mencionada Lei de Doação de Órgãos que ‘não utilizou o termo morte cerebral’, mas ‘sim morte encefálica’. Indubitavelmente, o feto com anencefalia não preenche não preenche os requisitos necessários à constatação da morte encefálica. ‘Não se pode confundir morte encefálica com morte cerebral’.

Ressalta-se, que não se pode admitir que o aborto de 98 Art. 17. Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto é impossível consumar-se o crime.

99 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese, v. 1, n. 1, abr./maio, 2000. Pg 80.

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feto anencéfalo seja considerado fato atípico, por conta da ausência de

risco proibido; pois, tanto a Constituição Federal, como o Código Penal,

amparam a vida viável e, não, somente, o bem jurídico. Ademais, não se

pode imputar atipicidade ao aborto anencéfalo pelo fato da criança a ser

concebida estar morta; o feto com anecefalia possui atividade encefálica,

não estando, dessa forma, morto.100

3.4 A INVIABILIDADE DO SER

Tornas-e inviável a vida do feto anencéfalo, posto que

ausente está a estrutura biológica mínima para o desenvolvimento racional

do ser. Entretanto do artigo 5º, da Constituição Federal, enuncia que é

inviolável o direito à vida; porém inexiste direito absoluto, por mais

fundamentais que sejam.

Consoante artigo da graduanda da Faculdade de

Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Marcela Maria Gomes

Giorgi101:

Assim, o feto anencefálico parece ser um desses casos. Devido à mutilação de áreas cruciais do tálamo, nos anencéfalos falta o substrato neural que é necessário para se sentir dor. Da mesma maneira faltam os substratos necessários para o raciocínio, comunicação, conhecimento e sensibilidade em geral.

Ainda, para Marcela Maria Gomes Giorgi102:

100 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese, v. 1, n. 1, abr./maio, 2000. Pg 81. 101 GIORGI, Marcela Maria Gomes. O direito da mulher ao abortamento de feto portador de anencefalia no Brasil contemporâneo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 172. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1185> Acesso em Acesso em: 3 nov. 2008. 102 GIORGI, Marcela Maria Gomes. O direito da mulher ao abortamento de feto portador de anencefalia no Brasil contemporâneo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 172. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1185> Acesso em Acesso em: 3 nov. 2008.

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Em segundo ponto, não há vida sem dignidade, sem condições mínimas de sobrevivência, o direito a uma existência digna, à integridade físico corporal, é um bem vital, por isso, em se possibilitando o abortamento anencefálico, estamos, por outra parte, protegendo a vida da gestante.

Aliás, a medicina procura nos dias atuais a existência de

vida com qualidade, modificando a relação médico-paciente existente;

não é garantia de vida um mero respirar por poucos minutos, horas ou quem

sabe meses.

Considerando-se o feto e a mãe como pacientes, avaliando as obrigações a respeito do feto embasadas nos princípios da autonomia, beneficência e não maleficência, confrontando-se esses deveres com relação ao feto-paciente em conflito com os mesmos deveres com relação à mãe-paciente, se reconhece que a grávida se encontra obrigada apenas quanto a um feto que mostre viabilidade.103

Quando se fala em viabilidade do ser, no caso em

estudo do feto anencéfalo, este deve ser o primeiro fator, a ser levado em

conta, para a continuidade ou não da gravidez, uma vez que inviável será

a vida do bebê que nascerá sem as mínimas condições de raciocínio.

Além disso, cabe ponderar se o risco à saúde física e

psíquica da mãe não merece ser preservado, além é claro, da sua

dignidade, considerada a anencefalia e a inviabilidade do feto, viável

torna-se a antecipação do parto, nos moldes do artigo 128, do Código

Penal, o qual enuncia que: “Não se pune o aborto praticado por médico.”.

103 GIORGI, Marcela Maria Gomes. O direito da mulher ao abortamento de feto portador de anencefalia no Brasil contemporâneo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 172. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1185> Acesso em Acesso em: 3 nov. 2008.

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Propugna Marcela Maria Gomes Giorgi104 que:

Assim, a ordem jurídica brasileira não impõe a qualquer gestante o dever de manter em seu ventre um feto anencefálico, porque esse feto não tem potencialidade de vida. Nesta linha, haverá desrespeito ao princípio de dignidade da pessoa humana a imposição à gestante de ter, em seu útero, um feto, durante o tempo normal exigido para um parto normal.

3.5 O TRAUMA MATERNO

No caso da continuidade de uma gestação de feto

anencéfalo, a qualidade de vida da mãe durante a gravidez poderá

acarretar/resultar em um abalo psíquico de grande extensão, um

sofrimento, que poderá ser permanente, pelo fato de que a mãe estaria

carregando um feto que certamente não sobreviverá até o fim da gravidez,

ou se vier a sobreviver fora do útero, será por apenas alguns instantes.

Marcela Maria Gomes Giorgi105 entende que: “[...] a

saúde psíquica está compreendida no conceito de saúde em si. Estudos

comprovam que a gravidez anencefálica pode levar a mãe a uma

completa desorganização psíquica e emocional.”.

Acrescenta-se que a permanência do feto anencéfalo

no útero da mãe se considera perigoso, podendo gerar danos à saúde e à

vida da gestante. Assim, a anencefalia aumenta sobremaneira os riscos do

parto e da gravidez por várias causas.

104 GIORGI, Marcela Maria Gomes. O direito da mulher ao abortamento de feto portador de anencefalia no Brasil contemporâneo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 172. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1185> Acesso em Acesso em: 3 nov. 2008. 105 GIORGI, Marcela Maria Gomes. O direito da mulher ao abortamento de feto portador de anencefalia no Brasil contemporâneo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 172. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1185> Acesso em Acesso em: 3 nov. 2008.

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Nesse sentido, o de proteger a saúde e até mesmo a

vida da gestante, o artigo 128, inciso I, do Código Penal, dispõe que: “Não

se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a

vida da gestante.”.

3.6. MORTE ENCEFÁLICA

Passa-se agora à análise do conceito de morte no

âmbito jurídico.

A Lei 9.434/97, em seu artigo 3º, traz o conceito legal de

morte como sendo a ausência de atividade encefálica, e não a ausência

de atividade cerebral.

Eduardo Gomes de Queiroz 106, esclarece que:

Há que se observar que a lei de doação de órgãos, apesar de conceituar morte como sendo ausência de atividade encefálica, não trouxe os critérios definidores a partir dos quais seria possível constatar a ocorrência de morte encefálica.

Ainda, para o mesmo doutrinador107:

[...] para que haja morte encefálica, necessária se faz a combinação de uma série de circunstâncias que, indubitavelmente nos casos de anencefalia, não se preenche. ‘O feto anencefálico possui atividade motora supra-espinal’, uma vez que, apesar de não possuir o cérebro, ‘possui tronco cerebral’, de maneira que há a preservação das funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal.

106 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese, v. 1, n. 1, abr./maio, 2000. Pg 79. 107 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese, v. 1, n. 1, abr./maio, 2000. Pg 79.

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Diante do acima enunciado, a manutenção da vida

extra-uterina de bebês anencéfalos seria impossível. No entanto, a

Constituição Federal em momento algum amparou apenas a vida inviável.

3.7 A VISÃO RELIGIOSA

O Ministro Celso de Mello108 apresenta a seguinte opinião

a respeito da visão religiosa sobre o aborto de fetos anencéfalos:

O dogmatismo religioso revela-se tão opressivo à liberdade das pessoas quanto a intolerância do Estado, pois ambos constituem meio de autoritária restrição à esfera de livre arbítrio e de auto-determinação das pessoas, que hão de ser essencialmente livres na avaliação de questões pertinentes ao âmbito de seu foro íntimo, notadamente em temas do direito que assiste à mulher, seja ao controle da sua própria sexualidade, e aí surge o tema dos direitos reprodutivos, seja sobre a matéria que se confere o controle sobre a sua própria fecundidade.

Tereza Rodrigues Vieira, Doutora em Direito das Relações

Sociais, com propriedade assinala que é da competência dos médicos a

matéria que versa sobre o aborto anencéfalo, para melhor compreensão

destaca-se:

Nossos julgadores não podem basear suas decisões em conceitos superados ou suas crenças. Não podem os juízes reeditar o Direito Consuetudinário. Esta matéria é de competência da área da saúde e os médicos já haviam atestado a certeza da incompatibilidade da vida extra-uterina. Com a interrupção da gravidez por anomalia fetal, as mulheres não estão renunciando a sua fé em Deus. Então reafirmando sua crença na autonomia e na capacidade para escolher o rumo de suas vidas, sem limitações ao exercício de seus direitos e liberdades fundamentais. O Judiciário deveria ser solidário a elas.

108 Notícias do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http//www.stf.gov.br.

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Finalizando Luzi Flávio Gomes109, comenta que o

processo de secularização ainda não acabou e que por isso o Código

Penal ainda é conservador, vejamos:

Nosso CP, como se vê, ainda é bastante conservador em matéria de aborto. Isso se deve muito provavelmente à influência que ainda exercem sobre o legislador certos setores religiosos. O processo de secularização (separação entre direito e religião) ainda não terminou. Confunde-se ainda religião com Direito.

Conclui-se que os religiosos exercem, ainda, nos dias

atuais, uma forte pressão junto aos políticos e até mesmo perante os

julgadores, com o intuito de impedirem a descriminalização do aborto de

anencéfalos.

109 GOMES, Luiz Flávio. Revista síntese de direito penal e processual penal. Ano V. n. 28. p. 35-36. out/nov. 2004.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como objetivo investigar à luz

da legislação e da doutrina a possibilidade mudança de entendimentos

pelas instituições jurídicas brasileiras frente à possibilidade de inclusão do

aborto eugênico no rol dos abortos permitidos, pelo Código Penal Brasileiro,

visto não existir essa previsão legal.

O interesse pelo tema abordado deu-se em razão da

grande quantidade de nascimento de crianças com anomalias, que

poderiam ser verificar no pré-natal, através de exames tecnológicos hoje

existentes. Diante da tecnologia do avanço da medicina, acompanhando o

desenvolvimento fetal é possível detectar com precisão anomalias que

tornam incompatível a vida extra-uterina.

Para seu desenvolvimento lógico o trabalho foi dividido

em três capítulos.

No primeiro capítulo foi abordado aspectos histórico do

aborto desde os princípio da história do aborto ate a atualidade, foi feita

uma abordagem acerca do direito a vida, da dignidade da pessoa humana

no ordenamento jurídico brasileiro os direitos e garantias do nascituro.

O segundo capítulo foi destinado a tratar das

modalidades do aborto, os tipos objetivos e subjetivos do aborto, os sujeito

passivo e ativo, também foi tratado com base na nos artigos do Código

Penal Vigente, sobre todos as formas de aborto admitidas na Lei.

No terceiro e último capítulo, estudou-se especificamente

a anencefalia, a inviolabilidade do ser a vida do feto anencéfalo, posto que

ausente está a estrutura biológica mínima para o desenvolvimento racional

do ser. O trauma materno, posto

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que se há gestação de um feto anencéfalo, a mãe

poderá sofre traumas psicológicos fortes, ao ponto de abalar a saúde da

gestante.

Por fim retoma-se a duas hipóteses básicas para a

pesquisa: a) O aborto de fetos anencefálicos não é permitido pelo direito

brasileiro e, portanto, não possui fundamento de legalidade; b) A gravidez

de um feto anencéfalo, pode causar um trauma materno, podendo colocar

em risco a vida da gestante, sofrendo a mesma abalos psicológicos.

Em relação a hipótese “a” tem-se que esta foi

parcialmente comprovadas, uma vez que não encontra amparo legal

contudo já existem julgados neste sentido.

No que tange em relação a hipótese “b”, restou

devidamente comprovada pelo fato de que a mãe estaria carregando um

feto que certamente não sobreviverá até o fim da gravidez, o que poderá

acarretar/resultar em um abalo psíquico de grande extensão.

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