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paginas.ufrgs.br/revistabemlegal REVISTA BEM LEGAL • Porto Alegre • v. 3 • nº 2 • 2013 72 O aluno surdo, a intérprete, os alunos ouvintes e a professora nas aulas de língua inglesa 1 Maria de Fátima Comini da SIlva Sou uma professora, entre muitas outras, que está na sala de aula de língua inglesa com um aluno surdo, em uma turma do segundo segmento da modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos), no período noturno, de uma escola estadual na periferia de Cuiabá. Dilke 2 , o aluno surdo que chegou à escola no início do ano letivo 2012, 18 anos, surdo desde o seu nascimento. Aprendeu LIBRAS no CEAADA (Centro Estadual de Atendimento e Apoio ao Deficiente Auditivo) na adolescência, mas, em casa, comunica-se basicamente por sinais domésticos, uma vez que os familiares não sabem LIBRAS. Quando começou a frequentar as aulas de inglês, não havia intérprete 3 na escola, e a situação ficou assim por algum tempo. Nossa comunicação era por mímica ou escrita, em atos corriqueiros de informação; a inclusão do aluno nas aulas era apenas física. Deparei-me com minha falta de experiência na interação com surdos e sem conhecimentos adequados para lidar com tal situação, pois nunca havia estudado língua de sinais. Não era obrigação e, em princípio, não havia necessidade, ademais, o ensino de LIBRAS é um acontecimento muito recente nas universidades. Os meus únicos recursos, portanto, eram a intuição e a boa vontade, ou melhor, “investimento” (Bonny- Norton, 1995). O conceito de investimento, segundo a autora, refere-se aos recursos simbólicos (língua, educação, amizade) e aos recursos materiais (bens de 1 Este trabalho originou-se do estímulo de Assis-Peterson, professora que respeito, admiro e agradeço pela presença constante na minha vida de aprendiz. 2 Nome fictício. 3 De acordo com Quadros, o tradutor /interprete de LIBRAS é conceituado como a “pessoa que interpreta dada língua de sinais para outra língua, ou desta outra língua para uma determinada língua de sinais”, ou seja, de língua de sinais pra língua oral ou vice-versa.

O aluno surdo - UFRGS

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paginas.ufrgs.br/revistabemlegal REVISTA BEM LEGAL • Porto Alegre • v. 3 • nº 2 • 2013 72

O aluno surdo, a intérprete, os alunos ouvintes e a professora

nas aulas de língua inglesa1

Maria de Fátima Comini da SIlva

Sou uma professora, entre muitas outras, que está na sala de aula de língua

inglesa com um aluno surdo, em uma turma do segundo segmento da modalidade EJA

(Educação de Jovens e Adultos), no período noturno, de uma escola estadual na

periferia de Cuiabá.

Dilke2, o aluno surdo que

chegou à escola no início do ano letivo 2012, 18 anos,

surdo desde o seu nascimento. Aprendeu LIBRAS no CEAADA (Centro Estadual de

Atendimento e Apoio ao Deficiente Auditivo) na adolescência, mas, em casa,

comunica-se basicamente por sinais domésticos, uma vez que os familiares não sabem

LIBRAS.

Quando começou a frequentar as aulas de inglês, não havia intérprete3 na

escola, e a situação ficou assim por algum tempo. Nossa comunicação era por mímica

ou escrita, em atos corriqueiros de informação; a inclusão do aluno nas aulas era

apenas física. Deparei-me com minha falta de experiência na interação com surdos e

sem conhecimentos adequados para lidar com tal situação, pois nunca havia estudado

língua de sinais. Não era obrigação e, em princípio, não havia necessidade, ademais, o

ensino de LIBRAS é um acontecimento muito recente nas universidades. Os meus

únicos recursos, portanto, eram a intuição e a boa vontade, ou melhor, “investimento”

(Bonny- Norton, 1995). O conceito de investimento, segundo a autora, refere-se aos

recursos simbólicos (língua, educação, amizade) e aos recursos materiais (bens de

1 Este trabalho originou-se do estímulo de Assis-Peterson, professora que respeito, admiro e agradeço pela presença constante na minha vida de aprendiz. 2 Nome fictício.

3 De acordo com Quadros, o tradutor /interprete de LIBRAS é conceituado como a “pessoa que

interpreta dada língua de sinais para outra língua, ou desta outra língua para uma determinada língua

de sinais”, ou seja, de língua de sinais pra língua oral ou vice-versa.

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capital, bens imóveis, dinheiro) adquiridos pelo aprendiz e que são capazes de

valorizar seu capital cultural (Bourdieu, 1992).

No meu esforço para interagir com Dilke, buscava respostas para perguntas,

tais quais: Como integrar Dilke com os outros alunos ouvintes? Como administrar a

atenção ao Dilke sem deixar de lado os outros alunos? Como preparar atividades

didáticas para incluir um aluno surdo, sem ser habilitada em LIBRAS? A quem recorrer?

Embora o desconhecido me assombrasse, por conta própria, contatei uma

colega do mestrado, pedagoga e intérprete de LIBRAS4, para falar com os alunos da

turma sobre LIBRAS e o processo de inclusão de alunos surdos na escola. Nesse dia,

coincidentemente, chegou também a intérprete de LIBRAS, habilitada em Língua

Portuguesa, contratada para dar suporte a Dilke em todas as aulas.

A palestra trouxe para os alunos ouvintes e para mim esclarecimentos sobre

diversas questões em relação à cultura do surdo. Falar alto demais em sala, arrastar

cadeiras incomodam os surdos que, segundo Padden & Humphries (1988), “têm uma

vida cheia de cliques, zunidos, estalos e grunhidos” ( in Gesser, 2009: 48). A professora

e os outros alunos, ao falar com os surdos, devem olhar para eles, não dar as costas. As

imagens são fundamentais nas atividades didáticas para otimizar o processo de

aprendizagem. São detalhes simples que fazem muita diferença e que nós, ouvintes,

ignoramos.

Alma5,

uma jovem educadora com habilitação estadual para atuar como

intérprete de LIBRAS tornou-se um valioso e importante “instrumento” de interação

entre Dilke, a professora e os alunos ouvintes. Os ouvintes passaram, então, a ver Dilke

como realmente um colega e as tentativas de comunicação com ele iniciaram quando

pedi ao Dilke para ensinar a mim e todos da turma alguns sinais de LIBRAS. A partir daí,

ora sou professora de Inglês, ora sou aprendiz de LIBRAS.

4 Profª. Suammy Priscila Rodrigues, a quem agradeço pela amável cooperação.

5 Nome fictício.

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Hoje, por já conhecermos alguns sinais de LIBRAS, os alunos e eu temos maior

grau de interação com Dilke. Nossa intérprete, que deixou de ser apenas do aluno

surdo para ser de todos nós, também colabora e dá sugestões para que as atividades

pedagógicas possam incluir o estudante. Todos os ouvintes já têm um sinal de

identificação pessoal, como se fosse o nome da pessoa em LIBRAS. Os surdos criam

sinais de acordo com as características de cada pessoa para representá-la, evitando

assim a escrita dos nomes todas as vezes que mencionarmos tal pessoa. A turma faz

exercícios em grupos e Dilke nunca fica de fora, responde aos exercícios dados através

da LIBRAS e faz, rapidamente, todos as atividades escritas em inglês.

Um dos momentos mais inusitados e jamais esquecidos ocorreu quando eu

estava trabalhando com a origem dos alunos através do uso do verbo “to be”. Dilke

deu-me a resposta correta em LIBRAS. Sem a interferência da intérprete,

imediatamente entendi os sinais e escrevi no quadro em inglês (IS) o que o aluno havia

falado. Ele confirmou que eu havia entendido o que ele disse em LIBRAS, e eu, feliz,

gritei “OBA, EU APRENDI!”. A turma toda caiu em gargalhada, Dilke bateu palmas em

LIBRAS e eu constatei mais uma vez: “Na sala de aula, todos ensinam, todos

aprendem” (Auerbach, 2000, p. 147-148, citado em Schlatter, 2009, p.20).

Ainda há muito a ser feito e mudanças devem ser encaradas como

responsabilidade da escola, da sociedade civil e dos representantes do poder público.

Temos que lidar com os meios de comunicação presentes dentro e fora da sala de

aula, com a instabilidade, com o imprevisível, com a nossa própria ignorância, com o

conhecimento do aluno, com as diferenças e os diferentes (o cego, o surdo, o

cadeirante, entre outros).

Diante desse cenário, estou aprendendo com os meus aprendizes e vou

construindo, sem medo de errar, uma nova prática pedagógica. Nesse palco, sou

eterna aprendiz.

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Referências Bibliográficas

GESSER, A. Libras? Que língua é essa?: Crenças e preconceitos em torno da Língua de

Sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

PEIRCE, BONNY NORTON. Social Identity, Investment, and Language Learning. Tesol

Quarterly, Vol. 29, No. 1, Spring 1995

SCHLATTER, M. O ensino de leitura em língua estrangeira na escola: uma proposta de

letramento. Calidoscópio, Vol.7, n.1, p. 11-23, jan/abr 2009.

Maria de Fátima Comini da Silva - mestranda do

Programa de pós-graduação em Estudos de

Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso.

Graduada em Letras e especialista em Ensino e

Aprendizagem de Língua Inglesa também pela UFMT,

atua como professora no ensino superior do Instituto

Cuiabano de Educação e no ensino médio da

Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso.

Tem experiência na área de Letras e em cursos

tecnólogos, com ênfase em Língua Inglesa e

Portuguesa.