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A mulher, o amor e o cavaleiro, Georges Duby Os trovadores e o amor-paixão, Jacques Solé
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A LÍRICA TROVADORESCA
Duby, Georges "A mulher, o amor e o
cavaleiro" in Amor e Sexualidade no
Ocidente,intr. Georges Duby, trad. Ana
Paula Faria, ed. Terramar
A mulher, o amor e o cavaleiro
Georges Duby
Se se interrogar sobre a condição feminina, o historiador da alta Idade
Média sente-se de mãos vazias. Sentir-se-á menos, quando chega ao século XII.
A obscuridade, de facto, começa a dissipar-se um pouco. Escreve-se mais.
Conserva-se melhor os textos. No meio destes, aparecem restos de uma
literatura profana, transmitindo algumas imagens da vida, embora
deformada, pois esta literatura é de evasão, ainda que se mantenham
estreitas as suas relações com aquilo que foi foi efectivamente vivido. É um
facto, de qualquer modo, que estes escritos falam cada vez mais das
mulheres.
Será que elas contam mais? É o que parece decorrer das representações
do cristianismo. Aí se vê avançar, para o primeiro plano, algumas figuras
femininas que não são apenas a alegoria a alegoria dos vícios. Santa Madalena
conquista então devotos em vastas províncias. Por sua vez, no grande teatro
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A LÍRICA TROVADORESCA
montado nos pórticos das catedrais, a figura da virgem apresenta-se
simultaneamente com feminidade e autoridade até adquirir uma estatura
idêntica à de Jesus, num trono semelhante ao seu na iconografa das
coroações. Multiplicações dos conventos dominicais. Heloísa dialogando com
Abelardo - e em que tom! Finalmente, o lugar concedido às mulheres em todas
as seitas, espalhadas por todo o lado, mas rotuladas como sendo heresias pelo
Poder, que se obstinava em dissolvê-las. Tantos sinais. Mas é sobretudo o
século XII que parece ser, na evolução do casamento no seio da nossa cultura,
ponto de uma inflexão decisiva.
É nesta época que , no termo de uma longa inflação doutrinal vem
estabelecer-se como um dos sete sacramentos da Igreja - e alguns doutores até o
proclamam como sendo o mais eminente de todos, pois foi instituído pelo próprio
Deus, no paraíso, antes de Adão e Eva caírem em desgraça. Após um combate
de séculos, os dirigentes da Igreja conseguem que o laicado aceite o seu modelo
de moral matrimonial, retocado e suavizado. Por outro lado, e em jeito de
compensação torna-se visível no século XII um modelo antigo elaborado
para a aristocracia laica, no centro do qual se instala aquilo a que especialistas da
literatura chamam o amor cortês.
(pg. 225 e 226)
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A LÍRICA TROVADORESCA
Submetida e abandonada
O destino normal da rapariga é, de facto, passados os 14 anos, o de
ser, no meio de grande pompa, desflorada pelo varão a quem fora
prometida, havia muito tempo, pelos seus parentes masculinos,
ingressando numa outra casa - a do seu «senhor» (dominus), como se diz -
e aí vivendo em submissão. A tendência das linhagens é para praticar a
endogamia: unir primos pelo casamento protege mais eficazmente os
patrimónios contra a dispersão. Mas isso é ter de enfrentar a Igreja, cuja
concepção do incesto é então desmedida: sustenta a proibição de casar com um
parente abaixo do sétimo grau. Exigência excessiva, prescrição inaplicável:
todos os cavaleiros de uma dada província são de facto primos muito mais
chegados. Embora o impedimento de parentesco tenha por função principal a de
legitimar os divórcios. Com efeito, os varões da nobreza são deliberadamente
polígamos. Na moral laica, nada há que reprove a repudiação: o homem, muito
naturalmente, devolve a esposa - sob condição de devolver o dote aos pais dela e
de fazer concessões quanto às arras - se ela demora a dar-lhe filhos varões ou se
ele encontra melhor partido. E claro que estas práticas ferem a moral da Igreja.
Esta, porém, sabe ser acomodatícia e, com o pretexto de incesto, dispõe-se a
dissolver a união, sendo apenas uma questão de preço.
Mas há um ponto em que leigos e membros do clero de acordo: o valor da
fidelidade conjugal. As conveniências restringem o impudor masculino aos tempos
de «juventude» ou de viuvez. Assim, o conde de Guines não se importa de que se
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A LÍRICA TROVADORESCA
saiba que gerou trinta e três bastardos, pelo menos; orgulha-se disso e também
de lhes ter dado uma excelente educação e ainda de ter conseguido casar todas
as suas filhas ilegítimas - apenas pretende que se diga que todos eles foram
concebidos antes do seu casamento ou após a morte da sua mulher. As
conveniências obrigam-no também a gostar da mulher. Mas não muito. 0
clero e os trovadores também estão de acordo neste ponto. Os primeiros
porque consideram o marido muito apaixonado como fornicador; os
segundos, porque a porque a fine amour1 vive da liberdade e só poderia
estiolar-se na coleira matrimonial. Em todo o caso, a infidelidade da mulher é
punida com a condenação máxima. A adúltera poderia de facto transmitir a
herança da linhagem a intrusos, provenientes de um sangue que não é o dos
antepassados.
pg. 233 - 235
1 0 amor cortês (fin'amors ou fine amour, no feminino)
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A LÍRICA TROVADORESCA
Eva dos malefícios
Este perigo conta, sem dúvida, no meio de todas as razões que podem
explicar um fenómeno abundantemente testemunhado pelos documentos que nos
informam: as atitudes masculinas para com a mulher, na época de que falo,
parecem estar dominadas menos pel0o desejo do que pelo medo. A
natureza feminina - é o que se repete por todo o lado - é perversa. Por meio da
mulher, tentadora e reptilizante - aqueles que sonham com as relações entre o
cosmos e este microcosmos que é o homem situam-na do lado da sombra, da
lua, da água adormecida -, o pecado introduziu-se no mundo. Ela é suspeita de
ser portadora de heresias, de utilizar armas dissimuladas, malefícios, filtros,
venenos. Se um marido morre de mal misterioso, logo todos os olhos se
voltam para a sua esposa. O sexo feminino é tido por sôfrego e impetuoso,
insaciável e, por tudo isto, devorador. Os cavaleiros do século XII vivem
rodeados de Evas que consideram simultaneamente débeis, corrompidas e
corruptoras. Eles desconfiam delas: com elas, é permanente a
possibilidade de desgraça. Um remédio: o casamento. Através dele, a
concupiscência desvanece-se. Num instante, desarma a mulher, tornando-a
mãe.
pg. 235
Rainha captiva do amor cortês
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A LÍRICA TROVADORESCA
Tal como a mãe de Cristo, a mulher nobre é exaltada enquanto
«dama». A dama (domina, feminino de dominus - «senhor» em latim) é, em
primeiro lugar, a esposa, logo a mãe. Há amas no quarto dos filhos ainda
muito pequenos: assim, a esposa do senhor pode, todos os anos, dar-lhe um
herdeiro. Passa de uma gravidez a outra. Para ela, há urna probabilidade, em
cada duas, de morrer de parto, esgotada - o que favorece também a poligamia na
prática. Em contrapartida, esta função procriadora, mesmo que seja a única
função positiva que lhe é reconhecida, confere-lhe algum poder. A dama
«domina», pelo menos, os seus filhos mais novos. Por vezes, sobrevivendo às
sucessivas maternidades, já viúva e usufruindo das arras, governa, triunfante, o
senhorio em nome dos seus filhos ainda menores . E como as restrições ao
casamento dos filhos varões têm por consequência directa a desigualdade das
condições no casamento - os cabeças de linhagem é que escolhem,
encontrando facilmente, filho que casam, uma esposa mais rica - a fortuna,
a glória, a «nobreza» estão, quase sempre, do lado da ascendência
materna. A posição da esposada na casa do marido fica talvez assim
reforçada, mas sobretudo a posição dos seus irmãos e a influência
destes sobre a sua progenitura: numerosos testemunhos atestam a força
particular dos laços que unem um sobrinho ao respectivo tio materno - que,
sendo frade ou padre, vela pela sua educação ou lhe dá a apoio no ingresso no
seio da Igreja, ou que, sendo cavaleiro, o ajuda a seguir a carreira das armas, a
encontrar uma esposa abastada.
Mas a dama é também a peça central de um divertimento, do jogo de
xadrez, cuja grande voga data desta época, de outro jogo sobretudo - esse
jogo que é o amor cortês. Expressão, entre outras, da ideologia
cavaleireca na sua resistência à aculturação eclesiástica, o amor cortês torna-
se, no século XII, a principal actividade lúdica dos primórdios modernidade,
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A LÍRICA TROVADORESCA
nas cortes formadas pelos príncipes mais importantes, onde são lançadas
as modas aristocráticas. Como todos os jogos, propõe-se proporcionar a
evasão do quotidiano, graças à inversão das relações normais. É um desafio
à exortação da Igreja contra o afundamento nos prazeres mundanos. E
um desafo às probições da moral matrimonial. Segundo as suas regras, um
«jovem» - um cavaleiro celibatário - escolhe uma «dama» - esposa de um
senior - para a servir, macaqueando as atitudes vassálicas, com a esperança
de uma recompensa. Mas a dama nunca é tomada pela força, nem cedida. O
jogo exige que ela se dê, progressivamente, e os seus favores são tanto mais
preciosos quanto eles parecem não ligar importância aos grandes castigos
destinados aos adúlteros. A posição da mulher - envolvida por homenagens,
desejada, lenta mas incompletamente condescendente - parece, à primeira
vista, ser de superioridade. Mas é necessário não nos iludirmos com as
aparências. Trata-se de um jogo de homens. Quem conduz o jogo é o próprio
senhor, que finge entregar a esposa, mas que se serve dela como isco. A
competição de que ela é fulcro permite-lhe segurar pela rédea o grupo de
jovens que fazem a glória da sua casa. Enfim, se o desejo é de facto o
aguilhão do amor cortês, a verdade é que se trata apenas do desejo
masculino. A CORTESIA, AINDA MAIS DO QUE O CASAMENTO, FAZ DA MULHER NOBRE
UM OBJECTO.
Nesta sociedade, a mulher aparece assim dominada de todas as
maneiras. Ninguém põe em dúvida que a subordinação do feminino ao masculino
seja um facto da natureza, conforme portanto com o decreto divino e a ordem do
mundo. Todavia, existe uma área em que alguns espíritos aventureiros começam
a ver estabelecer-se a igualdade - é o amor do casal. Aqui, a ideologia religiosa e
a ideologia profana tendem a encontrar-se de novo. A Igreja, devido ao horror que
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A LÍRICA TROVADORESCA
sente pelo carnal, pretende privilegiar, no casal, o acordo das vontades, o
consentimento mútuo, o qual institui o casamento, na sua maneira de ver. Em
relação aos deveres que o casamento impõe, a Igreja proclama a igualdade entre
o homem e a mulher. Ouçamos Abelardo: ele afirma que a mulher foi criada
fisicamente como igual ao homem e que o pecado a colocou sob o domínio
masculino, mas que estedomínio cessa no acto conjugal, em que o homem e a
mulher detêm igual poder sobre o corpo do outro. Quanto aos poetas lentamente -
o limite só foi atingido em finais do século XIII, na segunda parte do Roman de la
Rose -, progridem rumo à ideia de que a união dos corpos só é perfeita se forem
ao encontro um do outro. Entendamo-nos: o desejo masculino e este outro
desejo, o da mulher, ao qual o amor cortês não ligava importância.
pg. 235 - 23
Solé, Jacques "Os trovadores e o amor-paixão" in Amor e Sexualidade no Ocidente, int. Georges Duby, trad. Ana Paula Faria, ed. Terramar
Os trovadores e o amor-paixão
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A LÍRICA TROVADORESCA
Jacques Solé
«Cortesia» - uma palavra que se tornou insípida. E, no entanto, no
coração da Idade Média, ela nasceu de uma prodigiosa aventura - a do
amor "cortês", exaltação espiritual e carnal das relações entre o homem e a
mulher, inovação decisiva, tanto no campo literário como no social. Ficou a dever-
se a algumas centenas de trovadores occitanos 2 que viveram no que hoje
chamamos Midi3 da França, nos séculos XII e XIII, no seio de uma aristocracia
próspera.
Isto não significa que o sentimento amoroso fosse desconhecido das
outras civilizações, como podemos ser levados a pensar ao ler a obra célebre de
Denis de Rouge-mont, O amor e o Ocidente, publicada em 1939. Muito pelo
contrário, a erótica cortês construiu-se a partir de elementos inerentes ao seu
meio de origem, assim como às sociedades vizinhas. A influência da poesia
neolatina dos goliardos, dos clérigos vagantes (clerici vagi) do século X, está bem
distante. A influência, tão diversa, do folclore meridional, da brilhante civilização
árabe andaluza e da moral cavaleiresca está bem mais próxima.
E temos ainda a considerar as tradições populares. No mês de Maio,
rapazes e raparigas iam aos bosques cortar ramos verdes para ornamentar a
igreja. Dançavam nos campos e o ento fazia subir as saias às raparigas.
2
? Da Occitânia (Occitanie, em francês): conjunto das regiões francesas em que, na Idade Média, se falava a língua de oc (em vernáculo: linguadoque; em francês, langue d'oc). (N.T.)
3 Meio-Dia, o Sul da França: abrange a bacia da Aquitânia, o Rossilhão, o Languedoque e a Provença. (N.T.)
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A LÍRICA TROVADORESCA
«Eis o bonito mês de Maio, cada namorado muda de amiga» diziam as
canções occitanas. Maio é o mês do amor sensual, da corte pré--nupcial. 0
casamento será mais tarde. Depois do casamento, um outro costume, mais
perturbador e proveniente do Norte:o valantinage. Este costume concede ás
esposas, por um dia - ou mais -, na cara dos respectivos maridos, toda
a familiaridade com um «valentino» (a mesma palavra que «namorado»),
celibatário e escolhido realmente... à sorte. «Ter-me-ás amanhã. Esta noite é
do meu amante» diz a mulher ao marido nas canções francesas. É, na verdade,
um adultério mais simbólico do que real.
Podemos chamar-lhe jogo rústico. Tudo é diferente no mundo andaluz
que, no século XI, ainda está às portas do Languedoque ou, pelos menos, da
Catalunha. A Sensualidade tem aí a sua expressão. Uma mulher exclama:
«Qual a condição para eu te amar? Que juntes a pulseira do meu tornezelo às argolas das minhas orelhas!»
Mas os poetas árabes exaltam o amor e a mulher a quem o dedicam.
Comunhão espiritual dos corações, submissão do amante à sua dama,
exaltação mística da castidade - todos estes temas, que se impuseram aos
Aquitânios, vinham do sul.
Eis um testemunho de Ibn Zaydun, de Córdova:
«Entre ti e mim, se quisesses, haveria alguma coisa que não se perderia,
um segredo que, mesmo que todos os outros fossem divulgados, fcaria para
sempre escondido [...].
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A LÍRICA TROVADORESCA
Que te baste saber que, se encheres o meu peito com o que os outros
corações não conseguem suportar; o meu suportá-lo-á.
Sê altiva e eu aceitarei. Demora-te e eu serei paciente. Sê orgulhosa e eu
serei insignificante. Foge e eu avançarei. Fala e eu te escutarei. Ordena e eu
obedecerei!»
Tenho duas éguas
O amor cavaleiresco contemporâneo dos trovadores constitui, sem
dúvida, a última fonte da erótica provençal. Exigia do amante a submissão à
sua dama e transpunha para o domínio amoroso um certo número de
virtudes «viris»:coragem lealdade, generosidade. Mas, consagrado de
forma realista a relações entre iguais - senão legitímas, pelo menos
legitimáveis (por um casamento após divórco) - representava, a partir
deste ponto de vista, a antítese dos comportamentos que os trovadores
iriam enaltecer. Isto aconteceu no decurso do século XII, em três etapas
sucessivas, ao ritmo das transformações da sociedade provençal.
À frente da primeira geração de trovadores, Guilherme IX da
Aquitânia, conde de Poitiers (1071 - 1127), foi ao mesmo tempo um poeta e
um grande senhor. Este «intrujão de mulheres», como lhe chamavam,
representa um erotismo masculino ainda muito tradicional, perfeitamente
«gaulês». Num poema cheio de humor, explica aos seus amigos que tem «duas
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A LÍRICA TROVADORESCA
éguas». «Uma, de entre os cavalos da montanha, era dos melhores corredores
[mas tornou-se] rebelde e selvagem. [A outra], quando ainda era potra da pradaria
[foi oferecida por Guilherme da Aquitânia a um outro senhor]. lá longe, para
além de Confolens. Mas continuei com os meus direitos sobre ela» acrescentou.
Adiante... Todavia, exprime noutros lados uma concepção um tanto purificada do
amor exaltando a alegria do desejo, sublinhando a obediência devida à mulher
amada, à boa maneira dos Árabes. Mas esta idealização do amor cavaleiresco
não é ainda a «cortesia».
Esta aparece na segunda geração dos poetas provençais.
Exceptuando Jaufré (Geoffroi) Rudel, são trovadores ou modestos cavaleiros,
Cercamon, Marcabru e Bernart Marti exprimem as aspirações dos seus irmãos
de idade ou de classe que desdenham das nobres damas. Têm aversão à
prática, então muito em voga, do adultério interconjugal. Praticado entre os
senhores e as suas esposas, excluía os jovens cavaleiros e, com mais razão
ainda, os «jograis». Eis a razão por que os excluídos satirizam as mulheres
imorais que aspiram ao amor carnal dos grandes e celebram um amor
purificado, insistindo na união dos corações, na duração e na importância do
«serviço» efectivado pelo amante junto da sua dama. Este amor torna-se o
fundamento de todas as virtudes. Hostil ao naturalismo banal dos poderosos e
dos campónios, quase sempre onírico, o amor cortês não deixa de cantar
mulheres reais, assim como não separa o amor da sua base carnal.
Estando a teoria constituída, só faltava que a sociedade a adoptasse. Foi o
que aconteceu no final do século XII. A erótica dos trovadores anexou então o
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A LÍRICA TROVADORESCA
espírito cavaleiresco, introduzindo-o num universo aristocrático
transformado sob a pressão dos jovens cavaleiros celibatários e
ambiciosos. Amontoados na corte do senhor, esperavam que a dama dele
os distinguisse com um amor sincero e desinteressado e o ideal do amor
cortês, tornado comum aos grandes senhores e aos novos-ricos,
constituiu assim um meio de atenuar a tensão entre os diferentes estratos
da nobreza feudal. Ao exaltar o prazer puro, a poesia clássica dos
trovadores - apesar do alargamento do seu público - mantinha
integralmente os privilégios culturais do estrato superior. Conseguiu
isso graças à pressão das damas que aceitavam apesar de tudo, amar
cavaleiros de um nível social inferior ao seu. Todos tinham a sua conta. Ficavam
satisfeitos tanto o orgulho como a dignidade das grandes damas. O PURO AMOR
(FIN'AMOR), NEM NATURALISTA NERN PLATÓNICO, CELEBRAVA A ABSTINÊNCIA,
CONSERVANDO AO MESMO TEMPO UMA COLORAÇÃO CARNAL E, POR ISSO MESMO,
AGRADAVA À ALTA NOBREZA. A exaltação, ao mesmo tempo alegre e casta, do
desejo suscitado pela mulher amada tomava uma tonalidade mística e saciava
facilmente, os fantasmas dos mais modestos.
Assim, o sentimento amoroso continuava a ser a condição de todas as
virtudes. Traduzia-se num «serviço» tipicamente feudal: relação de
suzerano a vassalo, com uma série de graus que constituíam um método de
purificação do desejo. Muito frequentemente, ficava-se por um casta beijo.
Na intimidade amorosa, como na sociedade, o amante perfeito não era mais que
um simples servidor da sua dama. Os seus deveres consistiam em agradar-
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A LÍRICA TROVADORESCA
lhe, em amá-la e não amar mais nenhuma, em exaltá-la, ser discrcto. Em troca,
a sua amante, cheia de amor, devia ter em apreço o comportamento
Tudo era permitido, excepto...
Para além do beijo, o amante podia receber duas outras recompensas,
condimento essencial deste jogo subtilmente adúltero. Primeiro, a graça de
contemplar o corpo nu da sua dama. Depois, o asag («prova» - a mesma palavra
aplica-se com o significado de ensaio), onde quase tudo era permitido, excepto o
acto sexual propriamente dito . A fascinante condessa de Die descreve-nos
esta cerimónia em que, no seu leito, tomando nos braços nus o seu cavaleiro, ela
lhe fazia do seu peito uma almofada, ao mesmo tempo que o beijava cheia de
amor. Feliz por assim o abraçar em vez do seu marido, sabia que o seu amante
não iria nunca além daquilo que ela lhe permitia.
Menos lúbrica que continente, esta situação lembra-nos que, no seio da
magia amorosa cantada pela poesia trovadoresca, o elemento essencial
continuava a ser - porque era factor de igualdade - a troca de corações. Se
ficamos surpreeendidos com a tensão, um tanto afectada, imposta pelos
trovadores à sua tradução carnal, Denis de Rougemont não teve razão, sem
dúvida, ao distinguir, nesta exaltação, um príncipio de morte e de perdição. Pelo
contrário, tratava-se de uma erótica, senão perfeitamente sã, pelo menos
escrupulosamente moralizadora e notavelmente moderada. A sua orientação
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A LÍRICA TROVADORESCA
era certamente anticristã, mas nem por isso ousava atacar a origem de todas
as virtudes.
Esta foi, em matéria amorosa, a grande invenção sentimental do século
XII. Não foi certamente suficiente para fazer do Ocidente o criador do amor
psicológico entre os sexos, pois os fenómenos sociais a que podemos ligá-la
estão igualmente presentes noutras civilizações. Em contrapartida, devemos ter
consciência da importância da iniciativa das nobres damas daquele tempo:
elas aproveitavam a ocasião para finalmente se sobreporem, no interior do
mundo feudal, aos valores da amizade masculina - próprios, havia muito
tempo, das fratemidades guerreiras. Os aristocratas occitanos
impuseram, a uma sociedade misógina, a sobrevalorização das suas
dualidades e a procura desvairada da sua estima.
O catolicismo e o catarismo, religiões rivais, tinham em comum, pelo
menos na sua origem, o facto de se preocuparem muito pouco com a
emancipação feminina e ainda menos a valorização do amor das mulheres. No
apogeu da civilização provençal, as nobres damas garantiram o êxito de uma
uma moda
manifestamente anticlerical - a da nova devoção erótica unilateral que lhes
sujeitava o homem. Submetendo-se a isso; segundo as tradições da poesia
árabe, os trovadores e os seus inúmeros imitadores permitiram à mulher
das classes superiores do Ocidente o acesso a um estado, até então
inesperado; de intimidade psíquica e de familiaridade com o mundo viril.
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A LÍRICA TROVADORESCA
Constituído na sua plenitude, o amor europeu virá a permanecer, no
domínio das relações intersexuais, como a extensão dos valores inicialmente
inerentes à amizade masculina.
A doutrina do amor cortês, na sua essência, conheceu uma rápida
degradação nos séculos XIII e XIV. No decurso do primeiro destes períodos,
os poetas Peire Cardenal e Montagnol virão a testemunhar o seu declínio,
em consequência da dupla investida da Igreja romana e do feudalismo
francês, culminando na destruição da própria civilização provençal levada a
cabo pela cruzada anticátara (1209 -1229). Esta catástrofe tornou
impossível, na prática, uma erótica que já não era mais do que uma
reivindicação moral.
Para os católicos evidentemente, uma heresisa - uma heresia bem distinta
da dos cátaros. Foi a este propósito que, em 1277, o bispo de Paris condenou o
tratado Sur l'Amour4, de André Chapelain (1185), assim como um conjunto de
teses sobre a teologia. Não seria normal que a idealização amorosa própria dos
trovadores estivesse sujeita aos ataques de uma ortodoxia cristã definitivamente
endurecida? Por fim, valorizando o casamento amor, a Igreja achou por bem
combater a exaltação de sentimentos extracanjugais opostos à sua concepção
do homem. Teve a satisfação de ver desaparecer, num primeiro momento, uma
inspiração erótica que acabou por morrer, no início do século XIV, na Catalunha.
4 Foi originalmente escrito em latim, com o título de Tractatus Amoris, por volta de 1186. (N.T)
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A LÍRICA TROVADORESCA
Viva a paixão !
No entanto, a fecundidade histórica da poesia provençal e das suas
invenções sentimentais iria resistir a toda e qualquer prova. Os seus temas,
ao mesmo tempo feministas, carnais e espiritualistas, exerceram
posteriormente uma influência considerável sobre as teorias literárias do
amor no Ocidente. De Petrarca aos cultistas e conceptistas, passando pelos
neoplatónicos do Renascimento, nenhum conseguiu escapar completamente a
esta influência. Estes jogos senhoriais proporcionavam a conservação da
associação estreita entre o espírito cavaleiresco e a ideia de amor, na aristocracia
europeia. Paralelamente, as práticas sexuais do folclore rural, indissoluvelmente
castos e ardentes, atestavam a permanência da recordação dos trovadores. A
sua lição viria mesmo a invadir completamente o mundo ocidental a partir de
1800, ao ritmo triunfal das conquistas do amor-paixão. Assim, a erótica de
inspiração provençal, hoje espalhada universalmente, apesar de adulterada,
merece a atenção dos observadores das sociedades actuais.
O sentimento de comunhão espiritual, no seu papel de excitante sexual,
trouxe ao antigo casamento uma fantasia menos temível, embora não o pareça, já
que o que está por detrás, quer das separações quer dos divórcios, é a
reconstituição da união amorosa. Os actuais amantes perpetuam assim o
ensinamento mais certo e profundo erótica dos trovadores, segundo o qual o pior
dos crimes é fazer amor sem amor, por ser contra o próprio amor.
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A LÍRICA TROVADORESCA
pg. 105 - 112 Solé, Jacques "Os trovadores e o amor-paixão" in Amor e Sexualidade no Ocidente, int. Georges Duby, trad. Ana Paula Faria, ed. Terramar
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