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61 O ativismo políticocristão na Argentina e no Brasil André Ricardo de Souza 1 María Candelaria Sgró Ruata 2 Maximiliano Campana 3 1. Introdução Este texto apresenta dados e reflexões sobre alguns aspectos do cristianismo no Brasil e na Argentina 4 . Em ambos os países os segmentos católicos e evangélicos se posicionam no espaço público, mediante manifestações organizadas e militância políticopartidária, tanto na defesa de seus interesses como de seus valores doutrinários. Tentam e, às vezes, conseguem pressionar os governos instituídos, sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas cristãos, bastante identificados com as igrejas, chegam inclusive a ocupar cargos executivos relevantes. A questão da moral sexual ocupa lugar de destaque em termos de mobilização de militantes católicos e evangélicos, exercendo influência também sobre os processos eleitorais. O texto traça um panorama religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas. 1 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. 2 Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nacional de Córdoba (UNCArgentina). Mestranda em Sociologia e Doutoranda em Estudos Sociais da América Latina do Centro de Estudos Avançados (CEAUNC). Bolsista da CONICETCIECS. 3 Advogado. Universidade Nacional de Córdoba. Doutorando em Direito e Ciências Sociais (CEAUNC). Bolsista da CONICET – CIJS. 4 Por opção metodológica, uma importante vertente cristã foi deixada de lado neste texto: o espiritismo kardecista. Tal exclusão, evidentemente sociológica, e não teológica, se deve ao fato de que os espíritas promovem a materialização do princípio cristão da caridade em significativas obras de assistência social e em função da centralidade do culto a Jesus Cristo em seus preceitos doutrinários. (Arribas, 2010; Souza, 2012). Ainda que seja a terceira maior religião no Brasil (2%), sua expressão política e demográfica na Argentina é quase nula.

O ativismo político cristão na Argentina e no Brasil 1 ... · PDF file63 do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico teve uma redução proporcionalmente

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O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil  

André Ricardo de Souza1 María Candelaria Sgró Ruata2 

Maximiliano Campana3   1. Introdução  

Este  texto  apresenta  dados  e  reflexões  sobre  alguns  aspectos  do cristianismo  no  Brasil  e  na  Argentina4.  Em  ambos  os  países  os segmentos  católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público, mediante  manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária, tanto na defesa de  seus  interesses  como de  seus valores doutrinários. Tentam  e,  às  vezes,  conseguem  pressionar  os  governos  instituídos, sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas cristãos,  bastante  identificados  com  as  igrejas,  chegam  inclusive  a ocupar cargos executivos relevantes.  

A questão da moral sexual ocupa  lugar de destaque em  termos de mobilização de militantes católicos e evangélicos, exercendo  influência também  sobre  os  processos  eleitorais.  O  texto  traça  um  panorama religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas.  

                                                            1  Doutor  em  Sociologia  pela  Universidade  de  São  Paulo  e  professor  adjunto  do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. 

2 Licenciada  em Comunicação  Social pela Universidade Nacional de Córdoba  (UNC‐Argentina). Mestranda em Sociologia e Doutoranda em Estudos Sociais da América Latina do Centro de Estudos Avançados (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET‐ CIECS.  

3 Advogado. Universidade Nacional  de Córdoba. Doutorando  em Direito  e Ciências Sociais (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET – CIJS. 

4  Por  opção metodológica,  uma  importante  vertente  cristã  foi  deixada  de  lado  neste texto:  o  espiritismo  kardecista.  Tal  exclusão,  evidentemente  sociológica,  e  não teológica, se deve ao fato de que os espíritas promovem a materialização do princípio cristão  da  caridade  em  significativas  obras  de  assistência  social  e  em  função  da centralidade do  culto  a  Jesus Cristo  em  seus preceitos doutrinários.  (Arribas,  2010; Souza, 2012). Ainda que  seja a  terceira maior  religião no Brasil  (2%),  sua expressão política e demográfica na Argentina é quase nula.  

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Para  isso  este  trabalho  se  divide  em  duas  grandes  sessões.  Na primeira,  são  apresentadas  algumas  dimensões  e  características particulares em relação à conformação do campo religioso no Brasil e na Argentina. Apesar das diferenças entre ambos os países no registro de dados  sobre variáveis  religiosas na população,  se pretende  configurar um  panorama  geral  que  servirá  para  levantar  alguns  elementos comparativos.  Na  segunda  sessão,  por  meio  de  exemplos,  são levantados  debates  sobre  políticas  de  sexualidade  e  reprodução,  em ambos os contextos, a fim de delinear o ativismo dos setores religiosos ao redor da busca de definições da moral sexual.  2. O campo religioso  2.1 A demografia religiosa no Brasil 

 A sociologia da religião no Brasil, assim como em muitos outros 

países,  têm  se  debruçado  principalmente  ao  cristianismo, caracterizando‐se  como  uma  “Sociologia  do  catolicismo  em  queda” (Pierucci,  2004:19),  fenômeno  que  origina  uma  ainda  modesta diversificação  religiosa. Em 1940, os católicos  representavam 96,2% no primeiro censo demográfico em que o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) considerou a questão  religiosa. Esta cifra chegou em 2010, ano do  último  censo  com  dados  disponíveis,  a  64,6%.  Por  outro  lado,  os protestantes,  tanto os missionários ou históricos como os pentecostais, formavam  naquele  primeiro  censo  2,6%,  passando  a  compor  sete décadas depois a 22,2% da população total. Mas o contingente que mais cresceu foi o dos “sem religião”, que de 0,2% passou a 8,0%5.  

Os dados mostram que em 1970 os  ‘sem  religião’ dobraram de tamanho  e  na  década  posterior  tiveram  um  notável  crescimento  de quase 200%. Já os anos 90 foram marcados por um grande crescimento evangélico  (73%),  devido  a  uma  explosão  Pentecostal,  provocada principalmente  pela  expansão  da  Igreja Universal  do  Reino  de Deus (IURD), fundada no Rio de Janeiro em 1977. Como consequência disso e                                                             5 Fernandes  e Pita  (2006:131)  apontam um dado  curioso  sobre os  sem  religião:  33,2% deles  eram  antes pentecostais,  enquanto que  23,1%  e  11,8%,  respectivamente,  eram católicos e protestantes históricos.  

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do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico teve  uma  redução  proporcionalmente  maior  que  o  crescimento evangélico  (128%).  Conclui‐se  que,  ao  final  do  século  XX,  tornou‐se bastante  mais  fácil  não  ser  católico  e  abraçar  o  protestantismo  ou, inclusive, nenhum credo religioso.  

         Tabela 1. Religiosidade no Brasil – 1940‐2010. 

Ano  Católicos  Evangélicos  Outras religiões 

Sem religião 

1940  95,2  2,6  1,9  0,2 1950  93,7  3,4  2,4  0,3 1960  93,1  4,3  2,4  0,5 1970  91,8  5,2  2,3  0,8 1980  89,0  6,6  2,5  1,6 1991  83,3  9,0  2,9  4,7 2000  73,9  15,6  3,5  7,4 2010  64,6  22,2  5,2  8,0 

Fonte: IBGE ‐ censos demográficos (% da população nacional).  No  universo  católico  existe  certa  diversidade,  sendo  ainda  a 

distinção  básica  aquela  que  se  refere  ao  catolicismo  nominal  e  ao internalizado. Os  católicos nominais  abrangem  a versão  tradicional,  tanto rural  como  urbana  (Camargo,  1973).  No  âmbito  do  catolicismo internalizado,  as  duas  grandes  vertentes  são:  a  Renovação  Carismática Católica  e  a  Teologia  da  Libertação/Comunidades  eclesiásticas  de  base (CEBs).  

            Tabela 2. Diversificação dos católicos em 1994. 

Vertentes  % Tradicionais ou Nominais  61,4 Identificados com a Renovação Carismática  3,8 Identificados com as Comunidades Eclesiásticas de Base  1,8 Identificados com outros movimentos  7,9 Total  74,9 Fonte: Datafolha (1994) – Pierucci & Prandi (1996).  

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A pesquisa realizada por Pierucci e Prandi (1995), com dados do Instituto Datafolha sobre as eleições presidenciais de 1994, mostrou que havia  61,4%  de  católicos  tradicionais  ou  nominais,  3,8%  de  católicos carismáticos, 1,8% de participantes das CEBs e 7,9% vinculados a outros movimentos  internos da  igreja. Havia, portanto, 14% de praticantes do catolicismo internalizado.    

Em  termos de protestantismo,  a divisão  básica  ocorre  entre  as igrejas protestantes históricas ou missionárias e as pentecostais. Entre as históricas  se  encontram:  a  Batista,  a  Presbiteriana,  a  Luterana  e  a Metodista. No âmbito do pentecostalismo, temos três categorias básicas de igrejas: pentecostais clássicas, instaladas no Brasil no início do século XX  (Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus), pentecostais de cura divina, inseridas ou criadas no país entre as décadas de 50 e 60 (Evangelho  Quadrangular,  Brasil  para  Cristo  e  Deus  é  Amor),  e neopentecostais,  formadas  a  partir  da  década  de  1970. As  principais denominações neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial do  Poder  de Deus  e  Renascer  em Cristo  (Souza,  1969;  Freston,  1993, Mariano,  1999).  Em  termos  de  tamanho,  o  pentecostalismo  clássico aparece em primeiro  lugar, seguido pelo neopentecostalismo. A  IURD novamente  se destaca  em  função da  relação  entre  seu  tamanho  e  seu tempo  de  existência.  Enquanto  as  instituições  que  possuem  mais adeptos que  ela  são, no mínimo,  centenárias,  esta  instituição  religiosa tem  somente  trinta  e  cinco  anos  de  idade.  Ou  seja,  conta  com  uma trajetória de expansão bastante acelerada.  

 2.2 O campo religioso na Argentina 

 Na  Argentina6  a  crença  em  Deus  se  encontra  amplamente 

enraizada,  representando  91,1% da população. Entretanto,  esta média varia de acordo com o gênero7, a idade8 e a escolaridade9.                                                              6  Nos  censos  populacionais  realizados  na  Argentina,  somente  se  revelaram  dados relacionados à religião nos dos anos 1875, 1947 e 1960 (DGEC, 2010) pelo que se sabe de informações atualizadas provenientes do INDEC (Instituto Nacional de Estatística e Censos). Para a reconstrução do panorama religioso na Argentina foram usados os dados  coletados  pela  “Primeira  pesquisa  sobre  crenças  e  atitudes  religiosas  na Argentina” (Mallimaci y Esquivel, 2008). 

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Em  relação  às  filiações  religiosas,  76,5%  das  pessoas  se consideram  católicas,  9%  evangélicas10,  1,2%  testemunhas  de  Jeová, 0,9% mórmons,  1,2%  professa  outras  religiões  e  11,3%  se  consideram indiferentes11.  

No  entanto,  embora 90% dos argentinos  creiam  em Deus,  essa proporção  diminui  em  relação  ao  ato  de  frequentar  lugares  de  culto: quase 76% disseram que  raramente ou nunca  frequentam  tais  lugares (embora  no  caso  dos  evangélicos,  mais  de  60%  disseram  que frequentemente estão presentes). Neste sentido, é  interessante  também apontar que 86% acham que podem ser bons religiosos sem frequentar a igreja  ou  um  templo,  76,3%  acham  que  deveria  ser  permitido  o casamento  de  padres  católicos  e  60,3%  que  deveria  ser  permitido  o sacerdócio às mulheres. 

Estes  dados,  entretanto,  apresentam  importantes  disparidades segundo a região argentina  tratada. Assim, o noroeste argentino, mais tradicional  e  conservador,  possui  os  índices  mais  altos  de  católicos, representando 91,7% do total. A região patagônica, por outro  lado, é a menos  católica  (61,5%),  e  a  que  possui  os  índices  mais  altos  de evangélicos, mórmons e testemunhas de Jeová (25,3%). Buenos Aires e sua área metropolitana, em contrapartida, concentra o maior número de pessoas indiferentes frente às religiões e crenças religiosas (18%).  

                                                                                                                                                7  As mulheres  creem mais  em  Deus  que  os  homens,  representando  93,6%  e  88,3%, respectivamente. 

8 A porcentagem de pessoas acima de 65 anos que se considera crente é de 96,7%, caindo progressivamente até a faixa etária que vai dos 18 aos 29 anos, na qual se consideram crentes 85,1%. 

9 Em geral, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de argentinos que creem em Deus. Neste sentido, os percentuais se classificam do seguinte modo: pessoas sem estudos: 95,7%; com nível elementar completo: 93%; com nível médio: 88%;  técnico: 83,1% e superior: 84,5%.  

10 Entre elas se incluem: Pentecostal, Batista, Luterana, Metodista, Adventista e a Igreja Universal do Reino de Deus.  

11 Neste caso, se incluem agnósticos, ateus e os que não possuem nenhuma religião. 

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Vale  destacar  que  atualmente  a  Argentina  determina12  em  sua constituição  nacional  (artigo  segundo)  que  “O  governo  federal  apoie  o culto católico apostólico romano” pondo em destaque, desta maneira, um reconhecimento privilegiado da Igreja católica na ordem jurídica, política e econômica do país13. Deste modo, o Estado (com suas forças de segurança) e  a  Igreja  Católica  são  tomados  como  fundadores  e  garantidores  da argentinidade desde as origens da nação. (Mallimaci, 2001).  

E, ademais, Esquivel (2010) lembra que   

“[a]s  iconografias  católicas  que  decoram  os  organismos  oficiais  e  a convocação  para  a  realização  do  Tedeum  não  estão  prescritas  na legislação, mas sua permanência e continuidade denotam com clareza o  indiscutido  e naturalizado papel protagonista que a  Igreja Católica detém  no  cenário público  argentino.  Se  a  relação  entre  o Estado  e  a Igreja Católica é regida pelo Acordo de 1966, a Constituição Nacional e a miríade de leis (…), o vínculo com os credos restantes se canaliza por meio do Registro Nacional de Cultos. Criado nos tempos da ditadura militar, em 1978 (Lei N° 21.745), o Registro Nacional de Cultos supõe que todas as entidades religiosas que exerçam suas atividades de culto na Argentina,  com  exceção  da  Igreja Católica,  devem  promover  sua inscrição  e  reconhecimento  oficial,  como  condição  prévia  para  sua atuação.”  No entanto, a pesar da forte supremacia política e legal da Igreja 

católica recém descrita desde a sanção da constituição nacional em 1853 e  até  à  atualidade,  o  artigo  14  dispõe  que  “Todos  os  habitantes  da Confederação  gozam  dos  seguintes  direitos:  (…)  de  professar 

                                                            12  Apesar  dos  inúmeros  processos  de  reforma  constitucional,  o  artigo  segundo  de reconhecimento privilegiado da  Igreja católica segue vigente. Vale mencionar que a constituição  argentina  foi  reformada  nos  anos  1860,  1866,  1898,  1949  (embora  esta reforma tenha sido anulada), 1957, 1972 e 1994. 

13  Apesar  de  negar  a  existência  de  um  projeto  de  nação  secular,  impulsionado principalmente durante as presidências de Domingo F. Sarmiento e Júlio A. Roca, “[a] secularização da sociedade argentina realizada pela burguesia liberal, que importou o modelo econômico de Londres e o modelo  cultural de Paris, estava  incompleta. As leis  do  ensino  laico  e  do  registro  civil  de  nascimentos,  matrimônios  e  mortes reduziram a  influência eclesiástica. Mas, ao contrário de países vizinhos, a dinâmica das reformas não foi suficiente para separar o Estado da Igreja.ʺ 

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livremente seu culto.” Esta liberdade de cultos data de 1825, quando se celebrou  o  tratado  de  amizade,  comércio  e  navegação  com  a  Coroa Britânica,  que  concedia  aos  imigrantes  ingleses  a  possibilidade  de celebrar seu culto de forma privada, sendo o pontapé inicial para o que logo constituiria o campo evangélico na Argentina.    Em  relação  ao  denominado  “campo  religioso  evangélico”, Wynarczyk (2003) adverte que devem se distinguir três movimentos no tempo:  um  primeiro,  vinculado  àqueles  herdeiros  da  Reforma Protestante do século XVI e chegados à Argentina durante os processos migratórios impulsionados no fim do século XIX; um segundo formado por  aqueles  evangélicos  afiliados  às  ideias  da  denominada  “Reforma Radical”  do  século  XVI,  e  que  chegaram  à  Argentina  através  das missões  conversionistas;  e  por  último,  um  terceiro  movimento,  com características  pentecostais,  que  se  estabeleceu  principalmente  nos setores  populares  do  país.  Durante  os  anos  noventa,  os  setores evangélicos começaram a ganhar adeptos e, dessa maneira, chegaram a se  fortalecer  como  a  primeira  minoria  religiosa  do  país  (Frigerio  e Wynarczyk, 2008).  

Atualmente,  na  Argentina  os  evangélicos  formam  a  minoria religiosa mais  importante,  cujo percentual varia de 5 a 10% da nação. Isso seria equivalente a uma população de 3,5 a 5 milhões de habitantes. Neste sentido, um dado  interessante é que há divergências associadas aos  níveis  socioeconômicos.  Em  geral,  se  estima  que  o  percentual  de evangélicos nos  setores populares urbanos pode alcançar  ‐ e  inclusive superar  ‐  20%  da  população  (principalmente  os  pentecostais).  Os percentuais  diminuem  quando  se  trata  de  setores  com  população  de renda média e média alta, onde os evangélicos representam entre 3% e 5%. (Esquivel et al., 2001; Frigerio e Wynarczyk, 2008).   

Além de representar a principal minoria religiosa na Argentina, os evangélicos representam cerca de 75% do total de cultos não católicos matriculados  nos  registros  da  Secretaria  de  Culto  da  Nação (Wynarczyk, 2003), evidenciando que o campo evangélico, longe de ser um  todo  homogêneo,  se  apresenta  como  um  campo  complexo  e fragmentado,  com  grandes  igrejas  e  templos  que  possuem  uma  certa independência e que nem sempre apresentam os mesmos objetivos nem são regidos pelos mesmos princípios doutrinários. 

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3. Religião e política  3.1. O cristianismo brasileiro e a política partidária     Em  termos de engajamento com o mundo político, os católicos têm  um  envolvimento  histórico  através  de  seus  intelectuais  e instituições, tendo exercido uma grande influência sobre os governos da República Velha e do presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, no período mais difícil da ditadura militar, as pastorais sociais e as CEBs católicas exerceriam  um  importante  papel  na  resistência,  abrigo  e  apoio  aos ativistas de esquerda (Mainwaring, 1989). Nos anos noventa, a Teologia da Libertação perdeu  forças,  abrindo um grande  espaço  à Renovação Carismática  Católica,  por  meio  de  um  processo  de  despolitização (Prandi e Souza, 1996). Mais recentemente, os carismáticos católicos têm escolhido parlamentares que estejam envolvidos com a defesa de causas particulares  do  catolicismo  (Mianda,  1999; Mariz,  2001;  Senna,  2008; Reis, 2011).    O  crescimento  demográfico  dos  evangélicos  no  Brasil  se traduziu também em uma maior força política desse segmento religioso. Durante  a  maior  parte  do  século  XX,  predominava  uma  postura evangélica  dupla:  aprovação  dos  governos  e  rejeição  da  política partidária. Consequentemente, a participação do segmento religioso no Congresso  foi  relativamente pequena  até  a primeira metade dos  anos 80,  contando  quase  que  exclusivamente  com  alguns  parlamentares adeptos das igrejas protestantes missionárias.   Em  1985,  quando  o  país  voltou  a  ter,  com  José  Sarney,  um presidente civil e viveu a expectativa das eleições de uma Assembleia Constituinte  para  o  ano  seguinte,  os  evangélicos  pentecostais  se lançaram  efetivamente  em  direção  a  uma  política  partidária. Preocupados  com um possível  aumento de privilégios  constitucionais para a Igreja Católica, eles passaram a reivindicar a liberdade religiosa, e  a  perceber  também,  nas  eleições  de  1986,  uma  oportunidade  para aumentar  os  lucros  para  as  suas  igrejas,  principalmente  na  forma  de concessões de emissoras de rádio. (Pierucci, 1989; Freston, 1993).   Enquanto  que  em  1982  haviam  sido  eleitos  12  deputados federais  evangélicos,  sendo  apenas  dois  pentecostais,  nas  eleições 

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seguintes  foram  eleitos  32  parlamentares  desse  segmento,  sendo  18 deles  pentecostais.  Com  este  significativo  crescimento  de  900%  de representação  pentecostal,  a  prevalência  foi  da  Assembleia  de  Deus, com 13 deputados eleitos. 

A  representação  evangélica  nas  eleições  seguintes  cresceria ainda  mais,  atingindo  o  número  de  30  deputados  em  1994  e  49 deputados  quatro  anos  depois.  Com  parlamentares  de  diferentes partidos,  mas,  principalmente,  do  Partido  Social  Cristão  (PSC),  a Assembleia de Deus perdurou como a  igreja com maior representação parlamentar até 1998. Naquele ano, surgiram a partir dela 12 deputados federais, sendo superada pela IURD, que ganhou 14 cadeiras. (Freston, 2001; Fonseca, 2002:126).  

Os deputados evangélicos têm sido bastante ativos em questões relacionadas  à  reprodução  humana  e  à  moral  sexual,  opondo‐se firmemente  às  reivindicações homoafetivas. Eles  se destacam  também na apresentação de emendas parlamentares do  tipo assistencial, sendo algumas  delas  algo  questionáveis.  Desde  2003,  existe  a  Frente Parlamentar  Evangélica  (FPE),  marcada  pela  heterogeneidade partidária  e  também  denominacional,  garantindo  certa  coesão  nos temas  que  envolvem  a moralidade  cristã  tradicional  e  nos  interesses institucionais das igrejas. 

No Senado, os evangélicos conquistaram duas cadeiras em 1998, sendo uma delas de  Íris Rezende, do PMDB e da Comunidade Cristã Evangélica. A outra  era de uma  adepta da Assembleia de Deus  e  ex‐militante  católica  de  CEBs  e,  portanto,  do  PT  (Partido  dos Trabalhadores), Marina Silva. O número de senadores vinculados a esse segmento  religioso,  incluindo  os  suplentes  que  assumiram  o  cargo, chegou a ser de seis, atualmente é de três: Eduardo Lopes (IURD) e os batistas  Walter  Pinheiro  e  Magno  Malta.  Destaca‐se  o  evangélico Marcelo  Crivella,  atualmente  em  licença  e  que  será  mencionado posteriormente neste texto.   Embora não seja proporcional ao tamanho de sua população, os evangélicos  têm  uma  significativa  presença  também  em  outros parlamentos  brasileiros.  Um  levantamento  realizado  no  segundo semestre  de  2012,  utilizando  portais  de  internet  do  PFE,  das Assembleias  Legislativas  Estaduais,  da  Câmara  do Distrito  Federal  e 

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das  câmaras municipais  de  todas  as  capitais  brasileiras mostrou  que nesses  locais  havia  238  parlamentares  reconhecidamente  evangélicos (10% do total). 

No  âmbito  do  Poder  Executivo,  os  evangélicos  também  vêm exercendo  uma  forte  influência,  chegando  inclusive  a  ocupar  cargos importantes. O primeiro a se destacar foi Íris Rezende, eleito prefeito da capital de Goiânia, em 1965. Ao bater a disputa no estado de Goiás, em 1982, Rezende  tornou‐se  o primeiro  governador  evangélico. Em  1986, assumiu  o Ministério  da  Agricultura  durante  o  governo  de  Sarney. Também foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso durante seu primeiro mandato presidencial, entre 1997 e 1998.    Outros  governadores  evangélicos  foram  eleitos  no  Rio  de Janeiro:  o  casamento  de  Anthony  Garotinho  e  Rosinha  Matheus. Garotinho chegou a concorrer à presidência da República pelo Partido Socialista  Brasileiro,  em  2002.  Sem  sucesso  na  disputa  presidencial, conseguiu  ao  menos  que  sua  esposa  Rosinha  Matheus  se  tornasse governadora do Rio pelo mesmo partido no primeiro turno.   Em 1989, os evangélicos  tiveram uma participação significativa na primeira eleição presidencial direta após a  reabertura democrática. Uma articulação entre pastores, líderes e parlamentares desse segmento influenciou  a disputa  eleitoral. Os  evangélicos  rejeitavam o  candidato Luiz  Inácio  Lula  da  Silva,  percebendo‐o  como  um  defensor  dos interesses  católicos,  dada  a  vinculação  entre  o  Partido  dos Trabalhadores (PT) com as CEBs e as pastorais sociais. O candidato do PT era visto também como um ʺrepresentante do comunismo ateuʺ, que deveria  ser  fortemente  combatido. Como  resultado desse processo, os pentecostais votaram em massa em Fernando Collor no segundo turno a fim de impedir a vitória do PT (Pierucci e Mariano, 1992).   Na eleição de 1994, os evangélicos continuaram posicionando‐se contra Lula, apoiando enfaticamente o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira  (PSBD), Fernando Henrique Cardoso  (Pierucci e Prandi,  1996). Os parlamentares  evangélicos  também votaram  a  favor da  mudança  constitucional,  viabilizando  assim  a  candidatura  à reeleição do presidente do PSBD, chegando a apoiá‐la exitosamente na segunda campanha. 

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   Em 2002, os evangélicos tinham diante de si um quadro eleitoral mais  complexo. O  desgaste  da  gestão  de Cardoso  fez  com  que  parte deste  segmento  religioso  não  aderisse  ao  candidato  do  PSBD,  o  ex‐ministro do Planejamento e Saúde do governo, José Serra, apoiado pela Assembleia  de  Deus.  Além  disso,  pela  primeira  vez,  havia  um candidato evangélico  competitivo na disputa: Anthony Garotinho14. A transmissão  do  programa  de  rádio  do  então  governador  do  Rio  de Janeiro para outros estados, bem como a sua propagação para as igrejas de  outros  estados,  foram  estratégias  adotadas  para  aumentar  sua popularidade e viabilizar sua candidatura presidencial. (Fonseca, 2002: 207‐214). 

Garotinho conseguiu que 51,3% dos evangélicos votassem nele, sendo, no entanto, rejeitado pelos católicos que lhe deram apenas 6% de seus votos (Bohn, 2004:323). O presbiteriano terminou em terceiro lugar, dando um importante apoio no segundo turno ao vencedor ʺLulaʺ, que finalmente acabou entrando na disputa presidencial com apoio parcial do eleitorado Pentecostal: a  IURD15. Naquela que  foi a quarta disputa presidencial seguida de Lula, houve uma aliança inusitada entre o PT e o Partido Liberal, fortemente marcada pela influência da IURD. 

No  primeiro  ano  da  presidência  de  Lula,  houve  mais  uma mostra da força política evangélica no país: a participação no processo de  regulamentação  do  novo  Código  Civil.  Na  versão  de  1916,  as organizações  religiosas  tinham  privilégios  no  tratamento  legal,  mas, com a  legislação aprovada, elas passariam a receber o mesmo controle estatal exercido sobre organizações laicas sem fins lucrativos. Mais uma vez,  denunciando  uma  suposta  perseguição  ideológica, constitucionalmente  proibida,  os  evangélicos  se  articularam  com representantes  católicos,  conseguindo  assim  aprovar  mudanças  na redação de dois artigos da lei 10.406, que instituiu o novo Código Civil. A  sanção presidencial para  tal mudança  foi destacada por Lula  como um ʺgrande ato em favor da liberdade religiosaʺ (Mariano, 2006).  

                                                            14 O  primeiro  presidente  protestante  do  Brasil  foi  o  general  luterano  Ernesto Geisel, governante entre 1974 e 1979, e que teve uma vida religiosa bastante discreta. 

15  Duas  grandes  igrejas  pentecostais  permaneceram  sem  envolver‐se  na  política partidária: a Congregação Cristã do Brasil e “Deus é Amor”. 

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A  partir  daquela  penetração  inicial  no  eleitorado  pentecostal, Lula procurou  estreitar  relações, participando de  eventos  evangélicos, formando  comitês,  pedindo  votos  e  orações  e  prometendo  parcerias (Mariano et al., 2006:66). Com esse capital político, ele conseguiu evitar a candidatura de Garotinho e enfrentou a reeleição. 

Outra  líder  política  oriunda  do  universo  evangélico  emergia. Depois de exercer por cinco anos o cargo de Ministra do Meio Ambiente do governo Lula, Marina Silva volta ao Senado e, em seguida, passou a atuar  no  Partido  Verde  em  2009  para  se  tornar  então  candidata presidencial no ano seguinte. O  terceiro  lugar na disputa pelo Palácio do Planalto seria mais uma vez para uma pessoa evangélica. Ainda que uma missionária da Assembleia de Deus, paradoxalmente, tenha feito a campanha mais  laica  entre  os  principais  candidatos,  uma  vez  que  a presença da religião foi realmente muito forte nesta disputa. 

Mais uma vez  candidato pelo PSBD,  José Serra  contava  com o forte  apoio  da  Convenção  Nacional  das  Assembleias  de  Deus (CONAMAD),  a  maior  agremiação  da  Assembleia  de  Deus.  Teve também a adesão de outras igrejas: a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Bola de Neve. Na frente evangélica pró‐Serra se destacava Silas Malafaia,  líder  da  Associação  Vitória  em  Cristo  (derivação  da Assembleia de Deus). Serra capitalizou a indignação evangélica contra a terceira  versão  do  Plano Nacional  de Direitos Humanos  (NHDP  III), lançado  pelo Governo  Federal  em  2009.  Parlamentares  evangélicos  e católicos  se  mobilizaram  principalmente  contra  a  proposta  de descriminalização  do  aborto16.  Os  pentecostais  também  se  opuseram firmemente  contra  o  projeto  de  Lei  nº  122  de  2006  (PL  122/2006), apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT de SP) que tornava crime os atos de homofobia no país. As questões da legalização do aborto e a criminalização  da  homofobia  acabaram  sendo  usadas  como  armas eleitorais pelo candidato do PSDB. 

Por outro lado, já na segunda etapa da disputa, estava a ex‐chefe da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, que tinha se declarado                                                             16 Em maio de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou firmemente  contra  a  III  PNHD  em  um  documento  e  recomendou  aos  fiéis  que votassem em  ʺpessoas comprometidas com o respeito  incondicional à vidaʺ  (Gold e Mariano, 2010:25). 

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agnóstica  em uma  entrevista  concedida  à  revista Época  em  2007, mas que  durante  a  carreira  eleitoral  participava  de  eventos  religiosos  e missas  para mostrar‐se  católica.  Líderes  e  parlamentares  evangélicos determinavam que Dilma se comprometesse em resguardar a liberdade religiosa e vetar, caso  fosse eleita, qualquer projeto  ʺcontra a vida e os valores da famíliaʺ, ou seja, projetos que favorecessem o aborto, a união civil  e  adoção  de  crianças  por  parte  de  casais  homossexuais,  a regulamentação  da  atividade  para  aqueles  trabalhadores  do  sexo  e assuntos  relacionados  a  estas  temáticas. A  campanha  do  PT  se  voltou fortemente  em  direção  aos  eleitores  evangélicos,  ressaltando  que  o  III NHDP já estava sendo analisado pelo governo, que a candidata estava “a favor  da  vida”  e  que,  portanto,  não  tomaria  nenhuma  iniciativa  de mudança  na  legislação  a  respeito  do  aborto,  tampouco  de  questões relacionadas à família e à liberdade religiosa. (Oro e Mariano, 2010:24‐29). 

A campanha do PSBD, por outro  lado, continuou com seu  tom religioso  conservador,  utilizando  a  mídia  religiosa  (católicos  e protestantes),  as  redes  sociais  e  inclusive  os  cultos  nas  igrejas  para ʺdefender a vidaʺ e a moral sexual cristã tradicional. 

Sua esposa, Mônica Serra, que chegou a acusar Dilma de  ser a favor da ʺmatança de criançasʺ, foi questionada por uma nota publicada no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  de  16  de  outubro  daquele  ano. O  jornal apresentava  o  relato de uma  ex‐aluna da  Sra.  Serra, da Universidade Estadual de Campinas, a quem ela tinha confessado ter feito um aborto, o  que  foi  confirmado  por  outra  ex‐aluna.  Devido  a  esses acontecimentos, José Serra acabou ganhando a antipatia da classe média e de  setores  intelectuais  e  liberais da população, perdendo  assim  sua segunda eleição presidencial.  3.2 Liderança política e moral sexual 

 Sobrinho do  fundador  e  líder da  IURD, Edir Macedo,  o Bispo 

Marcelo Crivella  ganhou  popularidade  no meio  evangélico  com  seus sucessos  como  cantor  gospel.  Crivella  conquistou  uma  cadeira  no Senado  em  2002,  sendo  reeleito  oito  anos  depois.  Ajudou  Dilma Rousseff a enfrentar a polêmica sobre o aborto no mundo evangélico e a vencer as eleições presidenciais de 2010. Apesar de novamente se aliar 

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ao governo petista que  estava  sendo  instalado em 2011, o  senador da IURD não deixou de tirar proveito de sua posição Pentecostal durante a presidência de Dilma, algo que provavelmente iria beneficiá‐lo.  

Os parlamentares  evangélicos  conseguiram  impedir, durante  o primeiro ano do novo governo, a distribuição de material didático anti‐homofobia,  rotulado  de  ʺkit  gayʺ,  que  tinha  sido  encomendado  pelo Ministério  da  Educação,  com  Fernando  Haddad.  Dilma  Rousseff determinou  a  suspensão  da  medida  educativa.  Desde  o  início  do governo,  os  representantes  políticos  dos  pentecostais  também mostraram enfaticamente sua insatisfação com a nomeação da socióloga do  PT  Eleonora  Menicucci  para  a  Secretaria  de  Políticas  para  as Mulheres. A militante  feminista, amiga de Dilma desde os  tempos da guerrilha  contra  o  regime  militar,  é  uma  reconhecida  defensora  da descriminalização do aborto, tendo inclusive abortado duas vezes. 

Irritados  com  o  governo Dilma,  os  parlamentares  evangélicos exigiram e obtiveram em  fevereiro de 2012 uma  retratação pública do titular  da  Secretaria  Geral  da  Presidência  da  República,  Gilberto Carvalho.  Ex‐seminarista  católico  e  interlocutor  do  governo  junto  às igrejas  e movimentos  sociais, Carvalho havia  encorajado os militantes presentes no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no mês anterior, a realizarem uma ʺdisputa ideológica pela nova classe médiaʺ, que estaria sob  a  hegemonia  evangélica.  Em  resposta  à  indignação  parlamentar Pentecostal  com  Carvalho,  Dilma  Rousseff  nomeou Marcelo  Crivella como Ministro da Pesca. Com  a medida,  a presidente  tentou  acalmar seus aliados religiosos, inclusive em relação às eleições na cidade de São Paulo,  onde  Fernando  Haddad  se  apresentava  como  candidato  a prefeito pelo PT. Crivella assumiu seu novo cargo ressaltando que era totalmente leigo naquela área e que a sua nomeação não significaria dar uma  trégua  ao  governo  federal  em  relação  a  qualquer  iniciativa favorável  ao  aborto  e  à  união  civil  entre  homossexuais. A  presidente teve de  tolerar  a  imposição  evangélica  e o  ʺfogo  amigo do  fiel  aliado evangélicoʺ. 

Inclusive antes de ser confirmado como candidato do PT para a Prefeitura de São Paulo em 2012, Fernando Haddad  já  contava  com a animosidade  Pentecostal  devido  ao  “kit  gay”.  Teria  de  enfrentar também  um  candidato  representante  dos  interesses  da  IURD:  Celso 

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Russomanno.  Ex‐apresentador  de  televisão,  Russomanno  era  o candidato do Partido Republicano Brasileiro (PRB), da mesma linha de Crivella,  tendo  como  braço  direito  o  Bispo  da  IURD Marcos  Pereira, presidente  nacional  desta  linha  e  ex‐vice‐presidente  da  Rede  Record, pertencente a Macedo. 

Do  outro  lado  da  disputa,  novamente,  estava  José  Serra,  que também tentaria tirar proveito da fragilidade do PT no meio Pentecostal devido  à  questão  da  homofobia.  Serra  continuava  com  o  apoio  da Assembleia  de Deus  CONAMAD  e  contava  também  com Valdemiro Santiago e a sua crescente  Igreja Mundial do Poder de Deus. Lula e o candidato do PT escolhido por ele, Fernando Haddad, tinham diante de si,  como  principais  obstáculos,  o  tradicional  adversário  do  PSDB  e  o inusitado candidato da Igreja Universal do Reino de Deus. 

No segundo turno, a Assembleia de Deus ‐ Ministério Madureira no bairro paulistano do Brás em São Paulo, liderada pelo pastor Samuel Ferreira,  passou  a  apoiar  José  Serra  devido  ao  famoso  ʺkit  gayʺ.  O ataque  a  essa  medida  anti‐homofóbica,  atribuída  ao  ex‐ministro  da Educação  e  candidato  do  PT, Haddad,  teria  ressoado  fortemente  nos discursos  de  Silas Malafaia,  que, mais  uma  vez,  era  uma  espécie  de porta‐voz de Serra dentro do eleitorado Pentecostal17. A tônica ofensiva da campanha de Serra contra o adversário do PT se baseou, em grande medida, na questão religiosa, mas o efeito eleitoral foi contrário a ele, já que foi outra vez derrotado. 

Como se vê, os evangélicos vêm apresentando uma considerável participação  na  vida  político‐partidária  do  Brasil  desde  sua redemocratização.  Se  a  eleição  constituinte  de  1934  levou  o  primeiro pastor protestante a se tornar deputado federal, a de 1986 fez com que os  pentecostais  se mobilizassem  de maneira  efetiva  para  eleger  seus representantes,  impulsionando o crescimento evangélico no Congresso Nacional  e  nos  demais  parlamentos  brasileiros.  Surgiam  assim,  no cenário político, figuras de representantes oficiais de diferentes credos. No Senado, os pioneiros evangélicos foram Marina Silva e Íris Rezende, tornando‐se  também  ministros  de  estado,  e  este  último  o  primeiro                                                             17 O fato de que o governo paulista de Serra tinha distribuído em 2009 cartilhas contra a homofobia em escolas de ensino médio ‐ segundo a edição de 16 de outubro da Folha de S. Paulo ‐ foi ignorado ou deixado de lado pelos evangélicos.  

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governador Pentecostal18. Porém o primeiro chefe de governo estadual vinculado  explicitamente  ao  seu  perfil  evangélico  foi  Anthony Garotinho,  que  usaria  isso  também  como  uma  estratégia  para  sua candidatura à presidência da República.  

A maior  denominação  evangélica  do  Brasil,  a  Assembleia  de Deus,  foi  também uma precursora na  inserção Pentecostal na política partidária,  tendo  parlamentares  em  diferentes  partidos,  mas principalmente  no PSC. Em  segundo  lugar,  em  termos demográficos, está  a  IURD,  cujo braço político  é o PRB. O bispo  licenciado,  e  agora ministro  de  Pesca,  Marcelo  Crivella,  personifica  a  força  política  da Frente Parlamentar Evangélica junto ao governo federal.  

O  chamado  “kit  gay”  representou para  as  eleições de  2012  na cidade de São Paulo o que o aborto havia representado para as eleições presidenciais do ano anterior. Nas duas situações, o candidato do PSDB José  Serra  procurou  tirar  proveito  do  moralismo  evangélico  nas questões da reprodução e moral sexual, ainda que sem sucesso. Assim como  há  uma  barreira  nas  eleições  majoritárias  para  um  candidato fortemente  identificado  com  um  determinado  segmento  religioso, também  no  catolicismo  hegemônico  há  um  limite  para  o  uso  de bandeiras tingidas com forte apelo religioso. Ainda que os candidatos a cargos  executivos  visitem  bispos,  pastores,  missas,  cultos  e  outras manifestações, esse apoio parece ser necessário, mas não suficiente para ganhar as eleições.  

Os parlamentares evangélicos atuam há muito tempo no cenário político  brasileiro,  sendo  que  os  representantes  oficiais  ou “despachantes” das  igrejas  surgiram  somente  com  a  ascensão política Pentecostal  (Campos,  2005).  Em  nome  da  liberdade  religiosa,  os interesses  das  igrejas  são  estrategicamente  defendidos  durante  as campanhas  eleitorais,  as  legislaturas  e  os mandatos do  executivo. No caso da  IURD,  a  representação parlamentar  se  combina  com  o poder midiático, exercido por meio de sua rede de  televisão de canal aberto, levando  a  uma  maior  influência  junto  ao  governo  federal.  Os evangélicos  podem  não  ter  força  suficiente  para  decidir  eleições  em 

                                                            18 Sobre a existência anterior de governadores pentecostais, se sabe que Leonel Brizola tinha sido metodista em sua juventude.  

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favor  seus  candidatos  religiosos  ou  apoiados  por  suas  igrejas,  mas provavelmente  continuem  a  ser  elogiados,  cortejados  e  atendidos  em algumas de suas exigências em “nome do Senhor”.  3.3. Argentina: as crenças religiosas no campo legislativo 

 Diferentemente  do  caso  brasileiro,  o  Congresso  Nacional 

argentino  carece de blocos  e/ou partidos que  se  relacionem  a  alguma instituição  religiosa.  Entretanto,  a  partir  dos  dados  gerados  por  um estudo  realizado por Esquivel  e Vaggione  (2011)19  é possível  explorar algumas das maneiras  com  que  as  instituições  religiosas  se  conectam com  as  decisões  e/ou  posições  dos  legisladores  quando  se  discute políticas de sexualidade e reprodução. 

Assim,  este  estudo  nos  permite  reconhecer  que  65%  dos parlamentares acessados pela pesquisa declararam crer em Deus. Neste sentido,  60%  se  dizem  “católicos”  e  46%  se  consideram  “muito religiosos”  enquanto  que,  ao  contrário,  26% dizem  “não  ter  religião”. Além  disso,  um  fato  interessante  é  que  quase  a  totalidade  dos/as deputados/as e senadores/as questionados acreditam que as convicções religiosas dos parlamentares influenciam o conteúdo dos projetos de lei e nas votações do Congresso Nacional. No entanto, esta percepção gera opiniões  divergentes:  49%  concordam  com  a  influência  das  crenças religiosas nas  tomadas de decisão,  enquanto  que  49% discordam  (2% não opinaram). 

Em relação aos projetos de  lei  ‐ que no momento da realização da  pesquisa  se mostravam  controversos  devido  à manifesta  oposição das  confissões  religiosas majoritárias  (por  estar  vinculados  ao  avanço 

                                                            19 Nesta  seção  vamos  utilizar  os  dados  gerados  por  Esquivel  e  Vaggione  (2011)  no âmbito do projeto PIP CONICET 359/08 “Disputas en el espacio público argentino. Dirigencia  política,  instituciones  religiosas  y  organizaciones  sociales  pro‐derechos, frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual”. Os dados foram extraídos de uma pesquisa do tipo questionário estruturado, aplicado à totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e Senadores, com uma margem de erro de 5%  ‐ para 95% de confiança  ‐, e o período de  levantamento de dados se estendeu  de  novembro  de  2009  a maio  de  2010.  Essa  pesquisa  foi  publicada  pelo jornal Página 12. Consulte “A Dios rogando, pero en la gente pensando” (2012, 14 de janeiro).  

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dos direitos sexuais e reprodutivos) – os parlamentares se mostraram a favor da  autonomia de decisão  e  liberdade de  consciência. Assim,  os projetos  de  fertilização  assistida  e  identidade  de  gênero20  são  os  que registram maior  grau  de  aprovação  (84  e  75%,  respectivamente). No mesmo  sentido,  uma  parcela  importante  se  manifestou  a  favor  da descriminalização do  aborto  nas primeiras doze  semanas de  gestação (64%)21.  Com  menor  peso  ‐  ainda  que  superando  50%  ‐  houve  um acordo  em  relação  ao  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo22,  à autorização  para  a  criopreservação  de  embriões  (56%),  a  eutanásia (52%)23 e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (51%).  

                                                            20A lei de identidade de gênero (Lei 26743) foi aprovada por unanimidade no Senado, e por ampla maioria na Câmara dos Deputados, sendo promulgada em 9 de maio de 2012. 

21O aborto  tem sido  (e continua sendo) um  tema bastante polêmico na Argentina, por isso esses dados chamam a atenção. As opiniões pessoais dos parlamentares sobre o aborto  indicaram  que  a  maioria  (83%)  acredita  que  ele  deve  ser  permitido.  No entanto, 36% dos parlamentares não votariam a favor da descriminalização do aborto e apenas 6% acreditam que deve ser “banido para sempre”. Outro fato interessante é que  quase  a metade deles  atribui  alguma  conduta moral  reprovável  em  relação  às mulheres que abortam espontaneamente. Atualmente, o aborto é referido em vários artigos do Código Penal. Embora seja considerada uma prática criminosa, há exceções em que o direito penal não se aplica. Essas exceções estão relacionadas com o risco à saúde ou à vida da mãe, em caso de estupros ou,  finalmente, atentado ao pudor de uma mulher demente  (art. 86 do Código Penal). No entanto, este artigo  tem gerado fortes  controvérsias doutrinárias dentro do  campo  jurídico  entre  os  que  lutam por uma aplicação  restritiva e os que  interpretam que deveria  ser mais ampla. Por esta razão, a Corte Suprema de Justiça da Nação, no conhecido caso “F.A.L”, emitido no final  de  2012,  esclareceu  os  limites  e  alcances  das  exceções.  Apesar  disso,  as discussões doutrinárias não têm sido solucionados, e na prática, um posicionamento restritivo, que impede a realização do aborto em todos os casos, continua impondo‐se no país.  

22Lei n. 26.618, sancionada em 15 de julho de 2010, e que permite não só a celebração do casamento civil para pessoas do mesmo sexo, mas também a possibilidade de adoção. Lembramos que a pesquisa referida  foi realizada antes da aplicação e aprovação de tais alterações no Código civil.  

23Lei n. 26.742, denominada “lei da morte digna” ou da eutanásia passiva, que concede aos  doentes  terminais  internados  o  direito  a  recusarem  procedimentos  de prolongamento da vida quando estes  lhes causarem um sofrimento significativo, foi sancionada em 9 de maio (a mesma data em que se sancionou a lei de identidade de gênero, mencionada na nota 9). 

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Além disso, é  comum que os/as parlamentares  se  reúnam  com diferentes líderes religiosos24 na condição de parlamentares. Isto é, mais da metade declarou  que  se  encontrou  com  um  bispo  e  45%  com  um padre católico no último ano.  

Outro  fato  significativo  é  a  opinião  sobre  a  relação  do  Estado com  os  credos  religiosos. Neste  sentido,  a maioria  declara  que  todos devem  ser  tratados da mesma maneira  e  considera que o Estado não deveria apoiar economicamente os cultos25.  

Esta  pesquisa mostra  que,  embora  as  ideias  religiosas  estejam profundamente  enraizadas nos  senadores  e deputados  acessados pela pesquisa26, não há um vínculo tão forte entre essas  ideias e as decisões que tomam durante as votações e deliberações no Senado27, fato que de alguma forma contesta os dados obtidos em nível populacional.  

 3.4 O cristianismo na Argentina e a mobilização social 

 Em  julho  de  2010,  na  Argentina  é  sancionada  a  alteração  do 

código civil que permite o reconhecimento da instituição matrimonial a casais compostos por pessoas do mesmo sexo (Lei 26.618).  

Assim como em outros países em que o casamento entre pessoas do mesmo  sexo  entra na agenda política  (assim  como outras políticas em torno da demanda de DDSSRR), as mobilizações de rua se colocam 

                                                            24Um  fato  interessante  que  surgiu  foi  que  embora haja um  amplo  apoio  aos projetos relacionados  aos  direitos  civis,  mais  de  90%  dos  parlamentares  entrevistados acreditam que outros parlamentares  colocam em  jogo  suas  convicções  religiosas ao votarem  as  leis.  Neste  sentido,  observa‐se  um  contraste  entre  o  posicionamento individual (a favor dos projetos de lei) e a percepção coletiva com forte influência da Igreja Católica. 

25No entanto, os recursos estatais dos colégios religiosos recebem uma maior aceitação por  parte  dos/as  representantes  nacionais.  Em  relação  à  presença  de  símbolos religiosos  nas  escolas  públicas,  apenas  3  de  cada  10  consideram  que  devem  ser proibidos. 

26Embora  as  pesquisas  tivessem  sido  enviadas  a  todos/as  os/as  deputados/as  e senadores/as nacionais, apenas 102 responderam, representando cerca de um terço do total.  

27Durante  o  debate  sobre  o  denominado  “casamento  igualitário”,  muitos/as parlamentares se consideravam católicos/as e se posicionaram contra o projeto. Veja Vaggione, Juan Marco (2011).  

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como uma das práticas comuns por parte dos grupos ou setores sociais que procuram  impedir as  reformas28. Na Argentina, um dia antes  (ou seja,  13 de  julho de  2010) da votação definitiva do projeto, diferentes setores  sociais  convocaram  uma  marcha  nacional  na  Praça  do Congresso  (na  capital  federal)  para  exigir  dos  senadores29  votos  em “defesa do casamento e da família”.  

Os  organizadores  foram  o  Departamento  de  Leigos  da Conferência  Episcopal  da  Argentina  (DEPLAI),  a  Aliança  Cristã  das Igrejas  Evangélicas  da  Argentina  (ACIERA),  a  Federação Confraternidade  Evangélica  Pentecostal  (FECEP)  e  as  Famílias Argentinas Autoconvocadas. A partir daí a chamada foi levada adiante pela  associação  de  uma  diversidade  de  atores  pertencentes  tanto  a organizações civis como eclesiásticas.  

ACIERA  e  FECEP30  são duas  organizações  que  reúnem  igrejas evangélicas  pentecostais  que  integram  o  denominado  “polo conservador  bíblico”  (Wynarczyk,  2009)  e  se  posicionam  como  os 

                                                            28Neste  sentido, por  exemplo, uma  história  interessante  é  a mobilização  realizada  na Espanha durante as discussões sobre o casamento em 2005, organizada pelo Fórum Espanhol da Família, a Igreja católica e o partido popular, entidades que formavam a frente  de  oposição  no  debate  espanhol  (Etxazarra,  2007).  Vale  mencionar  que acontecimentos parecidos ocorreram mais recentemente na França, onde segundo os meios de comunicação, mais de 300 mil pessoas se mobilizaram para recusar o projeto de  lei de  casamento  entre pessoas do mesmo  sexo  (La Nación, 2010, 14 de  janeiro; Clarín, 2010, 12 de janeiro).  

29 O projeto tinha conseguido metade da aprovação na Câmara dos Deputados em maio. Posteriormente, foi discutido na Comissão de Legislação Geral do Senado, que a 6 de julho assinou o parecer para o tratamento em sessão da Câmara dos Senadores em 14 de julho de 2010.  

30 A ACIERA  foi  fundada na Argentina na década de oitenta, no período de  transição democrática do país; compunha um subsetor evangélico (de igrejas batistas e irmãos livres, principalmente) (Jones e Cunial, 2011). A ACIERA se define como uma aliança entre  “denominações,  congregações  locais  e  entidades  livremente  associadas  a  fins específicos, que reconhece como hierarquia única e absoluta o Pai, o Filho e o Espírito Santo e aceita as Sagradas Escrituras como regra de fé e conduta” (Informação obtida em www.aciera.org). Enquanto que a segunda se difunde quase uma década antes, nos  anos  setenta,  e  era  formada  pelas  “Igrejas  locais,  organizações  e  instituições pentecostais argentinas, inscritas no Registro Nacional de Cultos” (Informação obtida em www.fecep.org.ar) 

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setores evangélicos mais visíveis na organização da marcha nacional e na sua militância contra a aprovação da lei.  

Por  sua  vez,  a  DEPLAI  é  um  organismo  que  pertence  à Comissão Episcopal de Leigos e da Família e se dedica a articular ações de  apoio  à  comissão  para  a  difusão  dos  princípios  doutrinais.  A DEPLAI  se posiciona  como o  setor  representante da  igreja  católica na organização  da mobilização.  Entretanto,  um  considerável  número  de bispos  também participou na difusão da  convocação, o que provocou um  grande  impacto  na  sua  mediatização.  Por  exemplo,  o  então arcebispo  de  Buenos  Aires,  o  Cardeal  Mario  Bergoglio,  pediu publicamente  aos  párocos  das  igrejas  do  país  que  difundissem  a convocação para a mobilização nacional:  

 “(...)  [DEPLAI] organizou para a  terça‐feira, 13 de  julho, às 18:30 um ato em frente ao Congresso Nacional sob o lema “Queremos mãe e pai para nossos filhos” (...) A proposta é que seja um ato no qual não haja mais  do  que  bandeiras  argentinas  ou  valores  positivos  sobre  o casamento  homem‐mulher  (...)  peço  que  se  informem  sobre  isso  e facilitem  a participação de  teus  fiéis,  assim  como  que nas Missas de domingo, 11 de  julho, se leia a declaração do Episcopado e nas preces haja  intenções pela  família. Também peço que  concedam  lugares aos leigos do DEPLAI que recolherão assinaturas.  (...)  (AICA, 2010, 22 de junho).  

 Aos setores religiosos se unem outros setores da sociedade civil 

que  se  associam  sob  a  denominação  de  “Famílias  Argentinas Autoconvocadas”. Neste sentido é interessante mencionar a agremiação criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC)31. Deste modo, a  mobilização  nacional  tentou  se  instalar  como  uma  manifestação “cidadã”,  ativando  uma  série  de  elementos  neste  sentido,  que 

                                                            31  Segundo  publicação  da  AICA  (Agência  de  Informação  Católica  Argentina,  18  de junho de 2010) AxC  é um  espaço de associação  entre diferentes  classes  sociais que buscam defender os valores da família. Fruto do grupo “Famílias Argentinas”, o AxC foi  criado  como  uma  página  no  Facebook,  cujo  objetivo  é  defender  o  casamento heterossexual  e  servir  como  instância de  articulação para  a  geração de  ações neste sentido.  

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permitiram uma  identificação não necessariamente  ligada a uma  igreja ou dogma religioso em particular. 

Se  por  um  lado  os  organizadores da marcha  aglutinam  e  dão visibilidade a  setores  conservadores  católicos e evangélicos, por outro também procuram agregar a  ideia de “família”  (em geral) como parte da  ação.  Para  isso  foram  criados  diferentes materiais  que  procuram destacar uma  identificação desvinculada de discursos  confessionais,  e afirmar  uma  identificação  política. Neste  sentido,  um  dos  elementos criados para funcionar como identificador da defesa da família foi a cor alaranjada  (Sgró,  2011;  Rabbia  e  Iosa,  2010).  Usando  esta  cor  (e diferentes  lemas,  que  todavia  são  coincidentes  na  defesa  da  família fundada  em  uma  união  heterossexual)  se  produziram  uma multiplicidade de produtos gráficos e audiovisuais que circularam e se reproduziram  pelas  redes  de  comunicação  digitais.  O  alaranjado também  foi adotado como marca nacional da marcha, e nas chamadas era solicitado que se levasse essa cor para a manifestação.  

Um exemplo significativo  foi a adoção de um  logo usado  tanto por  organizações  envolvidas  na  difusão  da  convocação  como usuárias/os para  se  identificarem  com  a  recusa da  reforma do  código civil  (ver  Figura  1).  Nesse  sentido,  a  concentração  na  Praça  do Congresso Nacional foi visivelmente marcada por bandeiras argentinas e bandeiras alaranjadas com variados slogans, tais como: “casamento = homem e mulher”, “O que importa é a família”, “Argentina = Sodoma”, “Salvemos a família”, entre outros.   

Figura 1:Logo Casamento 

 

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No ato foi lido o “Manifesto pelo casamento e direito prioritário das crianças32” a partir dos quais se apresenta o posicionamento político em  relação  às  demandas  dos  setores  reunidos  na manifestação33.  Os setores  conservadores,  ainda  quando  se  mostravam  visivelmente alinhados  à  igrejas  católica  e  evangélica,  insistiam  em  declarar  no encerramento do ato que a manifestação é produto de uma articulação cidadã,  de  uma maioria  que  “deve”  ser  escutada  e  representada  no Congresso Nacional. Essa “maioria silenciosa”34 que “se fez escutar” é a que  compõe  a mobilização  e  reivindica  o  direito  das  crianças. Deste modo  se  explicita  a  condição  de  ativismo  em  defesa  da  vida  e  da família,  significantes  centrais  do  posicionamento  das  hierarquias religiosas conservadoras quando se discutem políticas de sexualidade e reprodução.   4. Considerações Finais 

 Muito  além  da  questão  do  espiritismo  kardecista,  já 

mencionado, o cristianismo apresenta diferentes características nos dois países  tratados neste  texto. Na Argentina, o  catolicismo  tem um peso demográfico (76,5%) e jurídico maior, já que ainda mantém seu vínculo com  o  Estado,  enquanto  que  o  protestantismo  (9,0%)  é  relativamente pequeno.  No  Brasil,  ao  contrário,  o  catolicismo  se  encontra  mais reduzido  (64,6%)  face a um acelerado  crescimento evangélico  (22,2%), duas  vezes maior  em  relação  ao  país  vizinho. Na  Argentina  há  um pouco  mais  de  pessoas  sem  religião  que  no  Brasil,  mas  em contrapartida, a diversidade religiosa é menor. 

Em termos de presença no espaço público, em ambos os países o catolicismo  exerce  um  papel  significativo,  ainda  que  na  Argentina atualmente  haja  certo  enfrentamento  ao  governo.  No  Brasil,  onde  a                                                             32 Consultar  http://www.aicaold.com.ar/docs_blanco.php?id=488  [Último Acesso:  3  de abril de 2013] 

33 O “Manifesto” além de ressaltar as noções de família e casamento defendidas, serviu para realizar uma revisão das várias ações levadas adiante pelo ativismo conservador e  afirmar  o  apelo  aos  legisladores  que  votariam  no  dia  seguinte  o  casamento igualitário.  

34  O Manifesto  expressa:  “...se  fez  ouvir  a  «maioria  silenciosa».  Esta  voz  deve  ser escutada e respeitada por nossos representantes políticos”. 

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Teologia  da  Libertação  foi  muito  mais  expressiva  e  ativa,  a  igreja exerceu um importante papel de apoio a militantes políticos e sindicais durante  o  enfrentamento  com  a  ditadura  militar.  A  relação  com  o regime  é  um  aspecto  bastante  controverso  do  catolicismo  argentino, debate  que  tem  sido  retomado  em  função  da  eleição  do  cardeal  de Buenos  Aires,  Jorge Mario  Bergoglio  para  Papa.  Ainda  que  o  Papa Francisco seja coerente em  termos de vida simples e proximidade com os pobres, não  foi  assim quando  era bispo  e defensor da Teologia da Libertação.  Com  relação  a  isso,  ele  recebe  desde  o  início  de  seu pontificado o apoio explícito e entusiasmado do maior expoente dessa vertente católica, o  teólogo e ex‐frade  franciscano brasileiro: Leonardo Boff. 

Do  lado  evangélico,  a  inserção  na  vida  político‐partidária ganhou  importância  no  Brasil  na  década  de  1980,  quando  os pentecostais decidiram ocupar seu espaço na Assembleia Constituinte. Ainda  que  na  Argentina  a  reinstauração  da  democracia  ocorreu  em 1983,  a  inserção  político‐evangélica  somente  começou  a  ocorrer  na década seguinte.  

Houve no Brasil uma mobilização de católicos e evangélicos em torno  da  preservação  de  privilégios  de  organizações  religiosas  no Código Civil sancionado em 2003. Na Argentina, a reforma do Código Civil aprovada em 2010 permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, algo que provocou a reação enfática e organizada de instituições e líderes católicos e evangélicos.  

Em  ambos  os  países,  as  questões  de  moral  sexual  estão atualmente na essência da mobilização de ativistas cristãos, evangélicos e católicos. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada no Brasil em  24  de  março  de  2013  no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  permite  a comparação  com  alguns dados da  realidade  argentina. Enquanto  que 76,3%  dos  argentinos  se mostram  favoráveis  à  união matrimonial  de sacerdotes católicos, no Brasil o percentual é de 56%; da mesma forma, 60,3% dos  argentinos  se mostram  a  favor do  sacerdócio de mulheres, enquanto que 58% dos brasileiros defendem essa posição. Com relação ao  polêmico  tema  do  aborto,  64%  da  população  argentina  tolera  em todos  ou  alguns  casos  sua  prática,  enquanto  que  no  Brasil  essa porcentagem cai quase pela metade, ou seja, 37%. Esses dados apontam 

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um caráter mais  liberal da Argentina em relação ao Brasil. Uma maior presença evangélica neste último está diretamente ligada a esse fator. E como  consequência,  tendem  a  ocorrer mais manifestações  públicas  e político‐partidárias de ativistas cristãos, em ambos os países, em  torno dessas questões.  

   

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