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O Brasil no contexto da Guerra Civil Espanhola J. C. Sebe Bom Meihy A primeira pergunta que se coloca e que se mostra importante para a análise da participação brasileira no contexto da Guerra Civil Espanhola remete à questão da nossa pouca participação naquele conflito. Seria pelo fato de mantermos uma tradição histórica mais vinculada a Portugal, a razão explicativa para tanto? Uma entre outras respostas mostra a presença dominante do Estado Novo que, tendo sido gestado desde 1930, em 1937 já assumia a responsabilidade de ‘zelar’ pelo posicionamento do país, colocando-o vulnerável aos programas da esquerda. Logicamente, num Estado como o Brasil, onde os movimentos pendulares de esquerda/direita oscilaram com freqüência e força, o efeito de situações semelhantes no exterior teria que produzir impactos. Assim mesmo, antes do estabelecimento da ditadura estadonovista, o terrorismo de direita já inibia qualquer iniciativa brasileira que se afigurasse como apoio à esquerda1. Dada a não existência expressiva de imigrantes espanhóis como noticiadores dos atos republicanos, restava à grande imprensa e às instituições comprometidas com ideários afinados com o governo motivar e controlar qualquer divulgação. O Estado oficial brasileiro era claramente interessado em promover a versão da Guerra como ‘caos’ e ‘resultado da democracia desordenada decorrente das eleições e do regime republicano’. Nada mais oportuno que a exemplificação imediata da Espanha. Neste sentido, aliás, atuaram as máquinas propagandísticas da direita que já estavam funcionando a todo vapor desde o chamado ‘biênio negro’ espanhol (1934-36). Na mesma linha, todo um serviço ‘saneador’ de propaganda insistia, sobretudo através do DIP (Departamento de

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O Brasil no contexto daGuerra Civil Espanhola

J. C. Sebe Bom Meihy

 

A primeira pergunta que se coloca e que se mostra importante para a análise da participação brasileira no contexto da Guerra Civil Espanhola remete à questão da nossa pouca participação naquele conflito. Seria pelo fato de mantermos uma tradição histórica mais vinculada a Portugal, a razão explicativa para tanto? Uma entre outras respostas mostra a presença dominante do Estado Novo que, tendo sido gestado desde 1930, em 1937 já assumia a responsabilidade de ‘zelar’ pelo posicionamento do país, colocando-o vulnerável aos programas da esquerda.

Logicamente, num Estado como o Brasil, onde os movimentos pendulares de esquerda/direita oscilaram com freqüência e força, o efeito de situações semelhantes no exterior teria que produzir impactos. Assim mesmo, antes do estabelecimento da ditadura estadonovista, o terrorismo de direita já inibia qualquer iniciativa brasileira que se afigurasse como apoio à esquerda1. Dada a não existência expressiva de imigrantes espanhóis como noticiadores dos atos republicanos, restava à grande imprensa e às instituições comprometidas com ideários afinados com o governo motivar e controlar qualquer divulgação.

O Estado oficial brasileiro era claramente interessado em promover a versão da Guerra como ‘caos’ e ‘resultado da democracia desordenada decorrente das eleições e do regime republicano’. Nada mais oportuno que a exemplificação imediata da Espanha. Neste sentido, aliás, atuaram as máquinas propagandísticas da direita que já estavam funcionando a todo vapor desde o chamado ‘biênio negro’ espanhol (1934-36).

Na mesma linha, todo um serviço ‘saneador’ de propaganda insistia, sobretudo através do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), na mesma tecla. Isto valia para a política autoritária brasileira como um sinônimo da vontade governante, acima da Constituição e dos direitos civis suspensos em 1930 e, depois, em 1934, e novamente em 1937. Elaborou-se, então, no Brasil uma engenharia noticiosa que reorganizou as informações, instruindo-as com teor ideológico, montada para fomentar a idéia de que as esquerdas, em qualquer lugar do mundo, eram inconseqüentes e desastrosas. Assim, as notícias da Guerra Civil Espanhola tiveram um efeito de eco para mostrar a oposição como incapaz e destruidora da ordem e do progresso.

Depois de afogado o ‘movimento comunista’ do Rio de Janeiro de 1935, o ‘exemplo’ espanhol serviria para o governo brasileiro reforçar suas teses autoritárias, e, neste cenário, poderia atuar como juiz, evitando que ocorressem no Brasil os ‘desastres da Guerra Espanhola’2.

Estava proibido o apoio aos republicanos. Além do governo, a grande imprensa também se situava e, logicamente, ainda que nem sempre respondendo como porta-voz único do Estado, em essência concordava com os posicionamentos da direita, mas, nos detalhes,

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divergia, fazendo ainda sérios ataques ao futuro ditador Getúlio Vargas.

Numa época em que os meios de comunicação internacional estavam organizados em cadeias3 e que o Brasil se colocava como país de certa importância no contexto econômico mundial, havia um envolvimento global interessado em mantê-lo como parte de um todo mais amplo, até em nível do noticiário. Grandes jornais, como O Estado de São Paulo, então o mais importante do país, mantinham compromisso coerente com a posição do governo no tocante ao apoio às direitas mas dentro de um projeto próprio, variante do governo. Este fato, aliás, colocou O Estado sob censura de 1939 a 1942 4.

Em face do posicionamento tão claro do governo central, e do controle dos órgãos noticiosos, haveria de restar aos brasileiros apenas formas alternativas de participação nos eventos espanhóis.

Na literatura brasileira, há poucos escritos a respeito do assunto e registra-se apenas um livro de memória de autoria de José Gay da Cunha, Um brasileiro na Guerra Espanhola5. Escrito sob o ponto de vista do cronista, o livro traduz muito do sentido de um militar brasileiro, defendendo fora do próprio país o que não podia fazer dentro dele.

O Estado Novo não só perseguia os simpatizantes, como também promoveu controle rígido da correspondência e da produção dos cidadãos comuns e, especialmente, dos artistas. Nesse sentido, explicam-se atitudes ‘clandestinas’ como a de intelectuais que teriam facilitado viagens para brasileiros saírem do país rumo à Espanha. Aliás, entre os pontos mais instigantes do debate sobre o envolvimento do Brasil na Guerra Civil Espanhola, está o posicionamento dos jornalistas, artistas e escritores.

Se, na superfície aparente, pouco realce eles tiveram, em profundidade nota-se que houve alguma produção que, por meio de sutilezas e riscos, permitiu vazar comentários a respeito das questões em jogo na Espanha. Uma série variada de obras e atitudes de escritores, de uma ou de outra maneira, trouxeram a Espanha ao conhecimento público. Num ambiente de censura, logicamente, estas "notícias" não foram óbvias nem sem camuflagens. Também não surgiram imediatamente nem sem contornos, às vezes de difícil captação.

Com os jornais censurados, com o controle da produção artística exercido pelo Estado que atuava diretamente no resultado dos trabalhos, restava aos intelectuais a imaginação para materializar formas de solidariedade. A poesia foi o gênero mais freqüentado pelos artistas que se manifestaram a favor da Espanha republicana. Logicamente, o espaço da oposição se fazia mais importante, porque significava um duplo protesto: protesto contra a ditadura brasileira e oposição ao fascismo.

Como ninguém, Manuel Bandeira foi o escritor que mais se destacou pela influência política que exercia sobre os jovens. Em sua poesia havia referências ousadas em favor da Espanha republicana. Existe um poema em que estão explicitamente expressas duas referências fundamentais à argumentação central deste projeto. Bandeira inicia o verso No vosso e em meu coração mencionando Neruda e termina com Lorca, dizendo:

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Espanha no coração/No coração de Neruda,/No vosso e em meu coração./Espanha da liberdade,/Não a Espanha da opressão /... A Espanha de Franco, não!/Espanha republicana,/Noiva da revolução!/Espanha atual de Picasso,/De Casals, de Lorca/Irmão Assassinado em Granada!/Espanha no coração.6

 

Nada mais óbvio e arriscado. Diante de um poema como este, fica evidente que deve ter sido escrito antes do estabelecimento do Estado Novo, no início de 1937. Carlos Drummond de Andrade, amigo e admirador de Bandeira, também escreveu e, de maneira envolvente, pedindo "Notícias de Espanha". Drummond constrói um monólogo no qual pergunta e responde a si mesmo:

Aos navios que regressam marcados de negra viagem,/aos homens que neles voltam com cicatrizes no corpo ou de corpo mutilado,/peço notícias de Espanha/... Ninguém as dá./O silêncio sobe mil braças e fecha-se entre as substâncias mais duras./Hirto silêncio de muro, de pano abafando a boca, de pedra esmagando ramos,/e seco e sujo silêncio em que se escuta vazar como no fundo da mina um caldo grosso e vermelho/... cansado de vã pergunta, farto de contemplação,/quisera fazer do poema não uma flor: uma bomba e com essa bomba romper o muro que envolve Espanha.7

 

Talvez ainda mais penetrante seja o verso A Federico García Lorca, também do início da Guerra. Diz o autor: "Sobre teu corpo, que há dez anos se vem transfundindo em cravos de rubra cor espanhola, aqui estou para depositar vergonha e lágrimas"8 e termina prenunciando "Esse claro dia espanhol, composto na treva de hoje, sobre o teu túmulo há de abrir-se..." Drummond manteve uma devoção continuada à Espanha e, mesmo mais tarde, um dos mais importantes núcleos de sua produção é dedicado a Don Quixote, em versos que faz na década de 1950, ilustrados por Portinari.

Na área das traduções há um significativo registro. José Bento Monteiro Lobato, um dos intelectuais mais proeminentes do Brasil, preso pelo Estado Novo, em 1941, traduziu, na cadeia onde estava preso por agredir com cartas o presidente, um dos romances de Hemingway mais reeditados no Brasil Por quem os sinos dobram9. Com esta tradução rebelde, Lobato procurava romper o silêncio imposto pelo DIP, que existia desde 1939, tanto para promover uma imagem positiva do país como para filtrar notícias. O momento do lançamento daquela tradução era tenso, e esta foi uma das poucas maneiras de levar a público debates sobre anarquistas, comunistas, guerrilheiros. Traduzir era uma alternativa para romper o bloqueio, pois como não respeitar um texto que tivera consagração internacional?

Na linha dos romances sobre a Guerra Civil Espanhola, apesar do número reduzido — há dois exemplos —, é importante evidenciar que ganham sentido representativo se consideradas as condições em que foram produzidos. A primeira novela sobre a Guerra surgiu logo em 1940 e o próprio autor, Erico Veríssimo, explica que Saga10 é o seu ‘pior livro’, e continua dizendo: "Esse romance, que revela o estado de espírito do autor naqueles dias sombrios, é o monstro epiceno, símbolo de uma absurda ambivalência política". Ao fim da explicação, que desmerece o próprio texto, Veríssimo diz:

enquanto Clarissa (personagem que se casa com o brigadista brasileiro que luta em

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campos espanhóis) e o marido olhavam para os verdes de seu vale e cuidavam de suas galinhas e vacas, continuei a viver a minha vida, sob o olhar vigilante dos rapazes do Departamento de Ordem Política e Social.11

 

O livro Saga foi baseado em um diário de um ex-combatente do Rio Grande do Sul que optou por lutar na Espanha. Valeram também as sugestões de Jesus Corona, um espanhol morador do Rio Grande do Sul que forneceu informes sobre o campo de concentração de Argeles-sur-Mer12. O que de mais interessante resta a dizer sobre este texto é que a crítica brasileira o tem considerado mais pelas suas debilidades estéticas que pelo valor histórico que indubitavelmente possui.

Em 1956, Jorge Amado abria a trilogia Subterrâneos da Liberdade com uma sintomática evocação a García Lorca (Buscaba el amanecer y el amanecer no era). O conjunto dos livros narra as aventuras de partidários comunistas no Brasil, e, especialmente, o segundo volume (Agonia da Noite), ocupa-se da relação direta entre os marinheiros do porto de Santos e a recusa em transportar café para a Espanha de Franco. Não fosse o largo espaço do livro ocupado para a discussão da problemática espanhola, o texto quase que passaria sem significado para a história, mas os detalhes chegam a impor certa atenção de quem lê sob a hipótese da discussão da problemática internacional.

Na linha das histórias curtas, ou contos, pelo menos uma merece destaque, não pela qualidade estética e sim pela originalidade do contexto. Trata-se de um conto de Guido Guerra, escritor baiano que relata as aventuras de um filho e de seu pai espanhol, Manolo, que sendo antifranquista, em terras brasileiras, detrata Franco13.

Um dos itens mais interessantes da resistência de segmentos intelectuais brasileiros transparece nas páginas da Revista Acadêmica, inaugurada em 1933, no Rio de Janeiro. Esta empresa reunia os modernistas brasileiros para divulgar idéias e trabalhos atualizados. Faziam parte deste grupo pessoas como Mário de Andrade, Alvaro Moreira, Artur Ramos Aníbal Machado, Cândido Portinari, Santa Rosa, Jorge Amado, Sérgio Milliet e José Lins do Rego.

O secretário de redação era Murilo Miranda e a Revista deveria ser mensal. Sabe-se que esta publicação durou de 1933 a 1945, tendo colocado a público 66 números. Indubitavelmente, a Revista tinha em mente a orientação da intelectualidade local em face dos problemas políticos que atormentavam a Europa dividida entre esquerda e direita. Depois de 1937, a presença da Guerra Civil Espanhola passa a chamar a atenção, e de uma média de quinze artigos publicados por número, houve casos de sete serem sobre aquele evento.

Os textos, em geral, em obediência a uma estratégia ‘clássica’, eram traduçoes de intelectuais renomados internacionalmente (Gorki, Malroux, Gide, Lorca, Thomas Mann). Interessante notar que se alguns dos membros do corpo editorial eram comunistas (Graciliano, Jorge Amado, Santa Rosa e Portinari), outros não o eram. Enfatizava-se, com vigor, nestes artigos, a quebra da legalidade e o respeito à

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democracia14.

Convém lembrar que nem só de oposição eram alimentados os argumentos que discutiam a Espanha. No caso dos aliados de Franco, um importante texto fora publicado pela Bibliotheca da Intelligencia a Serviço dum Christianismo Racional, sob o título Espanha em Sangue: o que vi e sofri15. O autor, o jornalista Soares d’Azevedo, que estava na Espanha por ocasião do início da Guerra, na defesa irrestrita do Catolicismo divulgava o caos, motivado pelos sem crenças.

O debate sobre a Guerra Civil Espanhola, seus efeitos e envolvimentos brasileiros, convida a supor que houve níveis de comprometimento. Em primeiro lugar, considera-se os limites da participação brasileira submetida ao totalitarismo da ditadura varguista. Por outro lado, é importante ressaltar a existência de sintonia com a problemática internacional, manifestada, por exemplo através da participação dos judeus brasileiros que procuravam, como os comunistas, afastar o fantasma do fascismo. Igualmente representativo é o papel democratizante que assumia parcela do Exército brasileiro, que no tempo abrigava uma representativa e atuante ala de esquerda. Vale assinalar que a Guerra Civil Espanhola serviu como metáfora para a provocação do grande debate nacional em torno da democracia e de suas viabilidades brasileiras.

Notas

1. Sobre o assunto leia-se, entre outros, PINHEIRO, P. S. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil: 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; HILTON, S. A Rebelião Vermelha. Rio de Janeiro: Record, 1986.

2. Os argumentos expressos aqui fazem parte do livro de BOM MEIHY, J. C. S., BERTOLLI, C. A Guerra Civil Espanhola, a ser impresso ainda este ano pela Editora Ática, São Paulo.

3. Sobre o assunto, leia-se Fotografía e información de guerra. España 1936-1939. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1977.

4. Sobre o assunto, leia-se CARNEIRO, M. L. T. O Estado de São Paulo censura e omissão. In: ___________. O anti-semitismo na era Vargas (1930-1945). São Paulo:Brasiliense, 1988. p.293-417.

5. GAY DA CUNHA, J. Um brasileiro na Guerra Espanhola. Porto Alegre: Globo, 1946.

6. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990. p.278-9.

7. DRUMMND DE ANDRADE, C. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. p.252-3.

8. Idem, p.253-4.

9. HEMINGWAY, E. Por quem os sinos dobram. São Paulo: Editora Nacional, 1942.

10. VERÍSSIMO, Erico. Saga. Porto Alegre: Globo, 1942.

11. ______________. Solo de clarineta. Porto Alegre: Globo, 1974. v.1, p.272.

12. Depoimento do ex-combatente Homero de Castro Jobin, dado a mim, em Porto Alegre, 15 mar. 1993.

13. Veja-se GUERRA, G. As apariçoes do dr. Salu e outras histórias. Rio de Janeiro: Civilização

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Brasileira, 1981. Neste livro o autor presta atenção no antifranquismo inserido no contexto da Bahia no conto Faça-se o desespero ou lembrança que embala a dor.

14. A coleção completa da Revista Acadêmica pode ser encontrada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP).

15. D'AZEVEDO, S. Espanha em sangue. Rio de Janeiro: Cruzada da Boa Imprensa, 1936.

J. C. Sebe Bom Meihy é professor do Departamentode História da Universidade de São Paulo (USP).

[e-mail]  topoA GUERRA

Os trágicos acontecimentos na Espanha, durante a década de 30, tiveram impacto internacional e

inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações

culturais construídas pelo cinema, artes plásticas e literatura.

Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o

golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o

Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição

de novembro de 1935.

Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na

Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de

ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistando nas tropas das

brigadas internacionais.

O debate sobre a Guerra Civil Espanhola, seus efeitos e envolvimentos brasileiros, convida a supor que

houve níveis de comprometimento. Em primeiro lugar, consideram-se os limites da participação brasileira

submetida ao totalitarismo da ditadura varguista do Estado Novo (1937-1945).

SINTONIA INTERNACIONAL

Por outro lado, é importante ressaltar a existência de sintonia com a problemática internacional,

manifestada, por exemplo, através da participação dos judeus brasileiros que procuravam, como os

comunistas, afastar o fantasma do fascismo.

Igualmente representativo é o papel democratizante que assumia parcela do Exército brasileiro, que no

tempo abrigava uma representativa e atuante ala de esquerda. Vale assinalar que a Guerra Civil

Espanhola serviu como metáfora para a provocação do grande debate nacional em torno da democracia e

de suas viabilidades brasileiras.

A Guerra Civil Espanhola foi classificada como um trailer da Segunda Guerra Mundial, que deixou

profundas implicações no mundo e, sobretudo, na América Latina e marcou o início do confronto

ideológico que resultou na Guerra Fria.

Artistas e intelectuais de todo o mundo participaram intensamente da guerra, a maioria do lado

republicano. Conseguir o apoio internacional era vital para os dois lados do conflito.

ESCRITORES NO FRONT

Monteiro Lobato: na prisão da ditadura varguista do Estado Novo, traduziu Hemingway

Alguns e escritores não se contentaram apenas em ser observadores externos. Pegaram em armas e

foram para as frentes de batalha, como André Malraux, George Orwell e John Cornford.

Outros, como Ernest Hemingway, John Dos Passos, Pablo Neruda e Antoine de Saint-Exupéry, passaram

períodos na Espanha durante a guerra.

Essa foi a primeira guerra midiática da História, pois, nesta época o cinema já era sonoro. Antes da

exibição dos filmes, havia a projeção de documentários com notícias internacionais.

Em um momento de severa censura da imprensa no Brasil, a esquerda intelectual precisou ser sutil e

camuflar o apoio aos republicanos durante a guerra. Muitas reações apareceram somente no final do

conflito.

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Em 1940, o escritor Érico Veríssimo publicou o romance Saga, inspirado na guerra. Na cadeia, o escritor

Monteiro Lobato traduziu o livro Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway.

Poemas de Manuel Bandeira com a temática da guerra circulavam clandestinamente. Carlos Drummond

de Andrade e Jorge Ama

Rev. Bras. Hist. vol.28 no.56 São Paulo  2008

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882008000200016 

RESENHAS

 

 

Rodrigo Patto Sá Motta

Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. [email protected]

 

O livro de Francisco J. Romero Salvadó vem se juntar à escassa bibliografia em português sobre a guerra civil espanhola e deverá ocupar lugar de destaque em razão da qualidade do trabalho. A proposta é fazer uma síntese desse grande evento do século XX, verdadeiro símbolo de uma época, com base nas pesquisas e publicações produzidas nos últimos anos. E algumas delas foram beneficiadas pelo acesso a documentos abertos ao público em período recente, notadamente os arquivos soviéticos.

Os trágicos acontecimentos da Espanha da década de 1930 tiveram impacto internacional e inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações construídas no cinema, literatura e artes plásticas. Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição de novembro de 1935. Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistado nas tropas das brigadas internacionais. A direita nacional, por seu turno, entusiasmou-se pela luta de seus congêneres espanhóis, aumentando-lhe a convicção de que o seu mundo, ordenado com base nos valores cristãos e no caráter sagrado da propriedade privada, estava sob ataque cerrado do comunismo internacional. A conflagração espanhola, junto com outros eventos do contexto internacional à época, contribuiu para fortalecer o ânimo punitivo e autoritário das forças conservadoras brasileiras.

Para o bem e para o mal, o ambiente político dos anos 30 está a anos-luz da realidade deste início do século XXI, em que não se vêem mais disputas acirradas

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por questões de natureza ideológica, embora as guerras religiosas pareçam estar voltando. Em meio à radical polarização política da época, os lados contendores no conflito espanhol foram denominados com diferentes adjetivos, reveladores das visões de mundo em choque. Para a esquerda, tratava-se de uma luta em defesa da República, contra as forças do fascismo e da reação. O outro lado não se identificava como fascista, embora parte dele efetivamente fosse (os falangistas), mas sim como nacionalistas em luta pela pátria espanhola, agredida pelo comunismo ateu.

É precisamente na análise do quadro internacional que reside o ponto alto do livro de Romero. As melhores páginas do trabalho são dedicadas a explicar como o drama espanhol se inseriu nos conflitos internacionais do período; sobretudo, como as ações das grandes potências influenciaram os acontecimentos. O autor mostra os interesses em jogo, tanto materiais quanto político-ideológicos, e as estratégias dos países decisivos: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e União Soviética. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram os principais protagonistas entre as potências que interferiram na Espanha. Solidarizaram-se com as forças contrárias à República por afinidade de idéias, afinal, do lado nacionalista alinhava-se coalizão de direita semelhante à que permitira a Hitler e Mussolini ascender ao poder, e contra os mesmos inimigos: comunistas, socialistas, anarquistas, democratas e liberais. Mas também havia razões mais concretas para o apoio: a Itália desejava estabelecer hegemonia na bacia do Mediterrâneo, e a Alemanha cobiçava os recursos naturais da Espanha para alimentar sua máquina de guerra.

Com seu ânimo agressivo e a convicção de que os países liberal-democráticos eram fracos e decadentes, os dois Estados fascistas mobilizaram tropas e recursos numa escala que nenhuma outra potência ousou atingir: cerca de 80 mil italianos e 20 mil alemães combateram na Espanha, sob o pouco convincente disfarce de tropas voluntárias, ao lado de 10 mil portugueses enviados por outro regime simpatizante, o de Salazar. Do lado republicano, os combatentes das lendárias brigadas internacionais, recrutados por organizações ligadas à Internacional Comunista em mais de quarenta países, montaram a cerca de 35 mil, enquanto a União Soviética enviou 2 mil assessores militares, que, com poucas exceções, não se engajaram em combates. O balanço da ajuda material em armas leves, artilharia, tanques e aviões é semelhante: os aliados fascistas enviaram para as tropas de Franco quantidade muito superior ao que os republicanos receberam (compraram) dos soviéticos. E uma das razões para explicar tal disparidade foi a atitude dos governos franceses e ingleses, que criaram empecilhos à chegada dos suprimentos soviéticos, enquanto faziam vistas grossas à crescente intervenção ítalo-alemã. A diplomacia inglesa, principalmente, que nesse caso arrastou consigo a França, temia mais a vitória dos republicanos que a dos franquistas, preferindo uma eventual hegemonia fascista na Espanha a correr o risco de ver a Península Ibérica cair na órbita soviética.

Na opinião do autor, que é convincente, o desfecho da guerra deveu-se em grande medida à maior ajuda externa recebida pelos nacionalistas, pois em outros aspectos os dois lados tinham recursos semelhantes. Grande responsabilidade teve o governo inglês, que, com sua infeliz e ineficaz política de apaziguar Hitler, combinada ao medo de ver o comunismo instalar-se na Europa ocidental, favoreceu, na prática, a vitória de Franco. Ao contrário de outros autores, que buscam atribuir a culpa pela derrota da República aos comunistas, Romero tende a relativizar a responsabilidade do PCE (Partido Comunista Espanhol) e dos soviéticos. A seu ver, o aumento da influência comunista no campo republicano durante a guerra civil deveu-se menos a maquinações soviéticas e mais à atração exercida por um grupo que mostrou dedicação total à causa. A disciplina dos comunistas e o prestígio alcançado pela União Soviética, único país que apoiou de fato a República (embora seus motivos não fossem altruístas, claro), atraiu para seu lado milhares de republicanos, muitos dos quais tinham escassa convicção marxista.

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Naturalmente, Romero menciona os expurgos comandados pelos comunistas, que vitimaram sobretudo militantes do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) e seu líder, Andreu (Andres) Nin, odiado por sua inclinação trotskista. Mas o autor relativiza esses eventos ao situá-los no meio de outras disputas pelo poder no campo republicano, em que todos os grupos recorreram ao assassinato de concorrentes. Argumento polêmico, decerto, e longe de encerrar o debate, mas Romero parece ter razão ao tentar mostrar que os expurgos stalinistas não foram a causa da derrota republicana. A obsessão antitrotskista dos stalinistas contribuiu para as divisões, desconfianças e traições no campo republicano, mas eles não foram os únicos a cometer atos condenáveis. Afinal, a derrota da República foi abreviada quando forças moderadas (março de 1939) tentaram aproximar-se de Franco negociando à base do isolamento dos comunistas. Fracionado o bloco que a sustentava, a República desmoronou quando ainda ocupava um terço do território espanhol. Desfecho melancólico para uma causa que despertou tanta paixão e sacrifícios.

O livro, portanto, é leitura instigante e provocativa, e nos estimula a continuar refletindo sobre esse acontecimento fundamental à compreensão do século XX. Na conta dos aspectos negativos mencione-se que, em certas passagens, o autor exagera nos detalhes, citando nomes e eventos que o leitor comum teria dificuldade em localizar, muitos deles desnecessários em trabalho cuja ambição é a síntese. A tradução do original em inglês é competente, mas cometeu alguns deslizes: por alguma razão, e recorrentemente, milhares viraram milhões, gerando a situação absurda das tropas africanas de Franco montarem a 'milhões' de soldados; e o nome do marechal italiano Italo Balbo tornou-se Marshall Italo Balbo.

 

 

Resenha recebida em setembro de 2008. Aprovada em setembro de 2008.