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NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA CAMPUS CAMPUS CAMPUS CAMPUS Dois dedos de prosa sobre o São Francisco É com prazer que Campus traz a pala- vra de Anivaldo Miranda, um grande especialista e homem devotado ao Rio de São Francisco. O São Francisco foi mudando de sentido ao longo da formação histórica nacio- nal e foi se transformando em problema, basica- mente na oportunidade em que suas águas foram transformadas em merca- doria. Hoje, ele sofre dois problemas essenciais: a sua degradação e a sua transposição, sendo que para Alagoas há, também, o Canal do Sertão que, aliás, é mais uma das contas que o governo tem para acertar com nosso povo e que possivelmente dará muitos problemas. A questão do São Francisco precisa voltar à notoriedade pública, a ser discutida de forma contundente, inclusive, pelos movimentos sociais. Vamos ler Anivaldo. Novamente, Campus agradece sua colabora- ção importante e fica de prontidão para receber qualquer texto que ele produza. Luiz Sávio de Almeida Em sua cama de vento no Penedo, abril de 1950 RIO SÃO FRANCISCO Alagoas l 8 a 14 de junho I ano 02 I nº 067 l 2014 redação 82 3023.2092 I e-mail [email protected] ANIVALDO MIRANDA É alagoano de Maceió, jornalista e Mestre em Meio Ambiente e Desen- volvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas –UFAL. Reconhecido por sua larga trajetória como ambientalista, foi eleito para presidir o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF – onde cumpre o segundo mandato e atua de forma voluntária dirigindo um colegiado de 120 pessoas que representam o poder público, a sociedade civil e os usuários das águas nos seis Estados (Alagoas, Sergipe, Pernam- buco, Bahia, Minas Gerais e Goiás, além do Distrito Federal) que têm partes de seus territórios inseridos na bacia do Velho Chico. É Superintendente de Recursos Hídricos da SEMARH/Alagoas, integra o Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas, além de ser colaborador das revistas “Política Democrática”, da Fundação Astrojildo Pereira, “Águas do Brasil,” da REBOB (Rede Brasil de Organismos de Bacias Hidrográficas) e “Velho Chico,” editada pelo próprio Comitê do Rio São Francisco. Quem é quem?

O DIA ALAGOAS - Campus 11

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Alagoas l Ano 2 | 8 a 14 de junho | 2014. Campus é o caderno de cultura de O DIA ALAGOAS.

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NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA NATUREZA

CAMPUSCAMPUSCAMPUSCAMPUS

Dois dedos de prosa

sobre o São

FranciscoÉ c o m p r a z e r q u e

Campus traz a pala-vra de Anivaldo Miranda, um grande especialista e homem devotado ao Rio de São Francisco. O São Francisco foi mudando de sentido ao longo da formação histórica nacio-nal e foi se transformando em problema, basica-mente na oportunidade em que suas águas foram transformadas em merca-doria.

Hoje, ele sofre dois problemas essenciais: a sua degradação e a sua transposição, sendo que para Alagoas há, também, o Canal do Sertão que, aliás, é mais uma das contas que o governo tem para acertar com nosso povo e que possivelmente dará muitos problemas.

A q u e s t ã o d o S ã o Francisco precisa voltar à notoriedade pública, a ser discutida de forma contundente, inclusive, pelos movimentos sociais. Vamos ler Anivaldo.

Novamente, Campus agradece sua colabora-ção importante e fica de prontidão para receber qualquer texto que ele produza.

Luiz Sávio de AlmeidaEm sua cama de vento

no Penedo, abril de 1950

RIO SÃO FRANCISCO

Alagoas l 8 a 14 de junho I ano 02 I nº 067 l 2014 redação 82 3023.2092 I e-mail [email protected]

ANIVALDO MIRANDAÉ alagoano de Maceió, jornalista e Mestre em Meio Ambiente e Desen-

volvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas –UFAL. Reconhecido por sua larga trajetória como ambientalista, foi eleito para presidir o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF – onde cumpre o segundo mandato e atua de forma voluntária dirigindo um colegiado de 120 pessoas que representam o poder público, a sociedade civil e os usuários das águas nos seis Estados (Alagoas, Sergipe, Pernam-buco, Bahia, Minas Gerais e Goiás, além do Distrito Federal) que têm partes de seus territórios inseridos na bacia do Velho Chico. É Superintendente de Recursos Hídricos da SEMARH/Alagoas, integra o Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas, além de ser colaborador das revistas “Política Democrática”, da Fundação Astrojildo Pereira, “Águas do Brasil,” da REBOB (Rede Brasil de Organismos de Bacias Hidrográficas) e “Velho Chico,” editada pelo próprio Comitê do Rio São Francisco.

Quem

é

quem?

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O Rio São Francisco nunca enfren-tou situação tão dramática como agora. A prolongada falta de

chuvas em suas cabeceiras já está levando a gera-ção de energia hidrelétrica, a partir da Barragem de Três Marias, à beira do colapso. O detalhe é que Três Marias fica em Minas Gerais, onde o rio, a partir de suas cabeceiras na Serra da Canastra, acumula a maior parte de suas águas. E se a situ-

ação é dramática em Minas Gerais, considerada a “caixa d’água” do Brasil, não é difícil imaginar o que está ocorrendo nos demais estados que o rio corta, atravessando uma área seca equivalente a praticamente 1 milhão de quilômetros quadra-dos do semi-árido brasileiro antes de desaguar no Oceano Atlântico, depois de servir como fron-teira líquida entre Alagoas e Sergipe. Além dos novos fatores climáticos, erros de planejamento

e o conservadorismo do setor hidrelétrico agra-vam a situação e apontam para um cenário de crescentes conflitos com os demais usos das águas sanfranciscanas, dentre os quais abastecimento humano, agricultura irrigada e navegação. Presi-dente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo Miranda defende a urgência de um “Pacto das Águas” para evitar um cenário caótico em futuro breve.

CAMPUS2 O DIA ALAGOAS l 8 a 14 de junho I 2014

redação 82 3023.2092e-mail [email protected]

CNPJ 07.847.607/0001-50 l Rua Pedro Oliveira Rocha, 424 B - Farol - Maceió - Alagoas - E-mail: [email protected] - Fone: 3023.2092

Para anunciar,ligue 3023.2092

EXPEDIENTE Eliane PereiraDiretora-Executiva

Deraldo FranciscoEditor-Geral

Flávio NobreDiretor Comercial

L. Sávio de AlmeidaCoordenador

Luhanoa RochaArticulação

Francisco RibeiroCotidiano

Cícero RodriguesIlustração

Jobson PedrosaDiagramaçãoODiaAlagoas

Rio São Francisco: as águas que não podem secar

Anivaldo Miranda

Dizer que o Rio São Fran-cisco está morrendo já virou lugar comum,

até porque um rio tão grande e caudaloso não morre assim de repente. E não morre como gente, que se decompõe, é enterrada ou vira cinzas deixando apenas lembranças. Um grande rio morre discre-tamente, uma morte longa, torturante, geológica, a rigor impossível de ser atestada em

momento certo ou até incerto.Mas, se a morte do rio é

difícil de ser temporalmente atestada, o mesmo não se pode dizer dos sintomas de sua doença ou, em linguagem ambiental, de sua degradação. Esses sintomas, assim como os sintomas da pessoa ou do animal enfermo, são fáceis de perceber e só não os vê quem do rio está longe ou não acom-panha sua lenta agonia.

Quando o regime de vazões de um rio começa a

ser alterado significativa-mente, pelo homem ou pela própria natureza, é como se uma febre tenha se apossado de suas águas. Daí por diante as manifestações da doença, digo, degradação, começam a aparecer lentamente atra-vés do assoreamento do seu leito, erosão de suas margens, desaparecimento dos seus canais profundos, formação de bancos de areia, alguns dos quais se transformam em verdadeiras ilhas, comprome-

timento agudo da qualidade de suas águas, devastação de sua mata ciliar, diminuição do aporte de água e sedimentos dos seus afluentes que, via de regra, estão sendo acometidos dos mesmos males, diminui-ção do número e vigor de suas nascentes e, mais emblemático, contínuo processo de extinção de sua fauna e de sua flora.

Todos esses sintomas que atestam a degradação de um rio já foram exaustivamente observados, pesquisados e,

em medida razoável, diagnos-ticados no São Francisco. Mas agora, as feridas que o dilace-ram, bem como aos afluentes que compõem sua bacia hidro-gráfica, nunca estiveram tão expostas, como consequência da estiagem prolongada que castiga duramente o Velho Chico desde a Serra da Canas-tra, onde estão as suas nascen-tes, até à sua foz, entre os estados de Alagoas e Sergipe, no embate do rio com as águas do Oceano Atlântico.

Para os comuns entre os mortais, o preço que se paga pelo uso da energia é aquele que vem na conta de luz mensalmente. Mas, para as populações do Rio São Francisco, sobretudo aquelas ribeirinhas, além da conta de luz, há um outro preço mais alto a pagar, o preço socioam-biental dos problemas e da degradação ambiental decor-rentes da regularização das vazões do rio quando da cria-

ção das barragens que foram construídas para atender à geração da energia hidrelé-trica. É um preço encoberto, historicamente nunca conta-bilizado ou compensado às populações sanfrancisca-nas. E esse preço paralelo, essa conta nunca paga, seja ao rio, na forma de ações de recuperação ambiental, seja às populações afetadas pela mudança artificial do regime das vazões, torna-se espe-

cialmente salgada quando os principais reservatórios das hidrelétricas, em tempos de secas prolongadas ou por erro de planejamento, ficam com suas águas abaixo dos níveis considerados minima-mente seguros.

Quando isso acontece, as hidrelétricas diminuem a chamada vazão defluente (ou seja, soltam menos água para quem está abaixo, no rio) para permitir maior acumu-

lação das águas nesses reser-vatórios e, assim, garantir a geração de energia. Até aí, nada a objetar porque, afinal, Minas Gerais e o Nordeste precisam de energia e as hidrelétricas dependem de água acumulada para gera--la. O problema, no entanto, é que essa diminuição de vazão feita para atender às necessidades da geração de energia, provoca impac-tos ambientais dramáticos

e prejuízos para os demais usos múltiplos da água do São Francisco, ou seja, causam danos financeiros à navegação, à pesca artesanal, à captação de água para abas-tecimento humano, à irri-gação, aquicultura, turismo e outras atividades. Sobre esses danos financeiros nem o governo federal nem o setor elétrico gostam de falar e muito menos de pagar ou compensar os prejudicados.

O preço invisível que se paga pela energia

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Se as secas na Bacia Hidro-gráfica do Rio São Francisco fossem como antes, se as populações não aumentas-sem, se a economia não cres-cesse e, consequentemente, as demandas pelo uso das águas permanecessem esta-cionárias, então poderíamos continuar tranquilamente “dormindo em berço esplên-dido.” Porém, não é isso que vem acontecendo.

Desde o mês de abril do ano passado, o setor elétrico brasileiro requisitou à Agên-cia Nacional de Águas (ANA) e ao IBAMA, através do ONS, a diminuição da vazão a jusante (abaixo) da Barragem de Sobradinho, em volu-mes ainda menores do que a vazão mínima prevista legal-mente, ou seja, a redução da vazão mínima de 1.300m³/s (mil e trezentos metros

cúbicos por segundo) para 1.100m³/s (mil e cem metros cúbicos por segundo). ONS, para quem dele não ouviu falar, é o Operador Nacional do Sistema (sistema hidrelé-trico interligado em todo o território brasileiro). Parece pouco – retomando a nossa narrativa – essa redução de 200m³/s (duzentos metros cúbicos por segundo), mas não é. Simplesmente porque se a vazão mínima já impli-cava em impactos ambientais e socioeconômicos visíveis, qualquer redução dessa mínima só agrava ainda mais o cenário a jusante das barra-gens hidrelétricas.

Esses pedidos de redução das vazões abaixo da mínima já vinham sendo feitos pelo setor elétrico e concedidos em “caráter emergencial” desde 2001. De lá pra cá,

foram se tornando recorren-tes a tal ponto que o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), em reunião com o setor elétrico, a ANA, o IBAMA, as hidrelé-tricas e os principais usuários das águas sanfranciscanas, exigiu que eles (os pedidos) deixassem de ser encara-dos como “emergências” e passassem a ser tratados como “recorrências” de uma nova e mais perversa reali-dade.

Como que corroborando a preocupação do Comitê, de abril do ano passado para cá, completou-se o período mais longo de vazões reduzidas para além daquilo que o São Francisco, como ecossistema, pode tolerar. Como o período úmido nas cabeceiras do rio encerrou-se sem as chuvas esperadas, tudo indica que

em 2014 o tempo das vacas magras, digo, das vazões reduzidas, com certeza irá prosseguir sabe-se lá até quando porque, inclusive no reservatório de Três Marias, lá em Minas Gerais, onde chuva não é artigo de luxo, o espectro da seca está casti-gando o rio e as populações do seu entorno.

Muita gente se consola quando lembra que a seca um dia sempre acaba e tudo volta ao normal. Mas isso é hoje uma verdade cada vez mais relativa porque definitiva-mente nosso planeta entrou numa época de extremos climáticos decorrentes do paulatino processo de eleva-ção da temperatura média da superfície da Terra em decor-rência da ação dos chamados gases do efeito estufa. O São Francisco e seus afluentes já

começaram a vivenciar esses extremos que apontam para futuros períodos secos mais prolongados, alternados com regimes de chuva ainda mais irregulares.

Quem vive o rio e vive do rio já sente esse novo momento na pele. Mas o poder público, leia-se os governos (federal, estaduais e muni-cipais), além dos chamados setores produtivos – o setor elétrico em primeiro lugar –, parecem viver em outro planeta. E vão tocando a polí-tica do “assando e comendo” e, portanto, conduzindo a gestão (ou ausência dela) das águas do Rio São Francisco como se nada de novo esti-vesse acontecendo. Ou seja, faltou chuva, então diminui a vazão a jusante de Três Marias e de Sobradinho e o resto que se exploda.

Essa filosofia de avestruz, que coloca a cabeça no buraco para não encarar a realidade, nunca deu certo porque, em dado momento, a vida termina cobrando suas fatu-ras. Com a gestão das águas do Rio São Francisco não poderia ser diferente. De algum tempo para cá, as condições ambien-tais na bacia hidrográfica mudaram substancialmente, bem como as demandas para o uso de suas águas foram aceleradas. O poder público, porém, a quem cabe liderar esse processo de gestão, ficou estacionado no século que passou e continua ignorando esses fatos.

Nos debates com o setor elétrico e a Agência Nacio-nal de Águas (não cito o IBAMA porque seus repre-sentantes entram e saem praticamente mudos das reuniões), o Comitê do São Francisco tem postulado a urgência cada vez maior da elaboração e execução de uma estratégia e construção de uma agenda comum que não somente promovam uma mudança essencial na matriz energética fundada no uso das águas sanfranciscanas,

como redefinam as premissas capazes de assegurar o prin-cípio legal dos usos múlti-plos dessas águas nas novas condições socioeconômicas e no contexto do aquecimento global.

O Comitê já pontuou diversas vezes que a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco é, dentre as grandes bacias do país, a mais vulnerá-vel de todas, uma obviedade que poderia parecer ululante, mas não é. E não o é porque os gestores de suas águas não o saibam. Não é porque aceitar essa premissa impli-caria em mudanças de fundo na gestão de suas águas e no gerenciamento do sistema hidrelétrico no Brasil. Ocorre, no entanto, que o poder

público é sempre refratário às mudanças e sempre recep-tivo às inclinações conserva-doras e imediatistas de sua contraface, o poder econô-mico, tudo isso coroado com a passividade da sociedade civil. Afinal, bastaria o fato de o Rio São Francisco atra-vessar uma área de 1 milhão de quilômetros quadrados de semi-árido para lhe empres-tar essa condição e colocar a sua vulnerabilidade como premissa básica para defi-nição de todas as políticas públicas, atividades e inves-timentos públicos e privados em sua área. Infelizmente, isso não acontece.

Empenhado no reconhe-cimento dessa vulnerabili-dade, o Comitê começou a

demandar do setor elétrico regras permanentes e trans-parentes para fundamenta-ção dos futuros pedidos de redução das vazões abaixo da vazão mínima, geralmente feitos de afogadilho sob o manto da reiterada “emer-gência”. O ONS apresentou no final do ano passado uma minuta contendo o esboço de uma regra que pode abrir finalmente o caminho para a construção de um consenso difícil, mas possível. Tal minuta prevê a possibilidade de saber de antemão em que condições a redução será adotada e em quais as condi-ções as vazões retornarão à normalidade.

O Comitê e demais atores desse cenário estão exami-

nando a minuta à luz dos novos eventos da estiagem prolongada que atinge inclu-sive o reservatório de Três Marias, em Minas Gerais, de forma dramática. Além disso, o Comitê também estuda as condicionantes que deve solicitar para aceitação dessas novas regras, dentre as quais a prática de vazões aumentadas (cheias artifi-ciais controladas) quando dos períodos favoráveis em termos climáticos, regras claras para compensação dos demais usos múltiplos das águas quando da redução drástica das vazões, ações de recuperação hidro ambiental e planejamento dos espaços ribeirinhos e perímetros de inundação, dentre outras de alcance muito maior, como a diversificação da matriz energética na Bacia do São Francisco através da efetiva implementação de fontes alternativas de gera-ção de energia eólica, solar, da biomassa e outras passí-veis de utilização capaz de diminuir a situação crítica da produção de energia hidrelé-trica a partir das águas do São Francisco.

A tática do “assando e comendo

São Francisco, a mais vulnerável de todas as bacias

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É preciso ter em vista, no entanto, que mesmo evoluindo satisfatoriamente, o complexo diálogo/embate/negociação com o setor elétrico não será suficiente, por si só, para encaminhar a solução dos enormes dilemas que afligem o Rio São Fran-cisco e sua bacia hidrográfica. Para prevenir e resolver os grandes conflitos potenciais e atuais que envolvem o uso das águas sanfranciscanas, será preciso muito, muito mais.

Hoje o que ainda predo-mina em nosso país é a lógica da gestão das águas pelo viés do seu consumo e não de sua “produção” ou uso racio-nal. Fiéis a essa cultura, os beneficiários (reais ou poten-ciais) das águas do Rio São Francisco (Estados, municí-pios, hidrelétricas, projetos de irrigação, companhias de abastecimento de água, mineradoras, indústrias dos mais variados portes, companhias de navegação) continuam a demandá-las crescentemente, mas sem muita preocupação com o seu balanço hídrico.

Ademais de Alagoas, com o seu Canal do Sertão já vertendo água nos trechos iniciais, Sergipe se prepara para construir o Canal de Xingó, a Bahia tomas medi-das para executar o Canal Sul, Pernambuco prossegue construindo o Canal do Pajeú, tudo isso sem falar nas trans-posições, porque agora, além dos eixos Norte e Leste do

Projeto da Transposição das águas do São Francisco para as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco), o governo do Piauí e o Ministério da Integra-ção já anunciaram a intenção futura de uma nova transposi-ção que levaria água do Lago de Sobradinho (o mesmo que até recentemente apresentou situação crítica) para o Estado do Piauí.

Além desses canais e transposições, a forte pressão pelas águas do Velho Chico vai aumentar com a consecu-ção de centenas de projetos de Pequenas Centrais Hidre-létricas (PCHs) no leito de alguns dos seus principais afluentes, com a nunca aban-donada ideia do governo federal de construir no Baixo São Francisco usinas nucle-ares e, mais recentemente, com a anunciada intenção em promover a exploração do gás de xisto (cuja tecnologia incipiente e poluidora está

sendo questionada no mundo todo) em áreas da bacia. Isso tudo sem falar na contínua expansão dos megaprojetos de irrigação que promovem verdadeira farra da água em regiões do Cerrado, com a superexploração dos aquífe-ros que garantem a vazão do Velho Chico em períodos de estiagem.

Todas essas demandas ocorrem em contexto onde o sistema de outorgas pelo direito de uso das águas – o único capaz de dimensionar e controlar racionalmente esse uso – ainda não foi nem completa, nem satisfatoria-mente implantado, perdido que está em legislação que deu tanto à União, nos rios federais, quanto aos estados (estes últimos nas bacias loca-lizadas em um único território estadual) o direito de conce-der essas outorgas compondo um universo caótico onde ninguém tem uma ideia clara daquilo que o outro está outorgando.

Na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, a revisão das outorgas concedidas pela União na calha do São Francisco e nos seus rios afluentes liberadas pelos Estados que têm parte de seu território nessa bacia (Alagoas, Sergipe, Pernam-buco, Bahia, Minas Gerais e Goiás, além do Distrito Federal) precisa ser urgen-temente empreendida para evitar, em futuro próximo, que as sementes de grandes conflitos pelo uso da água germinem e tornem o pano-rama já preocupante, ainda mais sombrio.

Debruçado sobre esse cenário de um futuro que já se anuncia fortemente, o Comitê do São Francisco tem como uma das suas prin-cipais missões construir o Pacto das Águas entre todos os usuários de sua bacia hidrográfica, uma tarefa de enorme complexidade, mas absolutamente necessária se quisermos sonhar com a tão badalada, mas pouco enten-dida e praticada, sustentabili-dade do desenvolvimento na região.

Esse pacto deve começar, como já demos a entender, pela redefinição das relações entre os usos do setor hidrelé-trico, hegemônico, e os demais usos múltiplos das águas do Velho Chico. Entretanto, no contexto dos afluentes e da bacia como um todo, outras pactuações devem evoluir paralelamente, sobretudo

quando se trata da agricul-tura irrigada e suas relações com a saúde dos aquíferos, o abastecimento humano e o equilíbrio ambiental dos ecossistemas. Em áreas de grande uso intensivo das águas subterrâneas, como o Oeste da Bahia, e em bacias onde esse uso desenfreado já vem causando desastres ambientais, como é o caso de trechos das bacias dos rios Verde e Jacaré, também na Bahia, a imperiosidade do pacto já bateu às portas há muito tempo.

Essa urgência em pactuar os usos da água na Bacia Hidrográfica não se faz somente em decorrência do aumento da demanda das águas e de seus conflitos, do agravamento das condições climáticas desfavoráveis ou do crescimento assustador da degradação ambiental. Impõe-se também como medida racional de plane-jamento para evitar a perda de investimentos, superposi-ção ou paralelismo de ações, crescimento insustentável da economia, uso irracional da água.

Como pensar em gastar bilhões de reais na implan-tação do Corredor Multimo-dal de Transportes, cujo eixo principal será a hidrovia do São Francisco, sem antes asse-gurar a vazão minimamente necessária capaz de garantir, sem sobressaltos e interrup-ções, a navegação fluvial de grande porte?

Os Comitês de Bacias Hidrográficas foram criados no Brasil para funcionar como a base da pirâmide que compõe o Sistema Nacional de Recursos Hídricos (SNRH). A eles cabe, por lei, não somente aprovar os Planos Diretores de Gestão das Águas em suas bacias respec-tivas, como também servir de

primeira instância para o trata-mento dos conflitos de uso da água.

Baseado nessas prerroga-tivas legais, o Comitê do São Francisco prepara-se, neste ano de 2014, para fazer a revisão do Plano Diretor de Recursos Hídricos de sua bacia hidrográ-fica. Será uma ação de grande

envergadura, mas de funda-mental importância para fazer, de forma democrática e partici-pativa, o diagnóstico atualizado dos problemas, dos conflitos, das oportunidades e das pers-pectivas de desenvolvimento na região do São Francisco e dos seus afluentes.

A revisão do Plano Diretor

será passo fundamental para dar suporte ao Pacto das Águas. Um pacto que não pode mais demorar porque o governo federal, os estados, os municí-pios, a indústria, a agricultura, a sociedade civil, a academia e a comunidade ambientalista da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco precisam construir os

consensos da sustentabilidade do desenvolvimento antes que os dilemas e os conflitos pelo uso das águas sanfrancisca-nas se sobreponham aos ainda possíveis caminhos da coope-ração e da gestão responsável e racional das águas. Afinal, são águas que não podem, nem devem secar, jamais!

Pacto das águas: um freio de arrumação

A revisão do plano diretor