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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia CAMEAM Departamento de Letras DL Programa de Pós-graduação em Letras PPGL Curso de Mestrado Acadêmico em Letras FRANCISCO EDSON GONÇALVES LEITE O DUPLO COMO MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO PAU DOS FERROS 2013

O DUPLO COMO MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO EM CONTOS …§ões2013/arquivos... · Estudos do Texto e do Discurso, Linha de Pesquisa: Discurso, ... RESUMO Questões ... Lamas (2002),

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia – CAMEAM

Departamento de Letras – DL Programa de Pós-graduação em Letras – PPGL

Curso de Mestrado Acadêmico em Letras

FRANCISCO EDSON GONÇALVES LEITE

O DUPLO COMO MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE

LOYOLA BRANDÃO

PAU DOS FERROS 2013

FRANCISCO EDSON GONÇALVES LEITE

O DUPLO COMO MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração em Estudos do Texto e do Discurso, Linha de Pesquisa: Discurso, Memória e Identidade Orientadora: Profª. Drª. Antonia Marly Moura da Silva.

PAU DOS FERROS 2013

Leite, Francisco Edson Gonçalves. O duplo como manifestação do insólito em contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão / Francisco Edson Gonçalves Leite. – Pau dos Ferros, RN, 2013.

175 f.

Orientador (a): Prof.ª Dra. Antonia Marly Moura da Silva.

Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de Concentração: Estudos do Discurso e do Texto.

1. Duplo – Dissertação. 2. Contos – Dissertação. 3. Literatura Fantástica – Dissertação. 4. Telles, Lygia Fagundes – Dissertação.

5. Brandão, Ignácio de Loyola – Dissertação. I. Silva, Antonia Marly Moura da. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.

UERN/BC CDD 401.41

Catalogação da Publicação na Fonte.

Bibliotecário: Tiago Emanuel Maia Freire / CRB - 15/449

A dissertação “O duplo como manifestação do insólito em contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão”, autoria de Francisco Edson Gonçalves Leite, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

Dissertação defendida e aprovada em 06 de março de 2013.

BANCA EXAMINADORA

PAU DOS FERROS 2013

DEDICATÓRIA

A meus pais, José Leite Sobrinho e Joana Maria Gonçalves Leite, meus

maiores incentivadores. A meu irmão, Evandro Gonçalves Leite, a quem muito

admiro. Agradeço a Deus por tê-los ao meu lado.

AGRADECIMENTOS

A Deus, a quem devo, primeiramente, a vida e todas as vitórias conquistadas.

A meus pais e meu irmão Evandro, pelo apoio e incentivo.

Aos demais familiares que de alguma forma contribuíram para que esse trabalho

se tornasse possível. Em especial a: Tio Deca, Benedita, Cimar, Leidiane, Irlane e

minha afilhada Ana Gabriely; minhas tias Tereza, Laura, Fátima e Celina; Madrinha

Nana.

Aos amigos verdadeiros que sempre se fizeram presentes com boas palavras e

atitudes.

Aos professores do PPGL – UERN, pelos ensinamentos e valorosas discussões

realizadas.

A minha turma do mestrado, pelo convívio amigável e companheiro. Em especial a

Ana Alice, companheira de viagem durante o primeiro ano do curso; Da Luz, pessoa

com quem, apesar da distância, desenvolvi uma relação de amizade e partilhei as

dificuldades, as dúvidas e as inquietações que surgiram ao longo do processo.

A minha orientadora, Drª. Antonia Marly Moura da Silva, pela atenção que

dedicou a mim desde quando cursei sua disciplina como aluno especial. Esta

dissertação é o resultado daquelas primeiras discussões que se intensificaram no

decorrer desses dois anos e meio.

À banca examinadora da qualificação e da defesa, pela disponibilidade em

participar de momentos importantes da minha trajetória acadêmica. Em especial aos

professores Dr. Charles Albuquerque Ponte e Dr. José Vilian Mangueira, que

contribuem para minha formação acadêmica desde a graduação em Letras.

À Capes, pelo apoio financeiro durante o curso do mestrado.

[…] A arte literária põe em cena, com

suas articulações particulares, o

conhecimento – embora lacunar – do

homem (suas histórias, desejos, pulsões

etc.) traduzindo em saberes variados; a

diferença está na peculiar alquimia formal,

indecifrável segundo Freud.

Cleusa Rios P. Passos.

RESUMO

Questões relacionadas à identidade do eu sempre despertaram o interesse e a inquietação de estudiosos dos mais variados campos epistemológicos. O mito do duplo, concebido por Bravo (1998) como uma figura arcaica, atesta tanto a tradição desse interesse quanto sua atualização em diferentes discursos, encontrando na literatura lugar privilegiado para sua ressignificação. Tomando como referência essa realidade, objetiva-se, neste trabalho, analisar as configurações assumidas pelo mito do duplo em contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Trata-se de um estudo crítico-comparativo de base interpretativista acerca de um total de cinco contos. Desses, três são da autora de “A caçada”, “A mão no ombro” e “O encontro”; e os demais de Brandão, “A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”. Dentre os estudiosos mais representativos que embasaram essa pesquisa, podem-se citar: Campbell (2008), Augras (2008), Eliade (1992, 2007), Armstrong (2005) e Chevalier e Gheerbrant (2009), que tratam dos aspectos míticos e simbólicos; Jung (2000), Mello (2000), Bravo (1998), López (2006) e Lamas (2002), que debatem o tema do duplo e sua inscrição na literatura; Todorov (2008) e Calvino (2004), que estudam as características do discurso fantástico na literatura; e Bosi (2002), Coutinho (1971), Gotlib (1999) e Galvão (1983), que tratam do gênero conto. Nas narrativas de Telles, verifica-se majoritariamente o duplo por fusão, ao passo que em Brandão observa-se exclusivamente o duplo por cisão. A partir do cotejo das obras dos dois escritores, conclui-se que o duplo em Telles apresenta-se como uma possibilidade de encontro com o eu em um passado, numa espécie de retorno a uma unidade original, enquanto em Brandão a busca pelo duplo reflete uma procura do sujeito pelo resgate das potencialidades latentes do eu inibidas pela sociedade. Esse encontro do eu com o outro se efetiva, nas narrativas analisadas, graças às infinitas possibilidades abertas pelo discurso fantástico na literatura. Pode-se afirmar que os dois escritores abordam a difícil tarefa de constituição de uma identidade em um mundo atual instável. Considerando as devidas particularidades, ambos os escritores tentam representar a crise identitária vivenciada pelo homem moderno, segundo a qual o ser duplicado é signo de um eu esfacelado e fragmentado. Assim, o mito do duplo é atualizado no conto brasileiro contemporâneo, adequando-se às exigências do contexto histórico, embora mantenha em sua essência o símbolo da busca da identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Duplo. Contos. Literatura fantástica. Telles. Brandão.

ABSTRACT

Questions related to the identity of self have always drawn the interest and inquietude of studious in the most varied epistemological fields. The myth of the double, understood by Bravo (1998) as an archaic figure, attests both the tradition of this interest and its update in several discourses, finding in the literature a privileged place to its resignification. Taking this fact as reference this research has the purpose of analyzing the configuration which the myth of double assumes in Lygia Fagundes Telles’ and Ignácio de Loyola Brandão’s short stories. It’s a critic and comparative study based on an interpretative paradigm concerning a total of five short stories. From these, three are by the author of “A cacada”, “A mão no ombro” and “O encontro”; and the others by Brandão, “A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”. Among the most representative authors on whom this research is based on, it can be mentioned: Campbell (2008), Augras (2008), Eliade (1992, 2007), Armstrong (2005) and Chevalier and Gheerbrant (2009), that work with the mythic and symbolical aspects; Jung (2000), Mello (2000), Bravo (1998), López (2006) and Lamas (2002), that debate the theme of double and its inscription in the literature; Todorov (2008) and Calvino (2004), that study the characteristic of the fantastic discourse in the literature; and Bosi (2002), Coutinho (1971), Gotlib (1999) and Galvão (1983), that deal with the short story genre. In Telles’ short stories, it’s verified mostly the double by fusion, while in Brandão’s it’s observed exclusively the double by fission. From the confrontation of the writer’s short stories, it’s concluded that the double in Telles represents a possibility of encounter with a self in a past time, as a kind of return to an original unity, while in Brandão the seek for the double reflects the subject search for the rescue of the self latent potentialities inhibited by the society. The encounter between the self and the other is achieves, in those narratives, due to the endless possibilities that the fantastic discourse promotes in the literature. It can be assured that both the writers present the difficult task of identity construction in an instable world nowadays. Considering such particularities, both the authors try to represent the crisis of identity experienced by the modern subject, according to which the doubled human being is the sign of a fragmented and unfolded self. Therefore, the myth of the double is updated in the contemporary Brazilian short stories, as a way of adapting to the demands of the historical context, in spite of keeping in its essence the symbol of the identity search.

Key words: Double. Fantastic Literature. Telles. Brandão.

LISTA DE SIGLAS

AC: “A caçada”

MO: “A mão no ombro”

OE: “O encontro”

MPCC: “A mão perdida na caixa do correio”

CBM: “As cores das bolinhas da morte”

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10

CAPÍTULO I – O MITO DO DUPLO: CONSIDERAÇÕES GERAIS.................... 18 1.1 Confluências: o diálogo entre literatura e mito......................................... 18 1.2 O mito do duplo: conceitos e aspectos teóricos....................................... 33 1.2.1 O duplo na filosofia, na religião e na mitologia......................................... 38 1.3 O duplo na literatura................................................................................. 44 1.4 O duplo e a literatura fantástica: algumas considerações........................ 49

CAPÍTULO II – O DUPLO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO..................................................................... 55 2.1 O gênero conto: origens, evolução e tendências atuais........................... 55

2.2 Representações do duplo em Lygia Fagundes Telles: uma leitura de três contos................................................................................................ 60

2.2.1 “A caçada”................................................................................................ 64 2.2.2 “A mão no ombro”..................................................................................... 74 2.2.3 “O encontro”.............................................................................................. 86 2.3 Representações do duplo em Ignácio de Loyola Brandão: uma leitura

de dois contos........................................................................................... 100 2.3.1 “A mão perdida na caixa do correio”......................................................... 104 2.3.2 “As cores das bolinhas da morte”............................................................. 119

CAPÍTULO III – METÁFORAS DA DUALIDADE EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO: UM ESTUDO COMPARATIVO................................................................................................... 134 3.1 Lygia Fagundes Telles.............................................................................. 134 3.2 Ignácio de Loyola Brandão....................................................................... 144

3.3 Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão: um diálogo (im)possível?............................................................................................. 154

CONCLUSÃO....................................................................................................... 163

REFERÊNCIAS.................................................................................................... 167

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INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea1 sofreu profundas modificações em sua estrutura

organizacional as quais, inevitavelmente, refletem na constituição do sujeito,

especificamente na construção do eu e nas relações estabelecidas entre o indivíduo

e o meio social. Conforme afirma Jameson (2006), o contexto contemporâneo

decreta a morte do próprio sujeito, ao enfatizar o seu descentramento. Hall (2006)

comunga dessa mesma ideia, ao afirmar que as identidades centradas e unificadas,

que promoviam estabilidade para o sujeito, não encontram mais espaço nesse

contexto: “[…] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo

social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o

indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2006, p. 10).

Bauman (2005, p. 19) vê a construção do sujeito na sociedade contemporânea –

que ele denomina de “modernidade líquida” – sob essa mesma ótica, ao afirmar que

“[…] o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados,

enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de

episódios fragilmente conectados”. A multiplicidade de papéis assumidos pelos

sujeitos como resposta às demandas dessa sociedade fluida e instável mina com a

concepção, até então vigente, da constituição homogênea da subjetividade,

questionando, com isso, a própria noção do eu como centro da consciência e

transparente a si mesmo. Esse cenário moderno traz, portanto, para o primeiro plano

as discussões sobre as representações identitárias.

Essas concepções teóricas sobre as sociedades contemporâneas

inevitavelmente são representadas no campo literário, influenciando, dentre outros

aspectos, a forma como os escritores constroem a(s) identidade(s) de suas

personagens, expressa por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos. A

literatura, considerada ela mesma como duplo, “[…] uma enganadora imitação da

1 O termo “contemporâneo”, bem como seu correlato “contemporaneidade”, aparecem no texto

referindo-se a um período histórico-cultural surgido a partir da segunda metade do século XX. Sendo assim, do ponto de vista histórico, o que aqui se chama de contemporâneo corresponde ao que ficou conhecido no pensamento atual como pós-modernidade e que tem início, segundo Santos (2005), a partir da década de 1950. No entanto, o pós-modernismo não é um movimento cultural homogêneo. Ele é fruto, de acordo com Jameson (2006), de uma terceira fase do capitalismo que se inicia nos centros e só depois se expande para as periferias. É um termo muito polêmico e carregado ideologicamente, pressupondo uma gama de teorias que não condizem com a finalidade desta pesquisa. Em virtude disso, optou-se, então, pelo termo “contemporâneo”, por se entender que a palavra parece mais oportuna e adequada para o que aqui se propõe.

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realidade” (LAMAS, 2002, p. 50), a partir de suas relações estabelecidas com o

contexto sócio-histórico que a circunda, passa à representação dessas identidades

fragmentárias, como se verifica especificamente nas configurações do duplo no

contexto atual. No Brasil, especificamente, o sujeito fragmentado passa a ser alvo de

representação literária, principalmente a partir do Modernismo, e assume maior

intensidade na literatura contemporânea.

Por estarem intrinsecamente relacionadas à problemática do eu, as

representações do duplo na literatura seguem essa mesma tendência, pois se

inserem nesse debate maior sobre a construção das identidades ao longo da

história. Embora tenha ganhado proeminência na atualidade, o questionamento

“quem sou eu?” é antigo e inscreve-se, de formas variadas, na tradição de diferentes

sociedades. O mito do duplo, enquanto figura arcaica (cf. BRAVO, 1998), é

representativo dessa disseminação espaço-temporal das lutas travadas pelo eu na

angustiante, mas necessária, busca da afirmação de uma unidade.

No entanto, vale destacar que a temática do duplo não é exclusiva da

literatura. Ao contrário, suas representações estão presentes em várias mitologias,

como a grega, na qual são emblemáticos os mitos de Narciso e de Hermafrodito; na

filosofia, principalmente em Platão e em toda a tradição que é tributária do

platonismo (cf. ROSSET, 2008); na religião, especificamente a cristã, na qual o ato

cosmogônico da criação é permeado pelo duplo. A literatura, em relação às demais

formas de discurso, é considerada um campo privilegiado em que a mitologia de

modo geral, e particularmente o mito do duplo, são, numa transmutação alquímica,

constantemente retomados e (re)escritos, através de uma rede intertextual

indestrinçável. Assim, o mito do duplo, ao longo da história da literária, assumiu

diferentes representações, consoante o contexto de produção, embora conserve em

sua essência o símbolo da busca da identidade através da relação do eu com o

outro.

Desse modo, qualquer consideração do duplo nas representações literárias

modernas deve necessariamente observar as nuances assumidas por esse mito ao

longo da tradição, já que a ideia de dualidade é antiga e sua expressão na mitologia

abrange uma variedade de narrativas. Portanto, faz-se necessário considerar a

relação dialética entre literatura e mito, estabelecida aqui pela presença do mito do

duplo como motivo literário. Essa relação é defendida por vários teóricos, dentre os

quais vale destacar a valorosa contribuição de Mielietinski (1987, p. 329), que, em

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afirmação categórica, declara: “A literatura está geneticamente relacionada com a

mitologia através do folclore, e particularmente a literatura narrativa […] que se liga à

mitologia via conto maravilhoso e epos heroico”. O termo “geneticamente”

estabelece uma relação primordial e essencial entre mito e literatura, de modo que

esta se mostra inseparável e dependente daquele. No entanto, o status dessa

relação foi mudando ao longo dos tempos, não havendo mais, no mitologismo do

século XX, correspondência direta com os mitos antigos: “[…] ao serem usados os

mitos tradicionais, seu próprio sentido modifica-se acentuadamente, sendo

frequentemente substituído por um diametralmente oposto” (MIELIETINSKI, 1987, p.

441). Dessa forma, os mitos antigos são ressignificados, ou seja, assumem uma

representação moderna para se adequarem, de certo modo, às exigências da

sociedade atual. O discurso mítico continua imbricado indissoluvelmente no literário,

só que assumindo novas facetas e significados. Portanto, é necessário situar

qualquer análise das representações do tema da dualidade dentro do conjunto

dessa tradição, ressaltando os diálogos e as relações intertextuais, de modo a

compreender as apropriações metafóricas do mito do duplo na modernidade.

Embora esteja presente nas representações literárias desde a antiguidade, a

temática do duplo alcança maior destaque na literatura romântica a partir do final do

século XVIII, sendo reatualizada e ganhando novos contornos na

contemporaneidade (cf. LAMAS, 2002). No contexto literário brasileiro, a

problemática surge na literatura de Álvares de Azevedo e de Machado de Assis, mas

apresenta-se com maior força “[…] sobretudo na segunda metade do século XX […]

em contos fantásticos, na obra de Murilo Rubião e Lygia Fagundes Telles” (LAMAS,

2002, p. 15). No contexto moderno, em que as concepções de sujeito e de

subjetividade são significativas, o mito do duplo, mais uma vez, demonstra sua

fertilidade e seu poder de adaptação, configurando-se como um motivo literário

através do qual são representadas as batalhas do eu pela busca da identidade,

emblematizando a consciência da natureza fragmentada e dual do sujeito. Essa

recorrência ao mito do duplo na modernidade deve-se muito ao fato de que, nesse

contexto, a ilusão da personalidade una do Renascimento não encontra mais

ressonância no cenário atual. O sujeito moderno é cônscio de sua duplicidade, razão

pela qual as produções literárias das últimas décadas do século XX apresentam

nítida recorrência à temática do duplo.

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Assim, nota-se que as representações da dualidade aparecem, no âmbito da

literatura contemporânea brasileira, como uma questão que tem conquistado espaço

e proeminência. Desse modo, defende-se a hipótese de que uma análise crítica da

problemática do duplo nos contos de Lygia Fagundes Telles e de Ignácio de Loyola

Brandão permite observar facetas dessa nova perspectiva de identidade projetada

na sociedade atual – sobretudo verificar traços característicos da representação

literária – e, num caminho inverso, possivelmente refletir sobre a construção de

identidades nessa sociedade. Assim, considerando o duplo como uma das vertentes

pela qual a identidade é representada na literatura, pretende-se investigar, neste

trabalho, as configurações que tal mito assume na literatura contemporânea

brasileira, especificamente na contística de Lygia Fagundes Telles e de Ignácio de

Loyola Brandão, tomando como foco os seguintes objetivos específicos: (1) verificar

traços do duplo em três contos de Lygia Fagundes Telles e dois contos de Ignácio

de Loyola Brandão; (2) demonstrar de que modo as representações do tema da

dualidade humana em contos selecionados podem ser consideradas como

atualizações ou representações modernas do mito do duplo na ficção dos referidos

escritores; (3) analisar as especificidades e também as similaridades nas

representações do tema do desdobramento do eu nos textos selecionados, através

de uma leitura comparativa dos contos; (4) observar nos contos escolhidos o duplo

como manifestação do insólito à luz do fantástico.

A pesquisa ora apresentada é de base explicativa e interpretativa. Dessa

forma, para o estudo do duplo nos contos, utilizar-se-ão, nas análises, a explicação

e a interpretação enquanto formas de buscar compreender as manifestações do

fenômeno em questão em textos literários selecionados. É uma investigação de

caráter bibliográfico, que se enquadra no método de abordagem dedutivo, partindo

de conhecimentos já construídos sobre a temática do duplo, os quais permitirão

realizar considerações e chegar a conclusões sobre a natureza do duplo

representado nos textos do corpus. Serão utilizados os procedimentos analítico e

comparativo, visto que se objetiva não somente fazer considerações sobre a

natureza da representação do duplo nos contos selecionados, como também

estabelecer paralelos, observando possíveis similaridades e diferenças entre as

configurações do desdobramento do eu nos textos de Lygia Fagundes Telles e de

Ignácio de Loyola Brandão.

14

Desse modo, constituem o corpus da presente pesquisa 5 (cinco) contos: 3

(três) de Lygia Fagundes Telles e 2 (dois) de Ignácio de Loyola Brandão. Os contos

de Lygia são: “O encontro” (OE)2, publicado no livro Histórias do desencontro

(1958); “A caçada” (AC), publicado no livro O jardim selvagem (1974); e “A mão no

ombro” (MO), publicado no livro Seminário dos Ratos (2009). De Brandão, foram

selecionados os contos “A mão perdida na caixa do correio” (MPCC) e “As cores da

bolinha da morte” (CBM), ambos publicados no livro O homem que odiava

segunda-feira: as aventuras possíveis (2000).

Na construção da análise, serão adotados os seguintes procedimentos: (1)

observação das especificidades da representação do duplo nos contos de cada um

dos autores; (2) construção de paralelos entre os dois autores quanto à temática em

estudo, de modo a ressaltar as similaridades e as diferenças; (3) demonstração de

que modo o fazer artístico, no que concerne à representação do tema da dualidade

humana nos contos selecionados, atualiza o mito do duplo na ficção dos referidos

escritores; (4) estabelecimento de relações, no âmbito dos contos que compõem o

corpus, entre a temática do duplo e o fantástico.

Neste estudo, optou-se por trabalhar com contos de Lygia Fagundes Telles e

Ignácio de Loyola Brandão por dois motivos principais: em primeiro lugar, ambos são

autores contemporâneos, com uma vasta produção literária, reconhecidos e

representativos da literatura brasileira atual; em segundo lugar, a temática do duplo

ocupa espaço privilegiado não somente nas narrativas selecionadas como corpus da

pesquisa, mas na produção literária desses escritores. Dessa forma, torna-se

pertinente, além de analisar a configuração do duplo nos contos de cada autor, fazer

também uma análise comparativa, procurando estabelecer possíveis semelhanças e

diferenças entre eles quanto à representação do referido tema.

Os contos de Lygia Fagundes Telles seguem uma veia subjetivista e

introspectiva, característica que se manifesta na literatura brasileira, principalmente

a partir da década de 60 do século XX. Em seus contos, a ênfase recai sobre o

plano psicológico das personagens: a autora procura desnudar a vida interior desses

seres da ficção, explorando seus conflitos interiores, suas angústias e medos. Nos

contos de Lygia, o psicológico aparece atrelado, muitas vezes, ao fantástico,

conforme se verificará nos contos escolhidos para o corpus desta pesquisa,

2 Entre parênteses constam as convenções simbólicas utilizadas para representar os contos nas

citações ao longo do texto.

15

englobando temas que vão desde “[…] temas corriqueiros de história simples,

abarcando também situações complexas e estranhas, até desembocar no

sobrenatural e no fantástico, rompendo com os limites racionais do humano”

(LAMAS, 2002, p. 112).

A literatura de Ignácio de Loyola Brandão apresenta algumas semelhanças

com a de Telles, especificamente na representação do tema do duplo em contos de

natureza fantástica. Conforme afirma Couto (2000), há na literatura de Brandão uma

veia de inspiração kafkiana que metaforiza o absurdo da realidade, retratando em

suas obras a solidão do ser humano em meio ao mundo contemporâneo – uma

constante em suas obras –, através de personagens criadas “[…] à semelhança dos

seres humanos, de qualquer ser humano. Ninguém em especial […]” (COUTO,

2000, p. 105). Além da temática do duplo, a ficção de Brandão e, especificamente,

os contos que constituem o corpus dessa pesquisa são marcados pelo discurso

fantástico. As personagens se veem diante de situações insólitas, que geram uma

ruptura no cotidiano, criando, para o leitor, a sensação de estar diante de histórias

absurdas, surrealistas (cf. COUTO, 2002).

Em relação ao gênero conto, em particular, decidiu-se por trabalhar com essa

forma de narrativa porque, conforme declara Lamas (2002), o duplo ganha destaque

na representação literária brasileira em contos fantásticos – os contos que

constituem o corpus apresentam inclinação para o fantástico. Além disso, outro fator

que norteou a escolha das narrativas foi a razão de elas apresentarem variedade e

riqueza temática que incitam a investigação pretendida.

Portanto, nos cinco contos eleitos dos autores em pauta pretende-se observar

o estatuto do duplo, o outro com o qual a personagem estabelece relações múltiplas,

que podem ir da identificação total com ele até a oposição. Propõe-se, ainda,

partindo da afirmação de Brunel (1998, p. 17) de que “[…] a literatura é o verdadeiro

conservatório dos mitos”, estabelecer, nas análises, a ligação, há muito tempo

reconhecida pela Teoria da Literatura, entre literatura e mito, ao mostrar como o mito

do duplo é retomado e atualizado nas representações literárias da modernidade. A

partir disso, espera-se contribuir com os estudos da crítica literária sobre esses

autores, tomando como foco a resolução dos seguintes questionamentos: (1) que

facetas assume a representação literária do duplo em contos de Telles e Brandão,

ambos escritores representativos do cenário literário brasileiro contemporâneo?; (2)

de que modo o fazer artístico, no que concerne à representação do tema da

16

dualidade humana nos contos selecionados, atualiza o mito do duplo na ficção dos

referidos escritores?; (3) qual(is) a(s) especificidade(s) nas representações do duplo

nos cinco contos, bem como a(s) similaridade(s) existente(s) entre eles?; (4) que

relação existe nos contos entre a temática do duplo e do fantástico nas narrativas

dos contistas em destaque?

O presente trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro, o foco é

o mito do duplo em seus aspectos gerais: suas origens míticas, seu desdobramento

em outros discursos, enfatizando principalmente sua representação na literatura, da

antiguidade aos dias atuais. Assim, discute-se o conceito de mito e sua influência na

sociedade, bem como sua imbricação com a literatura, a fim de justificar a relação

intertextual entre esses dois domínios discursivos, particularmente no tocante ao

mito do duplo. Em seguida, apresentam-se algumas conceituações do duplo,

apontando não uma definição última, mas determinadas constantes que permitam a

identificação desse fenômeno. A partir disso, passa-se à apresentação desse tema

em variados domínios para demonstrar sua recorrência em diferentes produções

discursivas, como a mitologia, a filosofia, a religião e principalmente a literatura,

enfatizando, em relação a este último domínio, as configurações assumidas pelo

tema em épocas diversas. Por fim, investigam-se possíveis relações entre o

fantástico na literatura e o tema da dualidade.

O segundo capítulo apresenta, de início, uma pequena introdução sobre o

gênero conto – sua origem, evolução e formas assumidas na modernidade – e,

antecedendo às análises, algumas considerações sobre a contística dos escritores,

destacando, principalmente, o modo como o tema do duplo inscreve-se na ficção de

cada um deles. Nas análises dos contos de Telles e Brandão, é observado de forma

mais atenta como o duplo se inscreve em cada narrativa.

No terceiro capítulo, é desenvolvido um cotejo entre a produção literária de

Lygia Fagundes Telles e de Ignácio de Loyola Brandão. O propósito do estudo

comparativo da ficção dos dois contistas é observar pontos convergentes e/ou

divergentes na configuração do duplo. A comparação será realizada em dois graus

distintos: primeiro, considerando o universo de cada autor, de modo a compreender

como o duplo se inscreve nos contos selecionados; segundo, comparando as

configurações assumidas pelo duplo em Telles e Brandão, de modo a identificar um

possível diálogo entre textos.

17

Sendo assim, ao abordar o tema do duplo em contos de Lygia Fagundes

Telles e Ignácio de Loyola Brandão, pretende-se que este trabalho possa contribuir

com outros desenvolvidos na área, além de ampliar as discussões sobre os estudos

críticos de obras dos dois escritores, de modo a avançar na compreensão dos

procedimentos formais e temáticos característicos da contística de ambos. Além

disso, considera-se a produção desses autores como campo fértil para o

desenvolvimento de variados estudos no âmbito da literatura, o que significa que

esta pesquisa se inscreve como uma entre tantas possibilidades de abordagem e

não objetiva realizar um fechamento da temática, mas, sobretudo, somar, num

diálogo intertextual com outras produções teórico-críticas.

18

CAPÍTULO I – O MITO DO DUPLO: CONSIDERAÇÕES GERAIS

1.1 Confluências: o diálogo entre literatura e mito

Os seres humanos, desde os primórdios, sempre foram criadores de mitos. O

mito se inscreve de tal modo na história da humanidade, muitas vezes confundindo-

se inclusive com ela, que se torna tarefa difícil, e talvez impossível, separá-los a fim

de traçar e encontrar as origens da narrativa mítica, conforme salienta Cassirer

(1992). Essa inscrição do mito tão arraigada nos primórdios da sociedade humana é,

indubitavelmente, um indicativo poderoso de sua importância. Sobre isso afirma

Campbell (2008, p. 46) que “[…] Precisamos dela [a mitologia] como o marsupial

precisa da bolsa para superar a fase de filhote incapaz e se desenvolver […]”,

destacando, desse modo, seu valor vital para o desenvolvimento humano.

A dependência do primitivo em relação ao mito é justificada pela necessidade

humana de atribuir significado a sua existência, o que é possibilitado pela narrativa

mítica: “Uma ordem mitológica é um conjunto de imagens que dá à consciência um

significado na existência […]” (CAMPBELL, 2008, p. 34). Dessa forma, o mito

assume uma função psicológica e social importante: ele organiza interna e

externamente as atividades do sujeito, permitindo-lhe tomar conhecimento de si

mesmo e também do outro. O caos transforma-se em cosmos “[…] por meio da

palavra que nomeia os seres, atribuindo-lhes os respectivos lugares e papéis”

(AUGRAS, 2008, p. 17). Assim, o mito traz para a consciência e vivência do sujeito

aquilo que até então era desconhecido e, por conseguinte, temido, organizando a

experiência humana e permitindo o relacionamento satisfatório com a natureza que

o circunda. Desse modo, é somente através da palavra mítica, do verbo primordial,

que o ser primitivo conhece a si mesmo e ao mundo ao seu redor.

Esse fator estruturante e funcional é característico de todas as mitologias,

constituindo-se, inclusive, como uma das principais condições de sua existência.

Sendo assim, a narrativa mítica incide sobre acontecimentos e fatos considerados

significativos no contexto de cada sociedade, atuando como um elo que promove a

integração e a compreensão de fenômenos até então temidos e inexplicáveis,

porque inacessíveis ao entendimento humano. Desse modo, pode-se, mesmo diante

da grande variedade de mitos existente nas mais diversas culturas ao longo da

história, destacar algumas temáticas às quais ele se relaciona mais intimamente,

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como a morte, a criação do mundo – acontecimentos esses a que muitos estudiosos

creditam o surgimento da narrativa mítica.

Morin (Apud AUGRAS, 2008) relaciona o surgimento do mito à revelação da

condição mortal do ser, que, para lidar com essa problemática, cria narrativas que se

apresentam como uma espécie de explicação dessa condição: “Ao descobrir-se

mortal, o Homo Sapiens conscientiza a possibilidade de ser e de não ser. É

inaceitável o não ser, mas a morte afirma sua realidade. Da necessidade de

sobreviver à contradição, de morar nela, surge a palavra, o símbolo, o mito”

(AUGRAS, 2008, p. 18).

Da mesma forma que o homem, ante a problemática da morte, cria narrativas

a fim de superar a ameaça de aniquilação do ser, também procura, no que se refere

à origem e criação do mundo onde vive, uma explicação através de mitos. Esses

mitos sobre a criação do universo, ou seja, as cosmogonias, são igualmente

recorrentes nas sociedades primitivas e representam o ato primordial da criação do

universo realizado pelos deuses quando da transformação do caos em cosmos. Nas

sociedades antigas, o ato cosmogônico realizado pelos deuses é erigido como

modelo de toda criação, razão pela qual “Toda criação repete o ato cosmogônico

pré-eminente (sic), a criação do mundo” (ELIADE, 1992, p. 7).

Obviamente, a mitologia, considerada no contexto das sociedades primitivas,

não se restringe apenas às temáticas da morte e às cosmogonias. Ao contrário,

abarca todos os aspectos da vida do homem, inclusive as tarefas consideradas mais

rotineiras, e oferece modelos de comportamento nas mais variadas esferas de

atividade, como enfatiza Eliade (2007, p. 13): “[…] a principal função do mito

consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas

significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a

arte ou a sabedoria”. Essa função de modelar comportamentos, destacada aqui por

Eliade (2007), dá a dimensão da importância do mito para as sociedades primitivas.

Nesse cenário, o mito, como aponta Patai (1974), assume uma dupla função: ao

mesmo tempo em que valida e autoriza certos costumes, ritos e crenças, é ele

também o responsável pela criação deles.

Compreendido sob essa ótica, o mito não é concebido como uma “ficção”,

conforme se verifica nas sociedades modernas desmitologizadas, mas como uma

verdade inquestionável que organiza e modela a vida social. A mitologia encontra-se

tão intrinsecamente conectada à vida, que é impossível separá-las ou concebê-las

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isoladamente, de sorte que “[…] os homens aceitaram o mito sem discussão”

(PATAI, 1974, p. 19). Assim, a pergunta “o que é mito?”, colocada pela sociedade

atual – questão esta, aliás, de difícil solução –, já marca certo distanciamento do

homem em relação à mitologia, visto que reflete uma postura crítica e inquiridora

não verificada nas sociedades antigas. Considerando os riscos de qualquer

definição que tente abarcar a diversidade e a complexidade das práticas mitológicas,

Eliade (2007) apresenta uma conceituação que ele mesmo reconhece como a

“menos imperfeita”. Para ele, o mito conta uma história sagrada de seres

sobrenaturais ocorrida no tempo primordial, sendo, portanto, sempre a narrativa de

uma criação (cosmogonia). É também uma narrativa verdadeira, que realmente3

aconteceu.

Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 2007, p. 11. Grifos do autor)

Assim, é através da mitologia e dos modelos por ela oferecidos que o homem

se constitui enquanto ser e organiza suas relações com o mundo e com seu meio.

Campbell (2008), em seus estudos sobre a mitologia, apresenta quatro funções

desempenhadas pelo mito ao longo da humanidade, a saber: (1) buscar conciliar a

consciência dos indivíduos com as precondições de sua existência; (2) apresentar

uma imagem do cosmos, de modo que conserve no indivíduo uma sensação de

assombro místico; (3) preservar e validar um determinado sistema de leis

sociológicas, ou seja, o que se considera certo e errado numa determinada cultura;

(4) auxiliar o sujeito a atravessar as etapas da vida – aqui o mito funciona como

suporte psicológico.

Em seu conjunto, as práticas mitológicas de uma comunidade podem ser

consideradas como uma grande narrativa que engloba, ao mesmo tempo e de forma

interligada, diferentes áreas da atividade humana: desde práticas religiosas, normas

de conduta e convívio social até modelos de desenvolvimento psicológico. Assim

3 O próprio Eliade esclarece o que significa, dento de sua conceituação do mito, as palavras

“verdadeiro” e “realmente”: “[…] o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’, porque sempre se refere a realidade” (ELIADE, 2007, p. 12. Grifos do autor). Essa ideia é complementada pela afirmação de Patai (1974), para quem a verdade do mito não é simples tampouco factual, mas advém da crença que se tem nele.

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sendo, na narrativa mítica, coadunam-se diferentes saberes articulados por meio de

uma linguagem singular, e, como um caleidoscópio, o mito produz uma profusão de

luzes em sentidos diversos. Como os raios de luz projetados pelo caleidoscópio, o

mito, devido a sua dinamicidade e complexidade, também não permite uma visão

totalizante e homogeneizante, mantendo sua vitalidade a cada novo olhar. É sabido

que os mitos são narrativas orais criadas pelo homem e passadas de geração em

geração através da tradição oral. A partir dessas considerações, tornam-se

inevitáveis os seguintes questionamentos: quem é o arquiteto dessa complexa obra

de estrutura caleidoscópica chamada mito? De qual(is) material(is) se serve esse

astuto arquiteto para construir seu engenhoso projeto?

Nesse terreno de estrutura labiríntica e cheia de veredas, que não permite ao

pesquisador uma caminhada fácil, as perguntas parecem proliferar mais

rapidamente e com maior força do que as repostas que se têm para elas. Contudo,

uma reposta a essas questões está mais próxima do homem e intimamente

relacionada a ele do que se possa imaginar.

Armstrong (2005) percebe no homem uma capacidade singular que o

diferencia das demais espécies, sendo este o ponto de partida para uma resposta ao

primeiro questionamento acima apresentado. Segundo essa autora, o homem,

desde tempos remotos, diferencia-se dos demais animais pela capacidade de

formular pensamentos que transcendem sua experiência cotidiana. Desse modo,

ele, via pensamento, consegue momentaneamente se desvencilhar de sua

existência empírica imediata (o seu presente) e projetar-se numa outra estrutura

temporal (passado ou futuro), distanciamento esse que possibilita reflexão,

compreensão e avaliação de sua experiência concreta. De acordo com Armstrong

(2005), é na busca de sentido para sua existência, possibilitada pelo pensamento

transcendente, que está o impulso criador dos mitos. Para tanto, o homem faz uso

de seu imaginário, definido por Armstrong (2005, p. 8) nos seguintes termos:

“Possuímos imaginação, uma faculdade que nos permite pensar a respeito de coisas

que não se situam no presente imediato e que, quando as concebemos, não tem

existência objetiva. A imaginação é a faculdade que produz a religião e a mitologia”.

Uma vez situado o campo do imaginário como a faculdade humana

responsável pela criação dos mitos, cabe agora decifrar quais são os elementos

utilizados por ele nessa engenhosa construção. Em primeiro lugar, cabe destacar,

como aponta Cassirer (1992), que a mitologia está duplamente relacionada à

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linguagem: tanto em sua construção, já que o pensamento constitui-se através da

linguagem; quanto em sua expressão, ou seja, à forma narrativa que o mito assume

exteriormente e que permite sua reprodução e transmissão de geração a geração.

Além disso, Cassirer (1992, p. 28) aponta uma analogia entre a consciência mítica e

a linguística:

Do mesmo modo que a consciência linguística, a consciência mítica só diferencia configurações isoladas individuais à medida que vai colocando progressivamente essas diferenças, à medida que as vai “segregando” da unidade indiferenciada de uma percepção originária.

Nessa afirmação, Cassirer (1992) coloca a diferença como o processo que

permite, tanto na linguagem quanto na mitologia, a segregação de um todo

indiferenciado em unidades individuais. Aqui, pode-se supor uma possível influência

do pensamento de Saussure (1975), para quem cada termo do sistema linguístico só

adquire valor (tanto conceptual quanto fonologicamente) na medida em que se

relaciona e se diferencia dos demais, resultando em sua afirmação bastante

conhecida: “[…] na língua só existem diferenças […]” (SAUSSURE, 1975, p. 139).

Adaptando essas ideias ao pensamento mítico, a luz existe como tal em oposição à

sombra, o dia em oposição à noite, a vida em oposição à morte etc.

Reconhecida a necessária e importante relação da linguagem com as

narrativas míticas, em que medida estas diferem da linguagem usada na

comunicação cotidiana? Para Campbell (2008, p. 73), os mitos tiram sua força e

energia dos símbolos: “As mitologias fazem sua mágica por meio de símbolos. O

símbolo atua como um automático que libera energia e a canaliza”. Essa afirmação

é um passo importante na direção de uma maior compreensão do funcionamento do

mito. Contudo, determina agora a necessidade de entender como esses símbolos

são criados e por que são tão significativos para o homem, a ponto de inscreverem-

se na base de todos os sistemas mitológicos. Para compreender a gênese do

símbolo na psique humana, faz-se necessário recorrer à Jung (2000),

especificamente aos conceitos de inconsciente coletivo4, arquétipo e símbolo por ele

formulados.

Jung (2000) estabelece uma distinção entre dois níveis do inconsciente: o

inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. Segundo esse autor, no inconsciente

4A palavra “coletivo” não tem aqui significado metafísico. Refere-se a aspectos comuns aos seres

humanos (cf. CAMPBELL, 2008).

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pessoal residem os conteúdos que, em algum momento, já foram conscientes, mas

que, por alguma razão, desapareceram da mente consciente e foram, portanto,

reprimidos e/ou esquecidos. Por outro lado, os conteúdos do inconsciente coletivo

nunca estiveram presentes na consciência dos sujeitos, não sendo, portando, uma

aquisição individual, mas o resultado de uma “herança” comum a todos os seres

humanos. Para cada uma dessas duas camadas do inconsciente, Jung (2000)

relaciona um tipo de conteúdo psíquico constituinte diferente: o inconsciente pessoal

é formado em grande parte por complexos, ao passo que o inconsciente coletivo

essencialmente por arquétipos. De acordo com Jung (2000, p. 53), “O conceito de

arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo,

indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo

tempo e em todo lugar” (Grifos do autor). Desse modo, os arquétipos podem ser

entendidos como estruturas fixas, comuns a todos os seres humanos

independentemente do tempo ou lugar. Contudo, como reconhece Jacobi (1995), o

arquétipo, acostumado à obscuridade e à profundeza do inconsciente coletivo, é um

conceito difícil de precisar, visto que não é possível ter acesso a ele de modo direto,

mas apenas indiretamente, por meio de sua manifestação na psique. A essa

manifestação do conteúdo arquetípico na consciência, Jacobi (1995, p. 72), baseado

em Jung, nomeia de símbolo: “Quando o arquétipo aparece no aqui e agora do

espaço e do tempo, podendo, de algum modo, ser percebido pelo consciente,

falamos então de um símbolo” (Grifos do autor). A etimologia da palavra “símbolo” já

revela a dualidade implicada no próprio nome: “[…] algo que, por trás do sentido

objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo” (JACOBI, 1995, p. 75).

Enquanto roupagem de um conteúdo arquetípico, o símbolo, contrariamente ao

signo, promove uma ruptura e uma descontinuidade, adquirindo significado através

da mediação tensa que estabelece entre consciente e inconsciente, visível e

invisível (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). Desse modo, o símbolo já

inscreve a ambivalência em seu próprio processo de constituição e instaura um jogo

indecidível entre presença e ausência, luz e sombra, ocultamento e revelação, real e

irreal, concreto e abstrato. Em razão disso, Jacobi (1995, p. 84) afirma que o

símbolo é, na compreensão de Jung, “[…] um fator psíquico que não é causalmente

solucionável nem compreensível e tampouco pré-determinável, mas sempre tem

sentido múltiplo e bipolar”.

Essa conceituação baseada na psicologia jungiana da universalidade das

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estruturas e conteúdos arquetípicos dá suporte a teorias que afirmam existirem

semelhanças entre as diferentes mitologias situadas em esferas temporais e

espaciais distintas. Curiosamente, Lévi-Strauss (2003, p. 239), em seus estudos

sobre os mitos desenvolvidos no campo da antropologia estrutural, chega

praticamente à mesma conclusão: “Os mitos se reproduzem com os mesmos

caracteres e segundo os mesmos detalhes, nas diversas regiões do mundo”. Desse

modo, ambas as teorias, embora partindo de princípios distintos e percorrendo

caminhos diferentes, na verdade se complementam em vez de apresentarem

resultados divergentes, ao apontarem para uma relativa universalidade dos mitos no

tocante a temas e estruturas constituintes.

Uma vez expostas as principais características e aspectos constituintes dos

mitos, partir-se-á, agora, para uma análise diacrônica, buscando entender como o

homem se relacionou com a mitologia ao longo dos séculos e quais fatores

apresentaram-se como determinantes nessa relação. Como já foi exposto aqui – ao

discorrer sobre a funcionalidade do mito no contexto das sociedades primitivas –,

este era concebido como uma espécie de Carta Magna que, tomada como modelo

pela sociedade, determinava e guiava o modo de comportamento nas mais variadas

esferas da atividade humana. O mito era, portanto, indissociável da sociedade: por

um lado, a mitologia fundava o mundo através das cosmogonias; por outro,

mantinha esse mundo ou cosmos em ordem, protegido da ameaça de retorno ao

caos, pela repetição dos atos primordiais relatados nas narrativas míticas. Como

afirma Eliade (2007, p. 16. Grifos do autor.): “Se o mundo existe, se o homem existe,

é porque os Entes Sobrenaturais desenvolveram uma atitude criadora no ‘princípio’”.

Desse modo, o mito é, indiscutivelmente, um dos pilares centrais das sociedades

primitivas, talvez até o mais importante, pois ele atribui sentido ao mundo e à vida do

homem (“cria-os” no âmbito da consciência dos sujeitos) e, ao mesmo tempo,

mantém a organização social, por meio dos modelos de ações e comportamentos

“corretos” e “verdadeiros” que sugere. Como se vê, nas sociedades primitivas há

uma harmonia entre homem e natureza, sendo o mito o elemento estruturador.

Contudo, Eliade (2007) aponta uma diferença substancial entre o homem

arcaico e o moderno. Enquanto o primeiro se considera o resultado dos eventos

míticos, o segundo introduz uma ruptura nessa relação, ao conceber-se como o

produto da História. A mudança de orientação do homem moderno é,

indubitavelmente, reflexo das transformações ocorridas na forma de o sujeito

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compreender e se relacionar com o mundo. Essa nova civilização surge, segundo

Armstrong (2005), no século XVI, na Europa, de onde se espalha para o restante do

mundo entre os séculos XIX e XX.

Severiano e Estramiana (2006) posicionam-se de forma parecida, ao

afirmarem que a modernidade surge com o Renascimento no século XV, e apontam

também o desenvolvimento do capitalismo como um fator determinante para o seu

estabelecimento e evolução. Essa nova forma de organização social, segundo esses

autores, marcada “[…] por uma descontinuidade temporal e uma ruptura no que diz

respeito à tradição” (SEVERIANO; ESTRAMIANA, 2006, p. 23), apresenta como

características principais: (1) desintegração do conhecimento mítico, religioso,

tradicional em nome da ciência; (2) separação entre homem e natureza, passando

esta última a ser objeto de estudos orientados pela razão; (3) intelectualização,

racionalização e instrumentalização; (4) método científico como meio pelo qual o

homem exerce seu poder; (5) ênfase do conhecimento científico sobre os meios, o

quantitativo, o formal e o mensurável em detrimento do valor, da perfeição, do belo,

do qualitativo e da finalidade; (6) autonomia da ciência e outras áreas em relação à

religião; (7) advento do estado moderno, administrado segundo os princípios da

racionalidade; (8) instituição de fatores como universalidade, individualidade e

racionalidade (cf. SEVERIANO; ESTRAMIANA, 2006).

A partir dessas considerações sobre a sociedade moderna, vê-se que uma

das bases centrais sobre a qual ela se apoia é o conceito de razão.

Indiscutivelmente, a modernidade é filha do logos, como destaca Armstrong (2005):

a racionalidade está intrínseca e organicamente ligada à vida moderna, fazendo-se

presente, mesmo que de forma imperceptível ou disfarçada, nas atividades mais

cotidianas. Uma vez compreendida a estrutura que sustenta essa sociedade,

percebe-se o motivo pelo qual ela tem imposto tão brutais ataques à mitologia e a

outras formas de conhecimento análogas: trata-se do instinto de autoconservação,

tão presente na vida animal, de eliminar e/ou anular o inimigo que representa

ameaça, a fim de garantir a própria sobrevivência. Adorno e Horkheimer (2006, p.

77) consideram que, na base da oposição entre a sociedade moderna e a mitologia,

encontra-se, respectivamente, o embate entre o racional e o irracional: “O princípio

segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é irracional

fundamenta a verdadeira oposição entre a mitologia e o esclarecimento”. Desse

modo, como um animal acuado e amedrontado, a sociedade moderna consegue sua

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afirmação atacando e destruindo aquilo que se lhe contrapõe e que, potencialmente,

pode vir a retomar o lugar usurpado. Enquanto mecanismo de controle e

manutenção de uma ordem, a razão e o conhecimento científico, aliados e alienados

de si mesmos, cumprem perfeitamente o papel a eles delegado:

A ciência ela própria não tem consciência de si, ela é um instrumento, enquanto o esclarecimento é a filosofia que identifica a verdade ao sistema científico. […] Com a confirmação do sistema científico como figura da verdade […] o pensamento sela sua própria nulidade, pois a ciência é um exercício técnico, tão afastado de uma reflexão sobre seus próprios fins como o são as outras formas de trabalho sob a pressão do sistema. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 74)

Assim sendo, o esclarecimento, de acordo com esses autores acima

mencionados, elimina a autoconsciência e o pensamento reflexivo sobre si,

resultando em uma prática mecânica que, através de um sistema de conceitos

previamente formulados, anula a diversidade da práxis, ao submetê-la a esse

sistema fechado e sempre o mesmo. Nesse contexto, é também abolida a diferença,

uma vez que configura uma ameaça à uniformidade e à totalidade do sistema

estabelecido.

Enquanto, tradicionalmente, o advento da razão e sua dominância nos

sistemas de pensamento situam-se principalmente a partir do Iluminismo, Adorno e

Horkheimer (2006, p. 48) são audaciosos e recuam bem mais no tempo para

apresentar o início do embate entre mitologia e esclarecimento (razão): “De fato, as

linhas da razão, da liberdade, da civilidade burguesa se estendem

incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que ditam o

conceito burguês a partir tão somente do fim do feudalismo medieval”. Para

comprovar essa afirmação, os autores citam como exemplo o texto homérico.

Embora reconheçam que na epopeia de Homero os mitos se fazem presentes nas

diversas camadas do texto, Adorno e Horkheimer (2006, p. 49) afirmam que “[…] o

seu relato [dos mitos], a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo a

descrição do trajeto de fuga que o sujeito empreende diante das potências míticas”.

Assim, ainda de acordo com esses estudiosos, a oposição entre mito e

esclarecimento estaria expressa na narrativa pela oposição entre um ego,

exemplificado pela personagem central, Ulisses, e a potência, representada pela

natureza. Assim, as inúmeras peripécias do destino às quais a personagem

sobrevive no caminho de Troia a Ítaca expressam, simbolicamente, um percurso

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realizado por um eu fisicamente fraco. Para vencer os inúmeros obstáculos que se

colocam no retorno para casa, a astúcia, produto de uma atitude esclarecida e

racional, apresenta-se para Ulisses como a mais importante habilidade. No episódio

das sereias, por exemplo, essa personagem usa o estratagema de amarrar-se ao

mastro da embarcação, enquanto seus companheiros tapam os ouvidos. Desse

modo, consegue entregar-se ao canto das sereias sem ser seduzido por elas, pois

está preso ao mastro e seus suplícios são inaudíveis pelos seus seguidores. Mesmo

sem subestimar a superioridade das sereias, representantes aqui da natureza,

Ulisses consegue, com sua astúcia, romper a norma, ao ser o único humano a ouvir

o canto das sereias sem que isso resulte em sua entrega a elas e à morte. Outro

episódio representativo da astúcia de Ulisses é quando, para fugir de Polifemo, nega

seu próprio eu, através de um jogo de palavras intencionalmente criado com seu

nome em grego, que mantém relação homófona com a palavra também grega que

significa ninguém. Essa passagem exemplifica magnificamente uma das principais

consequências da modernidade: o eu coisificado e condicionado pelas normas

sociais. Assim, Adorno e Horkheimer (2006) demonstram como a epopeia homérica,

considerada um verdadeiro depositário dos mitos e o texto fundante de toda uma

tradição literária ocidental, já está, ela própria, iluminada pelo pensamento

esclarecido.

Contudo, a razão, mesmo considerada um dos principais pilares

estruturadores da sociedade moderna, não empreende esse trabalho sozinha. Para

tanto, encontra um importante aliado no sistema capitalista, formando um casamento

perfeito cujos efeitos se mostram na profunda transformação da sociedade realizada

na modernidade, quando comparada às organizações antigas. O capitalismo,

sistema político-econômico que se tornou hegemônico na sociedade moderna,

contribuiu profundamente para a organização da vida, interferindo nas relações entre

os sujeitos e destes com o mundo. A máquina, símbolo maior desse modelo

econômico, estabelece a tecnicização dos meios de produção e cria uma complexa

rede produtiva para atender às necessidades de consumo instituídas pelo próprio

sistema. Desse modo, a base econômica da sociedade moderna gira em torno da

produção de bens e serviços que visam mais à manutenção do sistema do que a

benefícios aos indivíduos: as necessidades supridas pelos artefatos técnicos

produzidos são, elas próprias, criadas pelo sistema, num círculo vicioso. Contudo, a

atuação do capitalismo não só influencia a esfera material, da produção de bens de

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consumo, como também determina formas e padrões de vida social. Como

destacam Adorno e Horkheimer (2006, p. 110): “A produção capitalista os mantém

tão bem presos [os consumidores] em corpo e alma que eles sucumbem sem

resistência ao que lhes é oferecido”. Para falar sobre a influência do capitalismo, o

que inclui não apenas o plano material, mas também o ideológico, os autores acima

citados cunham a expressão Indústria cultural, que abarca essas duas esferas. De

acordo com Zapparoli (2005, p. 48), “Indústria Cultural traz consigo todos os

elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel

especifico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido

a todo o sistema” (Grifos do autor). Dessa forma, a indústria cultural poderia ser

comparada a uma megaestrutura de nível global que abarca diversos setores da

atividade humana, moldando a sociedade e, consequentemente, o homem. Nesse

contexto social, a individualidade do sujeito não é mais do que mera ficção. Segundo

Adorno e Horkheimer (2006, p. 120), “A indústria cultural realizou maldosamente o

homem como ser genérico. Cada um é tão somente aquilo mediante o que pode

substituir todos os outros […]”. Portanto, ressaltam-se aqui a descartabilidade e a

substitutibilidade como características do sujeito imerso nessa cultura moderna que

massifica e elimina as diferenças: do sujeito, nada mais resta do que uma

pseudoindividualidade forjada pela poderosa indústria cultural.

O nascimento dessa sociedade marca o declínio da mitologia: sob a ótica e o

julgo do conhecimento racional, que assume a preponderância entre todas as

demais formas de pensamento, a mitologia passa a ser considerada como uma

“história inventada”, uma “ficção”, uma “mentira”, por não ser um conhecimento

verificável e validado pelas rigorosas técnicas científicas que determinam a

veracidade ou não de um fato, fenômeno ou acontecimento. A sociedade moderna

relega o mito ao esquecimento, banhada que é pelas águas “esclarecidas” da razão,

o Letes dessa humanidade desmitologizada. A morte de Deus proclamada pela

filosofia de Nietzsche torna-se o símbolo da descrença na mitologia como um todo.

Contudo, ao destronarem-se os mitos antigos, colocam-se em seu lugar

elementos da cultura moderna para ocupar, ainda que deficientemente, o vazio

deixado na existência do homem. Como atesta Armstrong (2005, p. 113-114):

Ainda ansiamos por “ir além” de nossas circunstâncias imediatas e entrar num “tempo completo”, uma existência mais intensa, satisfatória. Tentamos entrar nessa dimensão por meio da arte, de música como o rock, das

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drogas, ou aceitar a perspectiva “maior do que a vida” de um filme. Ainda buscamos os heróis. Elvis Presley e a princesa Diana foram ambos transformados em seres míticos instantâneos, até mesmo em objetos de culto religioso.

Como se vê, a sociedade moderna fornece outros elementos para suprir a

função antes ocupada pela mitologia tradicional. Os heróis modernos não são os

seres sobrenaturais de uma era primordial contidos nos mitos, mas os cientistas e

inventores, que promovem descobertas a fim de melhorar a condição de vida

humana; as grandes estrelas da mídia, fabricadas pela indústria cultural, como

enfatizam oportunamente Adorno e Horkheimer (2006). Contudo, esses heróis

modernos carecem da autenticidade, diferentemente do que se observa no mito.

Enquanto os primeiros são ídolos que despertam apenas a admiração e a

contemplação passiva, os segundos buscam estimular a heroicidade que existe

dentro do ser humano, guiando o sujeito à participação através da imitação do

modelo oferecido; enquanto os primeiros visam apenas a uma idolatria, cuja

finalidade é, em última instância, a submissão do homem a padrões sociais e a

perpetuação do sistema que o fabrica, os segundos promovem e suscitam o

desenvolvimento de qualidades positivas no homem.

Além disso, como destaca Armstrong (2005), muitos dos mitos criados pela

sociedade moderna, em vez de conduzir o homem a uma experiência mais

satisfatória de sua existência e desenvolvê-lo espiritualmente como faziam as

antigas mitologias, guiam-no rumo ao caminho inverso da destrutividade e da

barbárie. Nas palavras de Armstrong (2005, p. 114):

Somos criaturas criadoras de mitos, e durante o século XX vimos alguns mitos modernos extremamente destrutivos, que conduziram a massacres e genocídio. […] Eles não foram contemplados com o espírito da compaixão, do respeito pelo caráter sagrado de todas as formas de vida, ou com o que Confúcio chamava de “propensão”. Essas mitologias destrutivas têm sido estreitas, raciais, étnicas, paroquiais e egoístas, na tentativa de exaltar um ser pela demonização do outro (Grifos da autora).

Desse modo, a racionalidade moderna, que rompe com a tradição mitológica,

acaba ela própria criando mitos modernos que reconduzem o homem à barbárie,

como se pode observar na ideologia nazista e no fundamentalismo religioso. Adorno

e Horkheimer (2006, p. 23) percebem com perícia essa dialética intrínseca entre a

mitologia e o conhecimento esclarecido, reconhecendo ambos, cada um em seu

contexto e resguardadas suas devidas proporções, como formas de dominação e

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explicação do mundo: “Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o

esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a

cada passo que dá, na mitologia. Todo o conteúdo, ele o recebe dos mitos, para

destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do mito”.

Uma vez expostas algumas das características principais do mito e sua

representatividade ao longo da história da humanidade, é preciso, a partir de agora,

investigar uma possível conexão entre a mitologia e a literatura, tomando como norte

os seguintes questionamentos: há relações entre o discurso mítico e o literário? Se

há, sob quais aspectos se materializa esse diálogo?

De início, convém destacar que grande parte da tradição mítica das

sociedades primitivas chegou ao conhecimento do homem moderno graças a sua

expressão em textos literários. A Odisseia, de Homero, considerado um dos

principais textos da literatura ocidental, extrai sua força dos mitos que dão corpo ao

relato do retorno do guerreiro Ulisses a Troia. As peripécias enfrentadas pelo herói

são, em grande medida, construídas graças ao tratamento literário dado pelo escritor

ao conhecimento mitológico compartilhado pelos povos antigos e transmitidos ao

longo de gerações pela tradição oral. Adorno e Horkheimer (2006, p. 47) ligam a

gênese da epopeia, gênero ao qual pertence o texto homérico, à apropriação de

mitos: “Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao

mito: as aventuras têm origem na tradição popular”. Além do texto homérico, muitos

outros autores realizaram, dentro do âmbito literário, esse trabalho de “catalogação”

das mitologias, como o interesse de poetas pelos mitos do Oriente Próximo,

mencionado por Patai (1974).

Embora essas considerações acima apresentadas atestem a antiga ligação

entre literatura e mito, elas não são, por si só, suficientes para aclarar as indagações

anteriormente colocadas. Desse modo, para tentar responder a essas perguntas, é

pertinente destacar o posicionamento de Martinon (1977, p. 123), para quem “o mito

não é literatura, é a reinterpretação dos mitos que se torna literária […]”. Em

concordância com esse posicionamento, entende-se que o mito e a literatura,

resguardadas as semelhanças, são formas discursivas distintas. Assim,

compreende-se que, do ponto de vista da crítica literária, não interessa a análise do

mito enquanto documento histórico que apresenta costumes e tradições de uma

comunidade primitiva. Ao contrário, busca-se, nessa dialética entre literatura e mito,

explicitar alguns pontos de contato entre essas duas manifestações de linguagem,

31

de modo a apontar como o escritor, em seu fazer literário, incorpora o mito nas

obras e quais as implicações desta inscrição para a construção de sentido no texto.

O mito e a literatura, conforme já apontado anteriormente por Armstrong

(2005), são produções do imaginário humano. A partir disso, essa estudiosa

reconhece semelhanças entre mito e literatura quanto aos conteúdos e temas

abordados: “Como o artista e o romancista operam no mesmo nível da consciência

que os criadores de mitos, naturalmente recorrem ao mesmo tema” (ARMSTRONG,

2005, p. 119). De modo análogo, Jacobi (1995), partindo dos postulados jungianos,

vê na psique humana, e mais especificamente na capacidade desta de produzir

símbolos e imagens, um território fértil de onde brota tanto a produção mítica como a

literária:

Foi essa força criadora de imagens da alma humana […] essa força tornou-se, assim, a criadora do reino ilimitado dos mitos, contos, fábulas, epopeias, baladas, dramas, romances, etc.; vemos a sua atuação impressionante em todas as grandes obras atemporais da arte, que ligam o inesgotável passado arcaico ao futuro longínquo; podemos vê-la nas visões dos profetas e nas aparições e signos dos santos e dos buscadores religiosos, nas fantasias dos poetas e, não por último, no mundo noturno dos sonhos, de onde ela tira, de maneira incansável e incessante, novos símbolos do inesgotável tesouro dos arquétipos. (JACOBI, 1995, p. 74)

Desse modo, a matéria para a criação tanto das narrativas míticas quanto das

literárias tem uma origem comum: os símbolos. Estes são, em certo sentido,

representações de arquétipos pertencentes a uma esfera interpessoal inalcançável,

a saber, do inconsciente coletivo. Assim, o processo de construção do símbolo a

partir do arquétipo pode ser compreendido como uma transmutação alquímica, o

metamorfosear de uma estrutura psíquica inconsciente (o arquétipo) numa presença

viva e plurissignificativa (o símbolo). Essa concepção pode ser utilizada, em parte,

como justificativa e explicação para a atemporalidade dos discursos mítico e literário,

através da atualidade manifestada nos temas abordados.

Além da origem comum do material do qual se servem a literatura e o mito,

eles também utilizam um mesmo canal para sua reprodução/manifestação. Assim

como a literatura, o mito, segundo Barthes (2007, p. 199), materializa-se através da

linguagem humana, configurando-se como “[…] um sistema de comunicação, uma

mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é

um modo de significação, uma forma”. Ainda no âmbito formal, Sánchez (1998)

afirma haver uma simetria entre a estrutura do mito e a estrutura de textos literários.

32

Segundo ela, “A sucessão articulada de imagens e símbolos propicia, por outro lado,

o surgimento do mito, que compartilha com romances e relatos uma estrutura

narrativa comum5” (SÁNCHEZ, 1998, p. 80. Tradução nossa.), como as categorias

narrativas de tempo, espaço, personagens, entre outras.

Além dos aspectos acima mencionados, que colocam o mito e a literatura

como produções discursivas humanas originadas de uma fonte comum e

materializadas por meio de linguagem e de estruturas narrativas semelhantes, outro

elemento que age poderosamente para a construção e manutenção dessa relação

dialética é a intertextualidade. Muitos autores já se pronunciaram a esse respeito.

Samoyault (2008, p. 117) afirma que “A re-escrita do mito não é pois simplesmente

repetição de sua história; ela conta também a história de sua história, o que é

também uma função da intertextualidade: levar, para além da atualização de uma

referência, o movimento de sua continuação na memória humana”. Seguindo essa

mesma linha de raciocínio, segundo a qual a literatura incorpora em suas obras o

discurso mítico, Brunel (1998) afirma que ela é o verdadeiro conservatório dos mitos.

Mielietinski (1987) define mais enfaticamente essa dialética, ao propor uma relação

genética entre literatura e mitologia através da ficção narrativa, apontando que o

status dessa relação mudou ao longo dos tempos: de uma representação mais “fiel”

dos mitos passa-se a atualizações e ressignificações de temas mitológicos operados

pela literatura contemporânea. Por último, pode-se apresentar o posicionamento de

Martinon (1977, p. 126), para quem “O universo literário se anexa portanto o mito,

fazendo deste último o cofre de tesouros inesgotáveis visto que os temas e mesmo a

situação psicológica ou social de personagens podem ser remanejados a cada

interpretação de tal ou tal narrativa mitológica”. Nesse caso, destacam-se aqui a

plurivocidade da narrativa mítica e sua adaptabilidade a contextos sócio-históricos

variados, bem como o engenhoso trabalho do artista que lapida o mito, moldando-o

de acordo com seus desígnios.

Ademais, Armstrong (2005) ressalta ainda uma simetria entre a função do

mito e do texto literário. Segundo ela:

Se for escrito e lido com atenção e seriedade, um romance, como um mito ou uma grande obra de arte, pode servir como iniciação e nos ajuda a realizar o penoso rito de passagem de uma fase da vida, de um estado de espírito para

5 “La sucesión articulada de imágenes y símbolos propicia, por otra parte, el nacimiento del mito, que

comparte con novelas y relatos una estructuranarrativacomún”.

33

outro. Um romance, como um mito, nos ensina a ver o mundo de modo diferente; ele nos diz como olhar para dentro de nossos corações e ver nosso mundo de uma perspectiva que vai além de nosso interesse pessoal. Se os líderes religiosos profissionais não podem instruir no conhecimento mítico, nossos artistas e romancistas talvez possam ocupar esse papel sacerdotal e apresentar uma visão nova a nosso mundo perdido e avariado. (ARMSTRONG, 2005, p. 124-125)

Sendo assim, a literatura escrita e lida com atenção e rigor crítico pode

apresentar uma função análoga à desempenhada pelos mitos nas sociedades

antigas, dentre as quais vale destacar: (1) ajudar o indivíduo a superar etapas da

vida; (2) organizar suas relações com o mundo e com os outros seres; (3) promover

uma reflexão interior. E, numa sociedade moderna que decretou a morte de Deus e

da mitologia, a literatura se reveste também de uma função mítica, no sentido de

desempenhar parte do papel anteriormente relegado à mitologia: “[…] se a literatura

se serviu abundantemente dos materiais míticos, integrando-os aos diferentes

corpus (sic) literários, a própria literatura tornou-se o mito valorizado culturalmente

em nossa sociedade” (MARTINON, 1977, p. 128). Dentre as mais variadas

narrativas míticas que serviram de manancial para a literatura, a que interessa a

este trabalho diz respeito ao mito do duplo, assunto que será abordado na seção

que segue.

1.2 O mito do duplo: conceitos e aspectos teóricos

Conforme aponta Mello (2000), a duplicidade do eu é uma ideia antiga e

adquire várias concepções de acordo com o contexto em que se fala. De forma

semelhante, Bravo (1998) vê o duplo como uma figura ancestral, ressaltando, por

um lado, sua manifestação em culturas antigas e, por outro, sua permanência ao

longo de uma tradição, ao manter sua vitalidade e poder nas produções artísticas,

inclusive na Era Moderna. Além da disseminação temporal, o mito do duplo

apresenta, também, um caráter universal, no sentido de não se restringir nem a uma

cultura específica, tampouco a apenas uma área determinada, inscrevendo-se, ao

longo da história da humanidade, em diferentes produções discursivas. Essa

recorrência ao mito do duplo é também ressaltada por Mucci (2006), para quem tal

temática se encontra profundamente arraigada em diversas culturas orientais e

ocidentais.

34

Ao longo da história, o fenômeno da duplicidade adquiriu diferentes

nomenclaturas, embora todas elas, em última análise, mantenham a ideia central de

desdobramento do eu, seja este concebido objetiva ou subjetivamente. López (2006)

apresenta alguns dos termos correlatos à palavra “duplo”, como alter-ego, sósia, o

outro, segundo eu e doppelgänger, este último cunhado pelo romântico alemão Juan

Paul em sua novela Siebenkäs.

Se os termos para denominar o fenômeno da duplicidade são múltiplos, a

mesma diversidade verifica-se nas tentativas de conceituação e delimitação dele.

Essa dificuldade advém, em parte, da própria ambivalência que está na base de sua

constituição, bem como dos diferentes traços que adquiriu ao longo da tradição.

Contudo, López (2006, p. 17) identifica um ponto central para o qual diferentes

definições, em maior ou menor grau, convergem: “O proteico conceito de duplo gira

em torno das noções de dualidade e binarismo, e se constrói em função de uma luta

entre princípios, potências ou entidades opostas e complementares ao mesmo

tempo6” (Tradução nossa). Embora não se tenha aqui a pretensão de tentar atribuir

significação e delimitação definitivas sobre a natureza do duplo, faz-se necessário

abordar algumas tentativas de definição que possibilitam uma visão multilateral do

tema. Assim, as diferentes conceituações não são excludentes em si; ao contrário,

cada uma delas, ao abordar o duplo sob uma perspectiva específica, possibilita a

construção de uma melhor compreensão da dinâmica e complexidade do fenômeno

em questão.

Num primeiro momento, Bravo (1998, p. 263), baseado nos estudos de

Keppler, assim define o duplo:

[…] o duplo é ao mesmo tempo idêntico ao original e diferente – até mesmo o oposto – dele. É sempre uma figura fascinante para aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e complementar), e provoca no original reações emocionais extremas (atração/repulsa). De um e outro lado do desdobramento a relação existe numa tensão dinâmica.

No bojo dessa tentativa de conceituação do duplo, já se instaura sua natureza

dual e paradoxal, que pode ser nitidamente percebida através do jogo de palavras

antagônicas: “idêntico e diferente”, “interior e exterior”, “aqui e lá”, “oposto e

6“El proteico concepto de doble gira en torno a las nociones de dualidad y binarismo, y se construye

en función de una lucha entre principios, potencias o entidades opuestas y complementarias a la vez”. (LÓPEZ, 2006, p. 17).

35

complementar”, “atração e repulsa”. Dessa forma, vê-se que a duplicidade se

configura a partir de um paradoxo: ao mesmo tempo em que é idêntico ao original –

por ser uma cópia –, é diferente desse original duplicado. Esse resvalamento

incessante e insolúvel de semelhanças e diferenças entre o original e a cópia reflete

na indecidibilidade daquele. Sem natureza definida, o duplo é, ao mesmo tempo,

interior e exterior, oposto e complemento, está aqui e lá e, por essa razão, provoca

também sentimentos contraditórios que oscilam da atração à repulsa.

Rosset (2008) apresenta uma definição semelhante, ao comparar a

manifestação do duplo à estrutura oracular. Segundo Rosset (2008, p. 45), há uma

diferença sutil entre o acontecimento anunciado pelo oráculo e o acontecimento

efetuado: “[…] o acontecimento esperado ocorreu, mas percebemos, então, que

aquilo que era esperado não era este acontecimento aqui, mas um mesmo

acontecimento sob uma forma diferente”. Desse modo, o acontecimento que se

realiza é igual ao anunciado pelo oráculo e, ao mesmo tempo, diferente dele: a

profecia, ao se cumprir, frustra a expectativa desse mesmo acontecimento. A esse

outro acontecimento apagado pelo evento real, Rosset (2008, p. 46) relaciona a

constituição do duplo: “Nada distingue, na realidade, esse outro acontecimento do

acontecimento real, exceto esta concepção confusa segundo a qual ele seria, ao

mesmo tempo, o mesmo e um outro, o que é a exata definição do duplo”. Portando,

mais uma vez, o fenômeno da duplicação repousa sobre uma ambivalência

profunda, em que o “original” e a “cópia”, elementos necessários para a existência

do duplo (cf. ROSSET, 2008), encontram-se imersos numa dialética indissolúvel,

sendo o duplo o resultado de uma tensão constante na qual o mesmo e o outro são

opostos e complementares.

Živković (2000, p. 122) vê a temática do duplo, dentro e fora da literatura,

como um assunto que seduz. Segundo ela:

Como uma figura imaginada, uma alma, uma sombra, um fantasma ou um reflexo especular que existe numa relação de dependência para com o original, o duplo persegue o sujeito como seu segundo “eu” e o faz sentir-se como ele próprio e como o outro ao mesmo tempo. Enquanto seu poder imaginativo se origina de sua imaterialidade, do fato de que ele é e sempre foi uma fantasmagoria [produção da imaginação], o poder psicológico do duplo situa-se em sua ambiguidade, no fato de que ele pode significar contraste ou oposição, mas também semelhança

7 (Tradução nossa).

7 “As an imagined figure, a soul, a shadow, a ghost or a mirror reflection that exists in a dependent

relation to the original, the double pursues the subject as his second self and makes him feel as himself and the other at the same time. While its imaginative power springs from its immateriality, from

36

Assim como nas tentativas de conceituação anteriormente mostradas,

Živković concebe o duplo como um segundo eu, visto ao mesmo tempo como ele

próprio e como o outro. Dessa forma, o duplo se dá através de um jogo de reflexos

entre o eu e outro, jogo este que pode manifestar-se através de contraste, oposição

e também de semelhança, complementaridade. Além disso, reconhece a existência

de dois poderes exercidos pelo duplo: um concentrado no campo da imaginação,

devido a sua imaterialidade (alma, sombra, fantasma, reflexo do espelho); outro

relacionado ao âmbito psicológico e resultado da ambiguidade que dele emana – a

relação do eu com o outro por meio do contraste, oposição, semelhança.

Essa ideia de duplicidade, já presente em diferentes discursos ao longo da

tradição, tem sua força renovada pelos estudos realizados por Freud e Jung nos

campos da psicanálise e da psicologia analítica, respectivamente. Esses dois

teóricos rompem com a concepção até então vigente de uma unidade subjetiva do

sujeito e, ao conceberem-no como o resultado de uma dialética entre diferentes

estruturas psíquicas, inscrevem a dualidade no interior do homem, como elemento

constitutivo dele.

Freud (1996b) concebe o ser humano invariavelmente como o resultado do

embate entre forças psíquicas opostas. Sua primeira grande dicotomia, que norteia

possivelmente todas as demais, consiste na divisão do psiquismo humano em duas

instâncias distintas, como assevera Jordão (2009, p. 43): “[…] há pelo menos dois

sujeitos, que habitam o mesmo indivíduo; um consciente, outro inconsciente”. Essas

duas estruturas diferenciam-se, de acordo com a teoria freudiana, graças ao tipo de

conteúdo que as constitui: o consciente é formado por todos os conteúdos

acessíveis ao ego, ao passo que o inconsciente compõe-se das configurações

mentais não acessíveis à mente consciente, recalcadas e reprimidas (algumas das

quais, inclusive, já fizeram parte da vida consciente e foram excluídos dela por

alguma razão). Contudo, a relação entre essas duas realidades psíquicas não pode

nem deve ser reduzida a uma simples oposição, sob pena de se excluir a complexa

dinâmica representada pelo constante fluxo de conteúdos entre a mente consciente

e inconsciente e vice-versa. Além dessa dicotomia mais geral estruturadora do

psiquismo humano, que instaura a dualidade como elemento basilar da constituição

the fact that it is and has always been a phantasm, the psychological power of the double lies in its ambiguity, in the fact that it can stand for contrast or opposition , but likeness as well”

37

subjetiva do sujeito, a duplicidade também se faz presente em outros conceitos

freudianos, a saber: princípio da realidade/princípio do prazer, estranho/familiar,

impulso da vida/impulso da morte (Eros/Thanatos). Esses conceitos dizem respeito a

processos e/ou instintos antagônicos que determinam as relações do homem

consigo mesmo e com o meio social.

Jung (2008, p. 77), adotando um caminho parecido com o trilhado por Freud,

resguardadas, contudo, algumas especificidades conceituais, concebe a psique

humana como uma “[…] pluralidade contraditória de complexos”. Essa constituição

heterogênea da personalidade apresenta-se como o reflexo de dicotomias

fundamentais que norteiam a formação do sujeito: por um lado, a dualidade entre

mundo exterior/mundo interior, cujo equilíbrio exige uma negociação, numa atitude

desdobrada e dupla do sujeito; e, por outro, a coexistência e interação de conteúdos

conscientes e inconscientes. Desse modo, a ideia de unidade da personalidade não

encontra espaço na teoria de Jung, pois o sujeito, resultado do embate e da tensão

entre forças antagônicas, invariavelmente reflete essa contradição. Assim, Jung

(2008) afirma que a psique humana é formada por uma diversidade de estruturas,

cada uma com uma função determinada: o self refere-se à totalidade das

potencialidades do ser; o ego corresponde à consciência que se tem do self, ou seja,

às qualidades aceitas pelo sujeito, e tem como extremo oposto à sombra, formada

pelos conteúdos não aceitos e, portanto, reprimidos durante a formação do ego; por

fim, a persona constitui a parte mais superficial do ser, uma máscara social

desenvolvida consoante as exigências do meio e tem como correlatos opostos a

anima (presente inconscientemente no homem) e o animus (presente

inconscientemente na mulher), estruturas representativas da sexualidade feminina e

masculina, respectivamente, que instauram essa dualidade sexual na personalidade

de todos os seres humanos.

A partir dessa exposição sumária de alguns conceitos da teoria jungiana,

percebe-se que o sujeito é, antes de tudo, o produto de tensões constantes entre

opostos: ego/sombra; persona/anima-animus. Ao longo do processo de

desenvolvimento psicológico, o sujeito pode aprender a relacionar-se melhor com

seus conteúdos psíquicos, compreendendo mais profundamente suas

potencialidades; em suma, reconhecer sua individualidade. A esse processo, Jung

(2008, p. 49) denomina individuação: “Individuação significa tornar-se um ser único,

na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais

38

íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso

próprio si-mesmo [self]” (Grifos do autor). No caminho para a individuação, que Jung

tem o cuidado de diferenciar de individualismo, o sujeito consegue uma maior

consciência do self. Para tanto, faz-se necessária a realização de dois movimentos

psicológicos importantes: o diferenciar-se dos invólucros falsos da persona e/ou

anima-animus; bem como o adentrar nos conteúdos inconscientes, incorporando

potencialidades até então ocultas, a fim de desenvolver uma maior consciência da

totalidade representada pelo self e, por conseguinte, a afirmação de sua

individualidade.

Desse modo, essas considerações gerais sobre a duplicidade acima

apresentadas são suficientes para demonstrar que tal fenômeno caminha num

sentido contrário ao pensamento lógico-racional, uma vez que transcende a visão

mecanicista e unilateral à qual os olhos do homem moderno encontram-se

acostumados. Isso justifica também a inquietação, principalmente no contexto da

modernidade, que o duplo suscita, pois torna movediço o chão firme sobre o qual se

ergue toda a arquitetura conceitual baseada na filosofia do esclarecimento. Desde a

antiguidade, o mito do duplo vem, continuamente, inscrevendo-se nas mais variadas

formas discursivas da humanidade, mostrando ao mesmo tempo sua fertilidade

enquanto tema e seu poder de atualização e adequação aos mais diferentes

contextos. Desse modo, buscar-se-á trilhar e reconstruir alguns desses caminhos

percorridos pelo tema do duplo na história da humanidade, focalizando sua inscrição

em quatro principais domínios discursivos: a filosofia, a religião, a mitologia e a

literatura.

1.2.1 O duplo na filosofia, na religião e na mitologia

Na filosofia, podem-se destacar duas principais ideias a respeito do duplo. A

primeira delas diz respeito ao postulado platônico segundo o qual, conforme Mello

(2000, p. 111), “[…] todas as coisas conhecidas são o duplo de algo incognoscível

ou de uma realidade ideal. […] O real imediato só ganha sentido por ser expressão

de um outro real de que é apenas uma projeção imperfeita”(Grifos do autor).

Segundo essa concepção, todas as coisas existentes são frutos da duplicação de

39

uma realidade desconhecida e ideal8. Outro aspecto interessante do duplo na

filosofia diz respeito ao mito filosófico da androgenia, presente em O banquete

(1972), também de Platão. Neste livro, o mito é contado pela boca de Aristófanes,

inimigo de Platão, e baseia-se na perda de uma perfeição original:

Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino […] (PLATÃO, 1972, p. 28)

Dessa forma, o mito apresentado por Platão mostra três ancestrais da

humanidade: nos primeiros, descendentes do sol, se duplicam as particularidades

masculinas; nos segundos, descendentes da terra, as particularidades femininas; e

nos terceiros, descendentes da lua (a lua como símbolo da dualidade), as duas,

masculinas e femininas. Segundo Platão, essa unidade original, caracterizada pela

junção dos princípios masculinos e femininos num mesmo ser, foi perdida quando os

homens ameaçaram os deuses. Isso levou a um enfraquecimento do ser humano e

a uma constante busca deste por sua metade faltante.

Na religião, pode-se citar como exemplo do duplo o próprio ato cosmogônico

da criação presente no livro bíblico do Gênesis: Deus cria o universo para nele se

refletir. Ainda no Gênesis, a passagem da criação do homem é permeada pela

temática do duplo: Deus cria o ser humano (Adão e Eva) à sua imagem e

semelhança, o que caracteriza a ideia de androgenia de Deus, conforme destaca

Miguet (1998)9. Tem-se, ainda, a crença da alma que sobrevive ao aniquilamento do

corpo – um dos fundamentos de diversas tradições religiosas – como uma

manifestação do duplo no discurso religioso. Essa relação do eu com a alma é

antiga. Morin (Apud MELLO, 2000) afirma que a crença na alma enquanto duplo

remonta à era Paleolítica e representa uma tentativa de preservar a integridade do

eu frente à destruição simbolizada pela morte. Dessa forma, vê-se, aqui, a ligação

8Pode-se, inclusive, relacionar esse pensamento com o mito da caverna de Platão, segundo o qual o

mundo sensível, que as pessoas acreditam ser a “verdadeira realidade”, não passa de sombras, isto é, uma duplicação imperfeita de um mundo ideal: “[…] Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?” (PLATÃO, 2008, p. 210). 9Assim, percebe-se uma proximidade entre o mito bíblico e o apresentado por Platão, conforme

assinala Miguet (1998, p. 27): “[…] perfeição original de uma unidade dual, transgressão orgulhosa do homem, mutilação realizada pela divindade ofendida, andanças trágicas das metades divididas do homem, esperança de uma nova aproximação da unidade perdida no tempo e no sofrimento”.

40

entre a manifestação do duplo e a morte, relação esta presente no imaginário dos

povos, para quem “[…] a liberação do duplo pode ser vista como um acontecimento

nefasto que, seguidamente, pressagia a morte” (MELLO, 2000, p. 113). Para

Guiomar, outro estudioso citado por Mello (2000), é a atitude humana de busca de

conservação do eu frente à morte, aqui implicados o medo e a angústia da

decomposição e destruição por ela causado, que leva o homem a projetar um outro

eu. As figurações do duplo, quando relacionadas à morte, apresentam-se através de

lendas em que a alma deixa o corpo, entre outras variações.

No campo da mitologia, dois mitos são emblemáticos quanto à representação

do duplo: o de Hermafrodito e o de Narciso.

Hermafrodito é filho de Hermes e Afrodite e, desde criança, foi deixado aos

cuidados de ninfas. Aos quinze anos, a beleza desse jovem desperta o desejo em

Sálmacis, que tenta seduzi-lo, mas é rejeitada. Durante um momento de descuido,

Sálmacis abraça-o e, nesse instante, evoca aos deuses que nunca mais os

separem. Assim, as duas personagens do mito se unem eternamente. Aqui, a ideia

de androgenia, uma forma de manifestação do duplo, é representada pela união

entre Hermafrodito e Sálmacis que configura a conjunção, em um único ser, do

masculino e do feminino. Nessa narrativa mítica, a experiência andrógena é

vivenciada de modo diferente por cada uma das personagens: enquanto a primeira

assume uma postura ativa10, ao tomar a iniciativa e fazer a prece aos deuses,

Hermafrodito, passivo diante de tal situação, vê esse acontecimento como uma

desgraça: “[…] a metamorfose é vivida como uma insexualidade, uma eliminação

dos sexos […]” (MIGUET, 1998, p. 29). Além disso, Miguet (1998) observa que o

mito em questão apresenta conteúdo inverso aos dois anteriormente citados (o

bíblico e o de Platão). Enquanto os dois primeiros remetem a um começo

paradisíaco, na narrativa de Ovídio a unidade dual apresenta um final infeliz (pelo

menos sob a ótica de Hermafrodito)11.

10

Segundo Miguet (1998), Sálmacis tem uma tripla iniciativa, a saber: a da palavra, a da ação erótica e a da prece. 11

Embora com algumas particularidades, as três narrativas (nas esferas religiosa, filosófica e mítica)

acima apresentadas e que abordam o tema da androginia convergem em dois importantes pontos: (1) remetem aos tempos das origens; (2) colocam em jogo a relação entre o homem e a divindade, explicitando que “[…] a posse dos dois sexos é um temível reflexo do divino, e que este privilégio, concedido ao homem, arrisca-o a entrar em conflito com o demiurgo”(MIGUET, 1998, p. 29). Neste último ponto, o homem está exposto simultânea ou sucessivamente, por um lado, a uma guerra dos sexos ou, por outro, a um conflito com Deus.

41

O mito de Narciso é uma célebre representação do duplo, ou seja, uma

narrativa consagrada pela psicanálise e pela psicologia por representar de modo

emblemático o tema da dualidade. Conforme atesta Favre (1998), a origem dessa

personagem, assim como do mito, é desconhecida: a lenda já aparece constituída e

dotada de significação mítica nas Metamorfoses de Ovídio. Filho do rio Cefiso com

a Ninfa Líriope, Narciso era o mais belo dentre os mortais e imortais. Ao se tornar

jovem, passa a ser desejado por várias jovens e ninfas, dentre elas a Ninfa Eco. No

entanto, ele, extremamente soberbo e orgulhoso, rejeita Eco friamente, o que a faz

definhar e se transformar num rochedo. Diante disso, as outras ninfas pedem a

Nêmesis, deusa da ética, que puna Narciso, e esta o condena a amar um amor

impossível: a si próprio. É dessa forma que Narciso, ao curvar-se num lago para

saciar a sede, contempla sua imagem refletida nas águas e se apaixona por ela.

Essa paixão por si próprio, cumprindo a profecia de Tirésias, leva-o à morte. Sob

uma interpretação psicológica, vê-se que, nesse mito, o duplo se configura de

maneiras diferentes para Narciso e Eco. Enquanto Eco, símbolo da alteridade, está

para a contemplação e entrega a outrem; Narciso, fechado em si e símbolo da

egolatria, está para a contemplação/adoração de si mesmo.

Reconhecendo que os mitos em geral, e aqui particularmente o de Narciso,

são narrativas polissêmicas, que retiram sua força e vivacidade da justaposição e da

relação estabelecida entre os diversos signos e símbolos que o constituem, seria

autoritária qualquer tentativa de resumir esta narrativa a uma interpretação única.

Imerso nesse contexto plural, podem-se destacar duas leituras (não excludentes

entre si), possibilitadas pelo Mito de Narciso, tal como o relata Ovídio: uma literal,

situada numa camada mais superficial da narrativa; outra alegórica, metafórica,

situada nas entrelinhas do mito.

No primeiro caso, o mito representa a punição da deusa Nêmesis a Narciso

pela ultrapassagem do métron: sua beleza inigualável, somada ao orgulho e à

vaidade, impede-o de amar ao outro. Essa atitude egocêntrica é punida por

Nêmesis, que o faz apaixonar-se pela própria imagem refletida nas águas. Segundo

Favre (1998, p. 747), essa visão concentraria o sentido original da narrativa, ao

apresentar “[…] o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi

punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter recusado a amar alguém”.

A segunda interpretação do mito envereda pelas trilhas da psicologia.

Partindo da premissa de que toda narrativa mítica focaliza uma faceta do

42

desenvolvimento humano, Cavalcanti (1997) vê no mito de Narciso a representação

do processo de desenvolvimento psicológico do sujeito, particularmente o

nascimento, o desenvolvimento e a diferenciação do ego em seu percurso rumo à

construção da consciência e da identidade do sujeito. No início do mito, segundo

essa visão, Narciso constitui uma totalidade indiferenciada formada pela conjunção

eu, self12 e mundo: “O mundo envolve Narciso, que envolve o mundo num abraço

forte e significativo. Ele vive com o mundo e o mundo vive nele” (CAVALCANTI,

1997, p. 170). O momento de ruptura dessa totalidade acontece quando Narciso

contempla sua imagem refletida na água. Essa atitude marca o surgimento e o

progressivo desenvolvimento da consciência, em que o sujeito toma conhecimento

de sua finitude e delimitação em relação ao outro, através da contemplação da

imagem e identificação com ela. Desse modo, a construção da identidade egoica

constitui-se essencialmente pela diferenciação que o ego estabelece com o self e os

objetos. Por fim, o mergulho de Narciso rumo ao encontro com sua imagem

especular pode ser compreendido sob duas óticas opostas: de um ponto de vista

positivo, o mergulho representa uma religação com o self, processo distinto do

estado inicial de indiferenciação, na busca da totalidade representada pela

individuação; de um ponto de vista negativo, o mergulho é concebido como

regressão, ou seja, a fixação em um estado de fusão inicial ego-self, revelando,

portanto, a incapacidade do sujeito de superar essa etapa dominada por impulsos

narcísicos e sentimentos de onipotência.

Ao longo da tradição, o mito de Narciso configura-se como paradigma da

busca da identidade do eu, uma vez que retrata exemplarmente a importância da

imagem especular fornecida pelo espelho – em sua acepção física ou como

metáfora – no processo de constituição identitária: “[…] a busca do eu,

especialmente nas perturbações de desdobramento, está sempre ligada a uma

espécie de retorno obstinado ao espelho e a tudo o que pode apresentar uma

analogia com o espelho” (ROSSET, 2008, p. 90).

Essa busca da unicidade assumiu vários aspectos no decorrer dos séculos,

refletindo as mudanças na estrutura social. O advento da modernidade traz consigo

profundas mudanças tanto no plano social quanto no intelectual, compondo, desse

12

É importante destacar que o conceito de self na teoria jungiana difere do conceito psicanalítico. Enquanto Jung (2008) concebe-o como a totalidade da psique, a psicanálise compreende-o como a autopercepção e a autoimagem.

43

modo, o plano de fundo sobre o qual é pintado um sujeito em crise. Nesse contexto,

o mito de Narciso adquire, segundo Cavalcanti (1997), sua maior importância.

Contudo, nas representações modernas desse mito, aqui entendidas as atualizações

realizadas nas artes, o espelho não fornece mais uma imagem unificada e

confortadora do eu. O Narciso moderno é cônscio de sua cisão e reconhece-se

quando confrontado com seu reflexo, muito embora a imagem refletida seja

desdobrada, duplicada e múltipla, diferentemente do Narciso clássico, em que o

espelhamento marca o início de seu definhar (cf. ARAGÃO, 1991).

Para além da mitologia e das releituras efetuadas nas artes ao longo dos

séculos, o mito de Narciso imprimiu também sua marca em campos supostamente

menos presumíveis: os da psicologia e da psicanálise. Freud toma como base a

essência desse mito – o amor de Narciso por si mesmo – para ilustrar um estádio

psíquico humano que denomina de narcisismo – a semelhança com o nome da

personagem mítica não é mera coincidência. Para Freud (1996c) o narcisismo

consiste num investimento de energia libidinal no próprio ego e divide-se em dois

tipos: um primário, estágio intermediário entre o autoerotismo e o amor objetal, que

constitui, portanto, uma etapa normal e vivenciada por todos os humanos; outro

secundário, estágio patológico caracterizado pela retirada da libido dos objetos para

o ego.

Autores como Lowen (1993), além de reconhecerem o narcisismo como uma

condição psicológica, concebem-no também como um fenômeno cultural. No plano

psicológico, individual, o narcisismo “[…] indica uma perturbação da personalidade

caracterizada por um investimento exagerado na imagem da própria pessoa à custa

do self” (LOWEN, 1993, p. 9). Nesse caso, há uma supervalorização da imagem em

detrimento da consciência sobre o verdadeiro self13. Como condição cultural, o

narcisismo “[…] pode ser considerado como perda de valores humanos – uma

ausência de interesse pelo meio ambiente, pela qualidade de vida, pelos seres

humanos seus semelhantes” (LOWEN, 1993, p. 9). Aqui, o narcisismo, ao romper o

limite da psique individual, é entendido como uma dominante cultural sob cujo rótulo

se aglomera uma série de práticas e comportamentos caracterizada pela ausência

de sentimentos observados na sociedade moderna. Essas duas esferas do

narcisismo, a individual e a cultural, inevitavelmente, estabelecem entre si uma

13

Para Lowen (1993), o self corresponde a uma entidade corporal, perceptiva, ao passo que o ego constitui uma organização mental.

44

relação dialética, determinando-se mutuamente, pois do mesmo modo que o sujeito

é produto do meio em que vive, também é parte constitutiva desse meio: “O

narcisismo do indivíduo corre a par com o da cultura. Modelamos nossa cultura de

acordo com nossa imagem e, por sua vez, somos modelados por essa cultura”

(LOWEN, 1993, p. 9-10).

Seguindo uma linha de pensamento parecida, o narcisismo moderno é visto

por Lasch (1983) como um fenômeno social e cultural da sociedade atual, e é

definido por Rosset (2008, p. 108) nos seguintes termos:

[…] o erro mortal no narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O narcisista sofre por não se amar: ele só ama a sua representação. […] Este é o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro. (Grifos do autor).

Dessa forma, é o culto do simulacro, entendido como o duplo do eu projetado

pelo espelho, que representa a busca da identidade pela personalidade narcísica.

Essa imagem não reflete um sujeito uno e total, mas apenas fragmentos, símbolos

da identidade desdobrada e esfacelada do homem moderno.

.

1.3 O duplo na literatura

Na literatura, o tema do duplo encontrou campo fértil para sua propagação,

configurando-se, ao longo da tradição, sob diferentes aspectos. Segundo Mello

(2000), essa recorrência ao motivo do duplo na produção artística de diversas

épocas explica-se pelas questões inquietantes que essa temática sempre suscitou

para a humanidade: “‘Quem sou eu?’ e ‘o que serei depois da morte?’” (p. 11). Para

Mucci (2006), o duplo encontra-se intrinsecamente ligado ao campo literário,

reconhecendo, inclusive, que essa relação vai muito além da visão restrita que o

concebe apenas como tema ou motivo para a criação artística:

No campo exuberante da literatura e da teoria da literatura, o duplo reina como tema quase absoluto, em todo caso reiterado, em todas as eras literárias. No fundo, no fundo, o que é a literatura, senão a representação de algo, o espelho de um real, a construção simbólica da realidade, o outro do real, a mímesis da mímesis da mímesis, tal qual a rosa infindável de Gertrud Stein?? O que é o signo – linguístico, literário e não verbal –, senão algo vicário, a marca de uma ausência, a presença de um objeto, o duplo de uma coisa? (MUCCI, 2006, p. 3)

45

Além de ser um tema constante em todos os períodos da produção literária,

Mucci vê a literatura como um duplo, visto ser ela representação (mimeses) de uma

realidade mediatizada pelo signo linguístico. Desse modo, o duplo na literatura não é

apenas um tema do discurso; ao contrário, inscreve-se na própria origem do

discurso.

Enquanto motivo literário, o duplo manifesta-se como resultado de uma

confrontação entre duas facetas de uma mesma personagem (o original e a copia

deste), com uma continuação física e/ou psicológica entre os dois: “O duplo aparece

quando duas incorporações da mesma personagem coexistem em um mesmo

espaço ou mundo ficcional […]”14 (LÓPEZ, 2006, p. 18. Tradução nossa.). Esse

confronto pode realizar-se através da presença simultânea do original e da cópia,

por meio do espelhamento e da contemplação de sua imagem pela personagem, por

exemplo. O encontro com o duplo apresenta-se sempre como inquietante e

desestabilizador para o sujeito, visto que o desdobramento introduz

questionamentos sobre sua identidade e unidade, resultado do confronto entre o eu

e o outro. Desse modo, ao longo da tradição, as representações da temática da

cisão do eu parecem opor-se à concretização de uma união dos opostos rumo ao

ser perfeito; pelo contrário, a duplicidade aparece como perturbadora e ameaçadora

para o eu. Sua materialização no texto literário efetua-se através de elementos

recorrentes, como o espelho, o reflexo, a sombra, o retrato, bem como de

sequências narrativas que explicitam o conflito potencialmente presente nas

manifestações da duplicidade: confrontação entre o original e seu duplo, usurpação

de personalidade, dúvidas sobre a verdadeira identidade e impulso para aniquilar o

rival (cf. LÓPEZ, 2006).

Diante das diversas classificações sobre o duplo apresentadas por diversos

teóricos, López (2006, p. 18-19) sugere a consideração de três variantes para um

melhor entendimento desse fenômeno complexo e multifacetado:

Na primeira, o mesmo indivíduo existe em dois ou mais mundos alternativos (dimensões temporais e/ou espaciais distintas), que geralmente acabam fundindo-se; assim acontece em quatro contos considerados clássicos: ‘Um conto das montanhas escabrosas’ (1844), de Poe, ‘A esquina alegre’ (1908), de Henry James, ‘Distante’ (1951), de Julio Cortázar, e ‘O outro’

14

“El doble aparece cuando dos incorporaciones del mismo personaje coexistene nun mismo espacio

o mundo ficcional […]”.

46

(1975), de Borges. Na segunda variante, dois indivíduos com identidades distintas, mas homomórficos em seus atributos essenciais, coexistem na mesma dimensão; o paradigma é Os elixires do diabo (1815-1816). Em ambos os casos, o desdobramento pode originar-se a partir da intervenção de causas materiais como o espelho, a sombra, a fotografia, o retrato, a estátua ou o boneco. Na terceira, o protagonista geralmente assiste seu próprio funeral, contempla-se a si mesmo morto […].(Tradução nossa. Grifos da autora).

15

No primeiro caso, López (2006) destaca a duplicação em que um mesmo

sujeito vê sua existência desdobrada em dois ou mais mundos e/ou dimensões

temporais que podem fundir-se. Como exemplificação dessa modalidade, López

(2006) cita alguns textos literários, entre eles o conto O outro, do escritor argentino

Jorge Luis Borges (1978). O conto relata um acontecimento acorrido em fevereiro de

1969. Nessa data, estava o narrador-personagem, que se apresenta como Jorge

Luis Borges, recostado a um banco na cidade de Cambridge, quando tem a estranha

sensação de já ter vivido esse momento antes. Na outra extremidade do banco,

senta-se um homem, com o qual o narrador inicia conversa e reconhece, nas

respostas daquele, episódios de sua própria vivência anterior. Diante disso, o

narrador compreende que o outro – expressão inclusive que intitula o conto – é, na

verdade, ele mesmo, situado em uma outra dimensão espaço-temporal – a figura do

outro representa o mesmo Borges, só que mais jovem e residente na cidade de

Genebra. Como se observa, o conto promove uma ruptura nas leis convencionais de

espaço e tempo: o Borges mais velho do banco da cidade de Cambridge vê-se

confrontado com outra personagem que, por fim, reconhece como sendo ele mesmo

quando jovem.

A segunda variante aborda o tema do duplo a partir das semelhanças físicas

(homomorfismo) entre dois seres situados em uma mesma dimensão. Nesse caso,

há entre os sujeitos, por um lado, uma continuidade física e, por outro, uma

descontinuidade psicológica, visto que ambos apresentam identidades distintas. A

título de exemplificação, López (2006) cita a obra Os elixires do diabo, de

15

“En la primera, el mismo individuo existe en dos o más mundos alternos (dimensiones temporales

y/o espaciales distintas) que generalmente acaban fundiendo se; así sucede en cuatro cuentos y a clásicos: “Un cuento de las Montañas Escabrosas” (1844), de Poe, “La esquina alegre” (1908), de Henry James, “Lejana” (1951), de Julio Cortázar, y “El otro” (1975), de Borges. Enla segunda variante, dos individuos con identidades distintas, pero homomórficos en sus atributos esenciales, coexiste nen la misma dimensión; el paradigma es Los elixires deldiablo (1815-1816).En ambos casos, el desdoblamiento puede originar se a partir de la intervención de causas materiales como eles pejo, la sombra, la fotografía, el retrato, la estatua o elmuñeco. Em La tercera, el protagonista, por lo general asistente a sus propias exequias, se contempla a si mismo muerto […].

47

Hoffmann (1824). Nessa narrativa, a personagem Medardus, de posse do elixir

(substância maligna), foge do mosteiro onde vive e se entrega às mais profanas

aventuras. É tida como responsável pela morte de um meio-irmão seu, Viktorin, de

quem usurpa a identidade, aproveitando-se da semelhança física, e sobre quem

projeta seus mais sombrios desejos e intentos criminosos. Desse modo, Viktorin

transforma-se no duplo de Medardus graças à similaridade anatômica: este, usando

de artifício, mata seu meio-irmão e usurpa-lhe a identidade, projetando neste os

instintos reprimidos pelo eu.

Na terceira vertente, López (2006) reúne as manifestações da dualidade em

que o sujeito contempla a si mesmo morto. Como exemplo, pode-se citar o romance

Memórias póstumas de Brás Cubas, do escritor brasileiro Machado de Assis

(2009). Narrado em primeira pessoa por um defunto autor (ou um autor defunto?), o

romance relata as experiências e memórias do fidalgo Brás Cubas, invertendo a

cronologia dos fatos ao começar pela narração de sua morte. Nesse episódio, o

narrador-personagem visualiza a si mesmo morto, graças à dissociação

corpo/espírito, em que este último, separado de sua materialidade corpórea,

contempla-a como duplo.

Ao lado dessas considerações mais gerais sobre a natureza do duplo na

literatura, mostram-se igualmente importantes conceituações que abordam o motivo

do duplo sob um ângulo mais restrito. Desse modo, impõe-se, agora, a consideração

de aspectos mais pontuais sobre esse tema, a fim de compreender as origens desse

fenômeno e suas implicações na narrativa.

Quanto à origem, Bargalló (Apud LAMAS 2002), identifica três tipos de duplo:

por cisão, em que o desdobramento é fruto de um corte; por fusão, efetuada quando

há uma identificação desejada entre os pares; e por metamorfose, quando há uma

transformação, podendo resultar numa multiplicidade de formas. Segundo Lamas

(2002, p. 60), “Na cisão, o corte mostra que o eu está em outro lugar e passa a ter

uma vida autônoma; na fusão ocorre o reconhecimento de uma unidade – um é o

outro: (sic) na metamorfose, há uma transformação relevante, reversível ou não”. Já

a tipologia de Jourde e Tortonese (Apud López, 2006) identifica basicamente dois

tipos de duplo: o subjetivo e o objetivo. No primeiro caso, o protagonista

(frequentemente o narrador) confronta-se com seu próprio duplo: é interno quando a

duplicação acontece psicologicamente, ou seja, como resultado de uma cisão na

psique do sujeito; e externo quando o duplo assume uma forma física, como no caso

48

dos gêmeos e sósias. No segundo, o fenômeno não é vivenciado pelo protagonista;

ao contrário, este apenas testemunha uma duplicação alheia.

Essas tipologias acima expostas tomam como ponto de partida a análise das

representações do duplo na literatura em diferentes épocas. Uma vez compreendida

em seus aspectos essenciais a natureza do duplo, cabe agora verificar sua trajetória

na literatura, da antiguidade até os dias atuais.

As primeiras representações do duplo, que datam da antiguidade até o final

do século XVI, apresentam um duplo homogêneo: exploram-se semelhanças físicas

entre dois seres para efeito de substituição e usurpação de identidade, e essa

tendência à unidade seria ainda mantida mesmo quando uma personagem

desempenhasse mais de um papel. São exemplos desses duplos os gêmeos e os

sósias.

No século XVII, estabelece-se uma nova perspectiva na abordagem do duplo

pela literatura. Conforme Bravo (1998, p. 267), “A abertura para o espaço interior do

ser, perspectiva que se inaugura no século XVII, força ao abandono progressivo do

postulado da unidade da consciência, da identidade de um sujeito, única e

transparente”. Esse caminho do duplo rumo ao heterogêneo é fruto da função que o

homem passa a desempenhar na natureza. Na concepção das religiões

monoteístas, o homem é constituído à imagem e semelhança de Deus; portanto, seu

duplo é objetivo. Com a independência do Ego em relação a Deus, no século XVII,

Deus é levado à morte (cf. BRAVO, 1998). Na filosofia, Descartes “[…] fundamenta

no ‘cogito’ as verdades da metafísica e da moral que antes se deduziam de Deus”

(BRAVO, 1998, p. 264). Toda essa conjuntura coloca o eu como centro das

reflexões, o que, inevitavelmente, leva a uma abertura para o espaço interior do ser

e ao abandono do postulado da sua unidade de consciência e identidade única e

transparente, culminando na representação do duplo rumo ao heterogêneo.

A heterogeneidade na representação do duplo, possibilitada, conforme Bravo

(1998, p. 269), pela “[…] emergência do sentimento de uma autêntica alteridade, de

uma visão romântica do eu”, dá-se mediante uma conjuntura histórica, política e

filosófica específica. No campo histórico-político, tem-se a Revolução Francesa, que

ataca as hierarquias e põe em discussão a autoridade do Estado e da Igreja, o que

leva a uma discussão sobre a identidade. No plano filosófico, aparece o pensamento

idealista que, segundo Bravo (1998, p. 270), “[…] serve de suporte metafísico à

teoria do eu duplo (duplicado)”, uma vez que essa corrente filosófica se contrapõe

49

ao materialismo e centra suas discussões no eu, considerando o mundo como “[…]

produto do espírito que dialoga consigo próprio” (BRAVO, 1998, p. 270). Diante

desse contexto, as representações do duplo caminham no sentido do heterogêneo e

assumem as mais variadas manifestações: o duplo como um simulacro técnico, a

exemplo do romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; o duplo como

busca da identidade do eu, através dos confrontos das personagens com seus

duplos ou da projeção em outros de partes por elas excluídas; o duplo como via de

acesso a uma suprarrealidade, uma realidade oculta; o duplo como divisão interior

do sujeito, no caso do romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson,

por meio da dualidade interior entre o ser de desejo e o eu social.

Essa heterogeneidade na representação do duplo assume uma forma ainda

mais radical a partir dos postulados da psicanálise freudiana no início do século XX.

Desse momento em diante, tem-se, na representação do duplo na literatura, o que

Bravo (1998) denomina de “abertura para o mundo”. Nesse período, as

representações do duplo são caracterizadas pela heterogeneidade e dispersão do

eu, de modo que a unidade da consciência é quebrada pela instalação do discurso

do outro, do inconsciente, instaurando a dualidade no interior do ser; pelo

esvaziamento da substância do eu, dando lugar a uma pluralidade de vozes que

falam por ele/nele; e, mais drasticamente, pela quebra/superação das fronteiras

espaço-temporais – a personagem pode viver simultaneamente em épocas

diferentes, estar em dois lugares, viver duas ou mais vidas ao mesmo tempo

(BRAVO, 2008).

1.4 O duplo e a literatura fantástica: algumas considerações

Ao longo deste capítulo, buscou-se compreender o fenômeno do duplo de

modo geral e, mais especificamente, sua representação e atualização na produção

literária em diferentes épocas. Nessa reta final do percurso, uma última problemática

cujo exame interessa aos propósitos deste estudo diz respeito à verificação de uma

possível relação existente entre o tema do duplo e a literatura fantástica. Desse

modo, objetiva-se, aqui, responder aos seguintes questionamentos: (1) há relação

entre o duplo e a literatura fantástica? A resposta afirmativa a essa questão

automaticamente conduz a outra: (2) Sob qual(is) base(s) repousa essa relação?

50

Para responder às perguntas acima elaboradas, faz-se necessário, em

primeiro lugar, contextualizar a literatura fantástica, explicitando as características e

especificidades desse tipo de relato, bem como sua inscrição em diferentes

momentos da literatura.

O fantástico, em maior ou menor grau, esteve, desde sempre, circunscrito ao

campo literário. Sua presença na literatura remonta a Homero, com suas Ilíada e

Odisseia16 ainda na antiguidade grega, passando por Dante com sua Divina

comédia na renascença, até chegar ao século XVIII e XIX, marco histórico no qual a

maioria dos estudiosos situa a eclosão da literatura fantástica como oposição ao

racionalismo em voga desde o Iluminismo. Embora Hoffmann seja o grande nome

da literatura fantástica no mundo, os críticos, dentre eles Magalhães Júnior (1972),

apontam na literatura do francês Jacques Cazotte, autor do século XVIII, as

primeiras narrativas dessa modalidade, a quem sucederam grandes nomes como o

já citado Hoffmann, bem como Mary Shelley, Robert Louis Stevenson, entre outros.

Todorov é um estudioso clássico do fantástico e um dos autores mais

referenciados nessa área. Embora alguns de seus postulados sejam passíveis de

críticas, suas categorizações mostram-se ainda pertinentes e atuais. Para ele, o

fantástico se dá no momento de hesitação do leitor17,o qual, diante de um fenômeno

insólito, não consegue enquadrá-lo numa explicação racional nem aceita esse

acontecimento como natural. Caso esta hesitação cesse, sai-se automaticamente do

terreno do fantástico para se adentrar em outro domínio, a depender da impressão

despertada no leitor: se a narrativa apresenta uma explicação racional para

acontecimentos considerados insólitos, ocupa-se o terreno do estranho; se esses

acontecimentos são aceitos como normais pelo leitor, pela admissão de novas leis

naturais que o expliquem, entra-se, então, no campo do maravilhoso18. Dessa forma,

16

Obviamente, os textos homéricos são considerados fantásticos aos olhos do homem moderno, para quem as aventuras relatadas nas narrativas pertencem ao domínio do insólito. Na sociedade grega da época, esses escritos, ligados ao imaginário mítico e religioso de seu povo, revestiam-se de simbologia e significados particulares. 17

Todorov (2008, p. 37) ressalta que o leitor ao qual ele se refere não corresponde a um leitor real: “Essa noção de leitor não é a de leitor real, mas uma função de leitor inscrita e implícita no próprio texto”. 18

Faz-se necessário, aqui, destacar uma particularidade conceitual de Todorov (2008), para quem o fantástico, assim como seus vizinhos – o estranho e o maravilhoso –, são denominados de gêneros. A fim de evitar ambiguidades, considera-se, em concordância com Bessière (2009), que o fantástico, no âmbito da literatura, não configura gênero autônomo, inscrevendo-se, ao contrário, como um modo discursivo com características próprias que se faz presente em diferentes gêneros literários ao longo da tradição.

51

percebe-se que a delimitação do fantástico ocorre na confluência com modalidades

vizinhas (de um lado, o estranho; de outro, o maravilhoso).

A partir disso, Todorov (2008) apresenta três condições que devem, segundo

ele, ser preenchidas para a manifestação do fantástico: (1) promover a hesitação do

leitor ante um acontecimento insólito; (2) compartilhar ou não a hesitação do leitor

com a personagem do texto; (3) implicar uma prática de leitura não poética nem

alegórica19. A primeira e a terceira são apresentadas como condições indispensáveis

para a existência do fantástico, enquanto a segunda é apontada como facultativa,

embora se afirme que a maior parte dos textos preenche essas três condições. A

partir disso, vê-se que o sobrenatural, conquanto seja elemento importante, não

constitui, por si só, condição única à instauração do fantástico, pois este interessa à

literatura fantástica unicamente quando é capaz de despertar no leitor sentimentos

ambíguos e desconfortantes, como o medo e o terror, levando-o à dúvida e à

hesitação.

Numa linha próxima à de Todorov, o contista Cortázar (2008) também

considera que um corte na realidade cotidiana é operado pela literatura fantástica,

uma vez que esta se opõe ao que o contista denomina de “falso realismo”. Desse

modo, o fantástico, para Cortázar, caminha num sentido contrário à racionalidade

que impera nas relações humanas cotidianas. Ao admitir que nem tudo pode ser

explicado pela ciência e pela razão, situa o fantástico numa ordem não dominada

pela “normalidade”, mas sim que vê nas exceções a ela uma abertura que possibilita

a construção de uma literatura avessa a um “realismo demasiado ingênuo”. Sendo

assim, o fantástico não é estranho à realidade, mas irrompe dela, desestabilizando-

a. Aqui, é a própria concepção de realidade que é questionada.

Referindo-se às produções século XIX, Calvino (2004) reconhece duas

vertentes principais assumidas pelo conto fantástico, as quais ele conceitua, de

acordo com suas características peculiares, de fantástico visionário e fantástico

mental/abstrato/psicológico/cotidiano: à primeira tendência Calvino relaciona as

produções literárias do início do século XIX; à segunda, as produções do final do

século XIX até o limiar do século XX. Mesmo reconhecendo que essa distinção seja

até certo ponto arbitrária, no sentido de haver textos pertencentes a esses dois

19

A alegoria compreende um duplo sentido: um literal, manifesto no texto, e outro figurado ou

espiritual. O jogo proposto pela alegoria é falar de uma coisa para fazer compreender outra (MOISÉS, 2004).

52

momentos, ele afirma que essa orientação da literatura fantástica, do visionário ao

cotidiano, configura um processo de interiorização do sobrenatural. Tal tendência, já

presente no final do século XIX, continua em voga nas produções do século XX, só

que assumido novas configurações. Se a literatura fantástica lida essencialmente

com acontecimentos inquietantes para o ser humano, que provocam sentimentos de

terror e medo, os fenômenos sobrenaturais que povoam as páginas da literatura

fantástica no século XIX encontram menos espaço nos escritos dos séculos XX e

XXI. Assim, a literatura fantástica contemporânea busca lidar prioritariamente com os

novos “medos” da sociedade atual e questiona a própria concepção de razão. É

nesse contexto que serão recorrentes no fantástico, especialmente no contexto da

literatura brasileira, temas existenciais, de denúncia social e que representam a

condição humana degradada imersa numa sociedade moderna opressora.

O fantástico, embora presente na literatura da antiguidade aos dias atuais,

tem sua eclosão situada historicamente entre os séculos XVIII e XIX. Segundo

Lamas (2002, p. 34), esse período histórico reúne as condições necessárias à

emergência do fantástico e sua consolidação na ficção literária “[…] haja vista todo

um contexto de rejeição ao sentimento e de crença na supremacia da razão,

possibilitadas por um número de invenções científicas que culminam na primeira

revolução industrial”. Quanto ao conto fantástico, modalidade de narrativa na qual

mais caracteristicamente se manifesta, Calvino (2004) situa seu surgimento nesse

mesmo contexto histórico, mais precisamente com o Romantismo alemão no início

do século XIX, influenciado pelo romance gótico inglês do século XVIII.

Mesmo ganhando destaque nas produções literárias de outros países, em

especial na literatura europeia, norte-americana e inclusive hispano-americana, a

produção fantástica não encontrou espaço na literatura brasileira, manifestando-se,

de forma incipiente, como acessório, nos escritos de autores a exemplo de Álvarez

de Azevedo e Machado de Assis. No Brasil, a eclosão do fantástico deu-se apenas

no século XX, com o Modernismo. Nesse cenário, destaca-se a figura de Murilo

Rubião, sendo seu livro O ex-mágico e outros contos (1947) considerado o marco

inicial da literatura fantástica no Brasil. Para justificar essa “lacuna” na literatura

brasileira, dois estudiosos apresentam hipóteses interessantes. Segundo Lamas

(2002), as condições históricas que possibilitaram a emergência da literatura

fantástica, especialmente na Europa, não se faziam presentes no Brasil. O contexto

brasileiro da época era marcado pelas lutas em prol da abolição da escravatura e

53

pela proclamação da República, pelo clima hostil entre brasileiros e portugueses,

pela busca de igualdade entre as classes e pelo Positivismo que se firmava

enquanto doutrina filosófica. Já as duas hipóteses apresentadas por Gabrielli (2002)

para explicar a pouca penetração do fantástico na literatura brasileira baseiam-se

em peculiaridades literárias e culturais do Brasil. A primeira explicação diz respeito à

própria natureza da representação literária no Brasil, ao defender que havia na

literatura brasileira, desde o Romantismo até o Realismo-Naturalismo, uma

tendência à observação e à documentabilidade, que inibiriam a liberdade imaginativa

necessária à literatura fantástica. A segunda hipótese toma como base estudos

desenvolvidos por Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire, que apontam para

um traço cultural específico da sociedade brasileira: o horror à estranheza, em prol

de um culto da familiaridade. Esse aspecto, de acordo com Gabrielli, impossibilitaria

a manifestação do fantástico, visto que este lida com acontecimentos sobrenaturais,

que fogem da realidade imediata do ser humano e que, por essa razão, provam

sentimentos inquietantes e perturbadores.

De posse desses conhecimentos sobre as características e configurações

essenciais da literatura fantástica, é preciso agora resolver as duas questões

deixadas em aberto no início dessa seção. Com base em López (2006), há relação

entre o duplo e o fantástico: segundo essa autora, muitos críticos posteriores a

Todorov consideram a duplicidade como um motivo capital desse discurso. Para

justificar essa imbricação do duplo na literatura fantástica, López (2006) apresenta

dois motivos principais: (1) é comum ao duplo e ao fantástico a confrontação entre o

real e o sobrenatural (esses opostos manifestam-se na estrutura do duplo,

respectivamente, através do embate entre a personagem original e seu duplo); (2)

ambos operam, dentro de suas especificidades, um corte na ordem natural e

racional (esse corte é representado, no fantástico, pela irrupção do insólito e, na

estrutura do duplo, pelo desdobramento da personagem – inexplicável do ponto de

vista científico). Além disso, López (2006) reconhece na função subversiva do duplo

outro motivo que contribui para a ligação deste com a literatura fantástica. Isso

porque a confrontação do ser com o duplo tem como consequência o

desmascaramento moral e social do protagonista, ao expor, possivelmente, partes

ocultas da subjetividade do sujeito, bem como suas fragilidades, medos, angústias

etc.

54

Por fim, pode-se, assim como López (2006), conceber a literatura fantástica

como um duplo do cânone realista, reconhecendo, inclusive, que há entre os dois

sistemas literários uma coincidência no que concerne à utilização dos códigos e

convenções:

O gênero, sim, supõe uma alternativa à versão oficial do mundo oferecida pela literatura realista, mas […] o relato fantástico não se apoia ocasionalmente nas convenções do realismo, mas que depende destas sem exceção: para conseguir que o feito sobrenatural resulte verossímil, o conto tem de se ambientar num mundo cotidiano construído com técnicas realistas

20 (LÓPEZ, 2006, p. 59. Tradução nossa.).

Desse modo, a própria literatura fantástica faz uso de técnicas do realismo

para descrever o acontecimento sobrenatural, com o intento de tornar o relato

verossímil. Ao mesmo tempo, há uma oposição entre esses dois sistemas literários

no que concerne à representação do mundo: enquanto o realismo preconiza o relato

supostamente transparente de uma dada realidade, o fantástico subverte a ordem

natural, ao trazer o sobrenatural e o inexplicável para o cotidiano das personagens:

“O relato fantástico apresenta um mundo com o qual o leitor se identifique sem

esforço, uma construção verossímil de seu entorno para que o impossível irrompa

com toda a contundência possível, atemorizando e quebrando as expectativas de

personagens e receptor”21 (LÓPEZ, 2006, p. 60. Tradução nossa.). Desse modo, o

fantástico, enquanto sistema literário, apresenta uma ambiguidade constituinte: faz

uso de técnicas realistas para contrapor-se ao realismo. A estrutura do duplo de

modo geral não repousa também numa indeterminação insolúvel, de modo que o

original e a copia são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes, indecidivelmente? Aqui,

mais uma vez, as semelhanças não são meras coincidências; ao contrário, apontam

para uma relação íntima entre os dois temas.

20

“El género, sí, supone una alternativa a la versión oficial del mundo ofrecida por la literatura realista, pero Ballesteros González olvida que el relato fantástico no se apoya ocasionalmente en las convenciones del realismo, sino que depende de éstas sin excepción: para conseguir que el hecho sobrenatural resulte verosímil, el cuento ha de ambientarse en un mundo cotidiano construido con técnicas realistas”. 21

“El relato fantástico presenta un mundo con el que el lector ha de identificarse sin esfuerzo, una

construcción verosímil de su entorno para que lo imposible irrumpa con toda la contundencia posible, atemorizando y quebrando las expectativas de personajes y receptor”.

55

CAPÍTULO II – O DUPLO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

2.1 O gênero conto: origens, evolução e tendências atuais

A tentativa de traçar a origem do conto é preocupação recorrente em campos

epistemológicos diversos, motivando pesquisadores, invariavelmente, a vasculhar e

revisitar a própria história da humanidade. Como afirma Galvão (1983), a ação de

“contar”, prática imemorial e anterior mesmo à literatura, é uma característica

intrínseca ao homem, fazendo-se presente mesmo em comunidades que não

dominavam a linguagem escrita. Contudo, diferentemente do romance, herdeiro da

epopeia, o conto tem sua origem imbricada de forma indissolúvel na tradição oral, ao

derivar de “[…] várias formas de narrativa doméstica, a fábula, a anedota, o caso, o

provérbio, os enredos curtos de tom libertino, piedoso ou moralizante […]” (LUCAS,

1983, p. 106).

Mesmo ausente de teorização na Poética de Aristóteles, que elege os três

gêneros nobres (lírica, tragédia e epopeia), o conto está presente na literatura desde

a antiguidade, seja isolado, seja inserido no interior de narrativas mais extensas,

como na Odisseia de Homero, por exemplo. Contudo, é na literatura medieval que,

de acordo com Passos (2001), o conto individualiza-se, ganhando, paulatinamente,

os contornos delineadores do gênero. Para Galvão (1983), o conto, tal qual se

conhece hoje, estabelece-se no período da segunda revolução industrial e tem suas

bases fincadas na tradição americano-europeia.

Embora reconheça que a arte de “contar estórias” espraia-se por tempos

longínquos, Gotlib (1999) identifica três principais fases na evolução do conto, as

quais moldaram esse gênero ao longo dos anos: no início, tem-se o conto

transmitido oralmente de geração em geração; posteriormente, o conto, embora

mantendo características da oralidade, ganha um registro escrito; e por fim, a

categoria estética passa, no século XIV, a ser o princípio norteador e motivador da

produção do conto, momento esse em que nasce o conto literário. Nessa terceira

fase, entra em cena a figura do narrador que aglutina, ao mesmo tempo, as funções

desempenhadas pelo contador-criador-escritor, criando uma produção que “[…]

ressalte os seus próprios valores enquanto conto […]” (GOTLIB, 1999, p. 13). A

diferenciação entre o conto popular e o conto literário é também abordada, de forma

56

bastante didática, por Jolles (1976), a partir de sua distinção entre “forma artística” e

“forma simples”:

[…] Forma Artística ou Forma Simples, poder-se-á sempre falar de “palavras próprias”; nas Formas artísticas, todavia, trata-se das palavras próprias do poeta, que são a execução única e definitiva da forma, ao passo que, na Forma Simples, trata-se das palavras próprias da forma, que de cada vez e da mesma maneira se dá a si mesma uma nova execução (p. 195. Grifos do autor).

Essa conceituação de Jolles (1976) parte da consideração da natureza da

linguagem inerente a cada uma das formas por ele apresentadas: na artística, o

modo de expressão escolhido pelo poeta transforma-se na única realização possível

para a forma, sob pena de se perderem a especificidade e singularidade desta; na

simples, ao contrário, a linguagem é fluida, podendo sofrer alterações superficiais no

modo de expressão, desde que condizente com a forma, de modo que a mantenha

inalterada. Essa distinção no que concerne à linguagem pode, segundo o autor, ser

estendida a outros elementos, como personagens, lugares e incidentes, que, na

forma simples, mantêm sua natureza fluida, diferentemente da artística.

Enquanto gênero literário, o conto ganha destaque no âmbito da literatura

principalmente a partir do século XIX. Galvão (1983) reconhece como fator

determinante para esse apogeu a ligação íntima existente entre o fortalecimento e

disseminação do conto literário e os primeiros suspiros da nascente indústria

cultural, representados pelo surgimento da imprensa periódica. É nesse sentido que

Galvão (1983) afirma que a imprensa determina duplamente a forma do conto: por

um lado, no que concerne à economia dos meios narrativos, em virtude do espaço

limitado disponível, delineando importantes características, como extensão da

narrativa, tempo de leitura, efeito único etc.; por outro, a democratização da leitura

possibilitada pela reprodução técnica que impõe, no âmbito formal, uma menor

propensão “[…] a ousadias vanguardistas e códigos inovadores, por princípio de

decifração difícil” (GALVÃO, 1983, p. 169). Como se vê, essa extensão do

capitalismo ao campo cultural traz importantes implicações para a configuração do

conto, pois, tendo a imprensa como principal veículo de publicação, tal gênero sofre

necessariamente coerções dessa esfera da comunicação de modo a se adequar ao

contexto.

57

Apesar ter ocupado e ainda ocupar atualmente um lugar importante no

cenário das letras mundiais, o estudo do conto parece suscitar menor interesse dos

teóricos, se comparado ao romance (cf. CORTÁZAR, 2008). Além disso, o estudo do

conto vê-se diante de outra dificuldade, esta derivada da própria natureza do gênero:

dada sua diversidade, uma definição de valor geral parece um propósito ainda

distante. Entretanto, isso não anula a validade de investigações diversas realizadas

ao longo dos anos, cada uma das quais buscando, sob uma ótica particular, os

contornos adquiridos pelo conto na história da literatura. Tais investigações

permitem, em conjunto, a construção de uma visão panorâmica sobre esse gênero.

Uma das primeiras teorizações sobre o conto foi postulada pelo também

escritor americano Edgar Allan Poe. Para ele, o conto bem construído deve ser

governado por dois princípios interligados entre si: (1) todos os incidentes narrados

devem corroborar para a construção de um efeito de sentido único e singular; (2)

todos os eventos narrados são pré-concebidos, de modo que a cena final, ou seja, o

desfecho do enredo governa todo o andamento do conto. Para a consecução desses

propósitos, Poe (1842) impõe ainda restrições ao tamanho da composição, que não

deve ser nem breve nem longa demais, de sorte que o conto possa ser lido em uma

“só sentada”, a fim de preservar a unidade de efeito.

Cortázar (2008) também afirma haver muita confusão e mal entendidos nessa

área e que, em se tratando do conto, não se pode falar em leis que regem sua

composição, mas somente em pontos de vista e certas constantes que, embora de

modo caótico, delineiam aspectos estruturais importantes desse gênero. Nesse

sentido, ele apresenta uma definição de conto que parte da distinção entre conto e

romance: enquanto este está para o filme, uma vez que ambos retratam uma

multiplicidade de eventos, aquele está para a fotografia, visto que realizam um corte

na realidade, apresentando um fragmento, uma fração desta. Entretanto, o fato de o

conto retratar apenas um momento específico de uma realidade mais ampla não

remete a uma suposta superficialidade dele em relação ao romance, pois, como

afirma Cortázar (2008, p. 151), a significação do conto transcende o limite físico e

visual imposto pelo recorte, de modo a atuar “[…] como uma explosão que abra de

par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que

transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmera”. Essa ideia de síntese,

considerada não apenas no tocante ao aspecto físico do texto, mas também, e

principalmente, no que se refere aos elementos composicionais (evento único,

58

poucas personagens) e temáticos (corte da realidade cotidiana), é também

ressaltada por Bosi (2002, p. 7), para quem “[…] a narrativa curta condensa e

potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção”.

Como se perccebe, o conto apresenta grande variedade, é proteiforme e está

submetido ao constante processo de renovação, razão pela qual se deve desconfiar,

como assinala Gotlib (1999), de definições arbitrárias que se propõem a abarcar a

totalidade do gênero. Essas empreitadas conceituais dogmáticas são invalidadas

pela diversidade do próprio objeto que tentam encapsular.

Quanto à produção desse gênero, pode-se afirmar, concordando com Lucas

(1983), que, embora a sua tradição seja antiga, sua história é moderna. No Brasil, a

produção de contos aparece somente a partir da primeira metade do século XIX.

Essas primeiras narrativas eram, geralmente, publicadas na imprensa e não

apresentavam uma finalidade eminentemente literária, destacando-se, nesse

contexto, Noberto de Sousa e Silva, considerado pela crítica o pai do conto

brasileiro, com a publicação de sua narrativa “As Duas Órfãs”, em 1841. No entanto,

o conto brasileiro, como expressão literária, teria surgido, segundo Coutinho (1971),

apenas na segunda fase do Romantismo, com a publicação do livro Noite na

taverna, de Álvares de Azevedo, momento esse também considerado por Lucas

(1983) como o primeiro marco da contística brasileira. A importância desse primeiro

momento da história do conto reside, principalmente, em fixar, cronologicamente, o

marco inicial de uma produção ficcional que terá na obra de Machado de Assis seu

grande auge. Esse segundo marco da história do conto no Brasil é possivelmente o

mais importante, pois é o trato dado a esse gênero por Machado de Assis que ajuda

a fixar diretrizes importantes dessa narrativa. Segundo Coutinho: “É ele, portanto,

inegavelmente, o fixador das principais diretrizes do conto brasileiro, a vigorarem

durante meio século, pelos menos […]” (COUTINHO, 1971, p. 43). Outros momentos

da história do conto brasileiro mencionados por Lucas (1983) são as produções de

Monteiro Lobato (considerado o marco pré-moderno) e de Mário de Andrade, este

pertencente ao Modernismo. Ainda no contexto da modernidade brasileira, podem-

se citar os nomes de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, escritores que, a seu

modo, contribuíram para o estabelecimento estético desse gênero em constante

transformação e evolução. Estudiosos como Lucas (1983) e Galvão (1983) veem as

produções a partir da década de 60 do século XX como um período áureo da

contística brasileira. Candido (2006) chega a afirmar, inclusive, que a produção de

59

contos desse período representa o melhor da literatura brasileira recente. Isso se

deve, em parte, à adaptabilidade desse gênero ao contexto moderno, pois, segundo

Lucas (1983), o conto é um dos gêneros que mais se adequaram às exigências da

modernidade. É um gênero que acompanha e reflete o movimento da vida,

retratando diferentes situações da vida real ou imaginária. No ímpeto de retratar a

existência, o conto exerce “[…] ainda e sempre, o papel de lugar privilegiado em que

se dizem situações exemplares vividas pelo homem contemporâneo” (BOSI, 2002,

p. 8). Na modernidade, esse gênero literário volta-se para pequenos momentos da

vida ordinária, transformando pedaços efêmeros do cotidiano em instantes

singulares e significativos. Além disso, no conto moderno, acentuam-se a economia

narrativa e teor fragmentário do texto, o que passa a requerer do leitor participação

ativa para preencher possíveis lacunas deixadas e construir o sentido do texto.

Candido (2006) atrela essa linhagem da produção moderna de contos ao

conceito de “nova narrativa”, amplamente discutido no contexto da literatura da

América Latina, ressaltando, para tanto, não apenas semelhanças históricas, mas

também, e principalmente, simetrias no âmbito literário, como a imitação de

tendências europeias. Por outro lado, Bosi (2002, p. 21-22) identifica duas

tendências principais assumidas pelo conto na modernidade:

De um lado, o processo modernizador do capitalismo tende a pôr de parte o puro regional, e faz estalarem as sínteses acabadas, já clássicas, do neo-realismo, que vão sendo substituídas por modos fragmentários e violentos de expressão. […] De outro lado, a ficção introspectiva, cujos arrimos foram sempre a memória e a auto-análise, ainda resiste como pode à anomia e ao embrutecimento, saltando para universos míticos ou surreais, onde a palavra se debate e se desdobra para resolver com as suas próprias forças simbólicas os contrastes que a ameaçam.

À primeira vertente filiam-se os texto que, de acordo com Bosi (2002),

apresentam um “retrato fosco da brutalidade corrente”. Nesse caso, a visão captada

pelo conto não corresponde, pois, a uma referência clara e transparente à realidade

concreta, ou seja, a uma literatura realista ou neo-realista; ao contrário, a narrativa

apresenta uma percepção ofuscada da realidade que se materializa em uma

narrativa fragmentada. No segundo caso, estão as produções definidas por Bosi

(2002) como de “sondagem mítica do mundo, da consciência ou da pura palavra”.

Essas narrativas, vinculadas à linha introspectiva, transcendem a realidade imediata

e apontam para universos míticos e surreais. Essas duas perspectivas,

60

aparentemente divergentes entre si, são, na verdade, faces do mesmo rosto que

“[…] talvez componham a máscara estética possível para os nossos dias […]” (BOSI,

2002, p. 22).

Nesse cenário moderno, figura a produção de contos de Lygia Fagundes

Telles e Ignácio de Loyola Brandão. A considerar essas duas vertentes do conto

moderno apresentadas por Bosi (2002), pode-se, a partir da produção de contos

desses escritores, afirmar que a contística de Telles está mais próxima da

“sondagem mítica do mundo, da consciência ou da pura palavra”, ao passo que a de

Brandão vincula-se à representação de um “retrato fosco da brutalidade corrente”.

Embora partindo de posições distintas, resultado principalmente de suas filiações

literárias e do modo como cada autor refrata em sua ficção traços da sociedade na

qual se encontra imerso, ambos os escritores transpõem para suas obras os ares da

modernidade. Desse modo, são temáticas comuns na literatura desses escritores as

representações do contexto social amplo e do sujeito humano nele imerso. Nesse

campo fértil, destaca-se, pela recorrência e diversidade observadas, a

representação de um sujeito em crise, cindido, duplicado. É, pois, sobre esse sujeito

que recai a investigação proposta nesse trabalho, visando a compreender como se

dá a complexa relação entre a personagem e seu duplo no contexto contemporâneo,

bem como os desdobramentos e as reflexões decorrentes dela.

2.2 Representações do duplo em Lygia Fagundes Telles22: uma leitura de três

contos

Lygia Fagundes Telles, nascida em 19 de abril de 1923, é contista,

romancista e cronista reconhecida no cenário das Letras. Seu primeiro livro,

intitulado Porão e Sobrado, foi lançado em 1938, quando a autora tinha apenas 15

anos. Contudo, considera-se como seu verdadeiro livro de estreia a obra de contos

Praia viva, lançado em 1944, no qual já se esboçam alguns traços estilísticos que

caracterizarão posteriormente a marca de sua escrita dentre os quais vale ressaltar

22

Os contos de Lygia Fagundes Telles selecionados para análise, dentre outros, foram também objetos de estudos de Lamas (2002) em sua tese de doutoramento. Entretanto, as análises aqui propostas, embora sejam norteadas por perspectivas teóricas semelhantes, diferenciam-se do trabalho de Lamas, ao conceber o duplo como manifestação do insólito nas narrativas, e ampliam-no, uma vez que se propõe um estudo comparativo com vista a estabelecer relações de semelhança e diferença entre a manifestação do duplo na contística de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Desse modo, propõe-se uma análise que amplia o universo de observação e os procedimentos de análise crítica das narrativas selecionadas.

61

a introspecção das personagens. Às coletâneas de contos, soma-se também sua

produção romanesca, sendo Ciranda de Pedra, lançada em 1954, sua primeira

publicação nesse gênero.

Silva (2001) observa na produção de Telles certas características temáticas,

estilísticas e estruturais recorrentes e inalteráveis, ao que ela denomina de mitoestilo

da escritora. Assim, no mundo ficcional criado por Telles, podem-se destacar os

seguintes elementos: preponderância da metamorfose, utilização de imagens

recorrentes, como o jardim, a fonte, a estátua; preferência por determinadas cores,

como o verde; superposição de diversos planos temporais; entre outros.

O tema da metamorfose permeia toda a obra da referida escritora. Quanto à

metamorfose de personagens, Silva (2001) identifica três modalidades: (1) a

metamorfose no sentido ovidiano, de transformação física do ser; (2) a metamorfose

no sentido goethiano, pela mudança no comportamento psíquico da personagem; (3)

a metamorfose em sentido teleológico, compreendendo a transformação última

ocasionada pela morte.

O conto “Lua crescente em Amsterdã”, publicado inicialmente na coletânea

Seminário dos Ratos (2009), exemplifica a primeira modalidade, em que a

metamorfose, devido a causas naturais ou desconhecidas, realiza-se por meio da

transmutação física da personagem. Nesse conto, o leitor é surpreendido ao final da

narrativa. Diante de seus olhos, descortina-se um evento insólito, quando o jovem

casal em crise que discute em um jardim localizado na cidade de Amsterdã perde

sua forma humana e transfigura-se em animal: uma menina que passeava pelo

jardim “guardou o bolo no bolso e agachou-se para ver melhor o passarinho de

penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava se

esconder debaixo do banco de pedra” (TELLES, 2009, p. 104). Aqui, realiza-se a

metamorfose via zoomorfismo: o ser masculino transforma-se num passarinho e o

feminino, numa borboleta.

A metamorfose no sentido goethiano é mais frequente na ficção de Telles do

que a anteriormente abordada. Nesse caso, não se trata de uma mudança física,

mas de uma transformação radical no modo como a personagem se comporta ao

longo da narrativa em suas relações consigo, com o mundo e com os outros, como

resposta a fatores emocionais e/ou sociais. Essa mudança de comportamento pode

ser resultado de um processo de degradação pelo qual passa a personagem,

determinada por motivos externos (pressões sociais) ou internos (afetividade). Pode

62

ainda compreender um processo de melhora, como resposta à queda sofrida pela

personagem, numa tentativa de reabilitação, seja em relação ao outro ou a si

mesmo (SILVA, 2001). O conto “Venha ver o pôr do sol”, publicado originalmente no

livro Histórias do desencontro (1958), narra o último encontro entre as

personagens Ricardo e Raquel, esta prestes a se casar com um homem rico. Como

despedida, Ricardo convida-a para ver um lindo pôr do sol, em um cemitério

abandonado. Nesse local, induz Raquel a entrar em uma catacumba, onde, mesmo

diante dos suplícios dela, prende-a e abandona-a. Assim, o último encontro é usado

por Ricardo como um artifício para, de forma planejada, vingar-se pelo rompimento

do relacionamento amoroso em consequência do futuro casamento de sua amada. A

partir disso, verifica-se, na narrativa, uma drástica mudança de comportamento de

Ricardo para com Raquel, que de jovem apaixonado transforma-se em assassino

passional.

Por fim, tem-se a metamorfose em sentido teleológico, que corresponde à

transformação última realizada pela morte, seja através da decomposição da matéria

orgânica do ser, seja por meio da dualidade corpo e espírito, segundo determinadas

crenças. Nos contos de Telles, a morte, compreendida também em sentido

simbólico, é uma temática recorrente, embora nem sempre ocupe o primeiro plano

da narrativa. No conto “O tesouro”, publicado no livro Jardim Selvagem (1974), a

morte é simbolizada por um novo nascimento, representativo do mito do “eterno

retorno”: o quase afogamento de Guido, ao qual se segue o aprendizado (mergulhar

e pular as ondas do mar), funciona como uma primeira etapa de um rito iniciatório

rumo ao seu crescimento espiritual. Conforme destaca Augras (2008, p. 21): “Iniciar-

se é passar por um conjunto de ritos que levam o fiel de volta aos começos do

mundo, às origens do ser”. Esse retorno às origens, realizado através do rito

iniciático, conduz ao nascimento de um novo ser: “A iniciação, o recomeço e,

portanto, metamorfose: o outro que substitui o neófito, quem é, de onde vem, o que

quer dizer?” (AUGRAS, 2008, p. 21). Como se sabe, o nascimento do ser é uma das

etapas do complexo ciclo natural da vida, que tem a morte como destino inevitável.

Assim, o renascimento marca o início de um novo ciclo, estabelecendo uma linha

divisória e uma diferenciação entre o passado e o presente do ser. Como se pode

observar, a morte inscreve-se nesse conto: o mergulho representa uma morte

simbólica – a partir da qual a personagem renasce –, um passo à frente em direção

à conquista da maturidade.

63

Paralelamente à metamorfose, outro tema em especial chama atenção pela

recorrência tanto na produção da escritora quanto na literatura de modo geral: a

construção da identidade através do confronto com o duplo. O fenômeno da

duplicidade materializa-se no texto literário através do confronto do ser com seu

duplo e assume a função de busca da identidade pelo sujeito: “As personagens de

Lygia estão em busca da unificação, mesmo às portas da morte. A escritora desvela

em seus contos esta fragmentação do mundo e a percepção aguda de que seus

personagens mostram desse fato” (LAMAS, 2002, p. 261). Desse modo, a partir da

temática do duplo, a escritora aborda o complicado processo de construção de

identidade no contexto contemporâneo, marcado pela cisão e pela fragmentação do

sujeito. Nos contos de Telles, o encontro com o duplo apresenta-se, na maioria das

vezes, como uma confrontação com a morte, o que leva as personagens a uma

reflexão sobre si mesmas e sua condição.

Os contos de Lygia Fagundes Telles seguem uma veia subjetivista e

introspectiva, características essas que se manifestam na literatura brasileira

principalmente a partir da década de 60 do século XX. Em seus contos, a ênfase

recai sobre o plano psicológico das personagens: a autora procura desnudar a vida

interior desses seres da ficção, explorando seus conflitos interiores, suas angústias

e medos. A partir dessa caracterização geral, reconhece-se na produção de contos

da autora uma vinculação ao que, nos estudos literários, denomina-se conto de

atmosfera, justamente pela ênfase dada à análise psicológica dos sujeitos, expondo

os mais íntimos conflitos humanos.

Nos contos de Telles, o psicológico aparece, muitas vezes, atrelado ao

fantástico, englobando temas que vão desde “[…] temas corriqueiros de história

simples, abarcando também situações complexas e estranhas, até desembocar no

sobrenatural e no fantástico, rompendo com os limites racionais do humano”

(LAMAS, 2002, p. 112). A construção desse cenário fantástico é possibilitada não

somente pela natureza dos temas abordados, como a morte e a busca da

identidade, mas também, e especialmente, pelo modo como a escritora dá corpo e

vida ao relato, criando situações insólitas que promovem uma ruptura na ordem

natural e racional do cotidiano. A ambientação e o desenvolvimento temporal de

alguns contos de Telles elucidam essa ruptura, ao inserir a narrativa numa

indeterminação espaço-temporal (a título de exemplo, pode-se mencionar a sempre

recorrente imagem do jardim e suas variantes, suspensos no espaço e no tempo).

64

Desse modo, o conhecimento por parte do leitor dessa recorrência a certos

temas e símbolos observados na literatura de Telles mostra-se importante não só

para a interpretação de suas narrativas em sentido amplo, mas também para o

propósito específico apresentado neste trabalho, que é analisar as configurações

assumidas pela representação do duplo em contos selecionados dessa mesma

escritora.

2.2.1 “A caçada”

O conto “A caçada” integra a coletânea O jardim selvagem, publicada

inicialmente em 1965. Narrada em terceira pessoa, a ação do conto se passa

basicamente nos fundos de uma loja de antiguidades onde se localiza uma tapeçaria

antiga, objeto que instiga a curiosidade do protagonista. A tapeçaria representa a

cena de uma caçada. Nela, dois caçadores, com suas flechas apontadas, acuam,

em meio a um bosque, um pequeno animal escondido por traz de um arbusto.

Embora pareça aparentemente banal, essa cena constitui-se como o elemento

desencadeador e motivador da trama, determinando o desenrolar e o desfecho da

narrativa, pois é partir da crescente familiaridade e identificação do protagonista com

esse objeto que a narrativa ganha corpo.

O conto inicia descrevendo o espaço de uma loja de antiguidades, local onde

se encontra a tapeçaria. Além de situar o leitor quanto ao espaço físico em que

majoritariamente se desenvolve a narrativa, é interessante observar, nessa

descrição, a adjetivação utilizada pelo narrador para caracterizá-lo: “A loja de

antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e

livros comidos de traça” (TELLES-AC, 1974, p. 99). Esses dois signos (“bolor” e

“traças”), por si sós, já sinalizam para uma atmosfera mórbida e degradada,

evocando no imaginário do leitor a ideia de um lugar desabitado, esquecido e

largado em um passado longínquo.

Contudo, a descrição desse ambiente pode, se concebida em sentido

alegórico, extrapolar o limite meramente físico e exterior, passando a caracterizar,

também, processos psicológicos internos representativos de um estado de

consciência da própria personagem. Assim, a imagem da loja de antiguidades,

impregnada pelo mofo e corroída por traças, não poderia remeter também,

metaforicamente, a um espaço interior do protagonista no qual foram depositadas

65

memórias de fatos e acontecimentos passados? Essa interpretação é sustentada

pelo desenvolvimento da narrativa, uma vez que o processo de rememoração

realizado pelo protagonista, cujos primeiros indícios foram aqui apontados, será a

força maior atuante e o elemento desencadeador dos conflitos enfrentados pela

personagem na tentativa de construção de uma identidade.

Ainda nessa descrição inicial da loja de antiguidades, dois outros símbolos

chamam atenção do leitor, principalmente pela associação e pelo poder imaginativo

e metafórico que deles emanam: “Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra

uma imagem de mãos decepadas”. Conforme destacam Chevalier e Gheerbrant

(2009), a borboleta está associada ao simbolismo da ressurreição/renascimento.

Ambas as significações estão intrinsecamente relacionadas à ideia de morte: tanto a

ressurreição quanto o renascimento são fenômenos precedidos pela morte, em nível

físico ou simbólico, e que implicam mudança de estado do ser. Por outro lado, tem-

se a imagem do São Francisco de mãos decepadas. Obviamente, a figura desse

santo, na tradição católica, remete ao sagrado e ao divino. Quanto à simbologia das

mãos, Chevalier e Gheerbrant (2009) afirmam que ela é indissociável de atributos

como atividade, poder e dominação. É, portanto, o emblema por excelência da

atitude ativa. Assim, as mãos decepadas do santo remetem às noções de

passividade e submissão. Desse modo, as figuras da borboleta e do santo de mãos

amputadas conectam-se, respectivamente, à ideia de morte e à passividade do

protagonista diante das situações, constantemente evocadas ao longo da narrativa.

A relação do santo sem mãos com o protagonista é explicitada, inclusive, em outra

passagem do conto, através de uma comparação – “O homem estava tão pálido e

perplexo quanto a imagem” (TELLES-AC, 1974, p. 99) –, o que reforça a

interpretação aqui proposta. Observa-se, pois, que signos aparentemente

despropositados, assim como muitos outros que aparecem ao longo da narrativa,

encobrem significações que levam à descoberta de indícios importantes sobre o

desenrolar do conto, os quais somente uma leitura atenta revelaria.

Uma vez situado o espaço de forma geral, o narrador direciona o foco da

narrativa para as relações e conflitos vivenciados pelo protagonista ante a

contemplação do objeto artístico: “Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria

que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais” (TELLES-AC, 1974,

p. 99). Aqui, é mostrada ao leitor a grandiosidade da tapeçaria, a princípio no que

concerne ao aspecto físico, mas já indiciando, também, a amplitude subjetiva que

66

esta adquirirá para o protagonista no decorrer da narrativa. É interessante também

atentar para a similaridade do espaço que a tapeçaria ocupa tanto no ambiente da

loja quanto na vivência subjetiva da personagem. No espaço físico da loja, a

tapeçaria, apesar de sua grandiosidade, ocupa uma parede ao fundo, construindo,

com isso, a concepção de um recinto mais reservado e íntimo. De modo idêntico, a

tapeçaria se reveste de enorme significação para a personagem: sua vivência,

estranhamente, liga-se à representação, embora as lembranças desse fato

localizem-se no “fundo” da memória23, inacessível até determinado momento. Desse

modo, a tapeçaria é, também no plano subjetivo, grandiosa, apesar de ocupar um

local reservado, íntimo.

É nesse momento também que o leitor tem conhecimento da relação de

admiração e contemplação da personagem para com a tapeçaria, revelação que se

dá a partir do discurso da vendedora da loja: “– Já vi que o senhor se interessa

mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado” (TELLES-AC, 1974, p. 99). Esse

discurso não apenas ilustra o interesse do protagonista pelo objeto, como também

informa a anterioridade desse interesse ao momento presente na narrativa, já que se

infere não ser a primeira vez que ele contempla a tapeçaria. Isso reforça o laço e a

ligação entre os dois, levando, a partir daí, a uma intensidade crescente no conto,

resultado da progressiva familiarização do protagonista com a tapeçaria, até

culminar no momento final de reconhecimento. O percurso que leva a personagem à

identificação completa com a cena configura-se, desse modo, como um processo de

rememoração. Como afirma Vernant (1973, p. 112), “[…] a rememoração não

procura situar os acontecimentos em um quadro temporal, mas atingir o fundo do

ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual saiu o cosmo e que permite

compreender o devir em seu conjunto”. Esse processo põe em jogo,

inevitavelmente, a relação e a indeterminação entre os opostos passado/presente e

memória/esquecimento.

Esse processo de identificação com a cena representada na tapeçaria tem

início logo nas primeiras passagens do conto. Esse processo é indicado pela

percepção diferente que a personagem começa a ter em relação a esse objeto:

23

O poder sagrado da memória é representado no mundo grego pela deusa Mnemosyne. Os atributos imputados a essa deusa contrapõe-se, pois, aos perigos do esquecimento, simbolizado na tradição grega pelo rio Lethe (letal – esquecimento), passagem obrigatória no trajeto rumo ao mundo dos mortos, o Hades.

67

O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. – Parece que hoje está mais nítida… – Nítida? – Repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. – Nítida, como? – As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? (TELLES-AC, 1974, p. 99)

Nessa passagem, observa-se claramente a diferença de percepção que

ambas as personagens demonstram quanto à tapeçaria, o que marca posições

discursivas antagônicas no interior da narrativa. Por um lado, a vendedora lança um

olhar objetivo para o objeto: a tapeçaria é simplesmente um produto dentre muitos

outros expostos em sua loja, sem qualquer significação especial. Isso é comprovado

pelos questionamentos dela (“nítida?”; “nítida, como?”), em resposta a perguntas da

personagem. Por outro lado, ela visualiza o objeto sob uma ótica particular,

subjetiva, de modo que o torna relevante e significativo para si, conforme demonstra

sua fala: “Parece que hoje está mais nítida”, “As cores estão mais vivas”. Isso se dá,

precisamente, porque o processo de reconhecimento se processa na psique do

protagonista. Assim, a cena representada na tapeçaria relaciona-se de algum modo

com a intimidade e a vivência da personagem, embora seja, até o momento,

inexplicável para ela. Disso decorre a percepção pela personagem dos mais ínfimos

detalhes, os quais passam apercebidos pelo olhar indiferente e desinteressado da

vendedora.

Cada uma das posturas assumidas pelas personagens pode ser vinculada à

atuação de duas forças antagônicas que demarcam discursivamente fronteiras bem

nítidas quanto à percepção do objeto: a vendedora guia-se pelo olhar frio da razão,

ao passo que o protagonista se entrega às volúpias da emoção. Essa diferença de

percepção do objeto entre os dois seres permanecerá ao longo da narrativa,

mostrando-se cada vez mais marcada no texto à medida que o processo de

identificação do protagonista avança. O embate entre o discurso das duas

personagens acaba instaurando ambiguidades insolúveis para o leitor: como saber,

em determinado momento da narrativa, se o pequeno ponto ao qual elas se referem

trata-se de uma seta (de acordo com a percepção do protagonista) ou de um

simples buraco provocado por traças (sob a perspectiva da vendedora)? Essa

ambivalência ajuda a criar a atmosfera de ambiguidade, de mistério e de

indeterminação, tão característica da narrativa fantástica.

68

Como dito anteriormente, a tapeçaria apresenta a cena de uma caçada. Nela

estão representados dois caçadores (um no primeiro e outro no segundo plano) e a

caça (escondida atrás de uma touceira), figuras inseridas numa espécie de bosque

que remete à ideia do Éden, o jardim primordial. O caçador em primeiro plano está

com um arco apontado para a caça, enquanto o outro não passa de uma “vaga

silhueta”, conforme descrição do narrador. Nessa cena, chama atenção a disposição

das personagens, o que leva à configuração explícita de relações de poder. Isso

acontece não apenas pelo destaque que o caçador assume na cena, ao ser

representado no primeiro plano, mas, principalmente, pelo modo como é descrito

fisicamente e pela natureza de sua própria atividade, que evidenciam uma relação

de superioridade em relação ao animal caçado. Como se sabe, a atividade de caçar

é antiquíssima, remontando aos primórdios da humanidade. No plano mítico, o ato

de caçar corresponde a uma prática sagrada no contexto de diversas civilizações. É,

conforme Chevalier e Gheerbrant (2009), uma atividade senhoril, reservada

unicamente ao dono da terra. A arma segurada pelo caçador é, por sua vez,

conferidora de poder a esse sujeito: de posse do arco e da flecha, ele detém em si a

autoridade para retirar a vida de outros animais. Na mitologia grega, o arco e a

flecha, sob a posse do arqueiro Apolo, estão relacionados à manutenção/imposição

de uma lei: “Principalmente os humanos ser-lhe-ão submissos, pois, na sua

qualidade de arqueiro, ele é o senhor de seus destinos” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009, p. 77). Ademais, a descrição física do caçador apresentada

pelo narrador corrobora a interpretação aqui sustentada: “Poderoso, absoluto era o

primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos,

à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta” (TELLES-AC, 1974, p.

100). Nessa passagem, o narrador destaca características relacionadas à virilidade,

à força e à bravura do caçador. Sua barba, comparada a um “bolo de serpentes”,

evoca um rastro de significações míticas que se relacionam a forças primitivas

criadoras do cosmos e às potencialidades do sujeito. Considerado o reservatório de

todas as latências, a serpente é também, na figura da uróboro – serpente primordial

que morde a própria cauda – , símbolo da dialética entre vida e morte. A partir disso,

verifica-se que a figura do caçador no conto reveste-se de uma simbologia e de um

poder que o conectam aos princípios vida/morte. A caça, por sua vez, encontra-se

numa posição de inferioridade e submissão, não apenas por sua oposição ao

caçador em primeiro plano, como também pela indeterminação de sua constituição

69

física e de sua individualidade, já que se encontra escondida por trás de um arbusto.

Essas considerações aqui propostas sustentam, portanto, a ideia de hierarquização

presente na cena da tapeçaria.

Além da composição e disposição das personagens acima comentadas, é

importante destacar o simbolismo de outros elementos pictóricos presentes na

tapeçaria. Estes, por seu turno, remetem, de modo explícito ou não, a duas forças

gerais que estão intimamente ligadas na trama, a saber, a ideia de dualidade, que,

no conto, ajuda a compor a atmosfera de prenúncio da morte do protagonista. O

narrador descreve a tapeçaria do seguinte modo:

[…] tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno (TELLES-AC, 1974, p. 100).

Aqui, dois campos semânticos principais chamam atenção do leitor: de um

lado, a combinação dos signos céu/tempestade; de outro, a relação das cores

verde/violeta. Com relação ao primeiro campo, entende-se que ambos os símbolos

remetem de imediato ao divino: o céu como manifestação direta da transcendência e

a tempestade como símbolo da onipotência e da cólera divina. No segundo caso, a

simbologia do verde, se considerado isoladamente, está intimamente ligada ao

despertar da vida. Contudo, ele aparece associado a outra cor, o violeta, que é

assim descrita por Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 960): “[…] o violeta, no

horizonte do círculo vital, situa-se do lado oposto ao verde: ele significaria, não a

passagem primordial da morte à vida, i. é., a evolução, mas a passagem outonal da

vida à morte, a involução” (Grifos dos autores). Desse modo, o violeta,

contrariamente ao verde, está associado à ideia de morte. Na descrição apresentada

pelo narrador, o violeta escorre da folhagem (que se supõe aqui verde) e espalha-se

no chão como um “líquido maligno”, impregnando também a touceira24 na qual se

escondia a caça, o que simboliza a disseminação de uma atmosfera mórbida ao

longo da representação como prenúncio do desfecho da narrativa.

Assim, o cenário circundante, em concordância com a hierarquia estabelecida

na disposição das personagens na cena, corrobora a ideia de opressão da “caça”,

24

A ressalva feita pelo narrador quanto às manchas na cor violeta presentes na touceira (se faziam parte do desenho ou se eram efeito do tempo sobre o pano) instaura uma certa ambiguidade no discurso ficcional. O interessante, aqui, é a presença desses elementos e a simbologia que deles emana.

70

materializando, através dos signos céu/tempestade e verde/violeta, a força e os

desígnios de uma transcendência e a inevitabilidade de um destino por eles

prenunciado. Isso reforça as percepções, anteriormente discutidas, de passividade e

submissão do animal caçado.

O motivo pelo qual a tapeçaria, numa espécie de magia, prende a atenção do

protagonista somente é revelado no final da narrativa. Desse modo, o leitor é

testemunha de uma busca frenética da personagem em precisar sua ligação com o

objeto, compartilhando de sua angústia e lamentação por não conseguir relembrar

quando e onde assistira à cena representada: “Sua mão tremia. Em que tempo, meu

Deus! Em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?” (TELLES-AC,

1974, p. 100). Paulatinamente, a personagem consegue rememorar lembranças

relacionadas à tapeçaria, reconstruindo, através desses fios de memória, sua

relação com esse objeto: “Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu –

conhecia tudo tão bem, mas tão bem!” (TELLES-AC, 1974, p. 101). Nessa

passagem, o homem consegue relacionar a cena a um episódio por ele vivenciado.

Embora afirme conhecer alguns dos elementos representados na tapeçaria – o

bosque, o caçador, o céu – e lembrar-se, inclusive, de sensações relacionadas a

essa experiência – o perfume dos eucaliptos, o rio da madrugada etc –, não

consegue precisar em que momento se deu essa ação. Esse discurso, constituído

de forma fragmentária, não ilumina nem esclarece a situação. Apesar da

personagem lembrar-se de alguns elementos representados na cena, não consegue

construir bases sólidas que possibilitem compreender racionalmente a situação.

Esse fenômeno pode ser relacionado ao que Freud (1996a) denomina como

Estranho:

[…] todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho.

Nesse caso, as vivências do protagonista relacionadas à cena representada

na tapeçaria foram reprimidas e, por essa razão, retornam como estranhas e não

familiares para a personagem. Conforme observa Moreira (2008, p. 33), nos contos

de Lygia Fagundes Telles “[…] o estranho surge como um encontro a ser evitado, o

fatídico encontro com a morte e consigo mesmo”. Até o final do conto, permanece a

71

indeterminação espaço-temporal quanto à cena representada na tapeçaria: as

lembranças da personagem esfumaçam-se em seu passado, o que torna impossível

associá-las tanto a um tempo histórico e cronológico, quanto a um espaço

geograficamente determinável. Como se verá adiante, essas vivências e

experiências reprimidas, que retornam como estranhas, estarão estritamente

relacionadas às questões do duplo e da morte.

A busca de explicações que justifiquem a familiaridade e identificação da

personagem com a tapeçaria revela, na verdade, a tentativa e a necessidade de

responder satisfatoriamente à clássica pergunta: “quem sou eu?” Toda a narrativa

gira em torno da procura dessa verdade interior pelo sujeito, demonstrando o

sofrimento e a angústia desse homem ao longo de um árduo percurso. Desse

questionamento inicial desdobram-se muitas outras perguntas, o que demonstra a

necessidade da personagem em precisar sua identidade diante da cena

representada: “Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem

sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual?”

(TELLES-AC, 1974, p. 101). Mais adiante, ele afirma ainda: “E se tivesse sido o

pintor que fez o quadro?” (TELLES-AC, 1974, p. 101), “E se fosse um simples

espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese?” (TELLES-

AC, 1974, p. 101-102), “Era o caçador? Ou a caça?” (TELLES-AC, 1974, p. 103).

Dessa forma, vê-se que a tentativa de determinar a razão de sua familiaridade com

a situação representada na tapeçaria é, na verdade, a tentativa de constituir uma

identidade determinável. Nessa busca, que está inscrita no próprio título do conto,

acontece a identificação do eu com o outro (ou o duplo), que assume,

hipoteticamente, as formas do caçador, do companheiro, do pintor, de um

espectador casual ou mesmo da caça.

A procura da identidade através da relação com o duplo provoca no

protagonista sentimentos conflitantes e contraditórios, conforme se percebe nos dois

fragmentos destacados abaixo:

Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos (TELLES-AC, 1974, p. 101); Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na

72

vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo (TELLES-AC, 1974, p. 102).

Isso se justifica porque, conforme afirma Bravo (1998), a relação do eu com o

duplo é sempre conflitante, gerando sentimentos que oscilam entre a atração e a

repulsa. Nessas passagens, verificam-se tais sentimentos: a inquietude da

personagem ante a contemplação da tapeçaria – “enxugando o suor das mãos” –; a

sensação contraditória e vazia que ela caracteriza como “paz sem vida”; os

sentimentos, ao mesmo tempo, de repulsa e de atração exercidos pela tapeçaria

perante o protagonista, expressos na atitude de sair vagueando pelas ruas – numa

tentativa de fuga – e, repentinamente, de ver-se diante da mesma loja,

contemplando sequiosamente a tapeçaria.

Na última parte do conto, o leitor se vê diante de uma situação inusitada: a

cena representada na tapeçaria invade a realidade, instaurando uma atmosférica

fantástica na narrativa. É nesse momento também que se configura o encontro do

eu com seu duplo:

“Conheço o caminho” […] E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. […] Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... […] Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor! “Não...” – gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração. (TELLES-AC, 1974, p. 103)

A realidade é, então, invadida pelo “mundo” representado na tapeçaria: o

cheiro da folhagem e da terra, os galhos e os troncos de árvores, enfim, o bosque

adentra no mundo real. Dessa forma, o protagonista, embora lute contra isso ao

tentar agarrar-se à realidade – aqui o armário pode ser entendido como

representando metonimicamente a tentativa de manter-se preso à realidade

concreta –, é também transportado para esse tempo e espaço míticos, deslocado da

realidade imediata: sabe-se apenas, através dos indícios apresentados pela

personagem e pelo narrador, que a ação acontece num bosque, em uma

determinada madrugada. Nessa experiência mítica, o protagonista reconhece no

73

outro seu próprio eu: a caça assume a condição de duplo da personagem. O

compadecimento, anteriormente demonstrado pelo protagonista para com a caça –

“compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para

prosseguir fugindo” (TELLES-AC, 1974, p. 101) –, já prenunciava, ainda que de

modo velado, a identificação que se efetua nessa cena final.

Nesse conto, a confronto com o outro realiza-se através de um processo de

fusão: a personagem não apenas se identifica com o outro, mas se funde a ele. O

encontro com o outro é, aqui, um encontro com a morte: a seta atirada pelo caçador

atinge-lhe o peito, causando-lhe a morte, o que confirma as evidências

anteriormente apontadas sobre o prenúncio da morte do protagonista. Partindo da

classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002), o duplo neste conto realiza-se

através de uma fusão: dois seres diferentes passam por um processo gradual de

identificação que culmina na união total. Já segundo a tipologia de Jourde e

Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), tem-se um duplo subjetivo (protagonista confronta-

se com seu duplo) e externo, já que a caça se apresenta no final do conto como o

outro da personagem.

Vale dizer que no conto “A caçada” o tema da dualidade não se restringe

apenas à duplicação da personagem. Ao contrário, aparece organicamente

imbricado nas diversas camadas do texto, instaurando ambivalências insolúveis. A

relação do protagonista com a tapeçaria, fato estruturante do enredo dessa

narrativa, oscila entre o estranho e o familiar, indecidivelmente: a cena representada

mostra um fato familiar que, ao ser reprimido pela personagem, retorna para sua

percepção como estranha. Isso justifica o angustiante e doloroso processo de

rememoração, dada a natureza inquietante dos acontecimentos que, por isso

mesmo, foram reprimidos. Esse processo de identificação da personagem com a

tapeçaria é, de igual modo, governado por um complexo jogo entre os opostos

memória e esquecimento e, por sua vez, instaura outras dualidades, a saber, a

ambivalência entre vida e arte, passado e presente. A dualidade vida/morte,

vivenciada pelo sujeito, manifesta-se na narrativa através de vários símbolos: a

combinação do verde com o violeta, conforme já demonstrado anteriormente, que

simboliza uma passagem da vida à morte; a poeira que impregna e sustenta a

tapeçaria, em que o pó é, ao mesmo tempo, símbolo da origem da vida e da morte

(na tradição cristã, o homem nasce do pó e ao pó retorna). No plano espacial,

observam-se também uma fusão e uma indeterminação entre as polaridades

74

interior/exterior e dentro/fora: a tapeçaria, embora se constitua como representação

exterior, retrata uma realidade íntima, interior da personagem; esta, apesar de situar-

se fora da representação, sente-se, em determinados momentos, inserida dentro da

cena – “Mas se detesto caçadas! Por que estar aí dentro?” (TELLES-AC, 1974, p.

101). Essas fronteiras são anuladas quando o bosque, presente na tapeçaria, invade

a realidade do protagonista, momento em que há a identificação definitiva com a

caça.

Na configuração do duplo nesse conto, verifica-se uma íntima relação com o

discurso fantástico. A duplicação da personagem, embora contrária à racionalidade

cotidiana, adquire coerência interna graças ao modo como o autor organiza os fatos

do enredo, de modo a construir uma atmosfera fantástica que torna verossímeis

acontecimentos aparentemente inaceitáveis de um ponto de vista racional. É assim

que se tornam críveis para o leitor, no referido conto, a incursão do bosque da

tapeçaria na realidade concreta do sujeito e a fusão deste com a caça. Assim, o

duplo manifesta-se na narrativa graças às infinitas possibilidades abertas pelo

fantástico na literatura, em que o real e o irreal convivem lado a lado de forma

harmoniosa e não excludente.

2.2.2 “A mão no ombro”

O conto “A mão no ombro” faz parte da coletânea Seminário dos ratos,

publicada em 1977. É narrado em terceira pessoa, com presença marcante do

discurso indireto livre, em que a fala do narrador entrelaça-se com a da personagem.

Sua ação pode ser dividida em três partes: a primeira, formada pelo sonho do

protagonista que se encontra em um jardim; a segunda, quando o homem acorda e

se encontra em sua casa; e a terceira, correspondente ao momento em que o jardim

do sonho adentra a realidade.

A narrativa inicia-se imersa no sonho da personagem, apresentando a

descrição de um jardim, espaço no qual o ser ficcional se encontra inserido naquele

momento: “O homem estranhou aquele céu verde-cinza com a lua de cera coroada

por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo

opaco” (TELLES-MO, 2009, p. 105). Contudo, não se trata aqui de um jardim

qualquer, mas, como a própria personagem afirma, “Um jardim fora do tempo mas

dentro do meu tempo […]” (TELLES-MO, 2009, p. 105), carregado, portanto, de

75

importância subjetiva e simbólica. Deslocado no tempo e no espaço, esse jardim

dialoga e, ao mesmo tempo, rompe com a concepção do Éden, ao adquirir uma

conotação misteriosa e sombria que inquieta o protagonista. Na descrição inicial

desse espaço, presente no primeiro parágrafo do conto, o narrador estabelece o

jogo com uma série de palavras antagônicas que ajuda a construir a atmosfera de

indeterminação na narrativa: não se sabe se a luminosidade fosca do jardim

emanava da lua ou de um sol apagado; tampouco se era primavera, verão, inverno

ou outono. Ainda na descrição do jardim, apresentada no parágrafo inicial, é

expressiva a ausência da pulsão de vida nesse ambiente: não viu borboletas, nem

pássaros, nem formigas. Essa escassez de vida aqui assinalada será uma

característica marcante desse jardim, ao mesmo tempo inocente e inquietante.

Apenas um inseto e o caçador parecem habitar esse espaço e mover-se nele.

Do sonho da personagem, que é descrito na primeira parte do conto, podem-

se destacar três elementos principais: a simbologia da estátua presente no jardim;

as lembranças de acontecimentos da infância que emergem no sonho; a fixação do

homem na figura do caçador.

Em suas andanças pelo jardim, a personagem depara-se com um objeto que,

por um instante, prende sua atenção: uma estátua. O narrador descreve da seguinte

forma esse episódio: “Aproximou-se da mocinha de mármore arregaçando

graciosamente o vestido para não molhar nem a saia nem os pés descalços. Uma

mocinha medrosamente fútil no centro do tanque seco, pisando com cuidado,

escolhendo as pedras amontoadas em redor” (TELLES-MO, 2009, p. 106).

Surpreendido por um inseto que saía da orelha da estátua, a personagem prossegue

seu caminho, com as mãos nos bolsos e “[…] pisando com a mesma prudência da

estátua” (TELLES-MO, 2009, p. 106). Como destaca Freud (1996d), o sonho é

formado por um complexo processo de deslocamentos e condensações de

conteúdos psíquicos, responsáveis pela roupagem que o material onírico adquire. A

pergunta lançada pelo narrador – “[…] mas o que significava essa estátua?”

(TELLES-MO, 2009, p. 106) – é também um questionamento que ecoa na mente do

leitor em sua tentativa de construir sentido. Como se observa, o próprio narrador

ajuda a esclarecer esse fato, ao estabelecer uma analogia entre a postura da

estátua (pisando com cuidado para não molhar os pés) e o modo como a

personagem dá continuidade a sua caminhada. Estendendo essa interpretação,

pode-se compreender esse modo de se postar da estátua como representativo da

76

postura assumida pela personagem ao longo de sua vida. Nessa imagem, pode-se

identificar uma série de elementos simbólicos que justificam essa relação. A estátua

adota uma postura de prudência e cuidado para não se molhar. Como se sabe, a

água é símbolo universal de vida, de fertilidade, de regenerescência e purificação

(cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). Essa carga simbólica ajusta-se

perfeitamente à analogia aqui estabelecida: a personagem adotou, ao longo de sua

existência, a mesma postura de prudência, selecionando cuidadosamente os

caminhos a serem percorridos. Desse modo, a simbologia da estátua aponta para as

atitudes que a personagem assume perante a vida: nunca se comprometer, não criar

raízes, pautando-se na efemeridade das relações cotidianas – “Como ele mesmo,

tanto cuidado em não se comprometer nunca, em não assumir a não ser as

superfícies. Uma vela para Deus, outra para o Diabo” (TELLES-MO, 2009, p. 113).

Do mesmo modo, a imagem do tanque seco representa o ceifar da água da vida,

que remete à sensação de vazio da personagem: “Sentiu-se oco […] se abrisse as

veias, não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada” (TELLES-MO, 2009, p.

105-106).

Das lembranças de acontecimentos da infância da personagem que são

retomadas no sonho, duas em especial chamam atenção pelo poder imaginativo que

sugerem. A primeira delas liga-se às festividades da Semana Santa, particularmente

à procissão com o senhor morto na Sexta-Feira Santa. A personagem, com sua

roupa de Senhor dos Passos, relembra a angústia e o remorso que pairavam sobre

as pessoas nessa celebração, chegando a se questionar: “[…] o que mais nos

espera, se até com Ele...” (TELLES-MO, 2009, p. 107). Rememora, ainda, como

tudo isso o afetava internamente, provocando a vontade de evasão e o desejo de

que o Sábado de Aleluia e o momento da ressurreição chegassem logo. A segunda

corresponde a lembranças da morte de um trapezista num circo, a qual presenciara

quando criança. No sonho, uma teia de aranha que se cola em sua calça estabelece

a ligação com esse fato: “[…] o trapezista de malha branca (foi na estreia do circo?)

despencou do trapézio lá em cima, varou a rede e se estatelou no picadeiro”

(TELLES-MO, 2009, p. 108). Desse acontecimento, fixa-se na memória da

personagem a imagem do trapezista contorcendo-se até a imobilidade e a morte.

Ambas as lembranças que insurgem no sonho do protagonista, apesar da aparente

aleatoriedade, guardam entre si uma conexão profunda: remetem, ainda que de

modo indireto, à condição mortal à qual todos os seres humanos se encontram

77

irremediavelmente presos, o que ajuda a criar a atmosfera de anúncio e presságio

da morte do protagonista.

Por fim, merece destaque nessa primeira parte do conto o papel

desempenhado pelo caçador, figura impressiva sobre a qual é depositada

importante carga simbólica. No sonho do protagonista, o caçador aparece em dois

momentos distintos: primeiramente, ligado às lembranças da infância; depois, como

personalidade integrante do sonho. Como lembrança da infância, a figura do

caçador remete às brincadeiras de criança com o pai. Num jogo de quebra-cabeça,

a personagem procurava apressadamente pelo caçador escondido em meio a um

bosque para não perder a partida: “[…] Vamos, filho, procura nas nuvens, na árvore,

ele não está enfolhado naquele ramo? No chão, veja no chão, não forma um boné a

curva ali do regato?” (TELLES-MO, 2009, p. 106). Por fim, vem a grande descoberta:

“Está na escada […]” (TELLES-MO, 2009, p. 107). Na condição de personagem que

integra o sonho do protagonista, o caçador personifica a morte: “Esse caçador

familiarmente singular que viria por detrás, na direção do banco de pedra onde ia se

sentar. […] Para não me surpreender desprevenido […] discretamente ele daria

algum sinal antes de pousar a mão no meu ombro” (TELLES-MO, 2009, p. 107).

Como observam Chevalier e Gheerbrant (2009), a simbologia da atitude de

colocar a mão sobre um objeto denota tomada de posse ou afirmação de poder

sobre ele. No conto, o gesto do caçador de assentar a mão sobre o ombro da

personagem assume a significação de um aviso ou alerta de que a morte chegara. A

simbologia que emana da imagem do caçador descendo a escada para anunciar sua

resolução ajuda a compor essa atmosfera mística. De acordo com Chevalier e

Gheerbrant (2009), a escada reflete o simbolismo da relação entre céu e terra,

configurando-se como um objeto que permite as idas e vindas entre estes dois

espaços cósmicos. Nesse cenário, o caçador corporifica os atributos de uma força

transcendental e metafísica, que impõe sua superioridade e suas determinações.

Isso fica evidente através do controle que essa entidade detém do espaço e da

impossibilidade de escapar do encontro com ela: “[…] todos os caminhos iam dar na

escada […]” (TELLES-MO, 2009, p.109). Diante do exposto, podem-se estabelecer

algumas correlações entre a representação da figura do caçador no sonho da

personagem e as lembranças desta acerca das brincadeiras da infância com o pai:

nesses dois casos, apresenta-se a figura de um caçador em meio a um jardim que

desce através de uma escada. Contudo, o sonho promove uma inversão de papéis:

78

o protagonista, que no quebra-cabeça procurava o caçador escondido, passa, no

sonho, à condição de criatura procurada. Do mesmo modo, o caçador, considerando

sua representação no jogo da infância e no sonho, vai da passividade à atividade,

respectivamente, já que assume a incumbência de anunciador da morte.

É diante desse cenário que o protagonista sente a proximidade da morte:

Calou-se, ouvindo os passos [do caçador] que desciam tranquilamente a escada. […] Agora está nas minhas costas, ele pensou e sentiu o braço se estender na direção do seu ombro. Ouviu a mão ir baixando numa crispação de quem (familiar e contudo cerimonioso) dá um sinal, sou eu (TELLES-MO, 2009, p. 108-109).

No intuito de evitar esse encontro, a personagem procura evadir-se dessa

situação, o que reflete sua atitude de negação e de luta contra a morte: “Preciso

acordar, ordenou se contraindo inteiro, isso é apenas um sonho! Preciso acordar!

acordar. Acordar, ficou repetindo e abriu os olhos” (TELLES-MO, 2009, p. 109).

Nem cinquenta anos… A morte parece ter batido cedo demais na porta da

personagem. Essa é a conclusão a que chega quando acorda e relembra o sonho

que tivera. Não obstante, essa atitude de negação da morte apresenta-se, na

verdade, como o reflexo de determinados comportamentos e posturas assumidos

pelo homem moderno. Na sociedade moderna, o homem encontra-se

demasiadamente preso às ocupações e à correria cotidianas e se esquece

(consciente ou inconscientemente) de sua condição de ser finito. Projetos e planos

arquitetados parecem grandes demais para se ajustarem à efemeridade e à finitude

da vida humana. Em virtude disso, a morte apresenta-se como uma realidade

distante, a perder-se na extensão das veredas da vida: “Um dia, quem sabe? Um dia

tão longe, mas tão longe que a vista não alcançava essa lonjura, ele próprio se

perdendo na poeira de uma velhice remota, diluído no esquecimento” (TELLES-MO,

2009, p. 109).

Percebe-se, pois, que o jardim do sonho instaura uma ruptura na vivência da

personagem: “Habituara-se tanto ao quotidiano sem imprevistos, sem mistérios. E

agora a loucura desse jardim atravessado em seu caminho” (TELLES-MO, 2009, p.

106). As experiências vivenciadas nesse espaço, especificamente a da proximidade

com a morte, deixam marcas profundas nesse ser, levando-o à adoção de um novo

olhar sobre a vida. A demarcação dessa tomada de consciência pode ser

representada, simbolicamente, pela seguinte atitude: “Voltou-se para a janela e

79

estendeu a mão para o sol” (TELLES-MO, 2009, p. 109). A simbologia desse ato

exemplifica o estado de espírito da personagem. Como notam Chevalier e

Gheerbrant (2009), a janela representa uma abertura para o ar e para a luz,

caracterizando-se, portanto, como símbolo da receptividade. Por outro lado, o sol é

símbolo universal da luz, do calor, da vida. Assim, o gesto da personagem

representa uma abertura do eu para a vida em todas as suas potencialidades,

contrapondo-se, portanto, aos comportamentos cotidianos automatizados e

mecanizados aos quais estivera presa por tanto tempo. O fato da personagem

estender a mão para o sol sinaliza que a iniciativa parte dela. Essa nova postura é

evidenciada em outras passagens do texto, como no fragmento a seguir: “Cumpriu a

rotina da manhã com uma curiosidade comovida, atento aos menores gestos que

sempre repetiu automaticamente e que agora analisava, fragmentando-os em

câmera lenta, como se fosse a primeira vez que abria uma torneira” (TELLES-MO,

2009, p. 110).

Sua atitude contemplativa e reflexiva estende-se para além dos “pequeninos

prazeres” cotidianos que a personagem, após o sonho, passa a enxergar de um

modo diferente. Como que tomado por uma epifania, empreende questionamentos

existenciais, analisando suas relações consigo mesmo, com os outros e com o

mundo.

“Conhece-te a ti mesmo?” Não – provavelmente responderia o protagonista.

Ele prova desconhecer seus próprios sentimentos, mostrando-se, inclusive, surpreso

com algumas situações: “[…] não sabia que amava assim a vida. Essa vida da qual

falava com tamanho sarcasmo, com tamanho desprezo” (TELLES-MO, 2009, p.

110). O desconhecimento de si mesmo aparece de forma tão marcante no conto que

a personagem não reconhece sua própria silhueta: “Examinou-se no espelho: estava

mais magro ou essa imagem era apenas um eco multiplicador do jardim?” (TELLES-

MO, 2009, p. 110). Aqui, é importante destacar a atitude contemplativa do sujeito, o

que, inclusive, permite uma conexão direta com o mito de Narciso, especificamente

no que tange ao simbolismo do espelhamento. O olhar para o reflexo no espelho

representa, em última análise, uma tentativa de reconhecimento de si empreendida

por um sujeito em conflito. Entretanto, o espelho oferece-lhe tão somente o reflexo

de sua exterioridade corporal que, inclusive, não condiz com a imagem que projeta

de si.

80

Do mesmo modo, as relações da personagem com os outros,

especificamente com os membros de sua família (sua esposa e o filho do casal),

mostram-se problemáticas e submetidas à automatização da vida cotidiana.

A vivência do casal parece refém de uma rotina em que qualquer expressão

de sentimentalismo não encontra mais espaço: “[…] mas há quanto tempo tinha

acabado o amor? Ficara esse jogo. Essa acomodada representação já em

decadência por desfastio, preguiça” (TELLES-MO, 2009, p. 111). Desse modo,

estabelece-se entre os dois uma relação fria, de conveniências e aparências,

representada por conversas sobre assuntos frívolos e superficiais: “Ela passava

creme na cara, fiscalizando-o através do espelho, mas ele não ia fazer sua

ginástica? Hoje não, disse massageando de leve a nuca, chega de ginástica”

(TELLES-MO, 2009, p. 109). Além da preocupação excessiva das personagens com

padrões estéticos, percebe-se também que não há conversa face a face: a mulher,

fazendo uso de produtos de beleza, “fiscaliza” seu esposo através do espelho. Esse

diálogo, realizado de modo indireto (o marido é mantido no campo visual da esposa

através do reflexo projetado pelo espelho), ilustra de modo exemplar as relações

sociais estabelecidas entre os sujeitos no contexto da modernidade. Cada um

encontra-se preocupado demais consigo mesmo e com sua imagem, conforme se

verifica também no fragmento transcrito abaixo:

Lá fora, um empresário de sucesso casado com uma mulher na moda. A outra fora igualmente ambiciosa mas não tinha charme e era preciso charme para investir nas festas, nas roupas. Investir no corpo, a gente tem que se preparar como se todos os dias tivesse um encontro de amor, ela repetiu mais de uma vez. Olha aí, não me distraio, nenhum sinal de barriga! (TELLES-MO, 2009, p. 112)

Nessa passagem, compreende-se claramente a importância que ambas as

personagens atribuem à constituição e manutenção de uma imagem socialmente

prestigiada e valorizada. O ser masculino não só mantém uma imagem de

empresário de sucesso, como também associa a ela sua condição de homem

casado com uma mulher que segue padrões da moda. A junção desses dois

atributos permite a construção e a projeção de uma imagem social ainda mais

vigorosa, de um sujeito bem-sucedido e realizado profissional e pessoalmente. É

interessante atentar para a observação do narrador referente à primeira esposa da

personagem, que, embora fosse igualmente ambiciosa, não tinha charme para

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investir em festas, roupas, corpo. Aqui, mais uma vez, percebe-se extrema

valorização da estética e do corpo. Esses comportamentos refletem a intensificação

do narcisismo na sociedade contemporânea, instaurando uma verdadeira tirania

narcísica no seio da sociedade. Entretanto, a expressão “lá fora” demarca com

exatidão o caráter exterior e superficial dessas “falsas” identidades – a persona, de

acordo com a nomenclatura jungiana – as quais, no fundo, não condizem com a

interioridade do sujeito.

A relação entre pai e filho é também governada pelo mesmo automatismo e

frieza. O narrador observa, no beijo dado no filho, a simples reprodução de um ato

mecânico, desprovido de emoções: “Beijou o filho de uniforme azul, entretido em

arrumar a pasta do colégio, exatamente como fizera na véspera” (TELLES-MO,

2009, p. 111). O mesmo comportamento se verifica no beijo de despedida que o filho

lhe dá: “O beijo que lhe deram [filho e esposa] foi tão automático que nem sequer se

lembrava agora de ter sido beijado” (TELLES-MO, 2009, p. 112). De igual modo, a

indiferença e a impermeabilidade estão presentes na relação com o empregado:

“[…] há mais de três anos aquele homem trabalhava ali ao lado e quase nada sabia

sobre ele” (TELLES-MO, 2009, p. 112).

A partir dessas reflexões, percebe-se a atomização do núcleo familiar na

sociedade moderna. Embora, aparentemente, passem a imagem de uma família feliz

– empresário de sucesso, bem casado –, vê-se a precariedade de relações

autênticas no convívio íntimo deles. A pressa nas relações dentro de casa acaba

distanciando e isolando os sujeitos. Isso se reflete na falta de afetividade entre os

membros do grupo familiar, evidenciada por comportamentos mecânicos e

automáticos. A abertura que leva o eu ao outro parece bloqueada pelo fenômeno do

narcisismo, entendido em sua amplitude psicológica e social – a pedra

drummondiana no caminho dos sujeitos modernos. Enquanto o protagonista do

conto vivencia a angústia da proximidade da morte, as demais personagens estão

por demais absorvidas em suas atividades e ocupações rotineiras, conforme se

verifica no fragmento transcrito abaixo:

Como se não soubesse que naquela manhã (ou noite?) o pai quase olhara a morte nos olhos. Mais um pouco e dou de cara com ela, segredou ao menino que não ouviu, conversava com o copeiro. Se não acordo antes, disse para a mulher que se debruçou na janela para avisar ao motorista que tirasse o carro. Vestiu o paletó: podia dizer o que quisesse, ninguém se

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interessava. E por acaso eu me interesso pelo que dizem ou fazem? (TELLES-MO, 2009, p. 111-112)

Aqui, evidencia-se a solidão vivenciada pelo sujeito. Apesar da proximidade

física e do convívio diário, as personagens aparecem distanciadas psicologicamente,

configurando-se como verdadeiras ilhas. Essa passagem ilustra significativamente a

natureza do isolamento à qual o homem moderno está submetido: a vivência de um

sentimento de solidão ainda que imerso fisicamente em espaços de convívio familiar

e social.

Como se vê, o sonho estabelece uma ruptura na vida ordinária do

protagonista: “O sonho do jardim interrompera o fluxo da sua vida num corte”

(TELLES-MO, 2009, p. 112). Isso porque a experiência onírica traz para a

consciência do sujeito uma realidade até então mantida na obscuridade de seu

inconsciente: a inexorabilidade do ceifar da vida. Entretanto, tal circunstância não

somente inscreve a certeza da condição mortal do ser humano, como também alerta

sobre sua iminência. Várias passagens sinalizam essa angústia do protagonista,

resultado do pressentimento da chegada da morte. Embora reconheça em seu

íntimo a impossibilidade de evadir-se da situação, a personagem reluta em aceitar

conscientemente seu destino: “Hoje entraria mais tarde, queria fumar um último

cigarro. Teria dito último!” (TELLES-MO, 2009, p. 111. Grifos da autora). A repetição

de cenas como esta criam uma atmosfera de despedida, numa espécie de ritual que

envolve o protagonista: “Acendeu o cigarro atento à chama do palito queimando até

o fim” (TELLES-MO, 2009, p. 112). Essa imagem do fogo consumindo o palito até o

fim não remeteria, em última análise, ao apagar da chama da vida do protagonista?

A cena em que o cachorro vem ao encontro de seu dono parece fechar o ciclo

de episódios que alude ao prenúncio da morte do protagonista, ideia esta que

governa toda a narrativa: “Afagou o cachorro que veio saudá-lo com uma alegria tão

cheia de saudade que se comoveu, não era extraordinário? A mulher, o filho, os

empregados – todos continuavam impermeáveis, só o cachorro sentia o perigo com

seu faro visionário” (TELLES-MO, 2009, p. 112). Nessa passagem, há dois aspectos

significativos a serem observados.

O primeiro é o sentimento que emana do animal ao se aproximar da

personagem: uma alegria cheia de saudade. Esse misto de sensações, que extrai

sua singularidade justamente da conjunção dos opostos, ajuda a compor um clima

de despedida, em que a alegria é contaminada pela precipitação de um sentimento

83

de saudade. Ainda no plano das emoções, é interessante observar o contraste que

se instaura entre a postura assumida, de um lado, pelo animal e, do outro, pelos

familiares e empregados da casa. Enquanto o primeiro se faz notar pela afetividade

e pelo misto de emoções que demonstra no encontro com a personagem, os demais

permanecem impassíveis e impermeáveis a qualquer sentimento, fechados que

estão em si mesmo. Sob esse aspecto, há, por um lado, a humanização do cachorro

e, por outro, a animalização dos familiares e dos empregados, o que leva à reflexão

sobre a precariedade das relações no mundo moderno.

O segundo é a simbologia associada à imagem do cachorro. Conforme

Chevalier e Gheerbrant (2009), em todas as mitologias esse animal encontra-se, de

alguma forma, conectado à ideia de morte, sendo sua primeira função mítica a de

guia do homem na noite da morte. Somando-se a essa função, Chevalier e

Gheerbrant (2009, p. 177) destacam outros pontos importantes:

Mas o cão, para o qual o invisível é tão familiar, não se contenta em guiar os mortos. Serve também como intercessor entre este mundo e o outro, atuando como intermediário quando os vivos querem interrogar os mortos e as divindades subterrâneas do país dos mortos.

Como se vê, a figura do cachorro encontra-se intimamente relacionada à ideia

de morte, seja como guia, seja como intermediária entre o mundo dos vivos e o dos

mortos. Essas considerações ajudam a compreender o papel que esse animal

desempenha na narrativa: enquanto guia do homem no momento da morte, o

cachorro, com seu “faro visionário” e para quem o “invisível é tão familiar”, pressente

o perigo ao qual seu dono estava exposto. Esse perigo, obviamente, refere-se à

possibilidade iminente de encontro com a morte.

Desse modo, tanto o sonho quanto os episódios subsequentes a este atuam

como uma espécie de rito de preparação para a grande e última passagem que se

configurará no final da narrativa. Entretanto, a personagem, presa à materialidade do

mundo terreno, não parece disposta a encarar tal situação. Isso porque o medo da

morte é, também, o temor da destruição completa do sujeito. Numa sociedade em

que as individualidades e o investimento na imagem pessoal afloram com vigor, a

possibilidade de aniquilamento do eu representada pela morte parece um golpe duro

demais, principalmente quando surpreende por sua precocidade. Ante a tensão

criada pela iminência da morte, uma passagem, aparentemente despropositada,

84

carrega um simbolismo oculto que reflete a angústia desse sujeito em sua tentativa

de apegar-se a algum porto seguro: “Colheu um bago cor de mel e pensou que se

houvesse uma abelha no jardim do sonho, ao menos uma abelha, podia ter

esperança” (TELLES-MO, 2009, p. 111). Diante disso, o leitor pode se perguntar: por

que a presença da abelha no jardim configura motivo de esperança, ao passo que o

besouro que sai do ouvido da estátua causa repugnância? Esse questionamento é

aclarado pelo simbolismo associado à imagem da abelha. Para Chevalier e

Gheerbrant (2009, p. 4), esse animal aparece como símbolo da alma: “Encontramo-

las representadas nos túmulos como sinais de sobrevivência além-morte, pois a

abelha torna-se símbolo de ressurreição”. Desse modo, a esperança propiciada pela

presença da abelha no jardim atuaria como uma possibilidade de sobrevivência

além-morte, evitando, portanto, a destruição total do eu.

Todo esse processo de questionamentos empreendido pela personagem

após o sonho da noite anterior pode ser concebido como um despertar para si

mesmo, quando passa a enxergar diversas situações para as quais estivera cega e

indiferente até o dia anterior. Um dos aspectos mais importantes de todo esse

processo reflexivo diz respeito ao conhecimento maior de sua personalidade.

Analisando suas relações com o mundo em volta, o protagonista consegue visualizar

o quanto investira numa falsa imagem do eu. Essa tomada de consciência, em que

consegue avaliar criticamente sua persona, representa um primeiro passo rumo ao

maior reconhecimento de si e de suas potencialidades – o autoconhecimento –,

processo que Jung (2008) denomina individuação. Entretanto, vale ressaltar que

esse processo não chega a se completar, uma vez que é interrompido pela

insurgência do sonho na realidade imediata da personagem.

Assim, na parte final do conto, o protagonista tem novamente um encontro

com a morte. Dessa vez, a atmosfera onírica adentra a realidade, surpreendendo o

protagonista:

Entrou no carro, ligou o contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recusando-se a obedecer. […] Fechou o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse perfume de ervas úmidas? Descansou no assento as mãos desinteressadas. A paisagem foi se aproximando numa aura de cobre velho, estava clareando ou escurecia? […] Vacilou na alameda bordejada pela folhagem escura, mas o que é isso, estou no jardim? De novo? E agora acordado […]. (TELLES-MO, 2009, p. 112-113)

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O protagonista, que estava tentando ligar o carro a fim de sair para o trabalho,

sente novamente uma espécie de paralisia dos membros do corpo. Numa atmosfera

de silêncio e quietude, a realidade é invadida pelo universo onírico. O espaço

imediato no qual a personagem se encontrava sofre uma transformação quando os

elementos do jardim do sonho da noite anterior passam, paulatinamente, a integrar o

ambiente, numa espécie de fusão: o perfume de ervas úmidas, a paisagem a se

aproximar, a indeterminação entre o clarear e o escurecer, a alameda, a folhagem

escura; enfim, o jardim em sua totalidade. Novamente, a personagem se depara

com a figueira, o tanque seco, a estátua, o banco ao centro desse espaço, e afloram

também as lembranças do Cristo da procissão e do trapezista. O ambiente do jardim

e a progressiva perda do controle do corpo, representada pela metalização e

imobilização dos membros da personagem, criam, mais uma vez, a atmosfera de

prenúncio da morte. Entretanto, este ser, a exemplo do que fizera em toda sua vida

e também no sonho da noite anterior, procura uma alternativa para fugir desse

encontro:

[…] Descobri! Descobri. A alegria era quase insuportável: da primeira vez, escapei acordando. Agora vou escapar dormindo. Não era simples? Recostou a cabeça no espaldar do banco, mas não era sutil? Enganar assim a morte saindo pela porta do sono. Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se. (TELLES-MO, 2009, p. 113-114)

Como da primeira vez escapara acordando do sonho, agora o faria realizando

o contrário, ou seja, adormecendo. No entanto, esse estratagema racional não

funciona, e ele se vê diante do encontro inevitável: o sonho fora retomado

exatamente do ponto em que tinha sido interrompido na noite passada. Dessa

forma, o protagonista pressente a aproximação do caçador, aqui entendido como

mensageiro da morte, que, com o gesto de colocar-lhe a mão no ombro, anuncia-lhe

a morte.

Na narrativa, o fenômeno da duplicidade mostra-se mais evidente e com

maior força na cena final, quando há a fusão de dois espaços ficcionais, a saber, o

jardim onírico que adentra no espaço imediato da personagem, tornando possível a

confrontação do eu com seu duplo. Nesse conto, a temática do duplo, conforme

observa Ribeiro (2008), manifesta-se através do homem que sonha. Na concepção

de Silva (2001), o sonhador possui uma dupla posição e, portanto, duas identidades:

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o eu como sonhador e o eu como personagem do seu sonho. Entre o sujeito e seu

duplo percebe-se continuidade física e psicológica, pois o eu personagem do sonho

é uma projeção do eu sonhador. O duplo possibilita o acesso desse sujeito a duas

esferas distintas: uma volta ao passado, através de lembranças da infância do

protagonista que afloram no sonho; e uma visão de futuro, através do presságio da

morte informado no sonho. De acordo com a classificação de Bargalló (Apud

LAMAS, 2002), o fenômeno da dualidade manifesta-se nesse conto como resultado

de uma cisão, pois de um único indivíduo originam-se dois: o eu sonhador e o eu

personagem do sonho. Desse modo, a duplicidade mostra-se possível nesse conto

graças a dois fenômenos opostos: de um lado, a fusão entre o jardim do sonho e o

espaço do carro; de outro, a cisão entre aquele que sonha e o outro que vivencia a

ação onírica. Seguindo a tipologia proposta por Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ,

2006), tem-se um duplo subjetivo (duplicação do protagonista) e interno, já que a

cisão ocorre na mente da personagem sem adquirir forma física.

2.2.3 “O encontro”

O conto “O encontro” foi publicado inicialmente por Lygia Fagundes Telles na

coletânea Histórias do desencontro (1958). É narrado em primeira pessoa por um

narrador-personagem, não nomeado na narrativa, que relata ao leitor as

circunstâncias e os desdobramentos de um encontro singular. O foco da narrativa é

direcionado para o momento em que se efetua a coexistência e o confronto em um

mesmo plano espacial entre duas mulheres que, por fim, demonstram ser

representações de um único sujeito desdobrado em planos temporais diferentes.

Assim, uma delas representa a configuração do ser no momento presente, enquanto

a outra corresponde a um tempo passado.

Como em outros contos de Telles, o espaço em que a ação se desenvolve é

cuidadosamente preparado com riqueza de detalhes e minúcias, dando suporte ao

enredo:

Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Ao longe, contra o céu, erguiam-se negros penhascos, tão retos e tão agudos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, vermelho e lúcido como um olho, o sol espiava friamente através de uma nuvem. (TELLES-OE, 1958, p. 15)

87

Nessas primeiras linhas, a narradora pinta um cenário campestre formado por

campos e penhascos, espaço este no qual a história se esboçará. Esses índices

espaciais não apenas situam fisicamente a ação, mas também trazem consigo

ambivalências e indeterminações importantes para a criação da atmosfera mística

na narrativa. Se, de um lado, há a “névoa branda” que recai sobre o campo,

tornando o verde “pálido e opaco”; de outro, há um sol que, “vermelho e lúcido como

um olho”, espreita onipotentemente de sua elevada posição. Existe nitidamente aqui

um jogo entre ofuscamento/visão, baixo/alto; por conseguinte, uma forte carga

simbólica nasce dessa relação. A névoa, que na parte inicial do conto oblitera e

ofusca a visão dos contornos da paisagem, não seria análoga à que, no plano

metafórico, interpõe-se ao longo de quase toda a narrativa entre a personagem e

suas lembranças de vivências passadas, impedindo, de imediato, o reconhecimento

do presente como um reviver do passado? O sol, em sua altura e onipotência,

comparado no conto a um olho, não remeteria, em última análise, ao “Olho divino

que tudo vê” (Chevalier; Gheerbrant, 2009, p. 654. Grifos dos autores), o olho do

mundo, símbolo da transcendência, a observar “friamente” o desenrolar dos destinos

humanos? Por fim, a imagem dos negros penhascos a se erguerem “retos” e

“agudos” contra o céu não evocaria a simbologia da verticalidade, ao estabelecer a

comunicação entre diferentes espaços cósmicos? Certamente sim.

É também no início do conto que a narradora introduz o motivo que será o fio

condutor de todo o desenvolvimento da narrativa, a saber, o processo de

reconhecimento pela personagem da vivência presente (ambiente, personagens)

como a duplicação de um acontecimento passado: “‘Onde, meu Deus?! – eu

perguntava a mim mesma. – Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim

igual?…’” (TELLES-OE, 1958, p. 15). A partir desse questionamento, instaura-se

uma ambivalência no conto, que será resolvida apenas com o desfecho da narrativa.

Essa indeterminação, que desconforta o leitor durante todo o desenvolvimento do

enredo, advém essencialmente da impossibilidade de harmonização entre duas

concepções antagônicas defendidas pela narradora até a resolução do conflito no

final: (1) por um lado, a narradora afirma categoricamente que nunca estivera

naquele espaço e que, portanto, vivencia uma experiência inédita – “Tudo aquilo –

disso estava bem certa – era completamente inédito para mim” (TELLES-OE, 1958,

p. 15); (2) por outro, a narradora consegue, ao mesmo tempo, identificar o momento

presente como repetição ou reapresentação de uma situação vivenciada no passado

88

– “No entanto, o quadro se identificava, em todas suas minúcias, a uma imagem

semelhante que irrompera das profundezas de minha memória” (TELLES-OE, 1958,

p. 15). Que situação difícil em que se encontra o leitor de Telles! Afinal, como pode

uma imagem ser inédita e, paradoxalmente, relacionar-se, “em todas as minúcias”, a

uma cena vivenciada no passado? É, pois, sobre esse fio tênue que se equilibra o

leitor na tentativa de compreender esse estranho evento: a repetição do inédito.

Entretanto, vale destacar que esses paradoxos e indeterminações não prejudicam a

verossimilhança da narrativa; ao contrário, ajudam a compor uma atmosfera

fantástica, mantendo uma tensão constante até o desfecho do enredo. Em alguns

casos, a personagem chega, inclusive, a brincar com a situação em que se

encontra: “‘Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio25.’ E cheguei a sorrir,

entretida com aquele curioso jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra

golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda” (TELLES-OE, 1958, p. 17).

É, pois, nesse clima misterioso, mas ao mesmo tempo conduzido com extrema

leveza, que se desenvolve a narrativa de Telles.

Esses questionamentos acompanham a personagem em seu caminhar

naquela tarde “absurda”, estabelecendo constante tensão na narrativa. Na busca por

respostas e explicações satisfatórias, a narradora lança hipóteses: teria ela sonhado

com aquela cena? Ou estaria sendo sonhada? Numa tentativa desesperada, a

personagem aperta contra seu dedo um espinho. Entretanto, o sangue a jorrar e a

dor sentida atestavam a realidade do evento: “A dor era tão real quanto aquela

paisagem” (TELLES-OE, 1958, p. 18). Diante disso, compreende a impossibilidade

de solucionar o problema, pois “[…] não havia mesmo explicação para aquela tarde

absurda, completamente disparatada na sua inocente aparência. Tinha que aceitar o

inexplicável e resignar-me a ele até que o nó terrível se desatasse na hora exata”

(TELLES-OE, 1958, p. 18). Então, toma conta de seu ser a sensação de perigo

eminente: “Mas que perigo era esse e em que consistia?” (TELLES-OE, 1958, p.

16).

Paralelamente a esses movimentos psicológicos, a personagem realiza um

percurso físico: do vale, local ao qual estava habituada, segue pela colina, envereda

pelo campo e caminha, por fim, em direção aos penhascos, parando à beira de um

25

A expressão “pedra fendida ao meio” apresenta-se indiscutivelmente como símbolo da dualidade e pode ser entendida como uma referência à experiência vivenciada pela personagem, que se vê dividida entre o eu/outro e o passado/presente.

89

abismo. Essa caminhada revela uma simbologia interessante, já que compreende

uma jornada que vai do conhecido ao desconhecido, portanto, do cosmos ao caos.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 929), o vale é receptivo às influências

celestes, configurando o ponto de encontro entre a terra e a água do céu; a colina,

diferenciada do caos inicial, apresenta-se como a primeira manifestação da criação

do mundo; e o campo remete à simbologia do paraíso. Nesses três lugares,

percebe-se a manifestação do sagrado que, com sua presença, transforma o caos

em cosmos, organizando o espaço. Por fim, o abismo, à beira do qual a personagem

encerra sua caminhada, constitui um símbolo presente em todas as cosmogonias,

enquanto gênese ou fim da evolução universal, aplicando-se ao “[…] caos tenebroso

das origens e às trevas infernais dos dias derradeiros” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009, p. 5). Desse modo, o abismo representa aqui uma desordem,

um espaço que transcende o mundo conhecido e organizado pela insurgência do

sagrado. Remete, diretamente, às profundezas, ao mundo dos mortos. Ademais, do

abismo, assemelhado a uma boca aberta entre as pedras, segundo palavras da

narradora, brota um som de água corrente: “Um vapor denso subia como um bafo

daquela garganta áspera, de cujo fundo insondável vinha um remotíssimo som de

água corrente” (TELLES-OE, 1958, p. 16). Além da analogia do abismo com a

anatomia animal, através dos signos boca e garganta, prontos para tragar a

personagem, percebe-se, também, a presença de uma água corrente que, como

destacam Chevalier e Gheerbrant (2009), simboliza o mal e a desordem, casando-

se, portanto, com a atmosfera de agitação e de suspense criada na narrativa.

A aparente calmaria que paira no ambiente esconde, na verdade, sentimentos

e lembranças fortes que continuamente desconfortam a personagem: “A tarde

estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela

quietude, eu sentia qualquer coisa de misterioso e de terrível à espreita” (TELLES-

OE, 1958, p. 16). Em muitas passagens da narrativa, há, inclusive, simetria entre a

caracterização física do ambiente e os movimentos psicológicos da personagem: é

assim com a evocação da imagem do sol sangrando como um olho ferido,

prenunciando o turbilhão de sentimentos dolorosos que estavam por aflorar na

consciência da protagonista.

Ao longo de sua caminhada, a personagem vivencia uma série de situações

que podem ser interpretadas como presságios e indicativos do desfecho da

90

narrativa. Dessas, duas em especial merecem destaque pelo simbolismo implícito

que evocam.

Na primeira delas, a personagem esbarra ante uma teia com uma aranha no

centro: “‘A cilada’ – pensei diante de uma teia singularmente brilhante, suspensa

entre dois galhos. No centro, a aranha, uma aranha vermelha, toda encolhida e

atenta, aguardando a presa” (TELLES-OE, 1958, p. 17). Conforme Chevalier e

Gheerbrant (2009, p. 71), a aranha simboliza a criadora cósmica, a divindade

superior ou o demiurgo: “Tecelã da realidade, ela é, portanto, senhora do destino, o

que explica sua função divinatória, tão amplamente atestada ao longo do mundo”.

Por outro lado, o vermelho, cor do sangue e do fogo, é universalmente considerado

como símbolo do princípio de vida. Desse modo, a presença da aranha neste conto

pode representar, num plano metafórico, a insurgência de uma divindade que detém

o poder sobre os destinos humanos – interpretação esta que é reforçada pelo

simbolismo da cor vermelha. A teia, formada pelos quase invisíveis “fios” a se

enredarem uns nos outros, compondo uma totalidade, pode ser compreendida como

uma grande metáfora da vida e do trilhar dos destinos humanos. A comparação da

teia à “cilada”, com a aranha ao centro atenta e no aguardo da presa, suporta esse

mesmo simbolismo: a personagem visualiza nessa imagem a representação do

desenrolar de sua própria vida. Assim, a teia é assimilada por ela como uma ameaça

porque indicia acontecimentos futuros negativos, o que justifica sua atitude de

desespero: “Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu rota” (TELLES-

OE, 1958, p. 17). Infelizmente, destruir a teia da aranha não seria o bastante, pois a

“teia” da vida, na qual a figura feminina estava enredada, permanecia vigorosa e

inexorável, fato esse reconhecido pela narradora: “E a teia para a qual

inevitavelmente eu caminhava, quem? quem iria desfazê-la?” (TELLES-OE, 1958, p.

17). Assim, através dessa metáfora, em que a aranha assume o simbolismo de

tecelã dos destinos humanos, pode-se considerar a “cilada” representada pela teia

como o prenúncio de futuros obstáculos no curso do destino da personagem.

A segunda situação, que pressagia acontecimentos futuros na narrativa,

compreende o momento em que a mulher é surpreendida por um pássaro que passa

num voo atribulado: “Um pássaro cruzou meu caminho num voo atribulado. Soltou

um grito tão dolorido, que cheguei a vacilar num desfalecimento” (TELLES-OE,

1958, p. 18). Dessa imagem, dois aspectos principais se sobressaem. O primeiro

liga-se estritamente ao simbolismo que a figura do pássaro evoca. De acordo com

91

Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 687), “O voo dos pássaros os predispõe, é claro, a

servir de símbolo às relações entre o céu e a terra. Em grego, a própria palavra foi

sinônimo de presságio e de mensagem do céu”. Assim, o pássaro indica uma

possibilidade de comunicação entre diferentes espaços cósmicos. Como mensageiro

do céu, ele, no seu voo “atribulado” e através de seu “grito tão dolorido”, não estaria

advertindo a personagem sobre o desenrolar de situações futuras? O segundo,

ainda que apoiado no simbolismo acima destacado, tira sua força da relação de

contraste que se estabelece entre a condição do pássaro e da personagem naquela

situação. O voo do pássaro remete diretamente à ideia de liberdade: sem “amarras”,

a ave parece traçar seu caminho livremente, de acordo com seu próprio arbítrio.

Isso, juntamente com os prenúncios, desperta na protagonista a real possibilidade e

necessidade de evasão daquela situação. Entretanto, ela encontra-se

irremediavelmente presa a um destino traçado previamente, guiada por uma força e

um impulso maiores do que ela, dos quais não consegue se desvencilhar: “E se

fugisse? E se fugisse?… Voltei-me para o caminho percorrido, a se perder por entre

os troncos num labirinto sem esperança. ‘Agora é tarde!’ […] ‘Por que tarde?’”

(TELLES-OE, 1958, p. 18). Essa possibilidade de fuga já havia sido cogitada em

outra passagem: “‘Vá-se embora, depressa, depressa!’ – ordenava-me a razão,

enquanto uma parte mais obscura de meu ser, mergulhada numa espécie de

encantamento, se recusava a voltar” (TELLES-OE, 1958, p. 16). Aqui, percebe-se

claramente o embate entre ego e sombra: enquanto aquele lhe apresenta a fuga

como solução, uma parte “obscura” de seu ser, dominada por um “encantamento”,

impulsiona-lhe a continuar sua peregrinação por esse “caminho sem volta”. A partir

dessas observações, vê-se que nem mesmo a mulher consegue entender sua

impotência diante de tal situação.

Por fim, verificam-se, na narrativa, cenas em que a personagem parece

tomada por um ritual de despedida, surpreendo o leitor e a si mesma: “Encostei-me

a um tronco e por entre uma nesga da folhagem crestada, vi o céu, lá longe, pálido e

irreal. Era como se o visse pela última vez” (TELLES-OE, 1958, p. 17). Passagens

como essa ajudam, juntamente com as acima destacadas, a compor a atmosfera

trágica que prevalecerá no final da narrativa.

O encontro da personagem com uma amazona, como o próprio título do conto

já indicia, marca um momento auge e crucial, em que alguns dos fatos do enredo

começam a ser aclarados, encaminhando a narrativa para o seu desfecho:

92

“Enveredei por entre dois carvalhos; ia de cabeça baixa e coração pesado, mas ia

firmemente, como que impelida por uma misteriosa força. ‘Agora vou encontrar uma

fonte. Sentada ao lado, está uma moça’” (TELLES-OE, 1958, p. 18-19). Essa

passagem, como muitas outras presentes na narrativa, ilustra também o processo

de reconhecimento do ambiente realizado pela figura feminina e evidenciado aqui

pela antecipação de elementos constituintes do espaço, conforme já destacado

anteriormente. Ademais, essa cena apresenta alguns elementos simbólicos que

valem a pena ser destacados. Primeiro, dois carvalhos demarcam a entrada da

mulher no ambiente em que se realizará o encontro. O carvalho evoca diretamente a

ideia do eixo do mundo, já que representa, por excelência, a figura da árvore:

“Árvore sagrada em numerosas tradições, o carvalho é investido dos privilégios da

divindade suprema do céu […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 195. Grifos

dos autores). Desse modo, os dois carvalhos atuam como espécie de porta

simbólica, sendo que a passagem da personagem por ela demarca a entrada num

espaço sagrado no qual se realizará o inesperado encontro. Ao adentrar neste

espaço, depara-se, primeiramente, com uma fonte. Esta é um símbolo

universalmente relacionado à fonte da vida, da imortalidade, da juventude e do

conhecimento. Sua sacralização é universal, “[…] pelo fato de constituírem a boca

da água viva ou água virgem” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 445. Grifos

dos autores). Como se vê, o encontro entre a personagem e a amazona não se

realiza em um lugar qualquer. Ao contrário, a presença dos carvalhos bem como da

fonte sacralizam aquele ambiente, evocando a simbologia do centro e criando uma

atmosfera mítica propícia ao desenrolar do enredo. Compondo esse quadro, é digna

de citação também a postura corporal da personagem – “de cabeça baixa e coração

pesado” –, que demonstra sua total submissão e falta de controle sobre a situação.

Ao lado dessa fonte, a personagem depara-se com outra mulher que, a

princípio, causa-lhe estranheza: “Ao lado da fonte, sentada numa pedra, estava uma

moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito pálido uma

expressão tão ansiosa, que era evidente estar à espera de alguém” (TELLES-OE,

1958, p. 19). No imaginário coletivo, a figura da amazona é símbolo de mulher forte,

poderosa. Entretanto, a personagem lygiana herda da amazona apenas o modo de

vestir-se, já que, no plano interior, mostra-se um ser fragilizado e totalmente

entregue à situação presente, sem forças para superar a dor que lhe afligia o peito:

“[…] parecia completamente desligada de tudo. […] Devia ter chorado muito. E

93

agora ali estava numa atitude de patética exaustão […] Perdera toda a esperança e

resignara-se. Mas sentia-se sua debilidade naquela resignação” (TELLES-OE, 1958,

p. 19-20). Imediatamente, percebe, pela fisionomia da amazona, que esta estava à

espera de alguém, e o estranho jogo de reconhecimento mais uma vez se faz

presente: como que numa resposta imediata ao discurso incompleto da amazona –

“Eu esperava uma pessoa…” (TELLES-OE, 1958, p. 20) –, o nome Gustavo saiu

com “incrível naturalidade” da boca da protagonista – “Gustavo?” (TELLES-OE,

1958, p. 20). Sabia também que Gustavo jamais retornaria, nunca: “‘E nem virá.

Nunca mais. Nunca mais’” (TELLES-OE, 1958, p. 21).

Nesse momento, a personagem parece em crise, inundada que se encontra

pelo aflorar tumultuado de lembranças em sua mente: “As lembranças também

esvoaçavam em meu redor, ora próximas, ora distantes como mariposas tontas em

torno da chama. Ah! Se pudesse agarrá-las” (TELLES-OE, 1958, p. 21). Em meio a

essa agitação, uma cena, resgatada do fundo obscuro da memória, começa a se

esboçar em sua mente: “Pressentia agora um obscuro drama entremeado de

discussões violentas, lágrimas, renúncias… Discussões violentas. Discussões…”

(TELLES-OE, 1958, p. 21). Paulatinamente, a personagem rememora o momento de

uma discussão. Lembra-se das vozes de homens e vultos humanos visualizados

através de uma vidraça embaçada. Tudo parece transcorrer numa penumbra, sob a

fraca luz de um candelabro, até que se percebe uma movimentação na sala e um

clarão: “Alguém avançou. Foi Gustavo? Uma garrucha avançou também. E a cena

explodiu em meio de um clarão” (TELLES-OE, 1958, p. 21). A rememoração da

cena, mesmo que de forma fragmentada, traz consigo também um turbilhão de

sentimentos e emoções que a inunda: a náusea, o confranger-se de dor do coração,

as mãos apertando a cabeça em desespero, a violência com que o sangue

golpeava-lhe as fontes.

Diante de tal situação, a personagem aconselha a amazona: “Você devia

voltar para casa” (TELLES-OE, 1958, p. 22); “Por que não vai procurá-lo amanhã?”

(TELLES-OE, 1958, p. 22). Entretanto, aquela também conhecia a verdade. Nada

mais adiantava. Tudo estava acabado. E mais uma vez, a memória falha coloca-a

numa situação desconfortante: “Encarei-a demoradamente. Era parecidíssima com

alguém que eu conhecia, que conhecia tanto!…” (TELLES-OE, 1958, p. 22). Como

explicar esse insistente jogo de reconhecimento? Seria apenas fruto de mera

coincidência?

94

O vento gelado, que sopra com fúria levantando poeira e folhas secas,

desperta o bosque, pondo, portanto, fim à falsa atmosfera de calmaria que pairava

sobre o ambiente. Como apontam Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 963), os ventos

atuam como mensageiros divinos: “[…] são instrumentos da força divina; dão vida,

castigam, ensinam; são sinais e, como os anjos, portadores de mensagens”. Assim,

esse vento gelado, que irrompe perturbando o ambiente, não seria um aviso do

turbilhão de acontecimentos que ainda estavam por vir? É esse vento também que

desperta a amazona, tirando-a de sua inércia: “O mesmo vento que despertara o

bosque, despertou-a também. Senti-a fremir em cima do cavalo, elétrica como as

folhas vermelhas que rodopiavam em seu redor. Arreliado, o animal batia

freneticamente com os cascos nos pedregulhos” (TELLES-OE, 1958, p. 22-23).

Como se vê, o despertar da amazona acontece em sentido amplo: não apenas sai

da imobilidade em que se encontrava, como também promove uma mudança radical

em sua fisionomia – “Seus olhos pareciam agora dois furos negros. A face adquirira

um tom acinzentado de pedra” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Verifica-se, portanto, uma

simetria entre a agitação do espaço externo do bosque e a psicologia da

personagem. Uma imagem significativa dessa interação pode ser encontrada na

fragilidade da pluma vermelha que se debate na ventania: “A pluma vermelha de seu

chapéu debatia-se como uma labareda louca, desafiando a ventania” (TELLES-OE,

1958, p. 23). Em sentido literal, a agitação da pluma deve-se à ventania que agita o

ambiente. Entretanto, se considerada em sentido simbólico, a pluma vermelha pode

ser compreendida como representando metonimicamente a situação da amazona

como um todo: a fragilidade da pluma é análoga à situação adversa por ela

enfrentada. Em outras palavras, assim como a pluma, a personagem luta contra os

“ventos” íntimos que sopram nos recônditos de sua interioridade.

A personagem tenta desesperadamente impedir a fuga da amazona: “Há

ainda uma coisa! – repeti agarrando as rédeas do cavalo” (TELLES-OE, 1958, p.

23). Aqui, segurar as rédeas do animal significa uma tentativa de assumir o controle

da situação, o que, entretanto, é impedido pela amazona numa atitude enérgica de

recusa: “Ela chicoteou o animal. E aquela chicotada atingiu em cheio o âmago do

mistério. O nó terrível se desatou como um bolo atarantado de serpentes fugindo em

todas as direções” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Como destacam Chevalier e

Gheerbrant (2009), o chicote é, em geral, símbolo do raio que, por sua vez,

assemelha-se, no plano simbólico, ao relâmpago. Este, entre outros aspectos,

95

remete ao simbolismo do esclarecimento e da iluminação: “Arma de Zeus, forjada

pelos Ciclopes no fogo (símbolo do intelecto), o relâmpago é o símbolo do

esclarecimento intuitivo e espiritual ou da iluminação repentina” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009, p. 777. Grifos dos autores). Desse modo, a chicotada pode

ser compreendida sob duas perspectivas diferentes, embora não excludentes: em

sentido literal, representa uma ação física em reposta à atitude da personagem de

segurar as rédeas do cavalo; em sentido metafórico, a chicotada, como um raio,

ilumina a situação, permitindo finalmente a compreensão dos fatos até então

considerados insólitos e inexplicáveis.

Esse esclarecimento alcançado no final da narrativa corresponde

efetivamente ao reconhecimento do outro como constituinte ou parte do eu. Em

outras palavras, a personagem e a amazona eram, na verdade, um único ser, mas

separados temporalmente um do outro: “Eu fui você – balbuciei. Num outro tempo fui

você! […]” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Essa identificação final já vinha sendo

anunciada desde o início da narrativa, principalmente por meio do constante jogo de

reconhecimento vivenciado pela protagonista: cenas, ambientes, personagens, tudo

remetia a experiências ou vivências que finalmente consegue compreender como

fragmentos e recortes de seu próprio passado. Há ainda um momento em que,

explicitamente, a voz da amazona aparece na narrativa como eco da voz da outra

personagem, o que, indubitavelmente, remete à ideia de duplicidade e de fusão que

se processa no final da narrativa: “Gustavo – repetiu ela como um eco” (TELLES-

OE, 1958, p. 20). Assim, a ideia do duplo inscreve-se aqui duplamente: o eco como

reprodução de um original; e o eco como possível relação com a ninfa grega Eco,

castigada por Hera a apenas repetir o que os outros dissessem, símbolo, portanto,

da alteridade – o que se relaciona com a condição de entrega da personagem ao

amante.

A identificação com a amazona permite à outra personagem, por conseguinte,

uma visualização em sentido macro de sua existência e uma compreensão global da

situação na qual se encontrava: “Tão simples tudo! O bosque, o encontro, sua figura

que me pareceu tão familiar, Gustavo… Estremeci. Gustavo! A cena da saleta

esfumaçada voltou-se com uma nitidez atroz. Então, lembrei-me do que tinha

acontecido. E lembrei-me do que ia acontecer” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Desse

modo, tanto é possibilitado enquadrar os eventos presentes numa linha temporal de

sua vida, como também antecipar acontecimentos vindouros, já que se trata de uma

96

repetição: é o passado como futuro e o futuro como passado, tudo confluindo num

presente, indecidivelmente.

Apesar disso, a tentativa de estabelecer um distanciamento nítido entre

passado e presente se esboça desde o início da narrativa, quando a personagem

reconhece no momento presente o reviver de fatos passados, embora não consiga

precisar o quando e o onde das situações: “Já vi tudo isto, já vi… Mas onde? E

quando?” (TELLES-OE, 1958, p. 15). Passagens como estas, que o leitor poderia,

num primeiro momento, creditar a um suposto lapso de memória, multiplicam-se ao

longo da narração. Além desses momentos de Déjà vu vivenciados, algumas outras

referências ajudam nessa percepção de distanciamento entre passado e presente.

Ao se deparar com a amazona sentada ao lado da fonte, a personagem faz

observações interessantes e reveladoras sobre a composição daquela,

principalmente em relação a sua “estranha” vestimenta: “Sentei-me numa pedra

coberta de musgo. E fiquei a olhar em silencio seu traje completamente antiquado

[…]” (TELLES-OE, 1958, p. 19). A palavra “antiquado” ajuda a reforçar um

distanciamento temporal entre a amazona e o outro ser, que é sustentado ao longo

de toda a narrativa. Em outra passagem do conto, verifica-se esta mesma ideia:

“Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem que mais

parecia a figura de um antiquíssimo álbum de caçadas. Um álbum que eu já folheara

muitas vezes” (TELLES-OE, 1958, p. 21). Por fim, há uma referência espacial que

corrobora para atestar o lapso temporal existente entre as duas figuras. À resposta

da amazona de que morava em Valburgo, segue-se o seguinte questionamento:

“Valburgo, Valburgo… – fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido.

Contudo, não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região”

(TELLES-OE, 1958, p. 20). E conclui: “Conheço – respondi prontamente. Tinha

agora a certeza de que esse lugar não existia mais” (TELLES-OE, 1958, p. 20).

Assim, o fato de Valburgo ter existido anteriormente, porém não mais no momento

presente, atesta grande distância temporal que separa as duas personagens. Aqui,

definitivamente, emoldura-se a amazona como figura pertencente a um passado não

tão próximo.

Uma vez compreendida a relação de pertencimento entre a amazona e a

personagem, esta tenta, num gesto violento, segurar as rédeas do animal, o que é,

entretanto, abruptamente impedido por uma segunda chicotada imposta ao animal

pela amazona: “Não! – gritei, puxando violentamente as rédeas. Mas sob uma

97

segunda chicotada, o cavalo empinou e arrancou-se das minhas mãos. Estatelada,

vi-o afastar-se num galope desenfreado” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Apesar do

esforço empreendido pela personagem – correndo alucinadamente por entre

“espinhos” e contra um “vento gelado e negro” que a cegava, guiada apenas pela

“pluma vermelha” a debater-se por entre árvores e na escuridão – não consegue

êxito. Nesse trajeto realizado, chamam atenção os obstáculos que se erguem,

impedindo-a de interromper “[…] o que já sabia inevitável” (TELLES-OE, 1958, p.

24). O vento gelado e negro reveste-se, essencialmente, de um simbolismo

negativo: o gelo opõe-se ao fogo e, por conseguinte, à ideia de vida; e a cor negra

relaciona-se, essencialmente, ao sombrio, ao oculto. Os espinhos, por sua vez,

remetem à ideia de terra selvagem não cultivada e, portanto, inexplorada (cf.

CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). Esses símbolos ajudam a compor, portanto, a

atmosfera mórbida que se faz presente na parte final do conto.

Apesar do esforço, a mulher não consegue deter a amazona com seu cavalo

em fuga. De joelhos, assiste ao desfecho da história que é, na verdade, sua própria

história:

Um relâmpago estourou dentro da noite e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbrar ao longe uma pluma vermelha debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo. (TELLES-OE, 1958, p. 24)

Aqui, a noite envolve as personagens. Na escuridão, é o brevíssimo clarão do

relâmpago que permite a visualização da amazona em desesperada fuga. Em

seguida, há apenas o grito da personagem a unir-se ao ruído de cavalo e cavaleira

caindo no abismo. Nessa passagem, três aspectos principais se sobressaem.

Primeiro, a fusão das duas personagens, representada pelo eco do grito que se une

ao “ruído pedregoso” da queda da amazona no abismo. Segundo, a simbologia

evocada pela figura do cavalo. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009, p.

202-203): “Uma crença, que parece estar fixada na memória de todos os povos,

associa originalmente o cavalo às trevas do mundo ctoniano […]. Filho da noite e do

mistério, esse cavalo arquetípico é portador de morte e de vida a um só tempo […]”.

Na Bíblia Sagrada, a imagem do cavalo aparece no livro do Apocalipse, em conexão

com acontecimentos que antecedem o fim dos tempos. Aqui, interessa

98

particularmente a simbologia do quarto cavaleiro, o da Morte: “Vi aparecer um cavalo

esverdeado. Seu cavaleiro era a Morte. E vinha acompanhado com o mundo dos

mortos” (APOCALIPSE, 6, 8, p. 1596). Por fim, Chevalier e Gheerbrant (2009) veem

ainda o cavalo como montaria, veículo que conduz o homem. A partir dessas

significações, e analisando o contexto em que tal animal aparece no conto, percebe-

se sua vinculação direta com a ideia de morte: o cavalo atua como um meio que

conduz a personagem para o mundo dos mortos. Terceiro, a simbologia do abismo,

já anteriormente destacada, que se relaciona ao mundo das profundezas. Assim, a

queda no abismo representa um regresso, uma descida ao mundo dos mortos ou

uma morte em sentido físico ou simbólico.

Nesse conto, a ideia de duplicidade se inscreve numa atmosfera dual: através

da confrontação entre as duas facetas de um mesmo ser e da suspensão da

continuidade temporal pelo coexistir do passado e do futuro em um presente

atemporal. No primeiro caso, observa-se continuidade física e psicológica entre as

duas personagens, já que ambas são a representação de um único ser, situado em

dimensões temporais diferentes. A confrontação entre o sujeito e o seu duplo é

proporcionada pela indeterminação espaço-temporal que se instaura na narrativa: no

plano espacial, o bosque, onde se dá o encontro, parece desconectado do mundo

concreto; no plano temporal, a continuidade cronológica e ordinária é rompida,

criando uma atemporalidade mítica necessária à efetivação do encontro. No

segundo caso, a dualidade manifesta-se pelo coexistir do passado e do futuro (ou o

passado como futuro, ou o futuro como passado), visto que a personagem assiste a

uma cena que é a repetição de sua própria história. Desse modo, na repetição do

mesmo instaura-se uma indeterminação temporal na narrativa: por um lado, o

desenrolar da ação conecta-se ao passado, porque já vivenciada pela personagem;

por outro, remete ao futuro, pois também se inscreve no plano do porvir, ao permitir

à personagem antecipar acontecimentos futuros. A estrutura desse conto de Telles é

muito parecida com a do conto “O outro”, do escritor argentino Jorge Luis Borges

(1978), uma vez que em ambos a temática do duplo se manifesta através da

confrontação simultânea de duas representações de um mesmo sujeito situadas em

dimensões espaciais e temporais distintas, em que o outro revela-se como sendo o

eu.

Nesse conto, como nas demais narrativas de Telles analisadas neste

trabalho, observa-se uma íntima conexão entre a manifestação do duplo e o

99

discurso fantástico. Na verdade, a ideia central do conto depende diretamente da

criação de uma atmosfera fantástica para sua plena realização. Todo o jogo de

reconhecimento experimentado pela personagem – e pelo leitor também – se dá

graças à impossibilidade de determinar com precisão sua razão de ser. Com base

nessa ambivalência sustentada até o final da narrativa – seriam as impressões

levantadas meras coincidências ou resultados de uma experiência íntima e

profunda? –, cria-se no texto uma tensão constante, prendendo a atenção do leitor

que, assim como a personagem, procura sequiosamente por respostas satisfatórias

para esses questionamentos levantados. Ademais, é também graças às

possibilidades abertas pelo discurso fantástico que se torna possível a confrontação

da personagem com seu duplo: a fusão entre esferas espaciais e temporais diversas

adquire verossimilhança no contexto narrativo, sendo, inclusive, o aspecto

determinante para a realização bem-sucedida do drama das personagens. Por fim,

vale a pena destacar a atmosfera de mistério, também característica do discurso

fantástico, presente nessa narrativa de Telles. Isso se deve, principalmente, ao

modo como a narradora pinta o ambiente que envolve os seres: a narrativa inicia-se

envolta numa “névoa branda”; a cena em que Gustavo é atingido por um tiro

acontece num espaço de pouca iluminação; o desfecho da narrativa consuma-se em

meio a uma “noite negra”. A obscuridade que paira sobre o ambiente é interrompida

somente em duas situações: primeiro, pelo clarão quando do disparar da arma de

fogo, momento em que se tem, mesmo que por brevíssimo tempo, a visão de

Gustavo; segundo, pelo relâmpago que irrompe em meio à negritude da noite,

permitindo também por curto tempo a visualização da situação em que a amazona e

o cavalo precipitam-se no abismo. Percebe-se, pois, que a obscuridade que paira

durante toda a narrativa, dificultando, ao mesmo tempo, a visão da personagem e,

por extensão, do leitor, filia-se a um propósito maior, ajudando a compor um cenário

de mistério adequado ao desenvolvimento do enredo.

De acordo com a classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002), há nesse

conto de Telles o duplo por fusão: reconhece-se uma unidade entre as duas

personagens, as quais, na verdade, são representações de um único ser em

períodos temporais diferentes. Quanto à terminologia de Jourde e Tortonese (Apud

LÓPEZ, 2006), verifica-se a existência de um duplo subjetivo, já que há a

confrontação com seu próprio duplo, e externo, já que este adquire uma forma física

na narrativa.

100

2.3 Representações do duplo em Ignácio de Loyola Brandão: uma leitura de

dois contos

Ignácio de Loyola Lopes Brandão é romancista, contista, cronista e jornalista.

Publicou seu primeiro livro em 1965, uma coletânea de contos intitulada Depois do

Sol; três anos depois, lançou Bebel que a Cidade Comeu, seu primeiro romance.

Couto (2000) reconhece na literatura de Brandão uma veia de inspiração kafkiana

que metaforiza o absurdo da realidade, ao retratar em suas obras a solidão do ser

humano em meio ao mundo contemporâneo (uma constante em suas obras). Essa

filiação ao fantástico é explicitada pelo próprio escritor, que afirma ser esta ligação

antiga e inspirada pela leitura da Bíblia: “Esse meu apego ao fantástico começou,

então, com a leitura da Bíblia, dos Evangelhos – de repente o cego vê, o coxo anda.

Os milagres, para mim, eram uma coisa fantástica e isso foi ficando guardado, até

aparecer na minha ficção” (BRANDÃO, 2002, p. 38).

Contudo, o fantástico assume um aspecto peculiar na literatura de Brandão,

pois, diferentemente de outros que constroem cenários místicos, a grande maioria

dos contos desse escritor são ambientados no contexto urbano da cidade grande,

tendo como personagem o indivíduo mediano, anônimo e sozinho, ainda que

cercado pela multidão da metrópole. É nesse espaço de aparente normalidade que

irrompe o evento insólito, estabelecendo, com isso, uma ruptura nas relações

cotidianas. Embora a fantasia seja o recurso usado pelo autor a fim de criar a

atmosfera fantástica em seus contos (homens que perdem a mão ou a sombra, por

exemplo), sua literatura não é, de forma alguma, alienada em relação ao contexto

social circundante. Conforme afirma Silva (2002, p. 163), “A fantasia torna-se

recurso para acolher melhor a realidade […] com a diferença de que o elemento

fantástico cumpre uma função de iluminar o contexto para a denúncia social, não

para justificar o status quo”. Esse comprometimento com a realidade pode ser

evidenciado porque o fantástico em Brandão não apresenta um fim em si mesmo; ao

contrário, assume uma dimensão crítica que pode ser observada por dois aspectos

principais. Em primeiro lugar, pela escolha dos próprios temas atuais, que

questionam aspectos importantes da realidade social moderna. Em segundo, pela

construção de suas personagens, criadas “[…] à semelhança dos seres humanos,

de qualquer ser humano. Ninguém em especial […]” (COUTO, 2002, p. 105) e,

101

segundo o próprio escritor, derrotados pelas próprias situações que enfrentam:

“Meus personagens são derrotados pela sociedade, pelas circunstâncias, pelo

mundo. Ora, no mundo existem mais vencidos do que vencedores; a grande

pergunta então seria: o que é vencer?” (BRANDÃO, 2002, p. 48). Além disso, o

próprio Brandão reconhece que faz uma literatura comprometida com a realidade:

“[…] acho que fiz uma literatura ‘comprometida’, vamos dizer isso entre aspas, com a

realidade, mas na verdade ela transfigurava essa realidade” (BRANDÃO, 2002, p.

40).

Como homem de seu tempo, Brandão interessa-se pelos problemas do ser

humano contemporâneo, e sua literatura aparece como forma de expressar esses

conflitos. Entre os temas abordados por esse escritor em sua contística, um mostra-

se particularmente interessante, tanto pela recorrência na obra desse escritor,

quanto pela especificidade no modo como é representado na narrativa: o motivo do

duplo. Uma análise preliminar permite a identificação de três variações dessa

temática na produção de contos desse escritor: (1) o duplo como resultado da

projeção de traços da personalidade do escritor numa personagem; (2) o duplo

representado pela busca e encontro da outra metade, símbolo do amor; (3) o duplo

através da cisão/mutilação do sujeito.

A concepção do duplo como projeção de traços psicológicos do autor para a

construção da personagem compreende uma perspectiva de estudo antiga pela qual

muitos teóricos enveredaram. Nesse caso, há uma simetria entre determinados

aspectos da personalidade do autor e do ser da ficção, a ponto de este ser

considerado, em certa medida, uma extensão do escritor. Contudo, deve-se ter o

cuidado de não reduzir a literatura a um mero biografismo, limitando as

possibilidades interpretativas do texto, o que pouco contribui com a crítica literária.

Na contística de Brandão, pode-se observar essa modalidade de duplo no livro de

contos Depois do sol (2005), no qual a personagem Bernardo pode ser considerada

um alterego do autor, conforme afirma Pierini (2005, p. 14-15):

Em quase todos os contos, encontra-se a figura de Bernardo, um repórter vindo do interior do Estado para tentar a sorte na capital e que, graças à sua profissão pôde circular de uma camada social para a outra, conhecendo lugares, pessoas e fatos diversos e importantes.

102

No conto “A ascensão ao Mundo de Annuska”, integrante do referido livro,

uma passagem exemplifica essa relação:

Uma noite em Araraquara ainda, sentara-se à mesa e redigira febrilmente uma crítica de cinema. Levara hora e meia à máquina, catando milho, a fim de datilografá-la e deixara de ir à sessão de quinta-feira, dia em que as meninas todas lá estavam, nos lugares habituais. E correra ao jornal bissemanário do velho Rocha. Que não queria atendê-lo. Teve de invocar o nome do pai, ex-ferroviário (como o Rocha) que também escrevera vários contos. (BRANDÃO, 2005, p. 48)

Nesse trecho destacado, podem-se estabelecer três principais conexões entre

os fatos narrados no conto referentes à personagem Bernardo e a vivência do

escritor Brandão: a menção à cidade de Araraquara, terral natal de Ignácio; a alusão

à iniciante carreira de Bernardo no jornalismo, área na qual também trabalhou o

escritor; a referência ao pai de Bernardo como um escritor e ex-funcionário

ferroviário, em conformidade com a trajetória de vida do pai de Brandão. Desse

modo, essas evidências dão suporte à interpretação que considera Bernardo como

um alterego, ou simplesmente o duplo, do escritor.

Uma segunda configuração assumida pelo duplo nos contos do escritor em

pauta expressa-se através do tema da constante busca empreendida pelo homem

por sua metade faltante, sua alma-gêmea, numa referência ao mito platônico da

androgenia. De acordo com esse mito, o amor é o meio que possibilita a reunião dos

opostos, restaurando a totalidade original perdida quando da separação dos

princípios masculino e feminino. Como exemplo dessa vertente, destacam-se dois

contos: “Lígia, por um momento!” e “45 encontros com a estrela Vera Fischer”,

ambos publicados no livro Cabeças de segunda-feira (2008). Nesses contos, a

mulher amada assume a função do duplo, configurando-se como a outra metade da

personagem, muito embora a tão desejada reunião das duas metades não se efetive

na narrativa.

No conto “Lygia, por um momento!”, a personagem Zé Mário conhece Lygia,

por quem se apaixona à primeira vista. Durante o pouco tempo em que se

encontraram, parecia haver cumplicidade entre os dois; contudo, Zé Mário viaja para

Blumenau, em busca de sua “carreira”, seu “futuro”, ao passo que Lygia retorna para

o convívio com seu marido, de quem havia se separado. Não tendo conseguido o

sucesso esperado, Zé Mário retorna para São Paulo e, após algum tempo, decide

reencontrar Lygia, que naquele momento achava-se doente. Entretanto, a decisão é

103

tomada tarde demais; Lygia morrera dois dias antes, fato que é dado ao

conhecimento do leitor pelo narrador do conto, o amigo-confidente de Zé Mário:

“‘Tem de ser hoje. Para o que der e vier. Vamos lá?’ E sorria. Firme, confiante. Tran-

quilo. Como vou contar que ela morreu há dois dias?” (BRANDÃO, 2008, p. 116).

Nesse conto, percebe-se claramente que a união de Zé Mário com Lygia, sua outra

metade, esbarra num poderoso obstáculo erigido pela sociedade moderna: a

necessidade de construção e manutenção de uma imagem socialmente valorizada,

representativa de sucesso e poder, em detrimento das realizações no campo

subjetivo.

No conto “45 encontros com a estrela Vera Fischer”, a mulher amada assume

também a condição de duplo, compreendida como o complemento ou a outra

metade do sujeito. Um bancário, narrador e personagem do conto, descreve os

supostos quarenta e cinco encontros com a famosa atriz Vera Fischer. Entretanto, os

encontros íntimos mencionados nunca aconteceram de fato: tudo não passava de

fantasias criadas pela personagem e alimentadas pela indústria cultural (gastos com

publicações sobre a atriz, idas ao teatro repetidas vezes para assistir à mesma

peça). Esse conto apresenta, de modo exemplar, o tipo de relação intersubjetiva

estabelecido pelo sujeito na era da modernidade. A atriz Vera Fischer, no conto, não

passa de mera imagem representativa de um modelo de mulher socialmente

valorizado, construído e mantido pela poderosa indústria cultura. Nesse caso, o

encontro com a outra metade, com o complemento, nada mais é do que uma ilusão:

a Vera Fischer pela qual a personagem do conto se apaixonou é simplesmente um

simulacro fabricado pela mídia. Como se vê, nos dois casos apresentados, Brandão

atualiza esse mito antigo da duplicidade, adequando-o ao contexto moderno.

Por fim, há a modalidade em que o fenômeno do duplo manifesta-se como

resultado de uma cisão/mutilação da personagem. Além da modificação efetuada no

corpo, acontecem também mudanças importantes no modo como o sujeito se

relaciona com as pessoas e com o mundo. A mutilação física aparece como um

indício externo que tem seu correspondente interno na nova postura que o sujeito

adquire perante a sociedade. É pelo processo de reflexão/esclarecimento

desencadeado nas personagens que o membro cindido/mutilado assume,

metonimicamente, a função do duplo, do outro que fornece a imagem especular a

partir da qual o sujeito problematiza sua identidade enquanto ser social. Num

processo de iluminação repentina, o sujeito consegue enxergar e compreender

104

retrospectivamente sua postura e comportamentos adotados consigo e com os

outros ao longo dos anos. Assim, a busca da “cura”, realizada solitariamente pelo

sujeito, representa, na verdade, uma procura pela essência do próprio eu, numa

tentativa de individualizar-se num mundo cada vez mais massificado. No conto “O

homem do furo na mão”, publicado no livro O homem do furo na mão e outras

histórias (2007), um evento insólito estabelece uma ruptura na ordem cotidiana:

inesperadamente, o homem visualiza um furo em sua mão, indolor, cujas causas ele

não consegue explicar. O furo aparece, a princípio, como uma entidade exterior ao

sujeito, justamente pela estranheza que caracteriza seu surgimento. Assim, o furo,

dada sua exterioridade, confere singularidade à mão da personagem, estabelecendo

uma dualidade entre a parte íntegra de seu corpo e o membro mutilado. Contudo, é

através dessa mutilação verificada em seu corpo que o ser se individualiza, embora

essa diferenciação não adquira no conto uma conotação positiva, pois resulta na sua

exclusão das diferentes esferas da vida social (família, emprego etc).

Desse modo, o processo de construção da identidade do sujeito,

problematizada no contexto da sociedade moderna, apresenta-se como tema

recorrente na ficção de Brandão. A maioria de seus textos aborda a penosa luta do

homem não só pela sobrevivência física, mas também, e principalmente, pela

estabilidade psíquica num cenário inóspito para a constituição egoica. Nesse

contexto, visualiza-se a angústia do sujeito moderno, largado à própria sorte. O leitor

acompanha, página a página, o drama de personagens irremediavelmente presos à

engrenagem do capitalismo, a uma rotina automatizada e burocratizada, que poda

as possibilidades humanas de realização pessoal e o desenvolvimento da

individualidade.

Os dois contos de Brandão que serão analisados a seguir integram a obra O

homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis, coletânea na qual

os eventos insólitos, ao aparecerem sob o rotulo de “aventuras possíveis”, apontam

para a banalização do absurdo na sociedade atual. A escolha se baseou,

principalmente, pela correlação verificada nessas narrativas entre o duplo e o

fantástico, já que o fenômeno da duplicidade aparece nesses textos como a

manifestação do insólito. Soma-se a isso a vinculação também observada nos dois

contos entre a experiência da duplicação e o confronto com a morte.

2.3.1 “A mão perdida na caixa do correio”

105

O conto “A mão perdida na caixa do correio” foi publicado originalmente na

coletânea O homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis, no ano

de 1999. É narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente e, como o próprio

título já sugere, apresenta a saga de um homem em busca de sua mão, perdida

numa caixa de correio. Em uma dada segunda-feira, a personagem vai depositar

uma correspondência (um cupom semanal para concorrer a determinados prêmios)

e se vê diante de algo inusitado: sua mão, inesperadamente, descola-se do braço e

cai dentro da caixa do correio. O fenômeno da perda da mão cumpre um importante

papel na arquitetura da narrativa, pois assume o status de fio norteador de todo o

enredo, governando o desenvolvimento e o desfecho da história e instaurando uma

atmosfera fantástica. Ademais, o evento insólito suscita uma série de reflexões que,

entre outros aspectos, parece constituir, metaforicamente, um questionamento sobre

a condição do sujeito humano na sociedade atual.

Como grande parte da literatura de Brandão, a narrativa é ambientada no

contexto urbano de uma grande metrópole: o enredo acontece na cidade de São

Paulo, maior centro produtor e consumidor do país e ícone da modernização

brasileira. Imersa nesse espaço, a trama evidencia as contradições de uma cidade

grande, permitindo uma visualização, ainda que limitada, da heterogeneidade que a

constitui. Essa visão panorâmica é possibilitada, em parte, pelo perambular da

personagem por diferentes espaços, na tentativa de recuperar a mão perdida na

caixa do correio. Assim, são apresentados ao leitor tanto a imponência das grandes

obras arquitetônicas como também o ambiente degradado dos subúrbios, o

submundo às margens dos grandes centros, marcas estas imprimidas como

inerentes à própria modernidade. Ao abrir espaço, em sua literatura, para as esferas

marginais da sociedade moderna, Brandão põe em cena indivíduos marginais, a

quem comumente, na literatura, não foram dadas nem vez nem voz. É, portanto,

desse estrato social que brota o protagonista da narrativa em análise: um escrevente

de cartório de meia idade.

Seguindo a tendência dos textos fantásticos, a história inicia-se operando um

corte na realidade cotidiana, representado pela perda da mão pelo protagonista.

Esse acontecimento insólito irrompe em meio a uma atmosfera de aparente

trivialidade e que, a princípio, não teria nenhum outro desdobramento, afinal, são

inúmeras as pessoas que diariamente depositam correspondências em caixas de

106

correios: “Forçou o envelope pela abertura, não entrou. A caixa devia estar cheia”

(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 25). No entanto, é dessa situação corriqueira que se

desencadeia um evento não convencional: “Ele forçou a tampa da caixa postal.

Ficou assustado ao ver sua mão se soltar e cair dentro da caixa junto com o

envelope. Não sentiu dor. Nem o mais leve comichão. A mão simplesmente se

desprendeu, como se estivesse presa por parafusos frouxos” (BRANDÃO-MPCC,

2000, p. 26-27). Some-se a isso o modo como a mão se separa do restante do

corpo: “A mão deixando o braço, sem sangue e sem dor, deslocando-se

mansamente, era para deixar qualquer um desequilibrado […]” (BRANDÃO-MPCC,

2000, p. 27). Aqui, o narrador deixa expressa a exata impressão da falta do fluxo de

vida entre o membro decepado e o restante do corpo: a ausência de sangue e de

dor no momento da ruptura atesta essa interpretação. Do ponto de vista simbólico, o

sangue, conforme destacam Chevalier e Gheerbrant (2009), é universalmente

considerado como símbolo de vida. Assim, a ausência do fluxo sanguíneo, quando

da cisão do membro, abre a possibilidade para duas interpretações não excludentes

entre si: uma literal, que representa, biologicamente, a cessação da vida no

organismo animal; outra metafórica, que aponta para uma morte simbólica do

sujeito, posição esta que é confirmada ao longo da narrativa. Apesar da natureza

inusitada do evento, o narrador apresenta-o de maneira direta, o que contribui para

uma impressão maior de realismo.

Nessa narrativa, os eventos incomuns se somam a outros, compondo um

quadro até certo ponto dantesco. É por isso que se pode afirmar que, tão absurdo

quanto o evento em si da perda da mão, são outras situações que a partir dele se

desdobram. O que falar dos fantasiosos pensamentos da personagem sobre a

possibilidade de partes do corpo humano, como cabeça, membros, dentre outros

órgãos, serem destacáveis e reimplantáveis? E as notícias de acontecimentos

bizarros que brotam todos os dias ao redor do mundo, elencadas em abundância

pelo narrador, cada uma mais absurda que a outra? Mesmo diante dessas situações

inquietantes que parecem normalizar o absurdo, o evento da perda da mão

permanece incompreendido.

Nesse contexto em que o insólito se acomoda de modo tão “natural” à

realidade das personagens, a tentativa da figura masculina de culpar a segunda-

feira pelo acontecimento nem chega a surpreender tanto o leitor: “Era uma situação

nova, inesperada. Culpa da segunda-feira, nem precisava pensar, um dia tenebroso”

107

(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 27). Racionalmente, a segunda-feira em nada difere

dos demais dias da semana. Entretanto, do ponto de vista místico, esse dia em

particular pode sugerir algumas interpretações interessantes. De acordo com

Chevalier e Gheerbrant (2009), os dias da semana constituem uma totalidade

representada pelo número sete, sendo cada um desses dias relacionado a um

planeta. A segunda-feira é representada pela Lua. Esta, por sua vez, evoca um

simbolismo que pode ser resumido em suas duas características fundamentais: (1) a

Lua é privada de luz própria, configurando-se como o reflexo do sol; (2) a Lua

atravessa diferentes fases e adquire também formas diferentes. Considerando, pois,

a segunda-feira dentro desse contexto místico evocado pelo símbolo lunar e tendo

em vista sua recorrência em todas as narrativas que compõem a coletânea O

homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis (2000), pode-se,

ainda que de modo indireto, relacionar essas duas características acima destacadas

ao evento insólito vivenciado pelo protagonista. Assim como a Lua depende da

existência do sol para brilhar, a personagem, para existir, parece necessitar de sua

mão, que assume, metonimicamente, a função do outro. Ademais, as diferentes

fases e formas assumidas pela lua remetem diretamente a um processo de

mudança, o que também se reflete no horizonte do ser ficcional: a perda da mão

implica uma mudança física e, principalmente, comportamental dele.

A perda da mão, dadas às circunstâncias em que se processou, desinquieta a

personagem, estabelecendo uma ruptura radical em sua rotina diária, e a leva a uma

busca frenética e incessante por essa parte faltante de seu corpo. Entorpecido pela

atmosfera de mistério e estranheza que envolve tal evento, o protagonista é

constantemente inundado por conjecturas e pensamentos difusos e absurdos. Isso

inclusive é o motivo, em algumas partes da narrativa, do protagonista perder

parcialmente o contato com o contexto imediato que o cerca, sendo trazido de volta

pela perturbadora realidade da perda da mão: “Outra vez os pensamentos o

afastavam da mão. Precisava se concentrar” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 43).

A ruptura efetuada pelo episódio insólito no cotidiano da personagem

acarreta-lhe sérias consequências. A partir desse momento, o protagonista parece

adentrar em outro nível de realidade, em que uma série de eventos estranhos

passam a ser aceitos por ele com certo ar de naturalidade. Em algumas passagens,

o nítido contraste que se apresenta entre as bizarras atitudes do protagonista e a

postura, considerada racional pela sociedade, de outras personagens da narrativa,

108

chega a se tornar risível. Como exemplo, pode-se citar a passagem em que o

protagonista tenta evitar que uma mulher deposite uma correspondência na caixa

em que, pouco antes, perdera a mão:

−Pode me dar licença? A voz irritada despertou-o, viu a mulher suada, com um perfume doce, desesperador, agitando um envelope roxo. −Posso colocar minha carta? Se não for perturbá-lo muito! −Claro que pode. Mas não deve! −E por que não? −A caixa está engolindo mãos. −Ora, faça-me o favor. Gozações logo de manhã, com esse calor, a chuva ameaçando? Quem garante que não vem outra inundação? Cada dia tem mais louco e ladrão em São Paulo, não dá pé! (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 37)

Dessa forma, percebe-se, na figura da mulher que vem depositar a carta, o

protótipo do cidadão “comum e racional” que tem uma vida corrida e uma série de

outras preocupações diárias. Aqui, tem-se a síntese do perfil de uma parcela da

sociedade atual, de homens que são “esmagados” pelas ocupações e preocupações

cotidianas e que levam uma vida automatizada. Na referida situação, a mulher não

acredita na advertência – a caixa engole mãos! – feita pelo homem para não

depositar a carta e a ignora. Esse instante desestabiliza também o leitor, que se vê

diante de duas reações opostas – a do protagonista e a da mulher. A confrontação

entre esses dois extremos (o racional e o irracional) chega, em algumas situações, a

beirar o limite do ridículo, caso representado pelo diálogo entre o protagonista e um

funcionário dos correios:

Ele chegou diante do guichê. O funcionário espirrava. Tinha um lenço verde na mão. −Sim, sim, atchim, sim, atchim… posso ser útil? −Perdi a mão. −E por que vem ao correio? Perdeu aqui dentro? −Numa caixa de coleta. −Estava endereçada? −Como endereçada? −Tinha destinatário? Remetente? CEP correto? −E por que eu iria colocar CEP na mão? −Está no manual, doutor. Preciso fazer as perguntas. Atchim. (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 50)

Nessa cena, o funcionário, preocupado em seguir estritamente as normas

burocráticas para atendimento aos clientes, não demonstra qualquer surpresa com o

objeto procurado pela personagem (inclusive, parece desconsiderá-lo). Dessa forma,

109

o diálogo não se torna absurdo unicamente pela natureza do objeto procurado, mas,

principalmente, pela forma como o atendente conduz a situação, ao fazer perguntas

absurdas, considerando o contexto. Isso se deve, substancialmente, à obediência

irrestrita do funcionário aos manuais, que, supostamente, reúnem um conjunto de

protocolos a fim de racionalizar o atendimento ao público, visando à eficácia, à

eficiência e à produtividade. Aqui, percebe-se, na verdade, através da ironia e de um

humor sutil, uma crítica ferrenha às instituições públicas, que, burocratizando

excessiva e desnecessariamente seus serviços, chegam ao limite do absurdo.

Durante o processo compreendido entre a perda da mão e o desfecho da

narrativa, a personagem vivencia uma série de outras situações inusitadas que

rompem com os padrões da normalidade cotidiana, enredando-se completamente

nelas: passa a noite inteira a vigiar a caixa do correio em que perdera a mão, a fim

de flagrar o momento da coleta; como não obtém sucesso, segue para a Agência

Central dos Correios, dirigindo-se especificamente para o guichê “Encontrados”, na

expectativa de recuperar o membro perdido; de lá, é direcionada, por fim, para outro

departamento dos Correios, a Expedição, onde um funcionário obsessivamente

amedrontado de perder o emprego finda matando-a estrangulada.

Estrangulou-o e manteve o arrocho bastante tempo, até certificar-se de que o outro estava morto. Envolveu o corpo num saco plástico, grosso, jogou-o dentro de uma embalagem de lona, onde estava escrito em letras vermelhas: CORRESPONDÊNCIA EXTRAVIADA. (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 63)

O funcionário da Expedição leva a personagem para um lugar reservado e

mata-a. Dessa forma, a busca pela mão tem um desfecho trágico, uma vez que

resulta em sua morte. Tão emblemático quanto isso é o nome anotado na

embalagem para descarte do corpo dele, “correspondência extraviada”, escrito em

caixa alta, numa clara tentativa de chamar a atenção do leitor para a atroz ação

realizada pelo funcionário. Isso, evidentemente, aponta para a descartabilidade do

sujeito humano no mundo moderno e ressalta a frieza que impera nas relações

humanas.

A narrativa encerra-se com um fato ainda mais surpreendente, acrescentado

pelo narrador como uma espécie de apêndice no qual é revelado ao leitor o real

destino da mão: encontrada por uma funcionária dos correios, é trazida para a casa

desta e, dada sua inutilidade, atirada no quintal para o cachorro. Aqui, o narrador

110

não deixa dúvidas de que a personagem realmente havia perdido sua mão numa

caixa de correio – se é que essa dúvida ainda pairava na mente do leitor –, uma vez

que a mão é encontrada, na caixa localizada onde descrevera o protagonista, por

uma funcionária dos correios. No entanto, esse acontecimento insólito é

apresentado pelo narrador de forma natural e, por conseguinte, aceito também pelo

leitor, no final da narrativa, dessa mesma maneira – embora esse fato não diminua

em nada a estranheza do evento, que permanece inexplicável. O que chama

atenção, na verdade mais até do que o acontecimento incomum em si, é a finalidade

com que a funcionária recolheu a mão e trouxe-a para sua casa: obter algum tipo de

compensação financeira. Acrescenta-se a isso a naturalidade com que essa mesma

personagem, para se desfazer da mão, joga-a no quintal para o cachorro,

demonstrando frieza e nenhum interesse em sequer questionar como tal membro

fora parar numa caixa de correio.

Tão importante quanto o fato principal gerador do enredo, no caso, a perda

da mão, são as reflexões efetuadas e as situações vivenciadas no interstício entre o

momento da perda e o desfecho da história, que ajudam o leitor a compreender

melhor o contexto em que as ações se desenvolvem. Nesse percurso, o

protagonista se vê inundado por uma série de questionamentos e outros

pensamentos difusos que, dentre outros aspectos, suscitam significativas reflexões

sobre o homem e a sociedade atuais. Isso porque o fantástico, nessa narrativa,

assume uma perspectiva crítica: a realidade é ela própria tornada absurda, o que

permite ao narrador questionar, de forma irônica e com algumas doses de humor,

aspectos importantes da sociedade atual, aqui implicados o mundo moderno, bem

como homem e instituições sociais por ele criadas e sustentadas.

O conto expressa em suas páginas marcas indeléveis impostas pela

modernidade, com suas contradições e conflitos característicos. A importância da

abordagem de tais aspectos reside basicamente na consideração de que é no seio

das relações sociais que o sujeito se constitui: o contexto circundante interfere

diretamente no modo como o indivíduo constrói sua identidade.

Fica evidente na narrativa a relação conflituosa entre o velho e o novo,

dialética essa inscrita nas entranhas da sociedade moderna e que afeta,

inevitavelmente, os sujeitos imersos nesse contexto. A própria personagem enfrenta

os problemas trazidos pela modernidade no âmbito das relações profissionais e de

trabalho. Na condição de escrevente, oficio esse, aliás, ameaçado de extinção, esse

111

ser sente na própria pele as consequências da modernização, representada pela

introdução do computador no ambiente de trabalho: “‘Se cuide você! Esses livros

velhos e incômodos vão se acabar levando a tua raça junto. Ninguém mais escreve

à mão’” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 39). Como se vê, a modernidade impõe uma

dinâmica própria à sociedade. Cabe ao indivíduo adaptar-se a esse novo contexto

ou, do contrário, ser excluído dele. Nesse sentido, a advertência contida na voz do

patrão é esclarecedora quanto a isso. A instabilidade provocada pela constante

inserção do novo, que por sua vez, requer uma reorganização do sistema, é temida

pela personagem, possivelmente influenciada por sua experiência pessoal: “Como

entender o mundo crescendo à sua volta? Muita gente tem medo de coisas novas,

pensou, incluindo-se entre os que tinham receios” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 47).

Essa mesma estrutura dialética entre o velho e o novo se reflete nos aspectos mais

simples e superficiais do cotidiano apresentados na narrativa: a substituição das

cartas pelo telefone, pelo fax e pelo e-mail; e o ofício das cartomantes em vias de

extinção, já que computadores “[…] ditam a sorte, analisam dados, fazem

combinações astrológicas, preveem o futuro” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 44).

Os indivíduos da sociedade moderna convivem diariamente com essas

incertezas. Possivelmente, muitos deles nem sequer tenham consciência desses

fatores, imbricados que se encontram no sistema e automatizados pelo ritmo

frenético da rotina diária: “A maioria passa o dia assim, daí a nebulosidade do

cotidiano, a sensação de que todos vivem semiadormecidos ou hipnotizados,

trabalhando e vivendo sem emoções” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 30).

Esse modelo de vida pregado e exigido pela modernidade reflete

inevitavelmente no modo como o indivíduo vê o mundo e relaciona-se com ele. Com

foco no individual, perdem-se as relações estáveis e autênticas com o outro e o

sentimento de coletividade, resultando numa atomização e na solidão vivenciada

pelo sujeito moderno. A personagem do conto, abandonada pela mulher, isola-se do

mundo em termos afetivos. O que sobra dessa relação é uma foto de sua esposa

pelada, na qual ele parece projetar os sentimentos que nutria pela sua companheira

real: “A foto ficou. Ela, no fundo, gostou de deixá-la ali, confessou. Adorava ser

lembrada. Todas as manhãs e todas as noites ele estaria diante do espelho, a

adorá-la. Você é a minha oração de cada dia, ele disse” (BRANDÃO-MPCC, 2000,

p. 42). Aqui, percebe-se claramente um culto do simulacro, em que uma imagem

passa a ocupar o lugar antes destinado à pessoa real.

112

Além de interferir no plano das relações pessoais, a modernidade também

altera profundamente o modo como o sujeito se relaciona com a sociedade a sua

volta. Se, como observa Lukács (1999), o romance nasce como oposição à epopeia

clássica, com vista a representar retratos da vida privada numa sociedade centrada

no sujeito individual, a modernidade acelera esse processo de atomização do

homem, em que o sujeito, em sua individualidade, passa a agir segundo convicções

próprias que não mais coincidem com as expectativas da totalidade. Na narrativa de

Brandão, verifica-se a radicalização dessa postura, no momento em que uma

personagem do conto convoca o protagonista da história a se juntar a um

movimento em prol da extinção da segunda-feira:

‘Tudo é culpa da segunda-feira, um dia terrível, nada dá certo nele. Aceitem meu convite, venham para a reunião. Vamos debater o porquê da existência da segunda-feira. Vamos propor sua extinção. Precisamos fazer um movimento nacional, que empolgue o povo, como o Diretas-já. Vamos para as ruas com as caras pintadas’ (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 38).

Mais uma vez, utiliza-se do humor para criticar e ridicularizar um

pseudoativismo que se mostra absurdo. O discurso acalorado conclamando a

personagem para se unir a um movimento nacional à semelhança do “Diretas-já”

revela dois aspectos sintomáticos da perda do sentido de coletividade no contexto

da modernidade. Primeiro, o movimento tem como origem um sentimento de uma

pessoa em particular, que odiava a segunda-feira por se sentir doente nesse dia. Em

todos os contos da coletânea O homem que odiava a segunda-feira: as aventuras

possíveis (2000), as personagens comungam desse “ódio” pela segunda-feira.

Entretanto, essa passagem em que um sujeito faz campanha pelo fim da segunda-

feira remete mais diretamente à narrativa “O homem que odiava a segunda-feira”,

também integrante da referida coletânea. Nela, um dado ser, alegando sentir-se

doente nesse dia da semana, passa a organizar uma campanha, recolher

assinaturas e realizar panfletagem em prol da abolição desse dia, de acordo com

ele, tão detestado por todos. Segundo, trata-se de uma causa fútil, a saber, a

abolição da segunda-feira. O engajamento em tal movimento revela, na verdade, a

falência e/ou a falta de ideais autênticos compartilhados por uma coletividade. No

caso específico da narrativa em análise, a apologia pelo fim da segunda-feira,

consideradas as devidas proporções, simboliza as falsas “bandeiras” erigidas pela

sociedade moderna, a fim de preencher a lacuna deixada pela perda do sentimento

113

de coletividade. Portanto, a ausência de um sentimento de continuidade e a relação

de atrito entre homem e meio social ajudam a reforçar a sensação de solidão

vivenciada na modernidade: “Tinha vergonha de perguntar a alguém: ‘O que faço?

Minha mão acaba de cair na caixa!’ Iam julgá-lo maluco” (BRANDÃO-MPCC, 2000,

p. 44).

Ajudando a compor essa visão panorâmica da sociedade moderna, podem-se

mencionar impressões particulares reveladas em cartas escritas por sujeitos

comuns, a que o funcionário da Expedição tinha acesso: “‘Ele conhecia, através das

cartas extraviadas, quanta desilusão, desesperança, frustração, incompreensão

existem nas vidas. Por que as pessoas escrevem tão poucas coisas alegres e

felizes’” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 58). Através dessa fala, pode-se, num caminho

que vai do fragmento a totalidade, construir uma concepção do mundo moderno

representada no conto. Dessa forma, partindo da visão de mundo de pessoas

particulares (visões estas presentes nas cartas violadas pelo funcionário dos

correios), pode-se construir uma concepção de mundo negativa, em que impera a

desilusão, a frustração, a desesperança etc.

Ainda com relação à sociedade e o mundo moderno, merecem destaque, pela

recorrência com que aparecem na narrativa, questões relacionadas ao

conhecimento científico e ao narcisismo.

O conhecimento científico, baseado na lógica e na razão, é várias vezes

criticado na narrativa, ainda que de uma forma bem-humorada. A primeira crítica

advém de sua insuficiência para explicar racionalmente a perda da mão pela

personagem na caixa do correio. Como um homem de seu tempo, ou seja, como

sujeito historicamente situado, filho de uma sociedade centrada no logos e na razão,

é prudente a tentativa de enquadrar o evento insólito dentro de uma estrutura

racional de pensamento, quando questiona: “A mão na caixa. Haveria nos recortes e

livros uma explicação?” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 29). Visto que a ciência

desempenha na sociedade atual um papel de destaque, subjugando outras formas

de compreensão do universo (a religião, a mitologia), e tem pretensão de explicar

todos os fenômenos e dominar, através do conhecimento, o universo, nada mais

compreensível do que a personagem, diante de tal situação, buscar amparo no

conhecimento científico. Entretanto, nem mesmo a Enciclopédia do Inexplicável,

de Jerome Clark, O Estranho e o Extraordinário, de Charles Berlitz, e Casos

Malditos, de Charles Fort, obras essas integrantes da biblioteca particular da

114

personagem, apresentam-lhe uma resposta satisfatória. Como se sabe, os livros, de

modo geral, configuram-se como o repositório do conhecimento científico e racional

produzido pelo homem, sendo disseminado ao longo de gerações através da forma

escrita. Nesse conto de Brandão, os nomes dados aos títulos dos livros, por si só, já

chamam atenção do leitor, principalmente pela natureza incomum dos conteúdos

que sugerem, adentrando, portanto, num universo de ilogicidade e irrealidade. No

entanto, a crítica realizada à ciência de modo geral é indissociável de um humor sutil

que ajuda a criar um clima leve na narrativa.

Considerado em sentido amplo, ou seja, como sintoma de uma sociedade, o

narcisismo, no contexto da modernidade, pode ser considerado uma dominante

cultural (cf. LOWEN, 1993), compreendendo um conjunto de comportamentos e

atitudes do sujeito para com seu corpo e sua imagem pessoal. No conto, as marcas

de comportamentos narcísicos relacionam-se, principalmente, ao culto do corpo,

observados em algumas atitudes da ex-esposa da personagem que revelam sua

obsessão por um corpo perfeito: “Era uma preocupação de sua mulher – quando

viviam juntos – ter uma pele de pêssego. Comprava cremes e mais cremes”

(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 36). Em outra passagem, o narcisismo aparece

atrelado a um fenômeno mais complexo da sociedade moderna, ao qual Adorno e

Horkheimer (2006) denominam indústria cultural. Na passagem destacada abaixo,

os indícios do narcisismo despontam como resultado de uma busca de identificação

com os grandes artistas da indústria cinematográfica, conforme a fala da ex-esposa

da personagem, abaixo destacada:

“A vida com ele [o dono de uma locadora de vídeos] é mais excitante, todos os dias temos de ver filmes e mais filmes e ele sempre me diz: Para mim você é essa mulher. E cada dia sou Demi Moore, Julia Roberts, Sandra Bullock, Nicole Kidman. Depois de ver os filmes, cada dia faço um cabelo diferente para agradá-lo, o cabelo que a artista usa” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 41)

Aqui, percebe-se como os produtos da poderosa indústria cultural,

especificamente as produções cinematográficas, chegam a influenciar e a interferir

em aspectos da vida privada do homem moderno. De um lado, o novo companheiro

da mulher infla diariamente o ego de sua amada, ao compará-la com personalidades

famosas do cinema, consideradas paradigmas de beleza pela sociedade. De outro,

a figura feminina busca uma identificação física com a estrela do cinema, ao fazer “o

115

cabelo que a artista usa”, como forma de agradar o marido. Esse jogo diário de

projeções e identificações torna, sob a ótica da mulher, a vida com o dono da

locadora de vídeos “mais excitante”, já que parece fugir da mesmice e de uma rotina

fatigante. Isso insere as personagens num círculo vicioso que tem como

consequência a perda de relações autênticas entre os sujeitos, ilustrando como a

vida do homem atual se encontra cada vez mais dependente dos próprios artefatos

criados pela modernidade. Isso porque os produtos da indústria cultural, aliando o

campo da cultura ao sistema capitalista, não apenas objetivam divertir, mas,

principalmente, erigem modelos e padrões de beleza que passam a ser buscados

incessantemente pelo homem moderno.

Por fim, podem-se destacar algumas críticas feitas a dois aspectos mais

específicos da sociedade brasileira: o mundo da política e campo das relações

profissionais. Quanto ao primeiro, a narrativa denuncia a inércia de muitos políticos,

que restringem sua atividade pública à busca de coisas insignificantes ou que

praticam atividades ilícitas, como o nepotismo. Em relação ao universo das relações

profissionais, são apresentadas várias críticas, como promoções por conveniências

e não por mérito, burocratização nos serviços públicos, privilégios de um pequeno

grupo de funcionários.

É, portanto, nesse contexto heterogêneo e tumultuado da modernidade que

Brandão insere a saga de um ser fictício que, inesperadamente, vê-se diante do fato

insólito da perda da mão. Perante isso, faz-se a seguinte pergunta: por que a mão

era tão importante para a personagem, a ponto de ela perder sua vida na busca por

esse membro? O conto apresenta algumas pistas que sinalizam para uma relação

de proximidade afetiva entre este ser e sua mão. Em primeiro lugar, sua profissão de

escrevente dependia diretamente de sua mão, e o próprio reconhece isso: “Um

escrevente sem mãos?” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 47). Além disso, partindo para

um lado mais simbólico, pode-se estabelecer uma relação da mão da personagem

com sua vida, relação esta explicitada ao se referir às linhas presentes nela como

representativas das linhas de sua vida: “‘ Na palma estão as linhas de minha vida,

não gostaria de perdê-las’” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 58); “‘As linhas da vida…

ah, aquelas linhas” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 60). Por fim, o protagonista assinala

e reconhece o impacto causado em sua vida pela perda da mão, através do que se

percebe a importância e o valor que esse membro assumia para ele: “Nem quando a

116

mulher o tinha deixado para se juntar ao dono de uma locadora de vídeos tinha

sentido tanto”. (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 41).

Além dessas evidências apresentadas pelo conto, a mão, conforme Chevalier

e Gheerbrant (2009), é símbolo de atividade, poder e dominação, o que corrobora a

linha de interpretação que considera a mão como uma parte importante e

significativa para a personagem, ao representar seu agir e seu poder. A partir disso,

pode-se interpretar a simbologia da mão no conto como representativa,

metonimicamente, do duplo do sujeito. A mão é como uma espécie de extensão do

eu, por ser uma parte do próprio ser, mas que, devido à importância assumida com

sua perda, é alçada a uma condição de quase ser autônomo (ou o outro da

personagem), razão pela qual ela se reveste de uma significação tão especial, a

ponto do sujeito perder sua vida na busca por ela. Dessa forma, opera-se uma cisão

no ser, o que o leva a buscar pela mão, ou melhor, pelo seu duplo. Uma vez que se

coloca em cheque a problemática da identidade, a perda da mão o conduz,

inevitavelmente, a um questionamento de seu próprio eu e de sua existência e o faz

reavaliar uma série de situações anteriores de sua vida.

Além do evento principal representado pela perda da mão, o tema da cisão

aparece recorrentemente na narrativa, por exemplo, através das divagações da

personagem: “Vai ver, há partes que se destacam, só que nunca precisamos retirá-

las […]” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 31). Essa possibilidade de fragmentação física

do corpo humano é levada a consequências extremas pela personagem em seus

devaneios: “E se todas as partes do corpo forem removíveis? De repente, solta-se a

perna, o joelho, a coxa, a barriga. Que maravilha ser a cabeça e olhar pedaços do

próprio corpo espalhados”(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 35). Por fim, a imaginação

fantasiosa leva o protagonista da narrativa aos limites do absurdo, quando visualiza

a possibilidade de duplicação de si mesmo caso perdesse também a cabeça,

tornando-se, portanto, dois: o homem-cabeça ou o homem-sem-cabeça.

Evidentemente, por mais absurdo que possa parecer a um primeiro olhar,

nada é gratuito numa narrativa curta. Qual seria, então, a razão de ser desses

eventos fantasiosos na narrativa? Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que tais

episódios não se encontram desarticulados da trama narrativa. Ao contrário, eles

relacionam-se com o acontecimento inicial da perda da mão e são, por assim dizer,

consequências deste: é a cisão do membro que leva o pensamento da personagem

para essas veredas da fantasia e da imaginação. Além disso, em decorrência da

117

ocorrência primeira, a temática da cisão, ao longo da narrativa, tem a função de

complementar a impressão inicial deixada no leitor pela perda da mão, reforçando,

portanto, a noção de fragmentação do ser.

Esse esfacelamento físico e exterior tem como seu correspondente interno a

psicologia de um sujeito em crise: um homem de meia idade, escrevente de um

cartório (oficio este, aliás, em vias de extinção), abandonado pela mulher; enfim, um

sujeito solitário, marginalizado na vida e no trabalho e que, inesperadamente, perde

sua mão numa caixa de correio, fator este considerado o estopim responsável pela

sua desestabilização completa. De um ponto de vista alegórico, pode-se considerar

esse esfacelamento físico da personagem no conto como uma metáfora do sujeito

moderno. Afinal, não seria essa a imagem mais emblemática do homem moderno, a

do ser dividido, esfacelado, fragmentado? Aragão (1991), discutindo sobre as

facetas do Narciso moderno, aponta, possivelmente, um dos mais importantes

traços que caracterizam o sujeito na modernidade, a saber, a consciência de sua

dualidade e de sua fragmentação: “O mito de Narciso, hoje, espraia-se pela vida,

para além da literatura […] Em nossa sociedade de consumo, esta figura é cada um

de nós, multiplicados e dilacerados nos espelhos, nos vídeos, nas vitrines, no

tempo” (ARAGÃO, 1991, p. 73). No conto, a figura do sujeito mutilado se torna

impressiva e forte, uma vez que a divisão rompe os limites da identidade e da

constituição subjetiva do sujeito, para se materializar em sua constituição física,

através da imagem do corpo esfacelado. Dessa forma, o sujeito humano percorre

um caminho que vai da totalidade do ser a sua fragmentação no mundo moderno

Como se vê, a perda da mão é o elemento insólito que se inscreve na

narrativa e promove ruptura na ordem racional do cotidiano da personagem,

instaurando uma atmosfera fantástica. No entanto, verifica-se que o episódio insólito

não inquieta as demais personagens do conto, e, para o leitor, o fato de o

protagonista perder a mão numa caixa de correio não parece uma situação mais

absurda do que os demais acontecimentos relatados no conto. O caráter ilógico da

narrativa instaura uma atmosfera fantástica no conto, uma vez que tal

acontecimento, ao transcender a racionalidade, pertence à categoria de fatos não

explicáveis pelas leis naturais. Isso provoca a hesitação do leitor – uma das

condições para a instauração do fantástico, conforme Todorov (2008) –, haja vista

que ele não consegue compreender e enquadrar tal acontecimento como um evento

118

natural, nem tampouco aceitá-lo como um elemento sobrenatural. Desse modo, o

leitor flutua, ao longo da narrativa, entre esses dois polos, indecidivelmente.

Além disso, o fantástico apresenta no conto uma perspectiva crítica muito

clara: algumas das situações absurdas, conforme mencionado acima, denunciam

abertamente comportamentos e práticas ilícitas verificadas em instituições públicas,

assim como certas posturas assumidas pelo homem e a sociedade modernos.

Nesse sentido, o fantástico adquire, aqui, um tom de denúncia, em que a aparente

banalidade e absurdez do enredo encobrem um tom irônico e crítico, entrecortado

com algumas doses de humor. Além das críticas já mencionadas às instituições

públicas e a determinadas condutas nelas existentes – favorecimentos, propinas –, o

desfecho do conto revela, possivelmente, a crítica mais nua e incisiva ao homem e

mundo modernos, através de uma imagem forte e impactante: a mão, em cuja busca

seu dono perde a vida, é comida por um cachorro. Isso aponta para uma imagem de

mundo em que as relações humanas autênticas valem cada vez menos e a vida

torna-se sem valor e descartável.

Nesse conto de Brandão, a temática do duplo assume uma configuração

particular. A mão, embora sem vida própria, é alçada à condição de duplo da

personagem, principalmente por introduzir no interior desse sujeito o

questionamento de sua identidade. A perda desse membro leva o protagonista a

uma busca frenética por essa parte faltante de seu corpo, que é também a procura

por si mesmo. Como se sabe, a cisão impõe um corte entre a mão e o restante do

corpo, instaurando uma dinâmica específica na relação entre o sujeito e seu duplo:

embora separada, mantém uma relação de pertencimento com seu dono, além de

ser metonimicamente considerada como representativa do outro da personagem.

Apesar disso, não se pode falar aqui de uma continuação física, como se concebe

numa acepção tradicional, entre o indivíduo e seu duplo: mais importante do que a

relação de espelhamento é a problematização da identidade inserida na psicologia

do sujeito por meio da perda da mão. Desse modo, a busca da mão perdida na caixa

do correio, empreendida pelo sujeito, assume duas dimensões: no plano exterior,

trata-se da recuperação do membro perdido; no plano subjetivo, reflete uma procura

por si mesmo. Quanto à origem, evidencia-se na narrativa um duplo por cisão, de

acordo com a classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002). Seguindo a tipologia

de Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), trata-se de um duplo subjetivo, já que o

protagonista da narrativa se confronta com seu próprio duplo, e externo, pois este

119

assume uma forma física, no caso a mão, que representa, metonimicamente, o outro

da personagem.

Por fim, pode-se estabelecer uma análise comparativa entre essa narrativa de

Brandão e o conto “O nariz”, do russo Nicolau Gogol. Nesse conto, que também se

filia ao fantástico, o major Kovalev, assessor do colégio, percebe, ao acordar, que

seu nariz sumira inexplicavelmente:

Kovalev, assessor do colégio, levantou-se cedo, murmurando ‹‹Brr››, o que fazia sempre ao acordar, embora não apresentasse qualquer explicação para tal procedimento. Kovalev espreguiçou-se e mandou que lhe trouxessem um espelho de tamanho médio, dos que se colocam em cima da mesa. Tudo isso na intenção de observar uma borbulha que na véspera lhe tinha nascido no nariz. Mas, para seu grande espanto, viu que, no sítio do nariz, tinha apenas uma superfície lisa. Kovalev, alarmado, pediu água e esfregou os olhos com um pano molhado: era verdade, tinha-lhe desaparecido o nariz. Apalpou-se; beliscou-se, para se convencer de que não estava a dormir. Não, pareceu-lhe que estava acordado. O assessor Kovalev saltou então da cama e lavou-se: nem sinais do nariz... Vestiu-se prontamente e voou para o posto da polícia. (GOGOL, 1983, p. 169)

Assim como no conto de Brandão, em que o protagonista se vê,

inesperadamente, sem sua mão, a personagem do conto de Gogol também percebe,

ao acordar e ver sua imagem refletida no espelho, que uma parte de seu corpo

também desaparecera: o nariz. Na busca empreendida para recuperar o membro

perdido, ambos os seres enfrentam situações absurdas. Assim como na narrativa de

Brandão, também no conto do escritor russo o membro cindido, no caso o nariz,

assume a função de duplo. Apesar disso, o conto de Gogol apresenta algumas

especificidades: o nariz, em determinada parte do conto, apresenta-se como uma

personagem com vida própria, dotada, portando, de ação; e, no final do conto,

Kovalev consegue recuperar o nariz que, da mesma forma inexplicável com que se

despregara da superfície do rosto, retorna a seu lugar de origem. Vê-se, portanto,

um final bastante diferente do conto de Brandão, em que, além de o protagonista

não conseguir recuperar sua mão perdida na caixa do correio, perde ainda a vida em

consequência da busca por esse membro.

2.3.2 “As cores das bolinhas da morte”

Este conto é também parte integrante da coletânea O homem que odiava a

segunda-feira: as aventuras possíveis, publicada originalmente em 1999. Narrado

120

em terceira pessoa, apresenta um enredo intrigante, no qual um acontecimento

insólito irrompe inesperadamente no cotidiano e provoca uma reviravolta na vida do

protagonista, que num certo dia percebe que perdeu sua sombra. Toda a narrativa

gira em torno da busca angustiante e incessante desse homem pela sua sombra e

das reflexões e questionamentos resultantes dessa busca.

O conto tem como cenário o espaço urbano da grande cidade. A parte inicial

da narrativa se passa na cidade de São Paulo e a outra, na qual se dá o desfecho

da história, na cidade de Belo Horizonte. Em ambos os cenários, o narrador faz

descrições desses ambientes, caracterizando um espaço moderno em que o

aglomerado de pessoas e a existência de prédios suntuosos e favelas – ambientes

degradados – constituem símbolos distintivos da cidade grande. É nesse cenário em

que são desenvolvidas as ações das personagens.

Nesse contexto, um juiz aposentado se vê, certo dia, ante uma situação

incomum ao perceber que sua sombra sumira: “Olhando para o chão, não viu a sua

sombra” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 95). Entretanto, a personagem reluta em aceitar

essa perda; afinal, não estaria ela disfarçada num dia em que o sol se mostrava

fraco? Apesar disso, o fato inexplicável se confirma. E numa segunda-feira, dia que

mais detestava: “como era possível?” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 99). Aqui, é

interessante destacar o simbolismo desse dia da semana. Conforme destacam

Chevalier e Gheerbrant (2009), a segunda-feira é representada pela Lua, que

remete às ideias de reflexo e dependência (reflete a luz do sol) e mutabilidade

(passa por quatro fases distintas). Esse simbolismo relaciona-se, particularmente,

com o momento que a personagem vive na narrativa: a dependência da sombra e o

processo de mudanças psicológicas, o qual tem início com a perda dela.

O desaparecimento da sombra desestabiliza completamente a personagem.

Tragada por essa atmosfera nebulosa, é convencida por um transeunte (que

também perdera a sua), a procurar uma cientista chamada Cristina Agostino.

Especialista em sombras – aliás, começara pesquisando o porquê de os políticos

sempre agirem à “sombra26” –, o protagonista visualiza nessa cientista a

possibilidade de obter uma explicação sobre o motivo da perda da sombra e, por

conseguinte, recuperá-la. Nesse intuito, abandona sua rotina de juiz aposentado em

26

Observa-se, aqui, um humor sutil atrelado a uma crítica social aguda, o que se repete em várias passagens dessa mesma narrativa.

121

São Paulo e desloca-se para a cidade de Belo Horizonte, onde residia tal

pesquisadora:

Por que ele tinha entrado neste círculo? Até ontem vivia tranquilo, cumpria as obrigações rotineiras, não atrasava pagamentos, recebera até um diploma honoris causa da Receita Federal, por sempre ter declarado honestamente o imposto de renda. De um momento para outro estava rodando, em uma cidade desconhecida, sem lógica. Nada era racional e não sentia vontade de ir embora, poderia ficar a vida inteira aqui, se houvesse emprego. (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 127)

Verifica-se, desse modo, uma ruptura total no cotidiano desse sujeito: ele

abandona suas atividades diárias e, de forma mais impressionante e radical, o

ambiente ao qual estava habituado, para se aventurar numa cidade desconhecida

por ele. À primeira vista, parece uma atitude nada racional, mas é,

contraditoriamente, motivada internamente pela razão: a crença de que o

conhecimento científico, personificado na confiança nutrida pela cientista Cristina

Agostino, dar-lhe-ia uma resposta convincente e aceitável. Essa atitude ilustra de

modo exemplar o papel desempenhado pelo discurso lógico-científico na sociedade

moderna, afirmação esta que encontra sustentação no pensamento de Armstrong

(2005), para quem a sociedade ocidental moderna é filha do logos. No entanto, essa

atmosfera racional é suplantada, na narrativa, pelo acontecimento fantástico, uma

vez que esses questionamentos praticamente cessam na parte final da narrativa, e o

protagonista se deixa envolver completamente pela atmosfera misteriosa do

desaparecimento da sombra.

O confronto entre o racional e o irracional constitui uma das linhas de força

estruturadoras do conto. Dada a natureza insólita das situações nas quais o

protagonista se enreda, o leitor é levado a julgar grande parte das ações e atitudes

dele como expressamente contrárias à racionalidade. O que pensar de um homem

que chega para um atendente de uma universidade perguntando por uma professora

que supostamente estaria a estudar o desaparecimento de sombras? A

recomendação dada pelo funcionário é exemplar nesse sentido: “‘O senhor não quer

consultar uma psicóloga?’” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 113). Assim, o julgamento

que esse atendente faz da situação condiz perfeitamente com a interpretação

realizada pelo leitor.

Desse modo, é com o desaparecimento da sombra que esse embate se

apresentará de forma mais complexa, visto que tal acontecimento provoca uma

122

reviravolta na vida do protagonista. Tal acontecimento insólito, que contraria a lógica

e a razão, rompe com a rotina da personagem, que, no entanto, passa a aceitar

essa situação sem grande resistência. Embora durante boa parte da narrativa se

deixe levar por essa atmosfera misteriosa, a racionalidade invade-a em alguns

momentos, instaurando o conflito no interior de sua psicologia: “E a racionalidade o

invadiu. Deu conta de que não fazia sentido estar em Belo Horizonte, uma cidade

que não conhecia, dela só tinha ouvido falar […]” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 138-

139). Aqui, o discurso racional atua como espécie de superego, que lhe alerta sobre

o perigo e a absurdez da situação insólita na qual se encontra. Além disso, ele se

autodefine como um ser racional: “Era um homem racional […]. O insólito não existe.

Nem o absurdo. Quanto a isso, estava tranquilo” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 104).

Essa confrontação, embora seja evidenciada com maior relevo a partir da

perda da sombra, já se esboçava na mente do sujeito anteriormente a esse evento.

Através de diálogos com outras personagens e do discurso do narrador, é dado a

conhecer ao leitor que o homem sem sombra é um juiz aposentado. O fato de ser

um magistrado é particularmente interessante. No contexto ocidental, o judiciário é

caracterizado por um discurso lógico-racional e impessoal e tenta passar a imagem

de uma rigidez comportamental condizente com as leis e normas que organizam a

vida em sociedade. Na figura do protagonista, a quebra com esse discurso ocorre

nas inúmeras rupturas de protocolos realizadas pelo juiz: flertava com as juradas,

dormia durante as sessões de julgamento, aplicava sentenças discrepantes com a

gravidade do delito cometido (brandas ou pesadas demais). Essas condutas

desviantes atingem um patamar insustentável quando do anúncio de uma sentença

considerada extremamente absurda, que provoca indignação no tribunal:

“Assombrou o tribunal ao propor ao réu a escolha da sentença: Jogar bolinhas de

gude com mil delinquentes ou a morte” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 132). Como

punição, o magistrado recebe uma aposentadoria compulsória, o que significa, por

um lado, o afastamento do trabalho no judiciário, mas, por outro, a manutenção de

seu alto salário e de regalias adquiridas.

Como a primeira frase da narrativa já atesta a ocorrência do acontecimento

insólito – “Olhando para o chão, não viu a sua sombra” (BRANDÃO-CBM, 2000, p.

95) –, a ênfase do enredo recai sobre a saga da procura empreendida pela

personagem. Isso porque o sentimento de perda de uma parte de si mesmo

vivenciado pelo homem sem sombra instaura em seu âmago uma série de

123

questionamentos que, em última análise, refletem a psicologia de um sujeito em

crise: “Se eu soubesse, ao menos, o que estou procurando; o que todos estão

buscando” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 98). Desse modo, a busca da sombra

empreendida relaciona-se inequivocamente à instabilidade das identidades

representadas no contexto da sociedade moderna. Essa procura exterior pela

sombra perdida tem como correlato interior um movimento psicológico realizado pela

personagem na tentativa de encontrar a verdadeira essência de seu eu.

Sendo assim, a sombra é representada, no conto, como uma espécie de

desdobramento ou duplicação do eu, como símbolo da existência humana. Isso

justifica a relação de proximidade mantida com o “si” da personagem.

[…] As sombras são dependentes, fiéis, carentes, estimam a pessoa, se apegam. Sombras sofrem se, por alguma razão, se desligam dos corpos a que pertencem. Não sabem viver sozinhas, não sabem se adaptar a outros corpos. Vi um homem que tendo perdido a sombra, roubou uma. Só que o contorno da sombra era diferente do formado pelo corpo dele. Ficou muito estranho. Além disso, a sombra estava habituada a trajetos que o outro fazia e, às vezes o que roubou virava a esquina e a sombra continuava. Ele quase ficou louco. (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 106)

Nessa passagem, é nítida a relação estabelecida entre a sombra e o sujeito.

Ela é como que uma parte duplicada do eu e que, por essa razão, mantém uma

relação de proximidade para com este. É a projeção de um eu, o complemento

deste, sua outra face, e individualizada como esse eu, uma vez que assume a forma

e os contornos deste, não se adequando a outros indivíduos. Além disso, às

sombras são imputados certos sentimentos e a faculdade da memória – as sombras

roubadas conservam em sua memória trajetos percorridos pelo seu eu original.

Nesse sentido, verifica-se uma relação simbiótica entre homem e sombra,

representada, na narrativa, como muito mais do que simples fenômeno físico.

Entretanto, não é somente o sentimento da perda que torna a sombra

significativa para a personagem. A relação de proximidade estabelece-se

anteriormente a esse evento incomum, conforme confessa o narrador da história:

“Ninguém se dá conta se tem sombra ou não, a maioria pouco se importa. Parece

não nos dizer respeito, está ali, podia não estar. Ele não. Costumava contemplá-la

ao longo do dia, cheia de variações” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 96). Evidentemente,

quando da percepção de sua ausência, a sombra adquire importância ainda maior.

Parte natural, integrante de todo ser humano, sua falta transforma-se em

124

característica diferenciadora desse sujeito: seria um “sintoma grave”? Alguma

“doença”? A verdade é que o desaparecimento da sombra impactara-o

profundamente, muito mais do que outros acontecimentos de sua vida: “Sua vida

mudara mais no momento em que a sombra desapareceu do que quando a

aposentadoria compulsória caiu sobre ele” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 139).

A partir dessas considerações, que significados podem ser atribuídos à

simbologia da sombra no conto? Considerando o contexto moderno no qual a

narrativa foi produzida, que sentidos a perda da sombra e sua busca podem

adquirir?

Para tentar elucidar essas duas questões, considerar-se-á a sombra sob três

óticas, que, em todo caso, mantêm relações importantes com a arquitetura ficcional:

a primeira refere-se à simbologia da sombra ao longo das sociedades; a segunda

remete a uma visão da psicologia analítica, pautada nos postulados de Jung; a

terceira considera a sombra como motivo literário, tomando como referencia o teor

poético e metafórico da palavra no discurso narrativo, principalmente a partir do

século XIX.

Se se voltar ao texto bíblico, ver-se-á que a sombra precede a existência

humana: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia;

as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas” (Gn, 1:

1-2, p. 14). Nessa narrativa cosmogônica, as trevas estão associadas ao caos

primitivo: a terra encontrava-se vazia e amórfica. É a partir da palavra sacralizada de

Deus, do Verbo, que esse caos originário transforma-se em cosmos: “Deus disse:

‘Que exista a luz!’ E a luz começou a existir” (Gn, 1: 3, p. 14). À luz, Deus chamou de

dia e, às trevas, de noite, inscrevendo a dualidade no âmago da criação cósmica.

Há no conto, inclusive, uma referência a essa passagem bíblica, quando a

personagem interroga se os homens teriam nascido da sombra: “Vai ver, os homens

tenham nascido delas, porque quando o mundo ainda não existia, já havia a sombra,

ela era tudo, era o universo. Até que surgiu a luz, surgiu o homem e elas decidiram

que fariam parte desse mundo, de alguma forma” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 109).

Assim, enquanto na Bíblia a sombra pré-existe ao homem, no conto, a presença

dela, segundo palavras do protagonista, parece confirmar a existência humana: “A

sombra é a prova de que existimos” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 102). Em ambos os

casos, a sombra relaciona-se, de algum modo, com a existência humana,

precedendo-a ou confirmando-a. A partir disso, e também considerando outros

125

aspectos da simbologia da sombra, pode-se relacioná-la, portanto, ao primitivo, ao

sombrio, ao desconhecido, às trevas, em oposição à luz: “A sombra é, de um lado, o

que se opõe à luz; é, de outro lado, a própria imagem das coisas fugidias, irreais e

mutantes” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009, p. 842). Por fim, algumas

sociedades estabelecem relação de proximidade entre a sombra e o ser. O homem

primitivo considerava a sombra seu misterioso duplo, associando, desse modo, a

alma imortal à sombra. De igual modo, vários povos africanos consideram-na como

a segunda natureza dos seres e das coisas; e em diversas línguas indígenas da

América do Sul, uma mesma palavra significa sombra, alma e imagem.

Possivelmente, essa visão esteja implícita na crença tradicional de que o homem

que vende sua alma ao diabo perde, como consequência, sua sombra: “[…] por não

se pertencer mais, ele deixou de existir enquanto ser espiritual, enquanto alma”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 843).

Na psicologia, Jung, ao teorizar sobre aspectos constituintes da psique e da

personalidade humana, apresenta um conceito de sombra como oposto da

consciência: “A sombra é, por assim dizer, o ponto cego da natureza individual. É

aquilo que não se quer considerar sobre si mesmo”. (CAMPBELL, 2008, p. 99).

Desse modo, a sombra é aquilo que não é apreendido pela personalidade individual

e é por ela excluído. Nesse sentido, sob o signo da sombra se aglomeram todos os

elementos reprimidos pelo sujeito ao longo de sua formação enquanto ser social.

Complementando essa caracterização da sombra à luz da psicologia jungiana,

Campbell (2008, p. 99) acrescenta:

A sombra é aquilo que você seria se tivesse nascido do outro lado da linha do trem: o outro indivíduo, o outro você. Compõe-se dos desejos e das ideias que você está reprimindo – todo o id introjetado. A sombra é o aterro sanitário do self. Também é, porém, uma espécie de cofre: guarda dentro de você enormes potencialidades não realizadas.

Nessas duas visões da sombra, que englobam seu aspecto simbólico e

psicanalítico, observa-se uma complementaridade. Em ambos os sentidos, a sombra

é vista como relacionada ao primitivo e como oposta da luz (ou consciência).

Na literatura, a sombra aparece como motivo literário e assume configurações

próprias, muito embora sofra influência direta das duas outras dimensões do

conceito acima apresentadas. Moraes (2002) reconhece, na literatura oitocentista,

duas variantes desse motivo. Na primeira, verifica-se uma ênfase no encontro e na

126

confrontação com o duplo: “A sombra aqui representa uma extensão do eu que, uma

vez revelada, condena o indivíduo a um enfrentamento consigo mesmo fazendo-o

recordar, a todo instante, o destino trágico de sua condição” (MORAES, 2002, p.

101). Um exemplo dessa variante do motivo é a narrativa O médico e o monstro,

de Stevenson (2010). Na referida obra, a personagem Hyde aparece como espécie

de extensão do Dr. Jekill, ou seja, como seu contraponto inconsciente. A segunda

variante do motivo destaca a perda da sombra, tema tradicional de diversas lendas

europeias, dentre elas as sagas escandinavas (cf. MORAES, 2002). Diferentemente

da posição anterior, a sombra, embora se apresente também como uma extensão

do eu, separa-se de seu dono, adquirindo independência. Como exemplo, pode-se

citar a narrativa “A maravilhosa história de Pedro Schlemihl”, de Chamisso (1983).

Nesse texto, Pedro Schlemihl vende sua sombra a um desconhecido, em troca de

uma “inesgotável bolsa da fortuna”, e perde-a para sempre. A ausência de sombra é

interpretada pelo corpo social como signo de uma maldição, condenando esse ser a

uma vivência solitária e errante.

Partindo dessas considerações e tendo em vista o contexto moderno no qual

a narrativa é produzida, pode-se afirmar que a perda da sombra pelo protagonista e

sua busca angustiante por ela representam, na verdade, a procura pela verdadeira

essência do ser humano em um mundo cujas identidades se mostram instáveis,

numa referência à constituição fragmentária do eu. Essa interpretação pode ser

inferida pela combinação estabelecida entre diversas passagens da narrativa. De um

lado, pode-se mencionar o bordão de um locutor de rádio que o protagonista,

quando criança, costumava ouvir: “Ninguém sabe o mal que se esconde nos

corações alheios. O sombra sabe” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 105). Aqui,

estabelece-se claramente um jogo possibilitado pela dupla referência da palavra

“sombra”: numa interpretação mais literal, remete ao apelido do radialista; num plano

simbólico, pode remeter à sombra concebida como um estrato da psique humana ao

qual são relegados os impulsos e desejos incompatíveis com a ordem socialmente

estabelecida, denominados como “o mal que se esconde nos corações alheios”.

Desse modo, essa passagem, que, à primeira vista, pode parecer gratuita, confirma

a tese de Cortázar (2008), segundo a qual todos os elementos presentes no conto

são significativos e desempenham um papel previamente determinado. De outro

lado, verifica-se, na narrativa, um jogo semântico criado pela correspondência entre

o substantivo “sombra” e o adjetivo “sombrio”: “[…] conheço a vida, já vi o outro lado

127

do mundo, o aspecto sombrio do homem, sempre pronto a velhacarias” (BRANDÃO-

CBM, 2000, p. 107); “Melhor que elas [as sombras] sumam, assim desaparece o

lado sombrio da vida” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 148). Aqui, não se trata

unicamente da sombra compreendida como fenômeno físico. Impõe-se, portanto, a

necessidade de concebê-la também sob uma perspectiva mais ampla que considere

e explore todo o simbolismo a ela inerente. Ao representar também o lado sombrio

da existência humana, pode-se estabelecer uma nítida correlação com a sombra em

sua acepção psicológica, tal como postula Jung (2008). Em outra passagem da

narrativa, lê-se: “A sombra é luz morta” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 102). A imagem

criada pela caracterização da sombra como luz morta reflete, de modo inequívoco, a

acepção desse conceito no campo psicanalítico. Evidentemente, a luz está para o

conhecimento: “A luz sucede às trevas, tanto na ordem da manifestação cósmica

como na da iluminação interior” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 568). A

expressão “luz morta”, usada para definir a sombra, traz à tona o jogo de oposições

e contradições que se encontram na origem desse conceito psicanalítico: um

conjunto infindável de potencialidades inerentes ao sujeito humano, as quais,

entretanto, permanecem adormecidas nas obscuras camadas do inconsciente. Por

fim, a sombra é também considerada por outra personagem da narrativa como

representativa da sensação de vazio humano, numa possível referência ao lado

sombrio do ser humano: “Não tem importância. A sombra é o nosso vazio”

(BRANDÃO-CBM, 2000, p. 148). Não seria essa sensação de vacuidade justificada

pela existência de conteúdos psíquicos não assimilados pela consciência e que,

portanto, permanecem desconhecidos pelo sujeito?

No campo estritamente literário, o conto em análise filia-se à segunda variante

do motivo literário da sombra, conforme postulado por Moraes (2002), pois nele a

sombra não apenas se apresenta como uma extensão do eu, mas também adquire

independência como resultado de uma cisão operada no sujeito. Desse modo, tal

narrativa pode ser inserida no conjunto de uma tradição que estabelece diálogos

com outras narrativas produzidas em diferentes épocas. Dentre essas narrativas,

pode-se citar a já mencionada narrativa de Chamisso “A maravilhosa história de

Pedro Schlemihl”, que, segundo Moraes (2002, p. 101), precipita “[…] a criação de

várias [narrativas] com enredos semelhantes”. É o caso de “Aventuras da noite de

São Silvestre”, de Hoffmann (1983), e “A sombra”, de Andersen (1983). No primeiro,

Erasmo Spikher dá o seu reflexo para Giulietta. A perda do reflexo cai sobre ele

128

como uma maldição, sendo relegado pela sociedade e pela própria família. No

segundo, um ser conhecido como “o sábio” depara-se com uma situação inusitada:

certo dia, sua sombra desprende-se de seu corpo e desaparece. Depois de um

tempo, ela retorna, assumindo um corpo próprio. A sombra, agora corporificada,

convence o sábio a tornar-se sua sombra. Nessa inversão de valores, a sombra

casa-se com uma princesa e mata o sábio, que assumira a condição de sombra da

personagem sombra.

A recorrência de narrativas que tematizam a perda da sombra ressalta, pois, a

importância da inscrição desse motivo literário em diferentes épocas, permitindo ao

leitor analisar a narrativa como pertencente a uma tradição. Praticamente todas

essas narrativas inserem, inevitavelmente, o questionamento sobre a identidade no

interior do sujeito. A cisão operada por meio da separação entre o corpo e a sombra

é sempre sentida como a perda de uma parte importante e integrante do sujeito,

resultando numa diferenciação negativa em relação aos demais membros do corpo

social e, consequentemente, no enfraquecimento do sujeito. Entretanto, enquanto

nas demais narrativas a perda da sombra parece estar atrelada a uma atitude

consciente da personagem, no conto de Brandão tal evento insurge repentinamente,

surpreendendo inclusive o leitor. O acontecimento insólito desestabiliza o

protagonista da história, provocando uma reviravolta em seu cotidiano.

Diferentemente das demais narrativas, nas quais a perda da sombra é percebida por

todos, levando o sujeito portador dessa particularidade à completa exclusão das

relações sociais, a personagem desse conto de Brandão passa praticamente

despercebida em meio à massa de desconhecidos habitantes das cidades grandes,

ressaltando, com isso, a solidão vivenciada pelo homem moderno: “Ficou parado, as

pessoas passavam indiferentes, ninguém repara em nada” (BRANDÃO-CBM, 2000,

p. 99).

Desse modo, percebe-se que a temática da perda da sombra leva

inevitavelmente ao questionamento da real essência do sujeito, problematizando a

construção da identidade no contexto da contemporaneidade. Em determinada cena

do conto, o protagonista, referindo-se aos processos que julgara quando juiz,

questiona se estaria nos autos o verdadeiro homem, ou seja, o sujeito que rompeu

“[…] todos os limites, desprezou as normas que alguém algum dia, em alguma parte

remota, por alguma razão, estabeleceu, impondo preceitos, diretrizes, fórmulas,

regimentos e doutrinas para o viver?” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 156). A esse lado

129

escuro da natureza humana, verificada não só nos processos mas também

diariamente através dos noticiários dos meios de comunicação, Abrams e Zweig

(2000) denominam de “sombra coletiva”, ou seja, a maldade humana.

Embora a sociedade atual seja caracterizada por certa libertação do indivíduo,

no âmbito social e religioso, por exemplo, essa liberdade é apenas parcial. Em seu

texto O mal estar na civilização, Freud (1996b) já reconhecia que a civilização “[…]

é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais

felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”. Enquanto

organização coletiva, a sociedade moderna, em prol de uma estabilidade e baseada

num constructo social, dita o que é permitido ou não. Em virtude disso, muitos dos

desejos e potencialidades do eu, por não condizerem com as normas de convívio

social, acabam sendo reprimidos e excluídos para uma parte da psique, a fim de que

não tragam ameaças à estabilidade do sujeito e da sociedade. Essa é a reflexão que

faz a personagem em determinada passagem da narrativa:

A civilização não passa de fingimento, inibição. Os conceitos foram formulados para evitar que a humanidade se comporte como é, e deseja, e gostaria. Foram criados para nos tornar impotentes e angustiados. Por que nossas angústias […] nascem da incapacidade que sentimos em não poder matar, roubar, violentar, mentir, cagar na rua, mijar na mesa em que se come, cuspir na igreja, tocar cuíca no tribunal, escrever provas em neozelandês nas universidades, praticar todo tipo de sexualidade, não ter religião, pudor, consideração, decência. (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 157)

Verifica-se, no fragmento destacado, um ataque e uma crítica ferrenhos às

noções de civilização e moralidade que governam a vida em sociedade. Essa

reflexão alinha-se, em certo sentido, ao pensamento do influente filósofo alemão

Friedrich Nietzsche, no que se refere a sua postulação da transvaloração dos

valores, que visa a libertar o homem dessas amarras morais historicamente

construídas (cf. SANTOS, 2010). Contudo, embora reflita sobre essas ideias, a

personagem encontra-se ainda distante do “homem do futuro” ou “além-do-homem”,

a quem Nietzsche delega tal atitude.

Compondo esse quadro de crítica ao sujeito moderno, o narrador apresenta

um sujeito que “amava o vazio”: seu apartamento não tinha móveis e sua enorme

biblioteca era completamente vazia, à exceção de um livro volumoso sobre uma

cômoda – este, por sua vez, também em branco. Não seria essa a síntese do sujeito

atual, em que o apego dessa figura humana ao vazio remeteria, em última análise,

130

ao indivíduo humano esvaziado e dessubstancializado? A descrição da enciclopédia

em branco aponta indubitavelmente nessa direção: “‘Este é o primeiro volume. Obra

excepcional, sintetiza o pensamento universal, condensa o homem atual. Define a

mente da era globalizada’. […]. Folheei em busca de um texto. […] Nada, páginas e

páginas” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 150).

Desse modo, tanto o homem que perde sua sombra (esta entendida em sua

acepção psicanalítica, ou seja, como um estrato inconsciente da psique humana)

quanto o homem que amava o vazio podem ser concebidos, em sentido genérico,

como metáforas que ajudam a caracterizar o sujeito atual. Esvaziado de sentimentos

e emoções, por um lado, e podado pelas rígidas normas de convívio social, por

outro, eis a síntese do homem moderno que a leitura do conto permite inferir.

Na parte final da narrativa, especificamente quando o homem consegue

entrar no prédio onde morava a escritora Cristina Agostinho – e não a cientista

Cristina Agostino, que supostamente estudava sombras e parece não existir –, ele

percebe que havia um resquício de sua sombra e se pergunta: “Estaria voltando? Se

pudesse retê-la, ou quem sabe puxá-la, retirá-la dali, obrigá-la a se expor”

(BRANDÃO-CBM, 2000, p. 145). Esse acontecimento pode ser entendido como

indício de começo da descoberta da essência do eu, a qual se efetivará na parte

final do conto. No desfecho, o protagonista se vê imerso em uma atmosfera obscura

e inquietante: “Ele sabia e não queria ser aquilo em que tinha se transformado. Não

podia admitir. De modo algum” (BRANDÃO-CBM, 2000, p.163). Logo em seguida, o

narrador afirma: “Ele, o juiz, homem sem sombra era o escuro” (BRANDÃO-CBM,

2000, p. 163). É nesse contexto que acontece a fusão entre homem e sombra, o que

sinaliza a junção entre o eu e sua parte oposta: “E o juiz entendeu que, ao encontrar

a sombra perdida, incorporara-se a ela. Tornara-se sua própria sombra” (BRANDÃO-

CBM, 2000, p. 164). Nesse momento, além da fusão, há uma inversão hierárquica: o

eu, a princípio superior, é absorvido e passa a ser subjugado pela sombra.

Dessa forma, o encontro da sombra perdida simboliza, antes de tudo, a

descoberta da essência do sujeito. Nessa união, completa-se o processo de

individualização, assim como o postula Jung (2008), na medida em que o sujeito

assimila o outro como parte do eu, o que contribui para uma maior consciência da

totalidade de sua personalidade. Assim, o percurso realizado pelo ser ficcional ao

longo da narrativa pode ser compreendido como processo de aprendizagem e

conhecimento de si, que tem seu ápice na consecução da individualização.

131

Conforme destaca Cavalcanti (1997, p. 80), “Jung viu o confronto com a sombra,

seja sob que forma se apresente, e o desnudamento da persona, como a condição

básica inicial para o processo de individuação, para o encontro com o eu

verdadeiro”. No conto, o confronto da personagem com esse lado sombrio de sua

personalidade é simbolizado pela perda da sombra e a consequente procura

desencadeada. O sentimento de falta, resultado da cisão que separa o homem de

sua sombra, leva-o a um profundo questionamento de sua existência, induzindo

esse indivíduo a um maior conhecimento de si. Como decorrência desse processo,

verifica-se também um paulatino desvestimento da persona, ou seja, da imagem ou

máscara social sustentada pelo protagonista. Isso porque o juiz de direito, cuja

função profissional é determinar, através de suas sentenças, o destino de outras

pessoas, não é capaz, no âmbito de sua vida privada, de direcionar e controlar,

mesmo que parcialmente, seu próprio destino, subjugado que se encontra pelos

eventos incomuns que irrompem no seu cotidiano. Desse modo, o processo de

individuação é aqui caracterizado por um duplo movimento, indissoluvelmente

relacionado: de um lado, o confronto com a sombra; de outro, o desmascaramento

da persona.

Diante do exposto, pode-se concluir que a busca da sombra pelo protagonista

é, na verdade, a procura pela essência do sujeito com todas as suas

potencialidades. Considerando o ambiente burocrático no qual viveu imerso grande

parte de sua vida, ditado por regras e normas rígidas de convívio, percebe-se, nessa

procura angustiada realizada pelo protagonista, uma tentativa de libertação e de

resgate de um eu reprimido por essas normas sociais. Este conto permite, pois, uma

reflexão sobre o sujeito imerso nessa sociedade moderna, em que os indivíduos

cada vez mais se identificam com papéis sociais, relegando sua verdadeira essência

para partes obscuras da psique: “Nada como a ausência de sombra para nos obrigar

a pensar” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 142). Neste sentido, há, no conto, uma perfeita

caracterização do sujeito moderno, fragmentado e descentrado, cuja estabilidade e

coerência não encontram mais espaço. Dessa forma, o conto delineia o retrato de

um sujeito em crise, em constante atrito com o mundo no qual está imerso, cujas

ações e atitudes não se revestem de nenhum heroísmo sobre-humano: o heroísmo

é o do homem moderno em sua luta diária pela sobrevivência em uma sociedade

cada vez mais inóspita.

132

Além de permitir uma reflexão sobre a condição humana no contexto da

sociedade moderna, o conto apresenta críticas a alguns elementos que ajudam a

sustentar tal sociedade, a saber: a ciência, com sua pretensão de explicar todos os

fenômenos e fatos da existência humana e apresentar soluções para eles; as

normas e leis sociais, que encapsulam o sujeito e inibem sua liberdade criativa, o

desenvolvimento de suas potencialidades e a espontaneidade; a violência, quando

nem as sombras escapam da ação de ladrões. Nesse sentido, a partir de uma

literatura com inclinação para o fantástico, Brandão faz uma severa crítica à

sociedade moderna, que, de modo geral, não consegue apresentar respostas

satisfatórias para o sujeito. Isso pode ser inferido a partir do testemunho do próprio

narrador: “[…] há quinhentos anos não se dá, no Brasil, uma única resposta

satisfatória, concreta e inteligente a qualquer pergunta” (BRANDÃO-CBM, 2000, p.

154). Esse posicionamento desvela algumas das mazelas sociais e permite uma

reflexão sobre a realidade: “O real é a mentira na qual nos agarramos para não

sermos considerados loucos, para não nos internarem, nos retirarem do que

chamam sociedade. O real é impalpável” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 161).

Nesse conto, a sombra configura-se como o duplo da personagem. Essa

interpretação advém não apenas do simbolismo que a sombra adquiriu para o

homem ao longo dos tempos, mas, principalmente, pelo modo como o escritor

problematiza a relação entre o ser ficcional e sua ausência de sombra. A

proximidade e a intimidade entre o sujeito e sua sombra são reafirmadas inúmeras

vezes ao longo do conto: ela é apresentada, inclusive, como estabelecendo uma

relação única com o corpo que a projeta, ou seja, é individualizada, o que reforça a

ideia de complementaridade entre essas duas partes. Se, no plano físico, a sombra

é concebida como uma projeção, uma continuidade do sujeito; no plano simbólico –

mais especificamente em sua acepção psicológica –, passa a figurar como um

aglomerado de conteúdos psíquicos reprimidos, estabelecendo, portanto, a

dualidade entre o consciente e o inconsciente. Essa interpretação ganha

sustentação na narrativa pela frequente vinculação da sombra com o “lado sombrio”

da existência humana.

Assim, a cisão que estabelece a separação entre o protagonista da narrativa

e sua sombra revela uma relação dual há muito tempo já reconhecida pelo homem.

Essa cisão acaba deixando profundas e graves consequências para o sujeito, uma

vez que passa a ser portador de uma deformidade no plano físico que,

133

inevitavelmente, reflete-se também, e principalmente, na psicologia desse sujeito,

instaurando nele um conflito interior. O protagonista da narrativa de Brandão é

emblemático quanto a isso, pois, ao verificar que sua sombra desaparecera,

direciona toda a sua atenção e esforço para esse problema, na tentativa de

encontrar uma solução. Entretanto, como observa Moraes (2002, p. 101), a cisão

apresenta-se apenas como um primeiro estágio rumo à decomposição final: “[…] em

várias narrativas a perda da sombra sugere uma antecipação da morte […]”. A parte

final do conto não deixa claro o que realmente aconteceu com a personagem.

Entretanto, a fusão do homem com sua sombra sinaliza para uma nova etapa na

vida desse sujeito: “Estava iniciando uma viagem para o desconhecido absoluto”

(BRANDÃO-CBM, 2000, p. 164). O novo ser que nasce dessa experiência de fusão

com sua sombra pressupõe, ao menos no plano simbólico, a morte daquele

indivíduo cindido anterior. Seguindo a classificação de Bargalló (Apud LAMAS,

2002), tem-se, quanto à origem, um duplo por cisão. Em relação à tipologia de

Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), evidencia-se um duplo subjetivo, resultado

da confrontação da personagem com o seu outro, e externo, já que o duplo é

representado fisicamente pela sombra.

134

CAPÍTULO III - METÁFORAS DA DUALIDADE EM CONTOS DE LYGIA

FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO: UM ESTUDO

COMPARATIVO

Uma vez realizada a análise individual das narrativas selecionadas de Lygia

Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão, passa-se, agora, ao desenvolvimento

de um estudo comparativo desses textos. A comparação adentra neste trabalho

como um recurso analítico e interpretativo (cf. CARVALHAL, 2001), o qual

possibilitará melhor entendimento da natureza do duplo na literatura desses

escritores. Neste capítulo, a comparação se dará em dois níveis diferentes: (1)

considerando o universo formado pelos contos selecionados de cada escritor; (2)

colocando lado a lado as produções de Telles e Brandão. No primeiro, mediante as

análises dos contos dos dois escritores, procurar-se-á desenvolver generalizações

sobre a natureza da manifestação do duplo nas narrativas de Telles e Brandão. No

segundo, a partir dos resultados dessas análises, será realizada a confrontação

entre as representações do duplo em Telles e em Brandão, de modo a ressaltar

semelhanças e diferenças no modo de representação da identidade das

personagens. A comparação entre as narrativas desses escritores possibilitará

traçar – considerando as devidas limitações de qualquer estudo desse tipo,

principalmente pela quantidade limitada de narrativas analisadas – algumas

vertentes e direcionamentos que a representação do tradicional tema do duplo vem

adquirindo no contexto literário brasileiro na contemporaneidade.

3.1 Lygia Fagundes Telles

Conforme observando anteriormente, Silva (2001, p. 42) reconhece na

contística de Lygia Fagundes Telles uma recorrência de determinados temas,

imagens e símbolos, o que denomina de mitoestilo: “O mitoestilo caracteriza-se pela

insistência em um grupo restrito de temas que se repetem, pela recorrência de

certas imagens e situações e pela utilização de determinados artifícios de estilo e de

efabulação que têm a propriedade de reforçar o sentido mítico dos temas”. O

reconhecimento de determinadas constantes no conjunto de contos de Telles ajuda

a compreender as muitas semelhanças e dessemelhanças entre os contos “A

caçada”, “A mão no ombro” e “O encontro”. Similaridades dizem respeito não

135

somente ao plano temático, em que se verifica a representação da dualidade

humana e da consequente busca da identidade, mas também ao modo como

estruturas menores da narrativa repetem-se e organizam-se, criando a atmosfera

propícia que permite a confrontação da personagem com seu duplo. Desse modo,

considera-se que a temática da duplicidade presente nos contos de Telles encontra-

se organicamente imbricada aos demais elementos componentes da narrativa, o que

aponta para a necessidade de tratá-los em conjunto.

Nos três contos de Telles analisados nesta pesquisa, observa-se uma série

de elementos análogos que se repetem: personagens e certos artefatos que

compõem o espaço físico no qual as ações se desenvolvem, bem como

determinadas estruturas narrativas e situações. Estes não apenas antecedem a

confrontação do eu com seu duplo, como também contribuem de modo significativo

para a construção da atmosfera adequada na qual se efetua esse encontro. Apesar

disso, é importante pontuar algumas especificidades e variações desses temas

verificadas nas narrativas, de modo a compreender melhor a natureza do duplo na

literatura de Telles.

A figura do caçador é recorrente na literatura lygiana. Segundo Silva (2001, p.

47), “A presença do caçador […] surge nos contos de Lygia como imagem da morte

[…]”. A imagem do caçador aparece em “A caçada” e “A mão no ombro”. No

primeiro, o caçador é o responsável por desferir a flecha que acerta em cheio o peito

da caça. No segundo, é também um caçador que, com o gesto de colocar a mão

sobre o ombro do homem, anuncia-lhe a morte. Nesses dois casos, vê-se uma

mesma relação de poder que estrutura a ação das personagens, em que o caçador,

imbuído dos poderes da transcendência, domina a cena. Na mitologia grega, o arco

e a flecha, sob a posse do arqueiro Apolo, são as armas utilizadas para impor seus

desígnios sobre os destinos humanos. A possível relação entre o caçador e o

arqueiro Apolo permite o entendimento daquele como a manifestação de uma força

transcendental no conto “A caçada”, já que a posse desse armamento confere a

esse ser o poder sobre a vida da caça. No conto “A mão no ombro”, o caçador,

embora desprovido de qualquer armamento concreto e perceptível, também domina

todo o espaço e detém o poder sobre a personagem: o ato de colocar a mão no

ombro simboliza a posse sobre o objeto, no caso, sobre a vida do sujeito. Nessa

narrativa, a conexão do caçador com a transcendência é explicitada tanto pelo poder

conferido a esse ser ficcional quanto pelo fato de ele descer por uma escada para

136

anunciar seus desígnios – aqui, a escada estabelece a ligação entre os espaços

cósmicos.

Enquanto a figura do caçador parece dominar a cena nessas duas narrativas,

o duplo dos protagonistas representados pela caça, em “A caçada”, e pela

personagem do sonho, em “A mão no ombro”, assumem uma posição passiva, de

inferioridade e de submissão. Na primeira narrativa, a caça mostra-se impotente

ante o poderio de destruição representado pela flecha apontada para si. A imagem

de um São Francisco de mãos decepadas ajuda a compor o clima de impotência

daquele sujeito. Na segunda, a personagem sentada em um banco espera

passivamente a aproximação do caçador e o toque sobre o seu ombro.

No conto “O encontro”, não há explicitamente referência à figura do caçador.

Entretanto, algumas imagens ajudam a compor uma atmosfera que, de alguma

forma, revela a presença de uma força maior que impele a personagem a seguir um

caminho que a levará à destruição: o sol como um olho a espiar sobre uma nuvem,

em alusão ao “olho divino que tudo vê” (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009); a

aparente calmaria do ambiente, à qual se segue um “vento gelado” que acorda o

bosque; o encontro com uma teia de aranha, em que a aranha representa a criadora

cósmica e a teia, uma armadilha à espera de sua vítima – aqui é perceptível uma

referência, ainda que indireta, à bipolaridade caçador/caça, tão presente nos outros

dois contos acima mencionados. Nesse caso, a onipotência do ambiente,

possivelmente governado por um poder transcendente, contrasta, pois, com a

passividade da personagem em “O encontro”. Mesmo suspeitando dos perigos, ela

prossegue em sua caminhada rumo ao fatídico encontro consigo mesma. A posição

corporal dessa mulher, ao adentrar no local em que efetivamente acontece o

encontro, é exemplar quanto a isso, conforme se nota no trecho que segue: “[…] ia

de cabeça baixa e coração pesado, mas ia firmemente […]” (TELLES-OE, 1958, p.

18).

Além da repetição de determinadas personagens, observa-se na contística de

Telles a recorrência de determinados espaços e imagens. Quanto ao espaço, Silva

(2001, p.16) afirma que a prosa de Telles “[…] não se circunscreve aos estreitos

limites do aqui e do agora, mas transcende-os”. Nos três contos analisados neste

trabalho, essa característica peculiar da escritora revela-se através da presença de

um jardim, deslocado no tempo e no espaço – possivelmente, uma das imagens que

ela mais utiliza. Segundo Silva (2001, p. 46), o jardim representa, nos contos de

137

Telles, “[…] o lugar de regresso: a um tempo passado, a um estado de paz, à

inocência perdida. É ao mesmo tempo o Éden e o ventre materno, a selva e o

aprisco, é o lugar da revelação”. Os três contos referidos apresentam variações do

jardim primordial. É nesse lugar indeterminado, demarcador, em diversas tradições

religiosas, do início e do fim da vida, que acontece a grande revelação para as

personagens, momento no qual reconhecem o outro como parte do eu. Ademais,

outros elementos, atrelados à imagem desse jardim, contribuem para o simbolismo

aqui destacado: a presença da fonte nos contos “A mão no ombro” e “O encontro”,

que remete diretamente à simbologia da fonte da vida e do centro do mundo,

delineando, portanto, um lugar sagrado; o banco, também nos contos “A mão no

ombro” e “O encontro”, que configuram, segundo Silva (2001, p. 47), “[…] o instante

de repouso e o momento da revelação” – ambos os seres dos contos mencionados

passam por esse momento de reflexão que permite o reconhecimento do duplo; a

persistência do verde nos três textos, cor ambígua que, de acordo com Silva (2001),

representa tanto a juventude e a esperança quanto a decomposição, o que ajuda a

inscrever o tema da dualidade nas mais diversas camadas dos textos.

Do ponto de vista da estrutura da narrativa, podem-se destacar também

algumas semelhanças. Os três contos são narrados em terceira pessoa por um

narrador onisciente, o que possibilita a apresentação dos sentimentos e movimentos

íntimos da psicologia de cada personagem. Os protagonistas são seres anônimos,

privados da identidade jurídica conferida pela posse de um nome próprio e que,

repentinamente, veem-se enredados em situações insólitas, causadas pela

insurgência de acontecimentos incomuns. Em “A caçada”, a inusitada familiaridade

do homem com a cena representada na tapeçaria não apenas desinquieta-o, como

também o leva à procura de uma resposta que justifique essa relação de

proximidade. Em “A mão no ombro”, a curiosa experiência vivenciada pelo sujeito

em um sonho provoca uma reviravolta em sua vida ordinária, fazendo-o refletir sobre

sua existência. Aqui, a possibilidade da iminência da morte informada pelo sonho

leva a personagem a reavaliar sua vida, refletir sobre as relações consigo mesma e

com os outros, rompendo, portanto, com a automatização que governava sua vida

cotidiana. A narrativa “O encontro” já se inicia com a personagem se deslocando

para um local aparentemente desconhecido para ela, onde se realizará o encontro

final.

138

O enredo dos contos “A caçada” e “O encontro” seguem uma estrutura muito

parecida, já que o processo de rememoração e a progressiva identificação das

personagens constituem o fio norteador da trama. No conto “A caçada”, a cena

representada na tapeçaria ganha, paulatinamente, valor subjetivo para a

personagem, como é explicitada pela voz da vendedora da loja de antiguidades: “ –

Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado”

(TELLES-AC, 1974, p. 99). Isso ocorre, precisamente, pela progressiva identificação

desse ser com a tapeçaria, embora, num primeiro momento, desconheça o porquê

desse sentimento de proximidade: “Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria

assistido a essa mesma cena. E onde?…” (TELLES-AC, 1974, p. 100). De igual

modo, o caminho percorrido pela personagem em “O encontro” apresenta-se como

“estranhamente familiar”, pois afirma ser a primeira vez que pisa em tal lugar: “Tudo

aquilo – disso estava bem certa – era completamente inédito para mim. No entanto,

o quadro se identificava, todas as minúcias, a uma imagem semelhante que

irrompera das profundezas de minha memória” (TELLES-OE, 1958, p. 15). A

narrativa “A mão no ombro” difere da estrutura acima comentada, já que não há um

processo de rememoração conduzindo as ações e comportamentos do ser ficcional.

Também nas três narrativas, todos os fatos do enredo direcionam e preparam

o leitor para o encontro final das personagens com seus respectivos duplos. Nesse

percurso, elas deparam-se com diversas situações inquietantes e incomuns,

algumas das quais se configuram como prenúncio da morte. No conto “A caçada”, a

cor violeta – símbolo da involução, conforme Chevalier e Gheerbrant (2009) – que

escorre da folhagem e espalha-se pelo chão como um “líquido maligno”, atingindo

inclusive a touceira por traz da qual a caça se escondia, simboliza o envolvimento

desse ser pela atmosfera mórbida e atua como um prenúncio de acontecimentos

futuros. O conto “A mão no ombro”, além da aproximação do caçador descendo

pelas escadas, apresenta outras referências à futura morte do protagonista: as

lembranças de infância que emergem no sonho, relacionadas às festividades da

Semana Santa, especificamente, à procissão com o Senhor morto; a morte de um

trapezista a qual presenciara quando criança. Essas imagens que evocam a morte,

juntamente com aquelas que parecem configurar um ritual de despedida – fumar um

último cigarro e afagar o cachorro que apresentava “uma alegria cheia de saudade”

–, ajudam a compor o clima de prenúncio de sua morte. Em “O encontro”, o

presságio da morte da protagonista é indicado por uma série de pistas lançadas ao

139

longo da narrativa. Em primeiro lugar, pode-se mencionar a sensação íntima de

perigo que toma conta da personagem no seu percurso rumo ao encontro final. Em

segundo, a simbologia que emerge das imagens da teia com a aranha ao centro e

do pássaro que passa num “voo atribulado” e solta “um grito dolorido”. A aranha com

a teia pode, no plano metafórico, representar a “cilada” na qual a personagem

progressivamente se enredava com sua obstinação de prosseguir a caminhada. Já o

grito “dolorido” que emana do pássaro apresenta-se como um alerta de que

acontecimentos também doloridos estariam por vir. Em terceiro, o ritual de

despedida que também parece, inconscientemente, tomar conta da figura feminina,

assim como acontece com o protagonista da narrativa “A mão no ombro”.

Apesar desses avisos, representados pelas mais diversas situações que

atuam como prenúncios da morte, as personagens dos três contos parecem estar

irremediavelmente presas a um destino pré-determinado, impossibilitadas, portanto,

de escapar das situações em que se enredam. Ademais, nos contos “A caçada” e “O

encontro”, verifica-se não somente a inevitabilidade do destino, mas também um

sentimento profundo que impulsiona e motiva as personagens a prosseguirem e

desvendarem o mistério da identificação esboçada desde o início. A partir do

desfecho dessas duas narrativas, em que se efetiva o encontro entre a personagem

e seu duplo, pode-se conceber essa força interior como símbolo de uma busca por si

mesmo, ou seja, por sua verdadeira essência e identidade, deixadas em um

passado indeterminado.

Entretanto, tentativas de fuga são esboçadas nas três narrativas. Em “A

caçada”, essa busca de evasão se inscreve em três passagens: (1) quando o

homem tenta se afastar fisicamente da tapeçaria, de modo a evitar o fascínio que

esse objeto desperta nele – “Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida

e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado

na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo” (TELLES-AC, 1974, p. 102);

(2) no momento em que se inicia a conjunção entre o espaço da loja de antiguidades

e a cena representada na tapeçaria, e quando a personagem tenta

desesperadamente agarrar-se a um armário como forma de evitar o confronto final;

(3) na cena em que, identificado com a caça, tenta fugir da mira do caçador,

escondendo-se por trás de uma touceira – “Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu

o assobio da seta varando a folhagem, a dor!” (TELLES-AC, 1974, p. 103).

Entretanto, não obtém êxito em nenhuma das três tentativas de fuga empreendidas.

140

Em “A mão no ombro”, a personagem tenta por duas vezes fugir do encontro com a

morte: na primeira, imersa em seu sonho e visualizando a iminência do toque do

caçador sobre o seu ombro, consegue exitosamente acordar e, portanto, adiar tal

confronto – “Preciso acordar, ordenou se contraindo inteiro, isso é apenas um

sonho! Preciso acordar! acordar. Acordar, ficou repetindo e abriu os olhos” (TELLES-

MO, 2009, p. 109); na segunda, frustrada, procura usar do mesmo estratagema

quando, sentindo o jardim do sonho fundir-se com o espaço imediato em que se

encontrava, adormece para enganar a morte pela “porta do sono” – “Preciso dormir,

murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza, viu que retomava

o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o

ombro tocado de leve. Voltou-se” (TELLES-MO, 2009, p. 114). Na narrativa “O

encontro”, a possibilidade de fuga e de controle da situação se inscreve por duas

vezes: primeiro, através do conflito que se verifica na psicologia da personagem,

representado pelo confronto entre a razão e a emoção – “‘Vá-se embora, depressa,

depressa!’ – ordenava-me a razão, enquanto uma parte mais obscura de meu ser,

mergulhada numa espécie de encantamento, se recusa a voltar” (TELLES-OE, 1958,

p. 16); segundo, por meio da ação frustrada da personagem de segurar as rédeas

do cavalo montado pela amazona, numa clara intenção de assumir o controle da

situação.

Nas narrativas analisadas, todas as possibilidades de fuga visualizadas pelas

personagens mostram-se fracassadas e frustradas, com exceção da ação exitosa do

protagonista do conto “A mão no ombro” que consegue adiar, mas não evitar, o

confronto com a morte. Esses comportamentos podem ser explicados pelo temor da

destruição do ser ocasionado pela iminência da morte: “O homem recusa-se a ver

na morte o destino natural de todos os seres vivos. A consciência da própria morte

aguça-lhe o desejo de perdurar, tanto em sua existência aqui e agora como em

algum outro lugar, além da vida” (SILVA, 2001, p. 185).

Nos três textos, o confronto entre personagens e duplos realiza-se graças à

fusão que se observa entre a realidade imediata e um jardim (ou suas variações,

como o bosque, por exemplo), suspenso espacial e temporalmente. Como resultado

dessa conjunção, cria-se na narrativa uma indeterminação que rompe abruptamente

com a concretude do contexto sócio-histórico imediato. No conto “A caçada”, a fusão

entre a realidade imediata do ser de ficção e o espaço representado na tapeçaria se

processa na parte final da narrativa, quando se realiza a identificação e o confronto

141

do homem com seu duplo: “Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e

terra, de onde vinha aquele cheiro? […] estendeu os braços até a coluna. Seus

dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era

uma coluna, era uma árvore!” (TELLES-AC, 1974, p. 103). É notável aqui a

ambivalência presente no discurso do narrador: é o espaço da tapeçaria que invade

o contexto imediato da personagem, ou é esta que adentra no espaço representado

na tapeçaria? Ou seriam os dois ao mesmo tempo, indecidivelmente? Na narrativa

“A mão no ombro”, há exatamente a repetição dessa mesma estrutura, representada

pela fusão entre o espaço imediato da personagem, que se encontra em seu carro, e

o jardim onírico presente no sonho da noite anterior: “Entrou no carro, ligou o

contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recusando-se a obedecer. […] Fechou

o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse perfume de ervas úmidas?”

(TELLES-MO, 2009, p. 112-113). No conto “O encontro”, verifica-se semelhante

resultado, ou seja, o confronto com o duplo se realiza na estrutura da narrativa

graças à fusão dos espaços, pondo numa mesma dimensão espacial

representações de um mesmo sujeito em momentos temporais diversos. Entretanto,

neste conto, a fusão já está efetivada desde o início da narrativa, diferentemente do

que acontece nos dois anteriormente discutidos.

A indeterminação espaço-temporal, resultado da fusão entre o contexto

imediato das personagens e o jardim (ou o bosque), permite um interessante jogo

entre o passado, o presente e o futuro nas três narrativas analisadas. Segundo Silva

(2001, p. 16), nas narrativas de Telles constata-se um frequente jogo entre

temporalidade e atemporalidade: “Temporalidade e atemporalidade permutam-se,

intercambiam-se num jogo que mescla fragmentos do passado com o presente,

sobre o fundo sempre lembrado da inexorabilidade da morte e de seus mistérios”.

Em “A caçada” e o “Encontro”, o passado e o futuro se unem num presente,

indecidivelmente. Nesses contos, alguns fatos do enredo apresentam-se como

acontecimentos já vivenciados em outro momento. A repetição dessas ações

assume uma dupla filiação: de um lado, conectam-se ao passado, uma vez que

pertencem ao leque de experiências já vivenciadas – “[…] ah, essa madrugada!

Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirara aquele mesmo vapor que

baixava denso do céu verde…” (TELLES-AC, 1974, p. 101); de outro, estabelecem

uma conexão com o futuro, pois a repetição das ações permite antecipar e prever

acontecimentos futuros, visto que já se conhece a sequência dos acontecimentos –

142

“‘Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio’. E cheguei a sorrir, entretida com

aquele curioso jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com

tufos de erva brotando na raiz da fenda” (TELLES-OE, 1958, p. 17). Ademais,

embora se procure estabelecer nessas duas narrativas um distanciamento entre o

passado e o presente, a partir da tentativa de enquadrar o presente como o reviver

de um passado longínquo – em “A caçada”, a tapeçaria está impregnada de poeira,

metáfora da passagem do tempo, e não aguentava a mais leve escova; em “O

encontro”, a amazona usava um traje antiquado, parecendo a figura de um “antigo

álbum de caçada” –, a repetição do passado no presente aproxima paradoxalmente

essas duas esferas temporais. Já no conto “A mão no ombro”, o sonho do

protagonista configura-se como um liame ou negociador entre fatos do passado e do

futuro: o primeiro manifesta-se pela afloração de lembranças da infância da

personagem (procissão da Semana Santa, morte do trapezista, brincadeiras com o

pai); o segundo, pelo clima de prenúncio da morte do protagonista que se instaura

na narrativa, simbolizado pelo temido, mas inevitável, toque no ombro.

Verifica-se também nos três contos uma cuidadosa preparação das

personagens e do ambiente que as circunda para o momento capital do enredo, que

é o confronto com o duplo. Nos contos “A caçada” e “O encontro”, a parte final da

narrativa marca o momento em que os protagonistas, num lampejo repentino,

reconhecem o presente como reviver de um passado. É aqui também que se efetiva

a identificação completa entre o sujeito e seu duplo: em “A caçada”, a caça assume

a função de duplo, enquanto em “O encontro” tem-se a amazona como o duplo. Há,

portanto, o reconhecimento do outro como parte do eu: o outro é, na verdade, o eu,

só que deslocado no tempo. Essa cena final cria um efeito de sentido para o

inquietante processo de rememoração vivenciado pelas personagens ao longo

dessas duas narrativas, confirmando, pois, a tese de Poe de que o desfecho deve

governar todo o andamento do conto. Já em “A mão no ombro”, não se observa um

processo progressivo de reconhecimento e identificação tal qual discutido acima, por

não se tratar de um reviver do passado no presente. Entretanto, assim como nos

demais textos, o confronto com o duplo se manifesta de forma mais evidente

também na cena final, quando acontece a fusão entre os espaços.

Nas três narrativas, nota-se também a persistência da temática da morte

atrelada à manifestação do duplo. De acordo com Lamas (2002), a morte é um dos

mais importantes domínios da representação do duplo, pois insere no âmago do

143

sujeito o medo da destruição do ser. Desse modo, o duplo aparece como um

conforto e uma forma de driblar esse perigo, ao perpetuar a existência desse sujeito

em outros planos. Essa parece ser uma temática recorrente na literatura de Telles,

conforme afirma Lamas (2002, p. 259): “O questionamento em torno da vida e da

morte, apoiado pela questão da temporalidade, constitui-se em um de seus grandes

núcleos temáticos”. Nos contos de Telles aqui analisados, verifica-se nítida conexão

entre o duplo e a morte, já que a confrontação com o duplo é, também, um encontro

com a morte. Em “A caçada” e “O encontro”, os sujeitos visualizam diante de si uma

cena dolorosa vivenciada no passado: no primeiro, o homem, identificado com a

caça, é atingido pela flecha desferida pelo caçador; no segundo, a amazona, duplo

da personagem, precipita-se num abismo. Em “A mão no ombro” a iminência da

morte é informada à personagem no sonho, estando, portanto, indissoluvelmente

ligada à representação do duplo. Apesar das variações observadas, nas três

narrativas os seres parecem condenados à morte, dada a impossibilidade de

evadirem-se das situações que conduzem a ela.

De acordo com a classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002), existe, nos

contos “A caçada” e “O encontro”, o duplo por fusão: reconhece-se uma unidade

entre personagem/caça e personagem/amazona, respectivamente. No conto “A mão

no ombro”, o duplo manifesta-se graças a uma cisão operada no sujeito, dividindo-o

entre o eu sonhador e o eu personagem do sonho. Segundo a tipologia proposta por

Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), verifica-se nos três contos analisados um

duplo subjetivo, já que todos são resultados da duplicação do próprio sujeito. Esse

duplo é interno em “A mão no ombro”, pois não assume forma física exterior, e

externo em “A caçada” e “O encontro”, já que adquire forma física, representada,

respectivamente, pela caça e pela amazona.

Entretanto, o tema da dualidade nesses contos não se encontra restrito

unicamente ao plano da composição das personagens. Ao contrário, ele se

manifesta em toda a arquitetura ficcional, o que ajuda a compor a atmosfera de

indeterminação verificada nessas narrativas. Nos três contos de Telles, a irrupção do

jardim quebra com a ordem racional cotidiana, instaurando dualidades insolúveis nas

narrativas: vida e arte em “A caçada”; sonho e vigília em “A mão no ombro”;

realidade concreta e espaço mítico do bosque em “O encontro”. Ademais, nos

contos “A caçada” e “O encontro”, os polos opostos presente/passado,

memória/esquecimento e estranho/familiar apresentam-se organicamente

144

imbricados na narrativa, compondo, de modo orgânico e sintonizado, a construção

do tema da dualidade.

Por fim, é importante ressaltar a íntima relação estabelecida, nas três

narrativas analisadas, entre o duplo e o discurso fantástico. Conforme demonstrado

anteriormente, o fenômeno da duplicidade materializa-se nessas narrativas por meio

do confronto entre personagem e seu duplo. No plano narrativo, esse encontro se

realiza por meio da conjunção dos espaços que põe lado a lado duas

representações de um mesmo sujeito em dimensões temporais diferentes: em “A

caçada”, o homem, identificando-se com a caça, vê-se inesperadamente dentro do

ambiente representado na tapeçaria; em “O encontro”, existe a mesma estrutura,

resultado da confrontação da personagem com uma representação de si mesma em

outro plano temporal; no conto “A mão no ombro”, as imagens oníricas não só

adentram no contexto imediato da personagem, como se fundem e confundem-se

com a realidade. Apesar da estranheza que esses episódios possam causar no leitor

num primeiro momento, tais fatos tornam-se aceitáveis e críveis graças à coerência

interna que adquirem no contexto narrativo. Desse modo, o duplo e o fantástico

nessas três narrativas encontram-se organicamente imbricados: os enredos

apresentam-se como verossímeis graças às infinitas possibilidades abertas pelo

discurso fantástico na literatura.

3.2 Ignácio de Loyola Brandão

Os contos de Brandão analisados nesta pesquisa foram “A mão perdida na

caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”, ambos publicados na

coletânea O homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis (1999).

Os dois contos citados apresentam importantes semelhanças quanto à estrutura

narrativa e à temática abordada. Isso se explica não apenas porque os textos

pertencem ao mesmo autor, mas também pelo fato de os dois contos estarem

reunidos em uma mesma coletânea e, em certo sentido, conectados à ideia geral

expressa no título da obra, que atua como força aglutinadora dessas “aventuras

possíveis” narradas ao longo de mais de cento e sessenta páginas. É assim que

Antunes (2000, p. 257) apresenta, em linhas gerais, a coletânea de contos de

Brandão: “[…] por baixo desse mau-humor incurável, desse horror às segundas-

feiras, desse horror a tudo, que vai perpassar todas as falas e reflexões dos

145

personagens destes quatro contos e uma quase-novela, há inúmeras aventuras

possíveis”.

Ambos os contos são narrados em terceira pessoa, por um narrador

onisciente que tem acesso livre aos pensamentos e movimentos psicológicos das

personagens. As ações dos contos são ambientadas no contexto da cidade grande

e, graças à mobilidade dos seres nesse espaço, é permitida ao leitor, ainda que de

modo limitado e fragmentado, a visualização dos contrastes inerentes à sociedade

moderna.

O protagonista de cada uma das narrativas é do sexo masculino: em “A mão

perdida na caixa do correio”, há um escrevente de cartório de meia idade que já

visualiza a proximidade da aposentadoria; em “As cores das bolinhas da morte”,

trata-se de um juiz também de meia idade e aposentado compulsoriamente. Os dois

protagonistas comungam de uma existência pacata e solitária, já que foram

abandonados por suas esposas: o escrevente foi trocado pelo dono de uma

locadora de vídeo; o juiz teve sua separação provocada devido a fantasias sexuais

que nutria com as juradas.

As duas narrativas têm início no exato momento em que cada uma das

personagens se depara com uma situação insólita. Em “A mão perdida na caixa do

correio”, o escrevente vai depositar um envelope numa caixa de correio e,

inesperadamente, vê sua mão cair dentro dela. O inusitado da amputação do

membro é exatamente o modo não habitual com que ela se processa: “Não sentiu

dor. Nem o mais leve comichão. A mão simplesmente se desprendeu, como se

estivesse presa por parafusos frouxos” (BRANDÃO-MPCC, 2000, 27). O fragmento

acima transcrito dispensa qualquer comentário sobre a natureza estranha do evento.

Em “As cores das bolinhas da morte”, a narrativa também se inicia no exato

momento em que a personagem se apercebe da perda de sua sombra: “Olhando

para o chão, não viu a sua sombra. Estremeceu” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 95).

Nos dois contos, o acontecimento insólito inscreve-se em meio à realidade cotidiana

dos sujeitos, estabelecendo uma ruptura em sua rotina. Embora os desestabilizem,

os fatos são apresentados de forma bastante natural pelo narrador. Assim,

diferentemente de outras narrativas, em que se cria uma atmosfera mística na qual

um fenômeno fantástico se inscreve, nesses dois contos de Brandão o insólito

parece brotar com naturalidade da concretude sócio-histórica do contexto imediato

das personagens. Esses eventos incomuns (a perda da mão e a perda da sombra)

146

assumem importância capital nas narrativas, já que se configuram como os

acontecimentos principais dos enredos, a partir dos quais todas as demais ações

desdobram-se, estando, portanto, conectadas a tais fatos direta ou indiretamente.

Seguindo a tendência apresentada pelo título da coletânea, os dois

acontecimentos insólitos se realizam numa segunda-feira (apesar de no conto “As

cores das bolinhas da morte” os indícios da perda da sombra serem percebidos

anteriormente pelo juiz, é somente numa segunda-feira, quando o sol reaparece

depois de períodos nublados e de céu fechado, que tal suspeita se confirma).

Conforme destacado nas duas análises anteriores, esse dia da semana é

representado pela Lua, que, por sua vez, evoca um simbolismo particularmente

interessante para os propósitos dessa análise: (1) a relação de dependência para

com a luz do sol; (2) as diferentes fases e formas assumidas pela Lua. Nos dois

contos em análise, as personagens parecem extremamente dependentes das partes

do corpo perdidas, tal qual a lua necessita da luz solar para brilhar. De igual modo,

ao caráter mutante da lua relaciona-se o processo de reconhecimento e, portanto,

de mudança, verificados no comportamento desses seres ao longo das duas

narrativas.

Ao narrar o exato momento em que a personagem experiencia uma perda, os

dois contos dão foco à saga empreendida por ela para recuperar sua parte faltante.

Nessa busca, ambos os indivíduos passam por situações incomuns parecidas,

muitas delas resultado do confronto entre o racional e o irracional. A irrupção do

acontecimento insólito no cotidiano mostra-se particularmente interessante pela

quebra que se instaura na rotina dos seres envolvidos, já que ambos estão ligados a

ambientes burocráticos, regidos pela racionalidade e por rígidas normas de convício

social: em “A mão perdida na caixa do correio”, trata-se de um escrevente de

cartório; em “As cores das bolinhas da morte”, de um juiz aposentado. Apesar disso,

os sujeitos dos dois contos apresentam-se de tal forma enredados nos sucessivos

acontecimentos excepcionais que chegam a protagonizar situações que beiram o

ridículo. O que pensar do diálogo entre o homem que perdeu a mão na caixa do

correio e o atendente dos correios, que faz perguntas idiotas? Essa mesma cena

repete-se no conto “As cores das bolinhas da morte” quando da conversa entre o

homem sem sombra, que procurava pela cientista Cristina Agostino, e o atendente

da universidade, que o aconselha a consultar uma psicóloga.

147

Ademais, nos dois contos, a vivência da perda de uma parte do corpo

considerada importante pelos sujeitos envolvidos desencadeia uma busca externa

que tem como correlato interior a problematização da própria identidade do sujeito,

através de questionamentos sobre a condição existencial humana na sociedade

moderna. No conto “A mão perdida na caixa do correio”, o momento em que a mão

se desprega do braço e cai dentro da caixa do correio é bastante representativo: “O

toco de braço mostrava artérias, veias, músculos e terminais de ossos limpos, secos.

Pareciam microtomadas, nas quais se encaixavam os plugues da mão” (BRANDÃO-

MPCC, 2000, p. 27). Nessa passagem, podem-se destacar dois aspectos principais.

Em primeiro lugar, a inexistência de sangue, considerado a seiva da vida, aponta, no

plano físico e biológico do termo, para a falta de fluxo de vida no membro e, no plano

simbólico, para o estado de vida degradante ao qual esse sujeito estava submetido.

Em segundo lugar, a comparação das artérias, veias etc. com microtomadas

apresenta-se particularmente interessante no contexto da contemporaneidade, dada

a influência que os artefatos tecnológicos desempenham na vida diária. Aqui, a

imagem da robotização do homem pode ser entendida como uma hipérbole que

reflete o caráter mecânico e automático que impera nas relações sociais. Assim,

concebendo a mão como representação metonímica do duplo da personagem,

visualiza-se, na busca empreendida para recuperar essa parte faltante, um processo

de resgate e reconhecimento da identidade do próprio sujeito.

A perda da sombra no conto “As cores das bolinhas da morte” também aponta

para um estado de vida degradante do sujeito. Ao longo dessa narrativa, a

personagem atesta inúmeras vezes a conexão entre o homem e a sombra, sendo

esta, inclusive, considerada como condição para a existência humana. Do ponto de

vista psicológico, a sombra é concebida como um estrato da psique no qual se

aglomera o conjunto de conteúdos não assimilados pela personalidade, tratando-se,

pois, de uma potencialidade latente. Admitindo-se o simbolismo da sombra, não se

pode considerar, pois, sua ausência como uma metáfora do esvaziamento do

sujeito, do ceifar de sua vida? Essa interpretação se tornará mais contundente no

decorrer da narrativa, quando se estreitam os laços entre o eu e o outro (a sombra).

Também nesse conto de Brandão, os questionamentos existenciais afloram com

maior vigor a partir da oposição que se estabelece entre essas duas faces contrárias

da personalidade. Assim, problematiza-se, principalmente, a tensa e conflituosa

148

relação entre sujeito e sociedade no processo de constituição da identidade

individual.

Nos dois textos aqui analisados, observa-se, pois, que a parte do corpo

perdida assume a configuração de duplos desses sujeitos. Além dos elementos

simbólicos já destacados acima, acrescenta-se a importância que tanto a mão

quanto a sombra apresentavam para tais indivíduos. A mão é símbolo por

excelência de atividade, poder e dominação. Na condição de escrevente, o

protagonista de “A mão perdida na caixa do correio” dependia diretamente desse

membro para o desempenho de suas atividades laborais. Num plano místico, a mão

continha também as “linhas de sua vida”, o que permite compreender esse membro

como representação metonímica da vida da personagem. Desse modo, o impacto

causado em sua rotina quando da perda da mão na caixa do correio é diretamente

proporcional à importância que esse membro desempenhava em sua vida: “A mão.

Percebeu que tinha rodado horas, procurando se distrair com o impacto da perda.

Era um estranhamento muito grande. Nem quando a mulher o tinha deixado para se

juntar ao dono de uma locadora de vídeos tinha sentido tanto” (BRANDÃO-MPCC,

2000, p. 41).

De igual modo, a perda da sombra no conto “As cores das bolinhas da morte”

apresenta-se como um trágico acontecimento que quebra a rotina do sujeito.

Interessante perceber que esse sujeito também demonstrava certa afeição pela

sombra anteriormente ao evento que acarretou a perda dela: “Ninguém se dá conta

se tem sombra ou não, a maioria pouco se importa. […] Ele não. Costumava

contemplá-la ao longo do dia, cheia de variações” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 96).

Obviamente, a ausência da sombra intensifica o interesse antes demonstrado.

Ademais, pode-se mencionar a relação íntima existente entre a personagem e sua

sombra: “Gostava dessa ideia. A sombra a segui-lo. Fosse para onde fosse. Estava

com medo de constatar que ela faltava” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 99). Nesse

contexto moderno, em que se vivencia com extrema angústia a solidão, a sombra

parece significar muito mais do que simples reflexo projetado no chão, conforme fica

demonstrado em outra passagem da narrativa: “Pois eu ia ficá chatiado sem ela [a

sombra], é a única amiga qui tenho” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 123). Por fim, os

contornos simbólicos e psicológicos atrelados à concepção de “sombra”,

principalmente pela teoria de Jung, que a concebe como um estrato da psique do

149

sujeito, ajuda a consumar essa relação dupla que se manifesta entre a personagem

e a sombra perdida.

Nos dois contos, o fenômeno da duplicidade opera-se através de uma cisão

imposta às personagens. Essa cisão instaura um processo de busca pela parte

faltante, o que, num plano metafórico, aponta para a procura da verdadeira

identidade do sujeito em um mundo burocratizado e governado por rígidas normas

de conduta e de comportamento que inibem a liberdade individual em prol de um

suposto bem-estar coletivo. Para Chevalier e Gheerbrant (2009), a mutilação

assume valor simbólico de iniciação. Nas duas narrativas, essa iniciação é

representada pelos questionamentos existenciais instaurados no interior dos sujeitos

em razão da perda, o que os leva a uma melhor compreensão de si e do mundo a

sua volta. Assim, embora o intervalo entre a cisão e o desfecho da narrativa, que

resulta na morte dos dois sujeitos, seja curto, pode-se compreendê-lo como o início

de uma jornada (não completada) rumo à individuação. Assim, a cisão exterior,

verificada devido à perda da mão e da sombra, reflete, no plano subjetivo, um

esfacelamento interior desses sujeitos, expressão da instabilidade psíquica e de

uma crise de identidade.

Dessa forma, pode-se concluir que a busca da mão e da sombra nos contos

“A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”,

respectivamente, remete à procura do duplo especular que permite ao sujeito

diferenciar-se e reconhecer-se como uma individualidade. São pessoas cujas

identidades correspondem e obedecem a demandas sociais e que, para tanto,

negam e reprimem determinados conteúdos psíquicos numa tentativa de aceitação

no meio social. A busca da mão e da sombra revela, simbolicamente, a procura pela

verdadeira natureza e essência do ser, o resgate e o desenvolvimento das

potencialidades do sujeito que o guiam no caminho de sua individuação. Nesse

percurso, os elementos mão e sombra funcionam como espécie de espelho, pois, ao

configurarem o outro das personagens, fornecem a imagem especular que, no nível

psicológico, permite a confrontação com o duplo e a construção de uma identidade

autêntica. Essa procura pela individualidade e pela diferenciação contrasta, pois,

com os movimentos de massificação no processo de construção identitária e de

dessubstancialização do sujeito humano verificadas no contexto atual, as quais

acabam por igualar os sujeitos pela impossibilidade de expressão de suas

potencialidades. Portanto, a perda da mão e da sombra nos contos de Brandão

150

desperta as personagens, que pareciam viver no que Cavalcanti (1997, p. 214)

define como escravidão psíquica: “A escravidão psíquica significa funcionar segundo

a expectativa do outro, numa tentativa de adaptação, negando a verdadeira

essência e excelência […]”.

Nas duas narrativas, a confrontação do sujeito com a duplicidade é uma

experiência que leva à morte: a busca pela parte cindida conduz irremediavelmente

ao confronto com a morte. Em “A mão perdida na caixa do correio”, existe, em meio

a outras tantas, a situação absurda em que o protagonista é estrangulado e morto

por um funcionário da repartição dos correios. A motivação do assassinato – o medo

do funcionário de perder seu emprego – revela, em última instância, a precariedade

das relações humanas num mundo em que o individualismo se sobrepõe e subjuga

o conceito de coletividade. Em “As cores das bolinhas da morte”, o reencontro e a

fusão com a sombra representam um momento repleto de significados para o juiz, já

que torna possível a reintegração entre o eu e o outro. Essa fase demarca uma

morte ao menos no plano simbólico, uma vez que o sujeito que emerge desse

confronto diferencia-se do ser anterior cindido, que estava à procura de sua sombra.

De acordo com as categorizações do duplo apresentadas por Bargalló (Apud

LAMAS, 2002), há, nos dois contos de Brandão analisados, o fenômeno da

duplicidade como resultado de uma cisão imposta ao sujeito. É graças a isso que a

mão e a sombra passam a assumir a função de duplo das personagens. Seguindo a

tipologia proposta por Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), verifica-se, nas

duas narrativas, o duplo subjetivo, já que se trata da duplicação do próprio sujeito, e

externo, uma vez que o duplo adquire uma forma física exterior representada pela

mão e pela sombra.

Nota-se, pois, que a manifestação do duplo nas duas narrativas de Brandão

está intimamente relacionada às infinitas possibilidades abertas pelo discurso

fantástico. Em função disso, torna-se crível para o leitor a história de um ser que,

inesperadamente, vê sua mão despregar-se do braço e cair dentro de uma caixa de

correio, e de um outro que visualiza a perda de sua própria sombra. Aqui, é a própria

concepção de realidade que é questionada, uma vez que o acontecimento incomum

irrompe dessa mesma realidade. Desse modo, o fantástico não é estranho à vida

diária dos sujeitos, mas brota dela, desestabilizando-a.

Além de permitir o fenômeno da duplicação, o fantástico abre também

espaço, nas narrativas de Brandão, para a crítica a determinados aspectos da

151

sociedade atual. Dentre esses, um merece atenção especial pela recorrência com

que aparece nas duas narrativas e pela importância que desempenha na construção

da trama narrativa: o conceito de racionalidade, aqui incluído o campo das ciências

em geral. Ambos os acontecimentos insólitos, pontos de partida das duas narrativas,

opõem-se claramente à razão, afinal, a perda da sombra e da mão nas

circunstâncias em que se processou não se encaixa no conjunto de ações aceitáveis

e consideradas possíveis pelo corpo social. Exteriores ao sistema de pensamento

que governa a sociedade atual, tais eventos estabelecem uma quebra e são,

portanto, uma ameaça para sua manutenção. A esse respeito, veja-se o que

pensam Adorno e Horkheimer (2006, p. 72):

O sistema deve ser conservado em harmonia com a natureza. Do mesmo modo que os fatos são previstos a partir do sistema, assim também os fatos devem por sua vez confirmá-lo. […] O pensamento que não consegue harmonizar o sistema e a intuição desrespeita algo mais do que simples impressões visuais isoladas: ele entra em conflito com a prática real. Não apenas a ocorrência esperada deixa de ter lugar, mas também o inesperado acontece: a ponte cai, a simetria definha, o remédio faz adoecer.

Os referidos autores veem o pensamento racional como um sistema uno e

coerente a partir do qual derivam as particularidades. Estas, por sua vez, são

explicadas e confirmadas pelo sistema, criando-se, portanto, um círculo vicioso em

que o equilíbrio aparece como resultado da harmonia entre o sistema e a natureza.

Nos dois contos de Brandão aqui analisados, essa harmonia é quebrada,

culminando no desequilíbrio e no questionamento do próprio sistema. Ademais, é a

partir dessa ruptura que a trama narrativa ganha corpo, tornando-se, portanto, o

centro irradiador de grande parte das questões e dos conflitos vivenciados pelas

personagens. Ante a experiência do acontecimento insólito, os sujeitos, nas duas

narrativas, buscam reestabelecer a ligação entre o sistema e os fatos particulares

vivenciados (a perda da mão e da sombra), ao procurarem por uma explicação

racional baseada na ciência. A postura assumida por esses sujeitos apresenta-se,

inclusive, extremamente arraigada no âmago da sociedade moderna, já que o

homem se encontra subordinado à razão e faz dela um verdadeiro mito. Uma vez

que o sistema não consegue dar conta desses acontecimentos insólitos particulares

(as personagens não encontram explicação científica plausível que as ajude a

enfrentar a situação), ambas abandonam a linha de pensamento racional, deixando-

se tragar pela atmosfera misteriosa que as rodeava. Portanto, a crítica feita à razão

152

e à ciência nessas narrativas parte precisamente da insuficiência desses domínios

do conhecimento para explicar um fato concreto, a saber, a perda da mão e da

sombra.

Disso depreende-se uma característica que marca a espécie humana ao

longo dos tempos: o homem está sempre buscando explicar os acontecimentos que

o rodeiam. O homem moderno esclarecido subjugou outras formas de explicação do

universo. Nessa sociedade desmitologizada, o homem erige a racionalidade como

forma suprema de conhecimento, em detrimento da mitologia presente nas culturas

primitivas. Entretanto, o que Adorno e Horkheimer (2006) defendem é que entre o

mito e a razão verifica-se não uma diferença qualitativa, mas apenas maneiras

diferentes de relacionamento entre o homem e a natureza. A razão é, por

conseguinte, o mito moderno no qual o homem se engendrou. A tentativa de fugir da

mitologia e de outras formas de conhecimento consideradas menores é, também,

um retorno ao mito. Dessa forma, as narrativas de Brandão problematizam essa

autossuficiência da razão e da ciência, apontando os seus impasses e suas

limitações, já que nem tudo pode ser explicado por elas.

A crítica à insuficiência do conhecimento científico para explicar os problemas

enfrentados pelo homem moderno é endossada pela presença, nas duas narrativas,

de imagens de bibliotecas que fogem ao padrão convencional. Como se sabe, a

biblioteca constitui um repositório do conhecimento produzido e acumulado pela

humanidade através dos séculos e reflete a tentativa do homem de entender a si

mesmo e ao mundo a sua volta. Em “A mão perdida na caixa do correio”, a

biblioteca é formada por títulos que apontam para eventos incomuns (Enciclopédia

do Inexplicável, de Jerome Clark; O Estranho e o Extraordinário, de Charles

Berlitz; e Casos Malditos, de Charles Fort). Entretanto, nem mesmo esses livros,

inseridos no campo epistemológico do inusitado e do irreal, trazem relatos que

ajudem o homem a resolver o problema da perda da mão. Em “As cores das

bolinhas da morte”, a biblioteca é formada por um espaço totalmente vazio, à

exceção de um livro volumoso. Entretanto, tal livro que sintetizaria o pensamento

universal contém apenas páginas em branco. Se a síntese de todo o pensamento

universal está presente nessa obra, conclui-se, portanto, pela sua nulidade,

expressa pela imagem do livro em branco. Nos dois casos, consideradas as devidas

especificidades, o que está em pauta é a insuficiência do conhecimento lógico e

científico para explicar a realidade das personagens. Assim como a biblioteca do

153

conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges (1999), aparece como metáfora

do universo, as bibliotecas apresentadas por Brandão nessas duas narrativas

também imprimem um saber significativo sobre o homem e a sociedade moderna: de

um lado, existe a ilogicidade e a irracionalidade que imperam no cotidiano,

expressas pelos títulos de livros de teor insólito presentes em “A mão perdida na

caixa do correio”; de outro, apresenta-se o esvaziamento dos sujeitos, a inexistência

de valores e de verdades, sinalizados pelas páginas em branco do livro em “As

cores das bolinhas da morte”. Nesse último caso, o não registro de uma tradição,

bem como de sua história e sua memória, são emblemáticos, de modo direto ou

indireto, do esvaziamento da identidade social do ser.

Por fim, pode-se destacar o tom risível que adquirem algumas situações

vivenciadas pelos seres nas duas narrativas. Abundantes nos dois textos, elas

conectam-se, direta ou indiretamente, ao fenômeno insólito motivador da trama (a

perda da mão e da sombra), brotando com naturalidade ao longo de toda a história.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), a mutilação está, quase sempre,

relacionada a uma desqualificação, já que imprime uma marca que diferencia

negativamente o sujeito das demais pessoas que constituem a sociedade: “O

deformado, o amputado, o estropiado têm isso em comum: acham-se colocados à

margem da sociedade humana […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 628).

Assim, a deformidade física das personagens, na medida em que as diferencia das

demais pessoas, aparece, a princípio, como um campo em potencial do riso a ser

explorado. Tratando especificamente do riso, Bergson (1983) destaca alguns

aspectos importantes sobre ele: (1) é próprio do ser humano; (2) é insensível; (3)

funciona como uma forma de correção de uma imperfeição individual ou coletiva; (4)

é inconsciente, pois o sujeito cômico torna-se visível para os outros e invisível para

si mesmo. Nos contos analisados, verificam-se com nitidez esses aspectos acima

apontados: as personagens são seres inseridos num corpo social e que, devido a

uma imperfeição causada pela perda de uma parte de seu corpo, diferenciam-se

negativamente dos demais. À medida que se entregam por completo à tentativa de

recuperar a parte do corpo mutilada, vivenciam situações inusitadas que causam o

riso no expectador (e no leitor). Esse efeito é conseguido graças à insensibilidade do

narrador (e mais uma vez do leitor que o acompanha) em relação aos

acontecimentos, pois no riso não há espaço para a emoção. Bergson (1983) lembra

ainda que a ridicularização é um fator propiciador do riso. Em Brandão, o

154

esfacelamento do corpo ou a inexistência da sombra constituem atributos que

causam a diferença. Assim, a quebra de um protótipo pode motivar o riso. Nos dois

contos, essas situações aparecem em abundância. Como não rir ao ler o diálogo

absurdo entre o homem que perdeu a mão e o atendente dos correios? O mesmo

efeito se observa quando o homem sem sombra procura informações em uma

universidade sobre uma cientista que supostamente estudava o desaparecimento de

sombras.

Em alguns casos, o humor é indissociável de uma crítica a determinados

aspectos da sociedade brasileira. No conto “A mão perdida na caixa do correio”

enquanto a personagem vivencia a angústia da perda do membro, um transeunte

dispara: “‘Onde comprou essa? Legal, tio! Boa pra pedir esmola’” (BRANDÃO-

MPCC, 2000, p. 46). Em outra passagem, a própria personagem ridiculariza e

zomba da situação em que se encontrava: “Um escrevente sem mãos? O último

sonho que resta a quem perde a mão é tornar-se pirata” (BRANDÃO-MPCC, 2000,

p. 47). Na narrativa “As cores das bolinhas da morte”, verifica-se o mesmo tom de

humor impresso à narrativa: “‘Claro, já surgiu o mercado negro. Gente que falsifica

sombras. Trapaceiros desviam a sombra dos outros. Embustes de todo tipo. Para

tudo há um logro” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 107). Assim, embora circulando ao

longo dos anos no domínio extraoficial e na literatura considerada menor (cf.

BAKHTIN, 1987), o riso aparece nos contos de Brandão como uma importante

ferramenta que ajuda a compor uma visão crítica do homem e da sociedade

modernos. Bakhtin (1987, p. 81) afirma que “[…] o riso, menos do que qualquer

outra coisa, jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do

povo. […] Ele permaneceu sempre uma arma de liberação nas mãos do povo”. Nos

contos de Brandão analisados, o riso aparece atrelado a uma crítica social

contundente, atuando, pois, como importante ferramenta de denúncia de condições

sociais degradantes às quais o homem moderno está submetido. Desse modo, o

“sério” é expresso por meio de uma literatura bem-humorada, dialética intrínseca à

produção de contos desse escritor.

3.3 Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão: um diálogo

(im)possível?

155

Nessa reta final de percurso, é chegado o momento de colocar lado a lado a

literatura de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Reconhecendo a

proeminência e a recorrência do duplo na obra desses literatos, procura-se aqui

determinar semelhanças e diferenças quanto ao modo de representação desse tema

em contos selecionados desses escritores. Nessa análise comparativa, será

observada tanto a configuração particular que o tema da dualidade adquire nas

narrativas, quanto os recursos estilísticos e narrativos direta ou indiretamente

relacionados a ela.

As cinco narrativas analisadas – “A caçada”, “A mão no ombro” e “O

encontro”, de Telles; e “A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas

da morte”, de Brandão – giram em torno de um acontecimento insólito que irrompe

no cotidiano das personagens, estabelecendo uma ruptura na rotina. Nas narrativas

de Telles, o insólito manifesta-se principalmente pela irrupção, no contexto imediato

dos seres da ficção, do jardim ou bosque, indeterminável espacial e temporalmente.

Nos contos “A caçada” e “O encontro”, observa-se ainda um processo de crescente

familiaridade e identificação das personagens que visualizam no presente o reviver

de um passado longínquo, fato que desconforta e inquieta o leitor dos textos. Nos

contos de Brandão, a perda da mão e da sombra, em “A mão perdida na caixa do

correio” e “As cores das bolinhas da morte” respectivamente, instaura o insólito

nessas narrativas, dada a forma ilógica com que tal evento se desenvolve: no

primeiro, um homem vai depositar uma correspondência e, inesperadamente, vê sua

mão cair dentro da caixa de correio; no segundo, um juiz aposentado, ao sair de

casa num dia ensolarado, percebe que sua sombra sumira. Tanto nos contos de

Telles quanto nos de Brandão, a inscrição do insólito na realidade das personagens

desestabiliza-as psicologicamente, provocando um misto de sentimentos como

inquietação, apreensão, medo, temor, entre outros.

O desenrolar desses acontecimentos incomuns invariavelmente leva os

protagonistas das cinco narrativas ao confronto com sua outra parte, ou seja, com

seu duplo. Nesses contos, as personagens principais parecem impulsionadas por

um forte sentimento interior que as leva a uma busca incessante por algo, embora

esse objeto nem sempre adquira forma identificável ou apareça explicitamente

especificado nos textos. Nos contos de Telles, essa procura assume uma

configuração inconsciente, como é demonstrado principalmente nos contos “A

caçada” e “O encontro”. Nessas duas narrativas, a tentativa de entender e explicar a

156

familiaridade da personagem com determinadas situações e ambiente, ou seja, a

busca por respostas, leva-a, inevitavelmente, ao reconhecimento e confronto com o

duplo. Nessas narrativas, existe, de um lado, o fascínio despertado nos sujeitos pela

familiaridade com o ambiente, bem como a vontade de prosseguir nessa progressiva

descoberta e reconhecimento; de outro, parece haver uma voz interior que os alerta

quanto aos perigos envolvidos nessa aventura. Desse modo, as personagens se

veem diante de um conflito interior que as divide entre continuar a trilhar o percurso

rumo ao confronto com o outro ou evadir-se das situações. O conto “A mão no

ombro” difere desse esquema, já que nele é a personagem que é procurada pelo

caçador e de quem tenta fugir por mais de uma vez. Ainda nesse conto, o ser tem

consciência de que o confronto com o outro pode trazer consigo o encontro com a

morte, razão pela qual tenta evitá-lo.

Nos dois textos de Brandão, a saga da busca é motivada por uma experiência

bastante inusitada. Desse modo, a ação das personagens nesses contos representa

a luta na tentativa de recuperar a parte faltante de seu corpo. Essa procura reveste-

se também da simbologia da busca pelo outro, já que a mão e a sombra adquirem a

configuração de duplo desses sujeitos.

A possibilidade iminente de confronto com o outro parece inscrever nos

sujeitos envolvidos na narrativa questionamentos existências, o clássico “quem sou

eu?”, que, dentre outros aspectos, problematizam a identidade individual desses

seres. Essa constatação pode ser verificada nos contos de Brandão e de Telles. Nas

duas narrativas analisadas de O homem que odiava a segunda-feira (2000) e no

conto “A mão no ombro”, de Telles, a problematização da identidade está

diretamente relacionada ao ritmo acelerado e automatizado da vida moderna

imposta pela sociedade. Em tais textos, há a representação de sujeitos

completamente tragados pela correria e pela automatização da vida diária. Essa

entrega exagerada às exigências do corpo social tem como correlato um

atrofiamento das potencialidades do eu: para atender e adequar-se às demandas

sociais, os sujeitos negam cada vez mais sua individualidade. É o que acontece com

a personagem do conto “As cores das bolinhas da morte”, um juiz de direito que

acabou transformando-se numa “máquina de sentenças”. Já a personagem da

narrativa “A mão no ombro” escondia, por trás da imagem de um empresário de

sucesso, casado com uma mulher atenta às tendências da moda, a precariedade

das relações imperantes em seu âmbito familiar. As situações vivenciadas por esses

157

sujeitos, entre elas a iminência de confronto com o duplo, parecem inscrevê-los num

processo de reavaliação de suas relações consigo mesmos e com os outros, algo

parecido com a individuação definida por Jung (2008) – embora, nos dois casos,

essa etapa não seja completada, dado o curto intervalo de tempo em que os fatos

do enredo acontecem.

Também nas cinco narrativas analisadas, a manifestação do duplo está

intimamente ligada à morte, já que o confronto com o outro parece inscrever a

consciência de ser finito no horizonte do sujeito. No conto “A mão no ombro”, de

Telles, podem-se observar os suplícios da personagem, que considera precoce sua

morte: “[…] Não quero! gritou. Agora não, meu Deus, espera um pouco, ainda não

estou preparado!” (TELLES-MO, 2009, p. 108). A inserção do jardim onírico na

realidade desperta no ser a certeza de que daquela vez não conseguiria escapar,

apesar das tentativas empreendidas. O toque no ombro pelo caçador é o aviso de

que chegara sua hora: “A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve.

Voltou-se” (TELLES-MO, 2009, p. 104). Em “A caçada”, a personagem, ao

reconhecer a caça como duplo de si, funde-se a ela, momento em que o caçador

desfere a flecha que lhe atinge o peito: “‘Não…’ – gemeu de joelhos. Tentou ainda

agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração” (TELLES-

AC, 1974, p. 103). Por fim, em “O encontro”, a fusão da personagem com a

amazona e a precipitação desta no abismo representam o momento do declínio do

ser: “E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído

pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo” (TELLES-OE, 1958, p.

24). Nessas três narrativas, o momento do confronto com o duplo e com a morte

realiza-se mediante atmosfera mística e nebulosa, gerando uma indeterminação

quanto ao desfecho dos enredos.

Nos contos de Brandão, ocorre algo parecido. Neles, a perda de uma parte do

corpo leva as personagens a uma busca frenética que tem como resultado a morte

desses sujeitos. O conto “A mão perdida na caixa do correio” escancara a

insensibilidade e a falta de respeito pelo outro imperante na sociedade moderna. A

frase escrita em letras vermelhas destacadas no saco plástico em que foi colocado o

corpo do homem morto aponta para a falta de sensibilidade humana e para a

descartabilidade do sujeito na era moderna: “CORRESPONDÊNCIA EXTRAVIADA”

(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 63). Na parte final do conto “As cores das bolinhas da

morte”, realiza-se a fusão entre a personagem e sua sombra e, nesse momento,

158

uma morte, no mínimo no sentido simbólico do termo, já que se efetua uma

mudança qualitativa no íntimo do protagonista, invadido que é por grande calma e

tranquilidade: “Não havia dor, angústia, inquietação, amargura, tristeza. Somente

paz inefável” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 164). A atmosfera criada nesse conto de

Brandão no momento do confronto e da fusão entre o homem e sua sombra está,

portanto, mais próxima da ambientação criada por Telles em seus contos.

Quanto às tipologias de classificação do duplo, verifica-se a predominância de

duplos originados por meio de uma cisão nas duas narrativas de Brandão e em um

dos contos de Telles (“A mão no ombro”). Seguindo a categorização de Jourde e

Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), observa-se que as cinco narrativas analisadas

apresentam o duplo subjetivo, já que o fenômeno da duplicidade incide no

protagonista, e externo, uma vez que o duplo assume uma forma física, com

exceção do texto “A mão no ombro”, de Telles, que apresenta um duplo interno (a

cisão ocorre no interior da personagem).

Ainda em se tratando das semelhanças, verifica-se, nos contos analisados de

Telles e Brandão, íntima conexão entre a representação do duplo e o discurso

fantástico. Em todos os textos, o fenômeno em que a duplicidade se manifesta

desdobra-se de uma situação insólita. Nos contos de Telles, o confronto entre o eu e

o outro só é possível graças à fusão espaço-temporal que se realiza principalmente

na parte final das narrativas. Nos textos de Brandão, a problemática da identidade

aparece como desdobramento de um evento insólito que acontece no início do

enredo, a saber, a perda da mão e da sombra, que no decorrer das narrativas

assume a configuração de duplo, como já foi dito neste trabalho.

Apesar de abordarem uma temática bastante tradicional no campo da

literatura universal e das semelhanças acima apresentadas, Telles e Brandão

imprimem em suas narrativas características próprias do seu estilo, resultando numa

abordagem singular do duplo. São, portanto, essas diferenças e particularidades na

representação do duplo que serão agora explicitadas.

A própria composição dos ambientes em que se desenvolvem as ações das

personagens é bastante díspar. Em Telles, principalmente no final das narrativas,

predomina a recorrência a espaços naturais como bosques e jardins, distantes de

uma concretude sócio-histórica. Cria-se, portanto, uma atmosfera indeterminada

espacial e temporalmente, onde se efetiva o encontro entre o sujeito e seu duplo.

Mesmo nos contos “A caçada” e “A mão no ombro”, em que os respectivos

159

protagonistas parecem viver em ambientes urbanos, o jardim brota na realidade

deles, instaurando uma indeterminação. A constituição da ambientação em Brandão

difere bastante dessa atmosfera mística que constitui traço determinante das

narrativas de Telles. Nele, as personagens são cravadas em um ambiente urbano de

uma grande metrópole, com seus contrastes e problemas, onde vivenciam as mais

inusitadas situações na procura pela parte cindida do corpo.

Também a vivência do evento insólito se processa de modo diferente nas

narrativas dos dois autores em pauta. Na ficção de Telles, o insólito é resultado de

uma experiência subjetiva das personagens, vivenciada por elas em espaços físicos

fechados e reservados. No conto “A caçada”, por exemplo, a contraposição entre a

percepção da tapeçaria pela vendedora da loja e pelo protagonista, para o qual,

paulatinamente, ganha valor subjetivo, revela um processo interior ao sujeito:

“Parece que hoje tudo está mais próximo – disse o homem em voz baixa. É como

se… Mas não está diferente?” (TELLES-AC, 1974, p. 100). Ainda nessa narrativa, a

localização física da tapeçaria nos fundos da loja de antiguidade colabora para a

construção de um ambiente reservado no qual acontece a experiência íntima de

fusão entre a cena representada na tapeçaria e o espaço da loja. Na narrativa “O

encontro”, toda a ação se desenvolve num local desabitado, suspenso espacial e

temporalmente da concretude sócio-histórica, onde se realizam o confronto e a

fusão da personagem com seu duplo. Observa-se, pois, que, tanto em “A caçada”

quanto em “O encontro”, o fio norteador do enredo das narrativas – os processos de

reconhecimento e de identificação do presente como um reviver de um passado

longínquo – é também uma experiência privada, vivenciada intensamente pelas

personagens em seu íntimo. Por fim, no conto “A mão no ombro”, o primeiro

confronto do protagonista com seu duplo se realiza durante o sonho, o que revela a

intimidade do evento. No momento final dessa narrativa, quando acontece a fusão

dos espaços, a personagem também se encontra num local reservado, sozinha

dentro de seu carro. Assim, nos contos de Telles, os sujeitos, dilacerados ante a

iminência do confronto com o duplo e com a morte, vivenciam solitária e intimamente

essa angústia.

Já nos contos de Brandão, o insólito não se dá num contexto privado. Ao

contrário, realiza-se em meio aos olhos da multidão habitante da grande metrópole,

sob a vigilância e o julgamento da comunidade. No conto “A mão perdida na caixa

de correio”, a perda da mão acontece no meio da rua, quando o homem tenta

160

depositar uma correspondência. Este busca ainda advertir outras pessoas sobre o

perigo de depositar cartas em tais caixas, chamando atenção dos demais para o que

ocorrera com ele. Em “As cores das bolinhas da morte”, o evento insólito é também

visível para as demais pessoas, já que, ao andar pelas ruas num dia ensolarado,

torna-se facilmente perceptível a falta de sua sombra. Nesse conto, a ausência da

sombra é também percebida por outros seres, entre eles um também sem sombra,

que se aproxima e indica-lhe procurar a cientista Cristina Agostino. Assim, nos

contos de Brandão, o absurdo brota da realidade das personagens e não é

apresentado de forma velada, dada a própria natureza dos espaços abertos e

públicos em que os eventos ocorrem.

Como já destacado anteriormente, observa-se, em todas as narrativas

analisadas neste trabalho, que as personagens buscam, explicita ou implicitamente,

algo que, no final, revela-se como a identidade do próprio eu. Apesar disso, há uma

diferença considerável no decurso dos eventos vivenciados por eles em cada

narrativa. Nos contos de Telles, especialmente nas narrativas “A caçada” e “O

encontro”, eles enveredam por situações que, de algum modo, conectam-se a

eventos vivenciados num passado indeterminável num primeiro momento. Desse

modo, toda a trama gira em torno de um processo de rememoração e de

identificação que paulatinamente permite-lhes compreender e desvendar o mistério

da familiaridade para com determinadas situações, eventos, lugares ou

personagens. A cena final demarca o momento de revelação, apresentando o

confronto do ser com seu respectivo duplo. Esse confronto com o duplo parece ser

inevitável, já que os sujeitos se encontram irremediavelmente presos a um destino

previamente estabelecido, apesar das tentativas de fuga empreendidas. Já as

personagens de Brandão vivenciam situações até então inéditas para elas, que

causam estranheza justamente por romperem com a estrutura racional imperante na

sociedade atual. Desse modo, é a saga da busca pela parte do corpo mutilada que

constitui o fio norteador das narrativas, o que justifica as situações inusitadas nas

quais eles se enredam. Aqui, a mão e a sombra adquirem a condição de duplo das

personagens, sendo essa cisão externa o reflexo de uma fragmentação e

esfacelamento que atinge o âmago do sujeito.

Em virtude disso, estabelece-se diferença substancial quanto à finalidade da

busca empreendida pelas personagens nas narrativas de Telles e de Brandão. No

primeiro caso, o confronto e fusão com o duplo revelam, em última instância, a

161

busca de uma identidade num passado, representado pelo encontro consigo mesmo

em outra dimensão temporal. A imagem do jardim e suas variantes, espaços nos

quais se efetiva o confronto com o duplo, ajuda a compor a simbologia dessa

tentativa de retorno e fusão com um eu original. No segundo, a procura pela parte

cindida, alçada à condição de duplo, representa a tentativa de recuperar a unidade

do eu. Entretanto, não se trata aqui de retorno a uma unidade original, como

acontece na prosa lygiana, mas de procura pela essência dos sujeitos com todas as

suas potencialidades em uma sociedade que encapsula o sujeito e inibe as

liberdades individuais.

Quanto à origem do duplo, seguindo a classificação de Bargalló (Apud

LAMAS, 2002), constata-se o duplo por cisão nos dois contos de Brandão e a

predominância do duplo por fusão em dois dos três contos de Telles, a saber, “A

caçada” e “O encontro”. Contudo, em ambos os casos, procura-se representar a

angústia do sujeito moderno em constituir e manter uma identidade estável. Em

Telles, há a representação de um sujeito dividido psicologicamente e sua luta pelo

restabelecimento de uma unidade. Em Brandão, o esfacelamento transpõe o campo

psíquico, materializando-se através da imagem impressiva do corpo mutilado, o que,

em última análise, revela a precariedade e a profunda crise do sujeito moderno.

Por fim, apesar de ambos os escritores apoiarem-se no discurso fantástico

para representar o fenômeno da duplicidade em suas narrativas, o fantástico

assume em Brandão uma perspectiva crítica clara e incisiva contra alguns aspectos

integrantes da sociedade moderna. Dentre eles, pode-se citar a crítica ao

conhecimento racional e científico, tanto pela recorrência com que aparece nas duas

narrativas quanto pelo tom contundente que adquire na arquitetura ficcional. A

impossibilidade de explicação racional dos acontecimentos insólitos, bem como a

impotência da ciência para solucionar tais problemas, abalam esses dois

importantes pilares da sociedade moderna. A sucessão dessas situações absurdas

que irrompem no cotidiano e seus desdobramentos passam, portanto, a questionar a

própria concepção de realidade: “Quem quer saber do real? Tão desequilibrado,

inconsistente, fictício, tão frágil! O real é a mentira na qual nos agarramos para não

sermos considerados loucos, para não nos internarem, nos retirarem do que

chamam sociedade. O real é impalpável” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 161). Outro

aspecto que também apresenta tom crítico em Brandão é o uso do humor e do riso

como formas de ridicularizar e denunciar atributos humanos e valores da sociedade

162

moderna. O risível encontra-se, contudo, indissociável das situações absurdas

enfrentadas pelas personagens na tentativa de recuperar a parte cindida do corpo.

163

CONCLUSÃO

Falar sobre identidade é tratar de um tema que inquieta a humanidade desde

os primórdios; afinal, a clássica pergunta “quem sou eu?” inscreve-se ao longo dos

séculos, revelando ser uma indagação milenar. Um tema tão antigo e que persiste

com vigor ao longo da história da humanidade tem sua razão de ser: interessa ao

homem porque trata justamente do que há de essencial nele. Diversas produções

humanas revelam essa preocupação com questões relacionadas ao eu desde as

mitologias, passando pela filosofia e pelas artes em geral, entre outros domínios, o

que demonstra a centralidade da problemática em diferentes épocas.

Várias foram as tentativas de resposta para esse questionamento existencial,

cada uma delas em estrita consonância com as demandas sociais do período. Na

modernidade, dadas as importantes mudanças na estrutura das sociedades, o tema

novamente ganha destaque. Conforme salienta Hall (2006), essas transformações

ocorridas no espaço social no contexto contemporâneo interferem diretamente na

maneira como os sujeitos constroem sua(s) identidade(s). Assim, nessa conjuntura

atual, as identidades, antes tidas como fixas e unificadas, caminham rumo ao

deslocamento e à fragmentação.

Neste trabalho, a problemática da identidade foi abordada tendo como

referência norteadora o mito do duplo, à luz de perspectivas clássicas e modernas.

Apesar de sua tradição, verificada por sua inscrição em diferentes discursos

humanos ao longo da história (religião, filosofia, mitologia, literatura), o mito do duplo

vem, no decorrer desses séculos, mostrando sua fertilidade. Dentre os campos do

conhecimento acima citados, a literatura apareceu no decorrer dos séculos como

verdadeiro “conservatório dos mitos”, segundo palavras de Brunel (1998), em virtude

da adaptabilidade de tal tema a diferentes contextos e as suas infinitas

possibilidades de reescritura. Prova disso é a recorrência, na literatura, à figura de

Narciso, considerado o mito fundante e representativo da busca da identidade.

Entretanto, o mito não funciona aqui como uma camisa de força que aprisiona o

autor e obriga-o a seguir determinadas condutas, pois, conforme afirma Mielietinski

(1987), o conteúdo do mito, no campo literário, é ressignificado e reinventado,

renovando-se continuamente. É essa liberdade que torna possível falar hoje no

Narciso moderno, uma forma de adequação desse conteúdo mítico antigo à

literatura moderna, em resposta às novas demandas da sociedade. Cônscio de sua

164

duplicidade, o espelho no qual o Narciso moderno se reflete não fornece uma

imagem unificada do eu; ao contrário, essa imagem é múltipla, duplicada e

desdobrada.

No contexto moderno, o tema da identidade é problematizado de maneira

incisiva em diversos domínios e, particularmente, na literatura, em que as

representações de sujeitos cindidos e esfacelados se colocam como determinantes

no conto brasileiro contemporâneo. Sendo assim, procurou-se, nesse trabalho,

verificar as configurações assumidas pelo mito do duplo em contos selecionados de

Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Ambos são autores

contemporâneos e representativos da literatura brasileira atual em que a

problemática da identidade, e especificamente o tema do duplo, ganham destaque.

Nas narrativas de Telles, foram verificadas algumas constantes quanto à

representação do duplo, como: a fusão espaço-temporal que promove uma

indeterminação na narrativa, possibilitando o confronto do eu com o outro; a

importância do discurso fantástico para criar a atmosfera propícia para a

confrontação; a repetição de algumas figuras e imagens, como o caçador e o jardim,

que compõem o mitoestilo da escritora; o duplo majoritariamente por fusão. É

graças a isso que o encontro e o confronto da personagem com o outro acontecem:

em “A caçada”, a caça assume a condição de duplo do protagonista; em “A mão no

ombro”, a dualidade se manifesta por meio do confronto entre o eu sonhador e o eu

personagem do sonho; em “O encontro”, a amazona exerce a função de duplo da

personagem.

Nos contos de Brandão, o tema da dualidade aparece como consequência ou

desdobramento de uma situação insólita vivenciada pelas personagens: um evento

inusitado acomete-as, quando acontece a perda de uma parte de seu corpo; uma

busca é instaurada na tentativa de recuperação da parte mutilada, a qual passa a

configurar o duplo da personagem; o duplo é resultado de uma cisão e também é

permitido pelas possibilidades abertas pelo discurso fantástico. Na narrativa “A mão

perdida na caixa do correio”, a mão que inesperadamente cai dentro da caixa

funciona, metonimicamente, como duplo do protagonista; em “As cores das bolinhas

da morte”, a função de duplo é assumida pela sombra perdida.

Confrontando Telles e Brandão por meio de uma análise comparativa,

sobressaem-se os seguintes pontos em comum: as narrativas giram em torno ou

resultam de um acontecimento insólito; o desenrolar das narrativas leva as

165

personagens a uma busca, explícita ou implicitamente, pelo seu duplo e ao

confronto com ele; o encontro com o duplo é possibilitado pelos infinitos caminhos

abertos pelo fantástico e leva os sujeitos invariavelmente à morte, em nível físico ou

simbólico. Apesar disso, percebem-se também diferenças quanto à representação

do duplo, o que demonstra a particularidade de cada escritor. Em Telles, predomina

a presença de ambientes naturais, representados principalmente pelo jardim e pelo

bosque que irrompem na realidade, especialmente no final das narrativas; a vivência

subjetiva e privada do insólito; a busca empreendida e a consequente fusão entre a

personagem e seu duplo como representação majoritariamente da procura da

identidade do eu em um passado indeterminado. Em Brandão, a ação das

personagens ocorre exclusivamente no ambiente urbano; a vivência do

acontecimento insólito realiza-se no meio da rua, em público; a busca da parte do

corpo cindida assume a simbologia de busca da identidade e de resgate das

potencialidades latentes do eu; o fantástico, atrelado ao humor que emana das

situações vivenciadas pelas personagens, assume nítida perspectiva crítica contra

determinados elementos constituintes da sociedade moderna. Como se vê, é

inegável a centralidade do tema da identidade nessas narrativas. A iminência do

confronto com o outro desencadeia uma crise existencial nos sujeitos, questionando

a suposta unidade do eu.

A leitura crítica das narrativas de Telles e Brandão permitiu a confirmação da

força com que o tema do duplo se inscreve como motivo literário em diferentes

épocas. Essa pujança é justificada por dois fatores principais interligados entre si.

Em primeiro lugar, apesar de ser uma figura arcaica, o duplo vem, ao longo dos

séculos, mostrando sua fertilidade na literatura, verificada pela constante recorrência

a esse tema nas mais diversificadas tradições literárias. Isso demonstra, entre outros

aspectos, sua capacidade de penetração em diferentes culturas e, em consequência

disso, a universalidade que atingiu. Em segundo, essa proeminência e vitalidade da

temática do duplo ao longo da história da literatura só foram possíveis devido a sua

maleabilidade e adaptabilidade. Desse modo, as representações do duplo, embora

mantenham em sua essência o emblema da busca da identidade, se adaptaram, ao

longo dos séculos, a diferentes contextos, respondendo às demandas de cada

momento histórico. No contexto da modernidade (cf. BAUMAN, 2005), em que as

identidade se mostram instáveis e descentradas, o mito do duplo aparece com vigor,

inscrevendo-se como importante motivo literário a partir do qual se realiza a

166

representação dessa crise identitária do homem moderno, esfacelado, fragmentado

e cônscio de sua duplicidade. Na literatura contemporânea, o mito do duplo vem se

reinventando e se atualizando, como se verifica no caráter mimético dos contos

investigados e no diálogo entre a literatura e o mito.

Chegado o final desse percurso que adentrou pelas veredas do duplo em

contos de Telles e Brandão, espera-se que as ideias aqui plantadas possam

encontrar outros solos férteis para germinar e dar novos frutos, de modo a ampliar

os estudos críticos sobre a obra desses escritores ainda pouco estudados.

Considerando também a importância do diálogo para a construção de conhecimento

na academia, espera-se, por fim, que a voz aqui lançada (ela própria já inserida

nessa teia comunicativa inextricável) possa ecoar mundo afora, suscitando

respostas diversas (concordância, discordância etc.), pois somente através dessa

relação dialógica se produz verdadeiramente o conhecimento.

167

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