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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UMA LEITURA DUPLA SOBRE O SILÊNCIO E A LOUCURA EM JANE EYRE VANALUCIA SOARES DA SILVEIRA Pau dos Ferros 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

UMA LEITURA DUPLA SOBRE O SILÊNCIO E A LOUCURA EM JANE EYRE

VANALUCIA SOARES DA SILVEIRA

Pau dos Ferros

2013

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Vanalucia Soares da Silveira

UMA LEITURA DUPLA SOBRE O SILÊNCIO E A LOUCURA EM JANE EYRE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do grau de mestre em Letras. Área de Concentração: Estudos do Texto e do Discurso Linha de Pesquisa: Discurso, Memória e Identidade

Orientador: Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte

Pau dos Ferros

2013

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Silveira, Vanalucia Soares da. Uma leitura dupla sobre o silêncio e a loucura em Jane Eyre /

Vanalucia Soares da Silveira. – Pau dos Ferros, RN, 2013.

134 f.

Orientador (a): Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte.

Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Leitura Dupla – Dissertação. 2. Literatura Inglesa – Jane Eyre –

Dissertação. 3. Literatura – Loucura – Dissertação. 4. Pós-colonialismo

– Dissertação. I. Ponte, Charles Albuquerque. II. Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/BC CDD 401.41

Catalogação da Publicação na Fonte.

Bibliotecário: Tiago Emanuel Maia Freire / CRB - 15/449

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A dissertação UMA LEITURA DUPLA SOBRE O SILÊNCIO E A LOUCURA EM JANE EYRE, autoria de Vanalucia Soares da Silveira, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

Dissertação defendida e aprovada, em 22 de novembro de 2013.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte- UERN (Presidente)

Prof. Dr. Nelson Eliezer Ferreira Júnior – UFCG (1º Examinador)

Prof. Dr. José Vilian Mangueira - UERN (2º Examinador)

Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues - UERN (Suplente)

Pau dos Ferros

2013

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Para Argénilson Elias de Oliveira

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo grande sinal de sua existência e amor, durante o Mestrado.

Aos familiares e amigos, pela força e compreensão, neste momento de realização

mais pessoal que profissional.

Ao meu orientador Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte, por ter-se colocado entre

mim, o texto e a teoria, com muita presteza, sabedoria e ética.

À Direção Geral e à Coordenação de Gestão de Pessoas do IFPB, Campus

Sousa, nossa instituição, pela liberação parcial concedida ao longo desta

pesquisa, mas também pelo incentivo individual.

À Coordenação e aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da

UERN, de modo especial, ao Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues e ao Prof. Dr.

José Vilian Mangueira, pelas contribuições quando da qualificação e/ou defesa.

Ao Prof. Dr. Nelson Eliezer Ferreira Júnior da UFCG, pelas sugestões para

melhoria deste trabalho, apresentadas na defesa.

À Profª. Drª. Daise Lílian Fonseca Dias da UFCG, pela indicação da leitura de

Jane Eyre e da abordagem teórica pós-colonialista.

Aos autores, pelos aportes teóricos.

A todos que contribuíram com a realização de nossa pesquisa.

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“Se há um silêncio que apaga, há um silêncio que explode os limites do significar.” (ORLANDI, 2010, p. 85). O além do fechamento do livro não deve ser esperado nem encontrado. Está lá mas além, na repetição mas evitando-a. Está lá como a sombra do livro, o terceiro entre as duas mãos que seguram o livro, a diferencia no agora da escritura, a distância entre o livro e o livro, essa outra mão... (DERRIDA, 2002, p. 81).

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa é fazer uma leitura dupla de Jane Eyre (2008), da escritora inglesa Charlotte Brontë (1816-1855) e publicado em 1847, sob a abordagem pós-colonialista, concernente a uma sistematização de reflexões sobre as relações coloniais, a partir da leitura de obras do cânone ocidental. A análise fundamentar-se-á, principalmente, no pensamento de Said (2008; 2011), Ascroft et al. (2010), Bhabha (2010), Fanon (1983), Césaire (1978), Spivak (2010), Foucault (2000; 2009; 2010; 2011) e Derrida (1981; 2002). Deste autor, aproveitaremos seu método da desconstrução, derivado da filosofia platônica, para mostrar que o silêncio e a loucura, no romance de Brontë, acumulam interpretações contrárias, tanto do lugar do colonizador como do colonizado. A proposta, portanto, é ambivalente: primeiro, realizar uma leitura colonialista, dizendo que a loucura de Bertha Mason pode ser uma patologia, e seu silêncio, consequência disso, relacionados à ideologia de superioridade da raça branca sobre a não branca com fundamento na teoria da evolução de Charles Darwin, pregada na Inglaterra vitoriana, época de surgimento da obra; depois, reler os mesmos fatos, levantar contrapontos para essa interpretação, assinalar, agora pela ótica pós-colonialista, que o silêncio e a loucura da jamaicana tanto podem corresponder à política de opressão e repressão coloniais, aliada ao sistema capitalista, quanto podem corresponder a uma manifestação subversiva contra essa política e esse sistema. Ambas as leituras visam a discutir a identidade do subalterno com base em questões de raça e relação colonial, destacando a metáfora do casamento de Bertha Mason com Rochester e a relação da crioula com a branca Jane Eyre, mostrando, de um lado, as estratégias do homem branco para explorar a autóctone e civilizá-la, através do transplante cultural, e, de outro, as estratégias do colonizado para desestruturar essa ordem, para fazer-se ouvir. Um ponto a se destacar é a opção estética da autora, ao dar voz a Jane Eyre, que conta sua história de acordo com discursos de personagens, também, de sua raça, sobretudo, Rochester, enquanto praticamente anula a voz do não branco, pois silencia a personagem Bertha Mason e dá pouco espaço para a fala de Richard Mason. No entanto, esse silêncio apresenta-se de forma ambígua, porque, concomitantemente, ele pode representar o aniquilamento do idioma nativo e a rejeição do idioma metropolitano, e, paralelamente, o destino das duas culturas: a europeia e a não europeia. Diante da multiplicidade de interpretações que o texto possibilita, o lugar de onde o analisaremos será o da aporia, da indecidibilidade, dos interstícios, ou dos entre-lugares, o local do equilíbrio de sentidos, da abertura às diferenças culturais, raciais, religiosas, políticas e econômicas. Portanto, correlata à nossa posição, está a obra em si, devido ao seu caráter duplo, de reunir significados de natureza oposta, porém suplementares, dividindo, simultaneamente, um mesmo espaço.

Palavras-chave: Jane Eyre. Leitura Dupla. Silêncio. Loucura. Pós-colonialismo.

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ABSTRACT

The aim of this research is to conduct a double reading of Jane Eyre (2008), written by the English writer Charlotte Brontë (1816-1855) and published in 1847, under a post-colonialist approach, concerning a systematic reflection on colonial relations spawned from reading the Western canon. The analysis will be based mainly upon the theories of Said (2008, 2011), Ashcroft et al. (2010), Bhabha (2010), Fanon (1983), Césaire (1978), Spivak (2010), Foucault (2000; 2009; 2010; 2011) and Derrida (1981; 2002). From the latter, we will use his deconstructionist method, derived from the Platonic philosophy, to show that silence and madness, in Brontë's novel, accumulate contrary interpretations, both from the place of the colonizer as well as the colonized. The proposal, therefore, is ambivalent: first to perform a colonialist reading, stating that the madness of Bertha Mason can be a disease, and her silence its result, related to the ideology of superiority of white over non-white based on Charles Darwin's evolution theory, preached in Victorian England at the time of appearance of the work; afterwards, reread the same facts, raising counterpoints to this interpretation, to sign, now from the post-colonial perspective, that the Jamaican‟s silence and madness can either match the policy of colonial oppression and repression, coupled with the capitalist system, as it may correspond to a subversive demonstration against such politics and system. Both readings aim to discuss the identity of the subaltern based on issues of race and colonial relationship, highlighting the metaphor of Bertha Mason and Rochester‟s marriage and the relationship between the Creole and the white Jane Eyre, showing, on the one hand, the white strategies to explore the autochthonous woman and to civilize her, through cultural transplant, and on the other, the colonized strategies to disrupt this order, to make her/himself heard. One thing to point out is the author's aesthetic choice to give voice to Jane Eyre, who tells her story according to speeches of white characters, especially Rochester‟s, while practically nullifying the voice of non-whites, since she mutes the character Bertha Mason and gives little space to Richard Mason‟s speech. However, this silence is presented ambiguously, for, concurrently, it may represent the annihilation of the native language and the rejection of the metropolitan language, and, in parallel, the fate of two cultures: the European and non-European. Given the multiplicity of interpretations the text enables, the place where we will look for will be from the aporia, the undecidability, the interstices, or the in-between places, the place of sensory balance, the openness to cultural, racial, religious, political and economic differences. Therefore, related to our position, is the work itself, because of its twofold nature, to gather meanings of opposite nature, but additional, sharing the same space simultaneously. Keywords: Jane Eyre. Double Reading. Silence. Madness. Post-colonialism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10

1 CAPÍTULO I: O TEXTO LITERÁRIO E A CRÍTICA PÓS-COLONIALISTA ..... 15

1.1 Cultura e Pós-colonialismo ......................................................................... 17

1.2 Decifrando as elipses do colonialismo/imperialismo ............................... 26

1.3 Do silêncio e do subalterno ......................................................................... 33

1.4 A releitura canônica e o desconstrucionismo derridiano ......................... 38

2 CAPÍTULO II: SOBRE QUESTÕES DE RAÇA EM JANE EYRE .................... 48

2.1 A construção da identidade de Bertha Mason pelo discurso europeu ... 48

2.2 Uma leitura colonialista sobre o silêncio e a loucura de Bertha Mason . 70

3 CAPÍTULO III: UMA RELEITURA SOBRE QUESTÕES DE RAÇA EM JANE

EYRE ................................................................................................................... 83

3.1 Silêncio e loucura: uma produção social ................................................... 83

3.2 Silêncio e loucura: formas de resistência colonial ................................. 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 123

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 129

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INTRODUÇÃO

A linguagem literária salta os limites do dizer; desafia a exegese de uma

leitura impressionista e monossêmica e irrompe noções de intransitividade de

uma obra. Ela extrapola o plano do visível e do imediato, ao escapar à visão de

discurso autotélico, inscrito em uma regularidade linguística, abrindo-se à

possibilidade de reatualização (cf. MAINGUENEAU, 2009). Essa abertura permite

conceber um texto literário como um local de encontros e/ou embates discursivos,

de oportunidade para o questionamento de verdades instituídas ideologicamente

pela filosofia platônica, através do diálogo histórico-cultural (cf. BAKHTIN, 2011).

Assim, embora as produções canônicas ocidentais, em sua grande maioria,

tenham se manifestado como intransitivas, ao contribuírem para disseminar

ideologias preconceituosas de superioridade da raça branca sobre qualquer outra

raça, através do processo de colonização cultural, como assevera a crítica pós-

Colonialista (cf. SAID, 2011), elas, também, têm servido para denunciar práticas

coloniais, como é o caso da obra Jane Eyre, da escritora inglesa Charlotte Brontë

(2008), publicado, originalmente, em 1847.

Os estudos pós-colonialistas configuram-se em uma sistematização de

reflexões acerca das políticas de dominação geográfica, política, econômica,

religiosa e cultural do homem branco sobre o não branco, da metrópole sobre a

colônia. O local eleito pelos grandes críticos dessa abordagem literária, por

exemplo, Said (2008; 2011), Bhabha (2010), Ascroft et al. (2010), Fanon (1983;

2010), Césaire (1978), Thiong‟o (2011), Rama (2001), dentre outros, para

proporcionar a elaboração dessas reflexões, foi a cultura, por esses autores

acreditarem que ela está intimamente vinculada ao processo de colonização.

Desse modo, a literatura foi apontada como principal instrumento para civilizar o

mundo. Diante disso, o principal papel da crítica pós-colonialista foi dedicar-se a

reler obras literárias escritas por ocidentais.

Subsidiados por essa corrente, nosso objetivo com o romance canônico

Jane Eyre (2008) é fazer uma leitura dupla, relendo-o. A releitura significa ler o

texto escrito pela tinta ideológica do colonizador do lugar do colonizado, significa

levantar contrapontos, questionar a leitura feita do lugar daquele que detém o

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poder da palavra. Para a releitura que nos propomos a fazer, utilizaremos o

método da desconstrução do autor argelino pós-estruturalista Jacques Derrida

(1981; 2002). O método desconstrucionista assegura uma compreensão dialética

acerca da metafísica platônica cuja filosofia sustenta a ideia de uma origem, de

uma verdade, de um centro. A desconstrução derridiana propõe uma reversão na

hierarquia, a descentralização, mas pautada em um jogo de substituições infinitas,

e, não, em uma simples troca de lugar entre os tradicionais pares opositores

(eu/outro; centro/periferia; dominador/dominado, etc.), o que resultaria em uma

volta à centralidade, ao invés de permitir o movimento contínuo, suplementar e

aberto às diferenças.

No método da desconstrução, encontramos uma maneira democrática para

lidar com esta pesquisa e torná-la ainda mais apaixonante. Assim, analisar Jane

Eyre (2008) transformou-se dia a dia em um trabalho desafiador, por jogar

dialeticamente com os significantes silêncio e loucura, ora atribuindo significados

colonialistas para os termos, ora atribuindo-lhes sentidos a partir de uma leitura

pós-colonialista.

O interesse em estudar as representações do silêncio e da loucura em

Jane Eyre (2008) nasceu na primeira leitura desse romance, quando fazíamos o

Curso de Licenciatura Plena em Letras, pela Universidade Federal de Campina

Grande (UFCG), no Centro de Formação de Professores de Cajazeiras (CFP).

Esse despertar ocorreu no período em que fizemos parte da monitoria da

disciplina de Língua Inglesa, quando nos dedicamos com mais afinco a leituras de

romances escritos em língua inglesa, especialmente, os da literatura inglesa. Não

poderemos omitir agora que o que nos levou a ler a obra foi o filme de mesmo

nome do diretor Robert Young, ao qual assistimos para exibir em uma das

sessões programadas correspondente às atividades da nossa função acadêmica.

O que nos causou estranhamento ao ler o romance foi o fato de nele existir

uma personagem louca sem voz na narrativa cuja identidade só nos é possível

conhecer a partir dos discursos de outras personagens. Essa personagem

chama-se Bertha Antoinette Mason, uma crioula de origem jamaicana, que,

depois de casar-se com o inglês Edward Fairfax Rochester, é levada de sua Terra

para a Europa, onde sua identidade passa por um processo de aniquilamento. Lá,

ela viverá sob o domínio do esposo, na condição de louca e trancafiada em um

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quarto de uma mansão chamada Thornfield. Em torno dessa personagem há,

portanto, um grande silêncio.

A impressão que esse silêncio nos deu foi que ele poderia estar

escondendo uma verdade acerca da visível doença. A hipótese que

contrapusemos à ideia de patologia mental da caribenha foi a de que sua loucura

poderia ter sido uma produção social, efeito da opressão e repressão impostas

pelo inglês, e seu silêncio estaria, pois, vinculado a uma política de dominação. A

princípio, limitamo-nos a ver essa política sob a perspectiva de gênero, ou seja,

como Patriarcalismo, momento em que começávamos a abraçar as ideias

feministas, mas depois passamos a interpretar o casamento de Rochester com

Bertha Mason como uma metáfora colonial e racial: a exploração da metrópole

inglesa sobre a colônia Jamaica, da raça branca sobre a não branca, tendo

ganhado mais consistência ao tomar contato com os estudos pós-colonialistas no

final da Especialização em Estudos Literários no CFP da UFCG, Campus

Cajazeiras, em 2008.

Ao entrarmos no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), dando as mãos à filosofia

foucaultiana, conseguimos grande parte do aparato teórico para defendermos

essa tese. Decidimos, então, enveredarmo-nos só pela trilha das críticas pós-

colonialistas para analisar Jane Eyre (2008).

Ao debruçarmo-nos sobre a obra e ao fazermos leituras sobre o silêncio e

o subalterno, antes mesmo de iniciarmos o Mestrado, começamos a levantar

outra hipótese acerca do silêncio e da loucura de Bertha Mason: esses recursos

seriam estratégias do colonizado para subverter a ordem colonial. O subalterno

poderia exprimir sua voz sem falar. Através da loucura, Bertha Mason se

refugiaria no silêncio para defender sua própria língua e cultura e rejeitar as do

colonizador. Desse modo, ela estaria lutando para sair de sua condição.

A partir das orientações do Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte, desde

que nos sugeriu trabalhar com o método desconstrucionista derridiano, o qual

considera importante as duas interpretações, a do lugar do colonizador e a do

lugar do colonizado, vimos necessária a incorporação das duas dimensões neste

trabalho. Uma leitura não desprezaria outra, ao contrário, ambas seriam

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suplementares, interdependentes, possíveis de habitarem o mesmo corpus e

permitirem o movimento dos sentidos.

O percurso desta pesquisa, de certo modo, definiu a estrutura desta

dissertação, a qual está composta de três capítulos. O primeiro, subdividido em

quatro partes, será de natureza teórica, sendo, portanto, todo voltado para a

crítica pós-colonialista. O primeiro subtópico enfatizará a relação cultura e

colonialismo, mostrando como obras literárias podem ter sido usadas como

instrumento para a colonização de mentes nativas, isto é, como meio de pregar

ao mundo a ideologia de superioridade da raça branca sobre a não branca.

Assim, será discutida a questão do espaço da cultura nas relações coloniais a

partir de representações ficcionais e o papel da crítica pós-colonialista com a

literatura. O segundo subtópico terá o objetivo de decifrar as estratégias, os

segredos, empreendidos pela política colonialista, mostrando o que os discursos

do europeu podem esconder e controlar. O terceiro subtópico visa a mostrar a

ambiguidade do silêncio do subalterno nas relações coloniais, ao representar

tanto censura quanto subversão. Ao tratarmos desse ponto, discorreremos sobre

as principais estratégias de subversão colonial pelo silêncio. Já o último subtópico

deste capítulo estará relacionado à releitura de obras canônicas e ao método

desconstrucionista.

O segundo e o terceiro capítulos estarão voltados à análise de Jane Eyre

(2008), cada um com dois subtópicos. No segundo capítulo, será feita uma leitura

colonialista sobre o silêncio e a loucura de Bertha Mason, observando questões

de raça no romance. No primeiro subtópico, através dos discursos de sujeitos

europeus, principalmente os de Jane Eyre e de Rochester, mostraremos como

aparenta ser razoável a ideia de Bertha Mason ser louca e de como seu silêncio

funcionaria como prova de sua inferioridade intelectual em relação ao branco. No

segundo subtópico, daremos uma interpretação à loucura dessa personagem,

compreendendo-a, no contexto colonialista, como uma metáfora racial, ao

fazermos uma relação com a ideologia de raça desenvolvida na Inglaterra

vitoriana, de que o branco biologicamente nasce superior ao não branco,

ideologia fundamentada na teoria da evolução de Charles Darwin. Portanto, nesse

capítulo, a leitura acontecerá a partir do lugar do colonizador.

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No terceiro capítulo, será feita uma leitura pós-colonialista, ou uma releitura

sobre questões de raça em Jane Eyre (2008), desconstruindo, desse modo, a

leitura colonialista feita no anterior. No primeiro subtópico, mostraremos que o

silêncio e a loucura de Bertha Mason podem representar uma produção social,

uma estratégia usada pelo branco para colonizar o não branco. No segundo,

diremos que esses recursos podem exercer o sentido de subversão colonial.

Assim, nesse capítulo, a leitura ocorrerá sob o olhar do colonizado.

Seguindo o pensamento desconstrucionista derridiano e entendendo a

literatura como o exercício da democracia, não assumiremos outra posição diante

dos desdobramentos desta pesquisa, senão a dos interstícios, a do indecidível,

devido a eles não permitirem que desprezemos nenhuma interpretação, mas que

fiquemos no entre-lugares, na zona fronteiriça, ou em um terceiro lugar, como

propõem Derrida (1981) e Bhabha (2010). Ocupar essa posição significa não se

colocar no lugar do Eu nem do outro, mas das diferenças culturais e raciais,

reconhecendo a importância da pluralidade discursiva para uma compreensão

histórica humanitária.

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1 CAPÍTULO I: O TEXTO LITERÁRIO E A CRÍTICA PÓS-COLONIALISTA

O discurso pós-colonial surgiu no século XX, especificamente após a

Segunda Guerra Mundial, em um contexto de lutas protagonizadas por povos

submetidos ao domínio colonial europeu, por negros subordinados ao monopólio

político e econômico da raça branca e por um grande contingente feminino sujeito

ao poder falocêntrico. São grupos minoritários lutando por direitos fundamentais:

as mulheres exigindo reconhecimento humano dentro de um sistema patriarcal;

nativos de ex-colônias, sobretudo, intelectuais, reivindicando independência

política e cultural da “família europeia”, e negros de ascendência de escravos,

denunciando o preconceito racial, o separativismo entre as “pessoas de cor” e os

descoloridos por meio do movimento Négritude1, disseminado em muitos países

da África na década de 1930 (cf. BONNICI, 2005a, p. 226). Esses grupos,

portanto, inauguraram uma atitude política dos subalternos – povos de ex-

colônias, mulheres e negros no combate ao sistema panóptico ocidental, à política

colonialista francesa, portuguesa, espanhola, holandesa e, principalmente,

britânica, que, além de ter como objetivo a exploração colonial, camuflava os

interesses masculinos.

Os estudos pós-colonialistas configuram-se em reflexões acerca da política

colonial europeia sobre sociedades periféricas, com o papel de mostrar as

estratégias de dominação pela cultura utilizadas pelo ocidente sobre o mundo.

Eles visam à descolonização, que não se restringe à busca pela emancipação

política, mas também manifestam interesse por desarticular qualquer forma

colonial de poder e controle. Eles analisam a educação colonial, os planos

empreendidos pelo europeu para civilizar o mundo, para expandir seus valores

culturais, suas crenças religiosas, seu pensamento hegemônico sobre suas

colônias. Esses estudos questionam as contribuições do processo educacional

europeu para o melhoramento das mentes primitivas (cf. BONNICI, 2000, p. 10).

Nesse sentido, o grande objetivo dos estudos pós-colonialistas é penetrar no

1 Négritude foi um movimento literário entre os anos 1930 e 1950 que se iniciou em Paris com

escritores negros africanos e caribenhos que falavam o francês. Protestando contra as regras coloniais e políticas assimilacionistas francesas, eles declararam o valor da identidade, cultura e tradições do negro africano (Cf. THIONGO‟O; LIYONG; OWUOR-ANYUMBA, 2001, p. 2096).

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lugar mais sensível ao propósito colonial: a cultura. Ao compreender tal objetivo,

Bonnici (cf. 2000, p. 30) observa que a descolonização deveria começar pela

cultura, entendendo esta como a arte, a ciência, as crenças, os ritos, o idioma de

um povo. Assim, a descolonização implicaria o trabalho com o resgate das

culturas pré-coloniais, especialmente, com a recuperação das línguas nativas. Um

passo importante para descolonizar a cultura ocidental seria escrever os gêneros

literários na língua do autóctone, usando os seus dialetos e aproveitando as suas

tradições orais, como fez o escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong‟o (2009) ao

produzir o romance Weep Not, Child (Não chore, criança), escrito, primeiramente,

em sua língua nativa, e, só depois, traduzido para o inglês2. Nessa obra, Thiong‟o

descreve um ambiente familiar cujo gosto pela arte de contar histórias e ouvi-las

leva jovens quenianos a interessarem-se por seu passado e a lutarem por um

futuro em defesa de sua raça. Na casa do patriarca Nghoto, a memória sombria

das duas grandes guerras mundiais e de seus efeitos negativos sobre o Quênia

cria nos filhos o anseio da reconstrução de seu país pela recuperação da terra, da

cultura e da identidade de seu povo que se encontram sob o controle europeu.

Se o lugar eleito como principal pelos estudos pós-colonialistas para

investigar as consequências da colonização foi a cultura, é possível inferir que o

cânone ocidental foi o principal arquivo ao dispor do crítico pós-colonial (cf.

FOUCAULT, 2000, p. 145-151). Destacaram-se nesse arquivo obras filológicas e,

em maior grau, literárias. A análise do cânone demonstrou que a cultura literária,

muitas vezes, contribuiu para disseminar os interesses europeus, ao difundir

valores de superioridade para a cultura ocidental enquanto criava a imagem da

alteridade para aqueles que não eram brancos (cf. BONNICI, 2005a, p. 233-234).

Desse modo, as teorias pós-colonialistas buscam mostrar como na literatura

canônica a questão da exploração colonial em cujo processo subjaz a ideologia3

2 Mas esse procedimento é contraditório, porque embora renegando a língua do colonizador, o

autor mantém a mesma forma literária europeia: o romance. 3 O termo ideologia adota, aqui, o sentido empregado por Chaui (1994). Sob orientação marxista,

a autora define a ideologia como um conjunto de ideias ou representações que visam a esconder dos homens o modo real como as relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. A ideologia funciona como um fetiche e um processo de alienação humana, devido a ela fabricar ideias que “faz[em] com que os homens creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes.” (ibid., p. 79). A ideologia configura-se em um processo metonímico: as ideias de uma pequena parte (os dominantes) passam a ser as ideias de todas as classes sociais, “de modo

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de supremacia da cultura ocidental sobre qualquer outra, da cor branca sobre as

demais e do eu civilizado sobre o outro primitivo, pode estar silenciosamente

arrumada na tessitura textual, seja pela voz dos personagens, seja pela voz

narrativa.

Mas o silêncio que verificamos em obras literárias nem sempre é estratégia

de dominação, significando a política do fazer-se calar. Certas vezes, ele pode

expressar a força da resistência, do subalterno, que, apesar de não ter voz na

sociedade, mostra que seus gestos e seus gritos abafados soam como

manifestação consciente de sua insatisfação contra a política colonial, podendo,

assim, serem interpretados de forma ambígua. Assim, o silêncio, enquanto

elemento de um jogo inter-racial, tanto pode indicar a submissão como a

subversão.

1.1 Cultura e Pós-colonialismo

Um estudo aprofundado sobre a relação da cultura com o imperialismo foi

feito, minuciosamente, pelo crítico palestino Edward Said (2011) em seu livro

Cultura e Imperialismo. Para o autor, é imprescindível uma perícia da cultura

europeia porque, ao analisar grandes obras do cânone ocidental, tais como A

Tempestade, de William Shakespeare, Robson Crusoé, de Daniel Defoe,

Mansfield Park, de Jane Austen, Jim, de Rudyard Kipling e Jane Eyre, de

Charlotte Bontë, descobriu que elas, muitas vezes, contribuem com o projeto

colonialista, devido a favorecerem o discurso europeu, caracterizado por difundir

uma ideologia de superioridade da raça branca sobre qualquer outra raça.

Outrossim, constatou silêncio nelas, um jogo de segredos bem articulado na

tessitura textual, de modo que não fica visível para o leitor o vínculo de suas

estruturas narrativas com as experiências colonialistas. Por isso, no que diz

respeito à obra cultural, Said (2011, p. 124) sugere-nos que,

Ao ler um texto, devemos abri-lo tanto para o que está contido nele quanto para o que foi excluído pelo autor. Cada obra cultural é a visão de

que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das ideias).” (ibid., p. 93-94). A ideologia, portanto, é uma representação social, uma realidade abstrata, cujo pedestal não é, de fato, a base real, mas a aparência social.

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um momento, e devemos justapor essa visão às várias revisões que depois ela gerou.

A questão da reprodução da ideologia ocidental já havia sido criticada por

Said em seu livro Orientalismo (2008), publicado em 1978, obra que inaugurou

sistematicamente a crítica pós-colonialista como a definimos hoje. Sua crítica

direciona-se aos orientalistas, responsáveis por cristalizarem o discurso colonial

da supremacia ocidental em relação ao oriente. Said (2008, p. 401-402) denuncia

certos dogmas:

Um dos dogmas é a diferença absoluta e sistemática entre o Ocidente, que é racional, desenvolvido, humanitário, superior, e o Oriente, que é aberrante, não desenvolvido, inferior. Outro dogma é que as abstrações sobre o Oriente, particularmente as baseadas em textos que representam uma civilização oriental „clássica”, são sempre preferíveis a evidências diretas tiradas das modernas realidades orientais. Um terceiro dogma é que o Oriente é eterno, uniforme e incapaz de se definir [...] Um quarto dogma é que o Oriente é no fundo algo a ser temido [...] ou controlado.

A teoria crítica pós-colonialista, observada como um acervo de reflexões

sobre as consequências do processo de colonização das metrópoles sobre suas

colônias, mostra que os dogmas aplicados ao oriente são válidos para qualquer

povo que não seja o europeu. Ao renegar a importância de outras raças e

culturas, por considerarem-nas inferiores, subjugáveis, a ideologia colonial

comporta-se como sendo etnocêntrica. A sua lógica apenas enxerga o outro no

plano da exploração, da matéria-prima para a produtividade dominante. Nesse

sentido, como afirma Fanon (2010), os não ocidentais, isto é, os não europeus,

para os ocidentais ou europeus não são dois grupos humanos, mas duas

espécies diferentes, sendo que a espécie Homem seria uma denominação

somente ao branco por este ser o racional. O não branco pertenceria à classe dos

animais, destituída de consciência e apta ao trabalho físico.

Embora Said tenha sistematizado a crítica pós-colonialista, a posição

pioneira é reservada a Fanon, aluno de outro grande precursor do Pós-

Colonialismo, Aimé Césaire. Fanon é bastante citado por Said (2011), por

diligenciar uma mudança profunda no campo cultural, ao defender que a

independência do colonizado só seria efetiva se saísse do âmbito da

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nacionalidade, da resistência nativa, caracterizada por o colono concordar

ocultamente com a lógica colonial de ser inferior ao colonizador, para atingir a

segunda etapa da descolonização, a libertação, que envolve o processo de

conscientização do nativo. No entanto, a ideia de libertação deriva do pensamento

de seu mestre, conforme assevera Mário de Andrade, ao prefaciar a obra

Discurso sobre o Colonialismo4 (1978), quando diz que Césaire inaugura um

discurso político de libertação do peso colonial, com uma postura de reivindicação

do direito à iniciativa histórica dos subalternos e o direito à personalidade, o que

significa o resgate da história do povo colonizado e o questionamento da história

do colonizador.

A vinculação da cultura ao imperialismo foi observada, também, por

Ashcroft et al. (2010), ao usarem o termo pós-colonialismo para referirem-se à

cultura influenciada pela política colonialista com raízes na tensão do poder do

centro imperial com a sociedade nativa, desde o início da colonização até a

atualidade. Conforme Rama (2001), na empreitada colonial, a cultura do

colonizador não apenas influencia a do colonizado, mas aquela substitui esta,

pois o que ocorre é o transplante da cultura do europeu para as novas terras. O

autor emprega o termo transculturação, em substituição ao nome aculturação, por

acreditar que no sistema de colonização não haja apenas a aquisição de uma

cultura, a união da nativa com a do colonizador, mas uma suplantação cultural,

em que a da metrópole toma o lugar da cultura da colônia. Nesse sentido, a

transculturação deve ser compreendida como uma parcial desaculturação; como

incorporações da cultura externa, como um equilíbrio entre os elementos

sobreviventes da cultura original com os que vêm de fora.

Bhabha (2010, p. 19-27), por sua vez, entende que o espaço da cultura não

deve ser compreendido observando a força dos eixos, ou seja, procurando indicar

qual cultura pesa mais, se a do colonizador ou a do colonizado. A seu ver, não é

pertinente direcionar a atenção somente para os lados, enquanto se despreza o

meio. Para o autor, o local da cultura deve ser o dos interstícios, dos “entre-

lugares”, onde as partes das diferenças se articulam, formando um tecido de

ligação entre comunidades, desmistificando noções de homogeneidade cultural e 4 Obra editada pela primeira vez em 1950, sob a forma de artigo, segundo Mário de Andrade.

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de bipolaridade. Em sua opinião, a cultura tem âncora nos intervalos, nas

fronteiras, mas essas fronteiras não podem ser compreendidas como o espaço da

divisão, e, sim, da reunião, da conexão, da travessia. Como pontes, as fronteiras

permitem o “movimento do específico ao geral” (BHABHA, 2010, p.25), incluem as

minorias na produção da cultura nacional. Assim, o fervor patriótico cede lugar

para uma noção mais transnacional e translacional5 do hibridismo. Pensar

diferente, ou seja, acreditar em uma homogeneidade cultural seria acreditar na

possibilidade de uma morte dos complexos entrelaçamentos históricos; seria

renegar a história dos migrantes pós-coloniais, dos perseguidos por causa de

questões de raça, cor e sexualidade. Para Bhabha (2010, p. 27):

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com „o novo‟ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um „entre-lugar‟ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O „passado-presente‟ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.

Ocupar o espaço fronteiriço é ocupar o além-lugar, sendo que o além não é

o espaço do futuro nem o abandono do passado; ele é o encontro de inícios e

fins; é o presente onde transitam todos os lados, todos os tempos.

Bhabha (2010, p. 63) propõe uma revisão histórica ancorada na noção de

diferença de culturas, ao invés de diversidade cultural:

A diversidade cultural é um objeto epistemológico [...] enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou etnologias comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida em um enquadramento temporal relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo, de intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical da separação de culturas totalizadas que existem

5 Bhabha (2010) acredita em um hibridismo cujo movimento entre as culturas seja negociado

igualmente, estabelecendo conexões internacionais. O autor considera insustentável a ideia de uma homogeneidade cultural diante de um contexto onde cada vez mais grupos minoritários têm reivindicado sua versão histórica.

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intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única.

Um novo olhar para a história por meio do reconhecimento das diferenças

culturais implica assegurar a quebra de uma tradição centrada em um discurso de

unificação das culturas; significa admitir um espaço a mais nas relações sociais –

o terceiro espaço, denominado por Bhabha (2010) - que não é o do Eu nem o do

outro, mas o do intervalo, o dos encontros culturais. A introdução do terceiro

espaço nas definições culturais, incluindo o povo nos enredos históricos, garante

a tradução das identidades em uma perspectiva de temporalidades descontínuas,

seriais, tal qual como Foucault (2000) propusera. Priorizar as diferenças culturais

no cerne das narrativas históricas quer dizer uma adesão aos múltiplos sentidos

discursivos, enquanto se questiona o significado histórico tradicionalmente

imposto pela ideologia colonial. Em outras palavras: ao reconhecer outras

identidades culturais, é permitida a construção de novas interpretações históricas

e, por conseguinte, a desconfiança no discurso unificador do ocidente, como

também pode ocorrer o inverso: da desconfiança desse discurso podem surgir

interpretações diferentes sobre o passado.

A noção de terceiro espaço interpõe o “nós” entre o Eu e o outro. Na obra

Os Filhos da Meia-Noite, do romancista pós-colonial Salman Rushdie (2006), a

defesa desse espaço é feita pelo protagonista. Salim Sinai, o menino pobre criado

por uma família rica e que lidera a Conferência dos Filhos da Meia-Noite, da qual

faz parte seu rival Shiva, aquele de quem Salim rouba a família e o direito da

reverência nacional quando se torna, por erro humano, o primeiro indiano a

nascer na noite da independência da Índia, tem o sonho de unir todos os seus

compatriotas, ricos e pobres, negros e brancos, todos os grupos religiosos e

linguísticos diferentes, com a esperança de resolver os problemas políticos e

econômicos de seu país durante o período de Emergência:

Irmãos e irmãs, [...] Não permitam que isso aconteça! Não deixem que a interminável dualidade de massas e classes, capital e trabalho, eles e nós, se interponha entre nós! Devemos ser [...] um terceiro princípio; devemos ser a força que concilia as alternativas do dilema; porque só se formos diferentes, se formos novos, poderemos concretizar a promessa de nosso nascimento! (RUSHDIE, 2006, p. 339).

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Como sujeito ligado aos dois eixos, à classe dominante e à classe

dominada, Salim representa o lugar dos interstícios, a voz ambígua na narrativa.

Ele não deseja a homogeneização em seu país, mas uma abertura para a

convivência com a diferença. Não obstante, seu projeto político não se concretiza,

porque logo é vencido pela lógica subversiva, sob o comando de Shiva:

Não, menino riquinho. Não existe essa coisa de terceiro princípio. Existem somente dinheiro e pobreza, ter e não ter, direita e esquerda; a única coisa que existe é eu-contra-o-mundo. O mundo não é feito de ideias, menino rico; no mundo não cabem sonhadores e seus sonhos. O mundo, Catarrentinho, são coisas. [...] Menino riquinho, tudo isso é conversa fiada: toda essa história da importância do indivíduo; toda essa possibilidade de humanismo (RUSHDIE, 2006, p. 340).

Shiva não crê no terceiro espaço. Para ele o mundo é apenas oposição,

uma cruel realidade, onde não existe lugar para os sonhos, só para as coisas.

Para Shiva, o subalterno só sai de sua condição pelo revide; um acordo entre os

opostos não passa de um discurso enganoso. A divergência de ideias na

Conferência dos Filhos da Meia-Noite resultou na desintegração do grupo.

Em Bhabha (2010), contudo, o terceiro espaço não deve ser entendido

apenas como uma ponte que une ricos e pobres, “direita” e “esquerda”; ele é mais

interpretado como o lugar do contato entre as culturas. Assim, o terceiro espaço é

o local do hibridismo cultural, e, não, do multiculturalismo cujo princípio é a

homogeneização das diversas culturas; é o lugar da negociação entre as

diferentes culturas, cada qual com sua carga de significação histórica; ele

substitui o espaço da negação. A negociação permite a articulação de elementos

opostos e quebra as polaridades negativas na História, as visões essencialistas

em torno dos objetos da crítica. O que emerge desse lugar são perspectivas de

organização histórica cujos interesses comunitários podem ser politicamente

discutidos com a voz de todos os contingentes sociais. No entanto, o crítico pós-

colonial afirma que, até então, o ato de negociação, ainda, está no plano das

interrogações, ao duvidar da existência de uma real vontade política para o

diálogo entre os elementos antagônicos. Bhabha (2010, p.167) insiste em um

acordo entre as diferenças culturais, no deslocamento do símbolo ao signo6:

6 Bhabha (2010) defende que a História não seja concebida como significado, como a verdade

contada pelo poder, mas que ela seja, também, as vozes do subalterno. Em síntese, o autor

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A cultura, como espaço colonial de intervenção e agonismo, como traço de deslocamento de símbolo a signo, pode ser transformada pelo desejo parcial e imprevisível do hibridismo [...] A exposição do hibridismo [...] aterroriza a autoridade como o ardil do reconhecimento, sua imitação, seu arremedo.

O hibridismo desafia a noção de símbolo nas relações coloniais para

considerar o signo cultural, ao enfraquecer o objetivo dos colonizadores de atribuir

apenas um significado à História, o seu significado, a sua versão sobre o mundo,

em favor de narrativas múltiplas que incluam o povo, também, como protagonistas

históricos:

O povo consiste também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redimida como um processo reprodutivo (BHABHA, 2010, p. 207).

Para o autor supracitado, o povo não representa o início ou o fim da

história nacional; ele situa-se no intervalo. Essa compreensão de que o povo é

constituído nos entre-lugares significa que ele emerge na articulação agonística

entre o pedagógico e o performático, interpretação derivada do pensamento de

Kristeva, quando trata da constituição do sujeito na perspectiva das disjunções

culturais. Nessa articulação, há perdas de identidades, e os sujeitos nacionais

são vistos como uma massa heterogênea, como uma nação híbrida. Contudo,

consoante Bhabha (2010), a autoridade cultural insiste em ver o povo como uma

abordagem pedagógica, formando um todo homogêneo e alienado, mais como

uma temporalidade do passado, intricado na sua eterna autogeração. Como

objeto performático, o povo não é um signo apenas do passado, mas também do

presente, tramitando os interstícios culturais. Ao defender a ideia de povo,

derivada da relação entre o pedagógico e o performático, o autor defende o

pensamento de Althusser de que o espaço não tem lugares e o tempo não tem

duração, ao passo que critica a ideia de Bakthin (2011) de fixidez temporal

registrada pelo espaço, obtida a partir das leituras dos romances de Goethe.

defende um conceito de história enquanto signo, onde é possível a negociação cultural e a pluralidade de sentidos como defende Bakhtin (2002).

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Fanon (1983) afirma que os povos foram separados epidermicamente pela

ideologia ocidental como brancos/negros, transmitindo, assim, um pensamento de

estabilidade racial, o qual insere o sujeito na visão pedagógica. Mas o psicanalista

defende que o povo reside em uma zona de instabilidade oculta, de

indecidibilidade cultural, e, não, simplesmente, na reificação de discursos

arcaicos, a saber, acredita que os sujeitos nacionais são uma construção

performática. Assim, o povo emerge de um desejo de reconhecimento da

presença cultural e, sob esse prisma, tal desejo representa a negação de um

tempo presente culturalmente conluiado. A preocupação de Fanon (1967),

portanto, é com os perigos da “calcificação de culturas coloniais”, ou seja, com os

riscos de estas quererem homogeneizar a História do presente (cf. BHABHA,

2010, p. 29). O papel da crítica pós-colonialista diante da História é, pois,

responsabilizar-se pelos passados ocultos, organizar o que está fora de controle;

é, como diz Foucault (2009), questionar as conclusões históricas verdadeiras, por

acreditar que elas também podem ser falsas, haja vista elas serem sempre

profecias dos próprios ocidentais.

Parry, transcrito por Bonnici (2000, p. 10), compreende a crítica pós-

colonialista

como uma abordagem alternativa para compreender o imperialismo e suas influências como um fenômeno mundial e, em menor grau, como um fenômeno localizado. Essa abordagem envolve: um constante questionamento sobre as relações entre a cultura e o imperialismo para a compreensão da política e da cultura na era da descolonização; o autoquestionamento do crítico, porque solapa as próprias estruturas do saber, ou seja, a teoria literária, a antropologia, a geografia eurocêntricas; engajamento do crítico, porque sua preocupação deve girar em torno da criação de um contexto favorável aos marginalizados e aos oprimidos, para a recuperação da sua história, da sua voz, e para a abertura das discussões acadêmicas para todos; uma desconfiança sobre a possível institucionalização da disciplina e sua apropriação pela crítica ocidental, neutralizando a sua mensagem de resistência.

O objetivo da crítica pós-colonialista é, desse modo, desvendar a astúcia

ocidental perante a ingenuidade primitiva em uma época de questionamentos

sobre as relações de poder entre metrópole e colônia, estabelecidas no período

colonial. De acordo com MacClintock (1994, p. 292),

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A teoria pós-colonial tem procurado desafiar a grande marcha do historicismo do ocidente com sua carga de binarismos (eu-outro, metrópole-colônia, centro-periferia, etc.), o termo „pós-colonialismo‟ todavia reorienta o globo uma vez mais em torno de uma única oposição binária: colonial, pós-colonial

7.

Assim, no contexto colonial, os termos “eu”, “metrópole”, “centro” definem o

colonizador e os termos “outro”, “colônia”, “periferia” definem o colonizado, de

modo que a imagem do primeiro é imposta de maneira superior em relação a do

segundo. Esse fenômeno caracteriza, de maneira crucial, a política imperial

europeia. Nesse sentido, o compromisso da crítica é recuperar a memória nativa,

desafiar as estruturas coloniais, e submetê-las a uma revisão analítica em torno

da formação discursiva colonialista. Conforme Bhabha (2010, p. 236),

O espaço pós-colonial é agora “suplementar” ao centro metropolitano; ele se encontra em uma relação subalterna, adjunta, que não engrandece a presença do Ocidente, mas redesenha seus limites na fronteira ameaçadora, agonística, da diferença cultural que de fato nunca soma, permanecendo sempre menos que uma nação e dupla.

Em síntese, para o autor supracitado, a crítica pós-colonialista testemunha

as irregularidades na História, os discursos ideológicos, as verdades fabricadas

em torno dos conceitos de nação, raça, povo, comunidade. Ela tem por objetivo

investigar as patologias sociais e elucidar sentidos conjurados pela força

coercitiva do colonizador. O projeto pós-colonialista visa a rasurar as políticas de

oposição binária, pois pretende reescrever a História no espaço da negociação,

onde todos os contingentes sociais possam ter direito à voz própria,

compensando, assim, uma amputação secular de sua linguagem. O pós-

colonialismo acredita no tempo performático, ou seja, no tempo dos sentidos, e

não, no tempo pedagógico, do significado; crê em uma experiência histórica

vivenciada nos interstícios entre colonizador e colonizado; confia em uma verdade

interina sobre os passados nacionais; espera uma revisão sócio-cultural, baseada

em noções de hibridismo, de raça e de sexualidade; deseja um presente com

valor de signo em vez de símbolo; sonha com um acordo humano.

7 Tradução da Profª. Drª. Daise Lílian Fonseca Dias da Universidade Federal de Campina Grande

(UFCG), exclusivamente para a sua Tese de Doutorado (2011).

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Os principais teóricos do pós-colonialismo são escritores negros, povos de

ex-colônias e mulheres que lutam contra a supremacia europeia e patriarcal. Essa

luta, iniciada no início do século XX, consiste, especialmente, na crítica às

ideologias imperial e falocêntrica, difundidas em textos literários do cânone

ocidental, por meio de releituras e reescritas de obras literárias que enfatizam a

soberania colonial, através da degradação da cultura nativa, especificamente pela

aniquilação dos idiomas e das crenças.

1.2 Decifrando as elipses do colonialismo/imperialismo

Uma versão colonialista da história da humanidade é a narrativa das

relações coloniais sistematizadas a partir do final do século XV e início do XVI

quando Portugal, Holanda e Espanha disputavam o Atlântico, relações

intensificadas no século XIX, época em que as potências sofrem a grande

concorrência dos impérios francês e britânico, sobretudo, deste último. O enredo,

contado pelo ocidental, mostra o sucesso da empreitada europeia nos Novos

Mundos, suas conquistas e esforços para civilizar os nativos. Não faltam, no fio

narrativo, heróis brancos cristãos preocupados em salvar a nova gente por meio

da doação cultural e religiosa. Ao colonizado, o europeu instituiu o complexo de

“inferioridade”, do “medo”, do “desespero”, do “servilismo”, do “irracional”, do

“depravado”, do “infantil”, garantindo para si a imagem do “virtuoso”, do “maduro”,

“normal”, do “racional”, daquele que sabe pensar, que sabe o que é bom para os

outros. Assim, o mundo tornou-se uma construção do ocidente (cf. SAID, 2008).

Mas a história das conquistas marítimas, dos grandes feitos heroicos é

questionada por Foucault (2000). Sob a orientação nietzcheana de Nova História,

o filósofo diz que a história da história é a dos acidentes, da dispersão, dos

acontecimentos casuais, das mentiras – não o desenvolvimento grandioso da

verdade ou a completa encarnação da verdade. A Nova História é a história que

renega a verdade dos documentos, a periodização das revoluções, as evidências.

Trata-se da história que desmonta o passado e se empenha em descrevê-lo em

sua materialidade, analisando não a totalidade, mas as rupturas, as práticas

descontínuas em diferentes tipos de duração: longa, média ou curta. É a história

da dispersão temporal, da descrença na ideia de evolução, dos sonos

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tranquilizados, dos lugares em repouso, onde os sujeitos se constroem a partir de

suas práticas discursivas. A nova proposta de narrativa mundial envolve a história

dos sujeitos minoritários, descrita em forma de acontecimento, de história serial,

não evidente, silenciada; aquela dos sujeitos que lutam pelos direitos de

cidadania como os negros, as mulheres, os homossexuais; trata-se da história

dos sujeitos preocupados com a construção de identidades sociais.

No entanto, Foucault (2000) recebe críticas de Said (2011), por este

acreditar que o poder está em toda parte, e, não, em uma microfísica local, como

pensa aquele, o que gera a desilusão com a política de libertação. Mas o crítico

palestino concorda com o historiador quando acredita que a História é cheia de

elipses e ostentada por heroísmo. A seu ver, o europeu autofabrica uma imagem

de supersujeito, por levar o progresso e a modernização aos territórios vazios,

sendo que “O vazio é a premissa do europeu para ocupar a terra que, do seu

ponto de vista, lhe pertence, para subjugá-la, fazendo-a produzir para seu

enriquecimento” (cf. BONNICI, 2000, p, 69). Esse vazio é, portanto, o espaço

estratégico para fins capitalistas.

Para Bhabha (2010, p. 173-174), o vazio é identificado como o olhar

escópico da autoridade, referente à sua política de vigilância. Isso porque o

colonizador tem o prazer em visualizar, em fabricar a imagem do outro,

entendendo esta como um acessório da realidade, como uma ilusão do real. O

olho do europeu preenche esse vazio com estereótipos, com a repetição do que

está sempre “no lugar”, intocável, que é a sua verdade histórica. Assim, o

colonizador tem um olho metonímico: primeiro, porque, enquanto parte, toma o

lugar do todo, ou seja, representando o ocidente, toma o lugar do mundo;

segundo, porque ele inferioriza todas as outras raças enquanto valoriza a sua.

Diante do olhar metonímico do europeu, o colonizado só tem voz por meio de

procuração. Nesses termos, a imagem produzida pela pulsão escópica do

colonizador acerca do colonizado é de uma massa degenerada, inferior, imagem

que assegura a conquista e o estabelecimento de sistemas de administração e

instrução. Por essa visão, o colonizado é enfatizado temporalmente pela cópula

“é” para destacar a ideia do “sempre” subalterno (cf. BHABHA, 2010, p. 112). Ele

é objetificado pelo discurso do europeu quando este afirma que o conhece (cf.

BHABHA, 2010, p. 128).

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Ao reconhecer-se como supersujeito, o europeu considera-se o centro e

tudo aquilo que ele desconhece, considera outro, diferente, objeto. Assim, ele

constrói a relação binária ser/outro, colocando os participantes do processo de

colonização em uma escala hierárquica, cuja superioridade do colonizador é

reforçada pelo uso da força e pela posse da cultura. A relação ser/outro associa-

se à fabricação do conceito polarizador nós/eles cujo primeiro item designa o

colonizador, e o segundo, o colonizado. Ao chamar o nativo de “eles”, o europeu

criou a imagem do “outro”, da alteridade, da falta do “eu”, do sujeito objetificado,

sem identidade, e, com isso, colocou-o na posição de subalterno, de dependente

do sistema eurocêntrico. Desse modo, o colonizador espalhou o estigma da

inferioridade cultural e do racismo ao tempo que impregnou o discurso de

superioridade do homem branco, civilizado e cristão (cf. BONNICI, 2005a).

Outra equação desonesta da política colonial envolve o cristianismo-

paganismo para equivaler, respectivamente, à civilização e à selvageria, o que

descarta a possibilidade de contato humano entre civilizações no processo de

colonização, restando apenas relações de dominação e submissão. Césaire

(1978, p. 14-15), ao criticar as equações coloniais, acusa a civilização ocidental

de destruir nações, culturas e religiões e profere um discurso anticolonial contra o

empreendimento ocidental:

O que é, no seu princípio, a colonização? Concordemos no que ela não é; nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tirania, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito; admitamos, uma vez por toda, sem vontade de fugir às conseqüências, que o gesto decisivo, aqui, é o do aventureiro e do pirata, do comerciante e do amador, do pesquisador de ouro e do mercador, do apetite e da força, tendo por detrás a sombra projetada, maléfica, de uma forma de civilização que a dado momento da sua história se vê obrigada, internamente, a alargar à escala mundial a concorrência das suas economias antagônicas.

Nota-se na passagem supracitada o desmascaramento da ideologia

colonialista. Mário de Andrade, ao prefaciar Césaire (1978, p. 6), diz que este foi

talentoso por “pulverizar a falaciosa argumentação dos grandes pontífices do

saber „universal‟”. O poeta e crítico brasileiro tece elogios ao Discurso sobre o

Colonialismo, por ser um texto que prega o discurso de libertação dos povos

saqueados pela História, ao revelar e desmascarar o racismo nos mais variados

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domínios culturais, como a literatura, a política, a etnologia e a filosofia. Ao

comentar o livro, Mário de Andrade insere o pensamento de Sartre (1967) sobre a

prática colonialista, observada como portadora de racismo, sendo, portanto, um

genocídio cultural, mais que uma simples conquista. Mas ele mesmo, também,

assume uma postura anticolonialista, ao definir o colonialismo como um

empreendimento etnocidário.

A importância de Césaire (1978, p. 23-24) deve-se à sua crítica incisiva à

colonização por desumanizar, ao destruir cidades, religiões, costumes, por

coisificar os nativos pela força, brutalidade, crueldade, sadismo, choque:

A colonização desumaniza [...] mesmo o homem mais civilizado; [...] a ação colonial, a empresa colonial, fundada sobre o desprezo pelo homem indígena e justificada por esse desprezo, tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende; [...] o colonizador, para sedar boa consciência se habitua a ver no outro o animal, se exercita a tratá-lo como animal, tende objetivamente a transformar-se, ele próprio, em animal.

O regime colonial, para Césaire (1978), configura-se, assim, em uma

distância entre civilização e colonização, devido a ele acreditar que ao se pensar

em colonização seja impossível concluir dela um valor humano resultante de

experiências entre colonizado e colonizador. Para ele, colonizar é uma prática

impune por ser uma rapinagem, já que objetiva fazer “rapinas de produtos [...] de

matérias-primas” (p. 26). Mas sua “única consolação é que as colonizações

passam, as nações dormitam apenas um momento e os povos ficam” (p. 27). Os

povos ficam para contar suas histórias; eles conseguem resistir ao peso colonial,

à “bota da Europa” (p.28); os colonizados recusam a europeização e sonham com

a reconstrução nacional.

A questão de valor humano, discutida por Césaire (1978), é desenvolvida

por Said (2008) quando, também, questiona os princípios morais do ocidente,

baseados na noção de liberdade, de humanismo. Para o crítico palestino, tais

princípios não passam de abstrações, já que na prática a política ocidental

argumenta a superioridade de sua cultura enquanto enxerga as demais culturas

com desprezo e descaso. Mas para isso,

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O método apropriado de governar não é impor-lhe medidas ultracientíficas ou forçá-lo fisicamente a aceitar a lógica. É antes compreender as suas limitações e “empenhar-se para encontrar, no contentamento da raça subjugada, um laço mais digno, e talvez se possa esperar, mais forte de união entre os governantes e governados” (SAID, 2008, p. 68).

O método do europeu não é espantar, ameaçar; consiste em especular,

primeiramente, a cultura do outro, conhecê-la, demonstrar-lhe valor para depois

fazer a “rapina”. No entanto, tudo de forma civilizada, de modo que os governados

acreditem nas boas intenções do governante. De posse do método, o ocidente vai

definindo as raças subjugadas como “eles” em oposição ao “nós”, os europeus.

Contudo, vale salientar que a aplicação desse método dependia de onde e como

se dava a recepção do colonizador na terra estrangeira. Na obra O Mundo se

Despedaça do escritor pós-colonial nigeriano Chinua Achebe (2009), podemos

verificar modos diferentes de colonizar os territórios africanos. Em Abame, por

exemplo, em um dia em que todo o clã estava reunido no mercado da aldeia,

todos os habitantes foram exterminados por estes não terem aceitado a presença

do primeiro homem branco lá, dando-lhe logo fim à sua vida. Após o

esvaziamento do local, os colonizadores partiram para outras comunidades, uma

delas foi Mbanta, onde o processo de colonização começou de forma pacífica,

com a ação de missionários divulgando sua religião ao povo africano. Só quando

a aldeia tomou consciência da grande ameaça do projeto colonialista inglês de

introduzir suas crenças, de ofertar educação e impor sua forma de governo e

passou a revoltar-se contra ele, a força colonizadora foi implantada naquela

comunidade. Dessa experiência, concluímos que nem sempre a pacificação

funcionou, restando, senão a força violenta do europeu.

Consoante Césaire (1987), a colonização sempre se efetuou sobre o signo

da violência. De forma mais amena, o projeto colonial também é visto de uma

forma negativa por Leroy-Beauieu, ao dizer que a colonização consiste na

reprodução de poder, cuja ampliação pelo espaço envolve a sujeição da cultura

colonial à linguagem, aos costumes, às ideias e às leis metropolitanas (cf. SAID,

2008, p. 297). Assim, a política colonialista define-se como despótica, por seu

regime configurar-se no governo de um administrador de fora em terras alheias. A

seu ver, o europeu age como um déspota, e sua civilidade é dissimulada, devido

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a ele fingir preocupação em ajudar o autóctone, quando sua real intenção é matá-

lo por meio da exterminação de sua cultura, de seus valores e crenças, ou no

caso mais extremo, chaciná-los. Sob esse prisma, o empreendimento colonial é

anticoletivo; ele desqualifica pressupostos de unidade cultural, racial,

administrativa, etc. (cf. BHABHA, 2010, p.161).

O colonialismo geográfico só foi possível graças ao colonialismo cultural,

que se empenha em manipular narrativas e impedir o acaso de outras que não se

inscrevem no horizonte de certos jogos de poder e saber. Esses jogos

caracterizam-se como disciplinados, regidos por normas e para que alguém possa

fazer parte deles é preciso entrar em uma ordem discursiva, atender a certas

exigências. Assim, os sujeitos que falam são selecionados e os seus discursos só

são assumidos, só são considerados verdadeiros se satisfizerem aos desejos

daqueles que detêm o poder (cf. SAID, 2008; FOUCAULT, 2009). O autor é

definido por uma localização e formação estratégica:

localização estratégica [...] é um modo de descrever a posição do autor num texto em relação ao material oriental sobre o qual escreve, e formação estratégica [...] é um modo de analisar a relação entre os textos e o modo como grupos de textos, até gêneros textuais, adquirem massa, densidade e poder referencial entre si mesmos e a partir daí na cultura geral (SAID, 2008, p.50).

Embora se referindo à posição do orientalista em relação ao ocidente, Said

(2008) declara a importância de compreender as estratégias imperialistas,

propondo localizar o autor diante de sua obra, de saber de onde ele fala e como

seu discurso relaciona-se com outras formas discursivas ao instituir-se

culturalmente. Sua preocupação é alertar os leitores para a cumplicidade de

autores com a ideologia colonialista.

Seguindo essa linha de pensamento, a principal forma de controle de

narrativas configura-se no domínio cultural, no poder sobre meios de

comunicação, especialmente, sobre a literatura. Compreendemos que, embora os

escritores não sejam passivos à ideologia, à classe ou à história econômica, estão

intimamente relacionados a esses fatores e suas experiências coletivas. Sendo

assim, a cultura, enquanto “artes de descrição, comunicação e representação, [...]

têm relativa autonomia presente os campos econômico, social e político” (SAID,

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2011, p. 10). Suas formas estéticas estão repletas de palavras e termos ligados à

política imperial tais como “raças servis”, “raças inferiores”, “povos subordinados”,

“dependência”, “expansão”, “autoridade” (cf. SAID, 2011, p.43). No entanto,

textos literários também podem ser fontes de crítica à ideologia imperialista,

sendo essa escolha lexical uma alternativa para denunciar as práticas coloniais,

como é o caso de Jane Eyre (2008).

A logística ocidental descrita, aqui, pela crítica pós-colonialista aponta um

grande perigo proveniente da política imperial, relacionado ao contato dos

humanos com a cultura canônica. Enquanto principal instrumento de

disseminação da ideologia imperialista, o mundo corre o risco de ser contaminado

por preconceitos de raça, cor e gênero, através de leituras dos grandes nomes da

literatura mundial. O maior risco consiste em os povos de ex-colônias assimilarem

o complexo de inferioridade, achando que sua cultura, seu idioma, seus costumes

e suas crenças sejam menos importantes ou sem importância alguma

comparados aos elementos de fora. Assim, a preocupação de muitos críticos pós-

coloniais, agora, é mais com o imperialismo cultural, por ele ser um grande

sistema mantido pela propagação de narrativas protagonizadas pelos

supersujeitos ocidentais. Thiongo‟o, et al. (2001) expressaram essa preocupação

no artigo “A Abolição do Departamento de Inglês” com a proposta de abolir o

Departamento de Inglês da Universidade de Nairobi e substituí-lo pelo

Departamento de Literatura e Línguas Africanas. Os escritores entendem que o

conhecimento da cultura nacional seja prioridade na educação de seu povo, uma

forma de valorizar seus costumes, suas crenças, suas tradições orais, suas

religiões, suas línguas. A ideia de mudar o currículo da universidade foi uma

atitude consciente de evitar a colonização africana por meio da cultura, já que

esta era usada como veículo para a propagação das ideologias eurocêntricas.

Para os escritores, focar o ensino, primeiramente em literaturas escritas em

inglês, francês e português, significava perpetuar a hegemonia ocidental, fazer a

África apenas uma extensão da Europa. A proposta, portanto, era de ensinar as

literaturas africanas em seus idiomas antes de trabalhar as literaturas

estrangeiras, porque, desse modo, estas poderiam ser questionadas. Nesse

sentido, o imperialismo não passa de uma continuação do colonialismo, já que as

estratégias de dominação, na essência, são as mesmas. Em virtude disso, neste

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trabalho, serão empregadas do ponto de vista de suas semelhanças, a saber,

como termos para referirem-se à política de dominação ocidental sobre o mundo.

1.3 Do silêncio e do subalterno

Em sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de

dezembro de 1970, intitulada A Ordem do Discurso, Foucault (2009) insere as

práticas discursivas na ordem das leis. O discurso tanto é controlado, quanto

controla poderes e saberes, através de suportes institucionais como as

sociedades de sábios, os educadores, as bibliotecas, dentre outros. Ele é regido

por uma grande maquinaria que determina o que pode ou não ser dito e quem

está apto a dizê-lo. Só entra na ordem discursiva aquele que concorda com certas

exigências e sabe em quais zonas pode penetrar. O discurso é o manifesto dos

nossos desejos, mas é, também, em si objeto do desejo; é a tradução de nossas

lutas, bem como aquilo pelo qual lutamos e queremos ter o poder.

Conforme Foucault (2009), nas produções discursivas, o silêncio é

compreendido como um princípio de exclusão, devido a ser o resultado da

interdição, da palavra proibida, do que não pode circular na sociedade. Ele é a

rejeição do discurso, das verdades escondidas, das sabedorias que não estão

inscritas no “verdadeiro” de uma época. Ao lado da interdição está outro princípio

de exclusão discursiva, o que chamamos de oposição razão/loucura. Assim, tem

voz na sociedade quem tem a razão, entendendo esta como o conjunto de

saberes relacionado ao poder, e não tem voz aquele que é louco, o sujeito cujo

discurso não pode circular na sociedade. O silêncio ainda está associado a mais

um sistema de exclusão no discurso, a oposição verdadeiro/falso, por se pensar

que é silenciado o indivíduo que não diz a verdade, a palavra da lei.

Por esse raciocínio, a linguagem tem o poder de provocar uma separação

social, devido a ela ajustar os locutores em uma hierarquia discursiva, e, por

conseguinte, social. Associando a linguagem às relações coloniais, a posição

inferior é ocupada pelos colonizados enquanto os colonizadores ocupam o

espaço privilegiado. O caso é mais complexo quando a posição inferior é ocupada

por uma mulher da colônia, porque, nessas condições, a pessoa é inferiorizada

duplamente, por questões coloniais e de gênero.

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Ao assumir a posição subalterna, o sujeito colonizado praticamente é

excluído do sistema discursivo, pois sua voz dificilmente ou quase nunca alcança

validade no “verdadeiro” de uma época; assim, ele fica dependente do mundo, já

que é pela linguagem que o possuímos, conforme assevera Fanon (1983, p. 18):

“Um homem que possui a linguagem possui também o mundo que esta linguagem

abrange e que através dela se exprime.” É pela língua que assumimos um

mundo, uma cultura. Falar significa “existir de modo absoluto para o outro”

(FANON, 1983, p. 17); significa ter o poder de exprimir pensamentos usando a

morfologia, a sintaxe própria de nossa cultura; significa, portanto, assumir uma

civilização. Em se tratando dos povos colonizados, sua cultura, seu mundo, suas

crenças, suas ideologias foram relativizados ou ignorados, devido a sua língua ter

sido renegada, e, no caso mais extremo, como aconteceu com os nativos

caribenhos, exterminada, pelo processo de colonização. Assim, eles ficaram

submetidos à política do silenciamento imposta pelo colonizador.

No discurso pós-colonialista, o silenciamento significa fazer calar-se, “Você

fique onde está.” (FANON, 1983, p. 30); representa a situação de rejeição da

alteridade, sendo que, nesse caso, ela pode ser representada tanto pela mulher

quanto pelo homem, vítimas da colonização; simboliza, ainda, a condição do

colonizado que não tem sua voz reconhecida pelo colonizador (cf. CABAÇO;

CHAVES, 2004). Nesse sentido, o silêncio é compreendido como registro da

opressão, da dominação. Em contrapartida, ele também pode ser interpretado

como retórica do oprimido, da resistência. Com uma opinião parcialmente

diferente da de Fanon (1983), Orlandi (2007, p. 29) assevera que o silêncio não

significa o nada da linguagem, ao contrário, ele tem significado próprio, o que

quer dizer que não funciona como complemento da linguagem. Essa ideia está

bem evidente em Os Versos Satânicos, de Rushdie (2010, p. 462), quando

Gibreel Farishta silencia-se no momento da prisão do amigo Saladin Chamcha,

causando neste um sentimento de vingança: “Foi a traição dele na casa de Rosa

Diamond; o seu silêncio, mais nada”. Assim, embora não falando, o silêncio é

significação em uma dada situação discursiva; é o lugar do movimento dos

sentidos, a saber, o silêncio não precisa ser interpretado pela fala, porque ele

próprio significa. Pode-se inferir disso que, pelo silêncio também é possível

assumir uma cultura, um mundo, devido a ele expressar justamente a objeção à

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língua do colonizador, e, de certo modo, a preservação da sua. Diz-se “de certo

modo” porque, embora proibidos de falar seu idioma, este está presente na

memória dos colonizados, e, muitas vezes, em seus diálogos cotidianos,

manifestando a identidade de seu povo.

No entanto, o crítico pós-colonial, Thiong‟o (2011), ressalta a importância

da articulação da língua com a cultura para a posição de um sujeito no mundo.

Para o autor, o sistema linguístico cruza com a cultura e esta, por sua vez,

transporta valores que possibilitam a sedentarização humana no mundo a partir

de seu reconhecimento na sociedade. Entretanto, nas relações coloniais, o

reconhecimento só é possível no limite da passividade, quando o colonizador

determina o local do outro, representando-o, isto é, falando por ele.

Mas pode-se interpretar que a condição livre e moral humana tem sido

própria do colonizador e da lógica logocêntrica, não da alteridade a quem está

vinculada a ausência da palavra. Isso porque o “europeu branco e masculino é

incapaz de fazer o outro reviver, tanto quanto é impossível ao patriarcalismo fazer

a mulher falar” (BONNICI, 2000, p. 150). Consoante Fanon (1983), o ocidente

patriarcal, sustentado pela violência linguística, procura impedir a libertação

cultural dos subalternos, e, por outro lado, estes insistem em desafiar a ordem.

Bonnici (2000) diz que uma das estratégias utilizadas pelo colonizador é reduzir a

linguagem da sujeição ao silêncio e ao binário sim/não, específico da obediência

daquele que aceita a condição efetiva de dominado.

Contudo, muitos críticos pós-coloniais asseveram a possibilidade de o

colonizado sair da condição subalterna. Bhabha (2010) considera possível a

subversão colonial pela sly civility (a cortesia dissimulada) enquanto Fanon (1983)

acha-a oportuna através da violência, pela mesma estratégia do colonizador, uma

atitude muito perigosa, porque só aumenta a discórdia entre nações e inverte o

alvo, não resolvendo o problema em si. De acordo com Ashcroft et al. (2010, p.

37) a insurreição do colonizado pode ser feita pela ab-rogação, pela recusa das

normas da cultura imperial, de sua estética, de seu léxico, sintaxe e significado.

Essa estratégia consiste em efetuar a descolonização negando o idioma europeu,

cujo grande sinal é o silêncio. Em Os Versos Satânicos, podemos observar a ab-

rogação pela atitude do velho sikh, ao ser vítima da violência racial na Inglaterra:

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aquele velho sikh [...] ficou reduzido ao total silêncio por um ataque social; dizia-se que não falava fazia quase sete anos, e antes disso tinha sido um dos poucos juízes de paz “negros” da cidade... mas agora não pronunciava mais nenhuma sentença e só andava acompanhado pela mulher mal-humorada que o tratava com desdesnhosa exasperação: Ah, não ligue para ele, ele não fala nem uma palavra – e ali adiante, um “típico contador” [...] perfeitamente comum, a caminho de casa com a pasta e uma caixa de bombons (RUSHDIE, 2010, p. 308).

Ao reduzir-se ao silêncio, o contador negro pode estar ab-rogando o idioma

do branco e defendendo o seu, ainda que sem falar, pois, desse modo, mantém

intacta a sua língua, e, por conseguinte, a sua cultura. Seu ato não deixa de ser,

portanto, uma defesa de sua raça, de seus costumes, de sua ideologia, de suas

raízes. Outro aspecto linguístico que merece destaque é a inclusão de palavras

alheias à cultura ocidental, como “sikh”. Através da fala da personagem Mishal,

amiga de Chamcha e de origem mulçumana, Rushdie (2010) parece valorizar o

idioma do nativo, mostrando, dessa forma, que a língua do imigrante, bem como a

sua cultura, não estão mortas, causando, assim, um estranhamento no leitor

ocidental.

Por outro lado, o subalterno pode subverter-se, fazendo a apropriação da

língua da metrópole, ao apossar-se dela e reconstituí-la conforme seus interesses

culturais, atendendo, desse modo, às suas circunstâncias históricas (cf.

ASHCROFT; GRIFFITS; TIFFIN, 2010, p. 37). A cultura do colonizador é usada

como instrumento para a expressão da periferia, ao servir para levar ao

colonizado o conhecimento da história deste, de sua literatura, de sua sintaxe. No

entanto, sua posse não nega ser um reforço da ideologia ocidental, sendo, desse

modo, uma estratégia ambígua.

Já Rama (2001) acredita que o subalterno pode sair de sua condição pelo

resgate das culturas regionais, pela recuperação do idioma, da sintaxe do nativo e

de seus valores. Mas Bonnici (2000, p. 137) demonstra-se desiludido quanto à

emancipação do subalterno, ao argumentar: “Se o sujeito colonial é produzido

pela ideologia (Althusser), pelo discurso (Foucault), ou pela linguagem (Lacan),

sua subjetividade é prejudicada e sua resistência não existe mais.” Quando cita

Coetzee (1977), com o pensamento de que não é necessariamente o discurso

que faz o homem humano, e, sim, o discurso dos outros, o crítico brasileiro

parece ratificar a ideia de que a constituição do sujeito pela resistência é

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impossível. Ora, se é pela linguagem que o homem se constitui; se ela está sob o

controle do colonizador, e se este recusa o reconhecimento do colonizado, o

sonho da emancipação do subalterno requer uma inversão na ordem discursiva,

como pensa Foucault (2009).

A escritora feminista e pós-colonial Spivak (2010), ao analisar a condição

do oprimido, postulou que o subalterno não pode falar, mas ser representado, e,

enquanto representação, seus ideais nunca poderão ser defendidos

integralmente, devido aos sujeitos eleitos para falarem por ele não passarem,

muitas vezes, de cúmplices dos interesses internacionais do ocidente. A autora

dirige suas críticas aos intelectuais pós-coloniais que têm se solidarizado com o

capitalismo e falsificado os reais objetivos da classe de quem são procuradores. A

seu ver, até a voz do subalterno ser representada pelo teórico, sua legitimidade

sofre substituição, pois, ao percorrer uma hierarquia que começa das elites locais,

passando para as regionais, depois para as nacionais e, por fim, alcançando as

internacionais, muitos interesses são confrontados. A logística descrita, de base

marxista, mostra que o sujeito representante é um agente individual que faz um

agenciamento coletivo, ou seja, ele se coloca no lugar dos homens comuns, mas

distorcendo os interesses destes. O representante não passa de um “modelo de

dissimulação social” (SPIVAK, 2010, p. 36). Por esse prisma, a escritora indiana

questiona o lugar do investigador pós-colonial e invalida a possibilidade de o

oprimido poder falar. É por essa mesma razão que critica o pensamento de

Foucault (2009) de que o subalterno pode falar por si mesmo, de que ele tem

consciência de sua subalternidade e que essa condição não é fixa, uma vez que

nas relações de poder qualquer um pode ser oprimido ou opressor. Assim, o

subalterno pode expressar seus interesses melhor que os intelectuais. Nesse

ponto, entretanto, Spivak (2010) tem uma ideia parecida com a do historiador

francês, porque descrê na fidelidade dos teóricos com as causas dos minoritários.

Spivak (2010) sugere que o intelectual pós-colonial discuta o sujeito a partir

de uma visão descentralizadora, fazendo com que o problema da subalternidade

seja discutido não só observando a relação de classes, mas também a relação de

gênero. A mudez da mulher no sistema patriarcal não pode ser ignorada enquanto

se discute o problema da falta de voz do colonizado. A preocupação da escritora

indiana não é à toa. Mesmo na ficção podemos perceber como o problema do

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silêncio do colonizado ganha ênfase com relação ao silêncio feminino. Em Weep

Not, Child, de Thiong‟o (2009) e O Mundo se Despedaça, de Achebe (2009), por

exemplo, notamos como a crítica à condição do subalterno colonizado sobrepõe-

se ao silêncio feminino. Enquanto se enaltece a cultura do colonizado, sua

tradição oral, dando voz aos personagens e aos narradores para contar histórias

sobre sua gente, sobre seu passado, com o objetivo de criticar a política

colonialista, os romancistas acabam reproduzindo um discurso patriarcal dessa

cultura quando deixam claro o tratamento opressor em relação à mulher, sob a

forma de violência física e verbal; rebaixamento da coragem e inteligência

femininas; obediência ao chefe da família; falta de poder de decisão, e ausência

de direitos no lar e na sociedade em geral. Assim, o problema do subalterno

apenas em parte é resolvido, isto é, o do homem colonizado, já que o da mulher

colonizada continua; a mulher é duplamente silenciada, tanto pelo patriarcalismo

como pelo colonialismo. Por isso, Spivak (2010) faz um apelo aos escritores pós-

coloniais e pede que eles estudem o sujeito sem partir apenas do centro, mas

também invertendo as relações hierárquicas.

1.4 A releitura canônica e o desconstrucionismo derridiano

Na política colonialista, a cultura literária, muitas vezes, foi um caminho

para levar a ideologia europeia ao mundo, como afirmou Said (2011), ao analisar

o cânone ocidental. Por essa razão, a crítica pós-colonialista dedicou-se a reler e

reescrever grandes obras da literatura. Reler o cânone significa fazer outras

leituras de textos escritos, sobretudo, por colonizadores, significa levantar

contrapontos (cf. BONNICI, 2000, p. 43) visando a questionar, a abalar a

repetição de discursos instituídos na e pela cultura, abrindo espaço para a

polifonia, para o diálogo entre as múltiplas vozes sociais (cf. BAKHTIN, 2011). A

releitura envolve um novo paradigma que desloca o antigo e o problematiza. É

A nova análise [que] desconstrói a normatividade dos dispositivos teóricos anteriores tirando-lhes toda e qualquer autoridade para determinar os horizontes da expectativa futuros (BONNICI; FLORY; PRADO, 2011, p. 123).

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A releitura aponta lacunas na origem e possibilita o “desligamento da literatura

das malhas do poder.” (BONNICI; FLORY; PRADO, 2011, p. 119)

Por sua vez, “A reescrita [...] consiste na apropriação do texto canônico

pelo escritor de alguma ex-colônia europeia, consciente de seu papel de mestre

no contexto pós-colonial” (BONNICI, 2000, p. 42). Na reescrita, normalmente, o

sujeito subalterno, colonizado, tem voz na narrativa, e, muitas vezes, é o narrador

ou protagonista. Ao assumir o poder da linguagem, o autor passa a desconstruir o

enredo do colonizador, mostrando a sua versão no contexto do processo colonial.

Mas para fazer isso, o escritor pós-colonial depende do discurso metropolitano. É

o que Jean Rhys (2009) faz com a personagem Antoinnete, a Bertha Mason de

Jane Eyre, na reescrita Vasto Mar de Sargaços. Nessa obra, Antoinette

confidencia aos leitores de Brontë a sua versão sobre sua loucura, sobre seu

passado omisso na narrativa da escritora inglesa e, assim, acusa o esposo

Rochester por crimes coloniais e de gênero. Outras obras reescritas são A

tempestade, de Shakespeare e Robson Crusoé, de Defoe. A primeira foi

recontada por Robertson Davies com o título Tempest-tost, em 1951, no Canadá

e, ainda, por Marina Wagner, sob o título de Indigo, em 1992, na Inglaterra. A

segunda foi recontada por Coetzee, sob o nome de Foe (cf. BONNICI, 2000).

Ao apropriar-se da cultura do colonizador, o colonizado adere à estratégia

da mímica. Na perspectiva lacaniana, a mímica é uma camuflagem. Enquanto

máscara, ela é um suplemento, e sendo suplemento, indica uma soma que

compensa uma falta camuflada (cf. DERRIDA, 2002 (gramatologia); BHABHA,

2010). A partir das ideias de Lacan, Bhabha (2010, p. 133) argumenta que a

estratégia da mímica, usada pelo subalterno, representa um acordo irônico,

porque, à medida que nega a política do colonizador, o colonizado apropria-se

dela para vingar seu passado colonial, a saber, ao tempo que almeja ocupar o

lugar do senhor, o colonizado carrega consigo o ideal de ter a sua cultura

reconhecida pelo ocidental. Assim, o discurso da mímica é ambivalente, pois

acumula, concomitantemente, a semelhança e a diferença, isto é, ambas dividem

o mesmo espaço na mente dos povos de ex-colônias; suas máscaras passam a

ser uma ameaça aos saberes instituídos pelos poderes disciplinares: “A ameaça

da mímica é sua visão dupla que, ao revelar a ambivalência do discurso colonial,

também desestabiliza sua autoridade.” (BHABHA, 2010, p. 133).

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Para Bhabha (2010, p. 174), a mímica tem seu lugar na interdição.

Portanto, seu terreno não é transparente; aliás, se ela pode ser vista como

transparente é no sentido fotográfico cuja transparência também é um negativo. A

manifestação da mímica se dá de forma implícita, no interior da linguagem. Ela

“marca aqueles momentos de desobediência civil dentro da disciplina da

civilidade: signos de resistência espetacular”. A mímica, muitas vezes, acaba

fortalecendo a reprodução do projeto colonizador, já que é a imitação dela,

tornado-se, assim, perigosa, devido a não visar a uma negociação entre as

partes, mas a um “acerto de contas” entre elas. Disso resulta o que o autor chama

de nonsense colonial, a falta de consenso no campo da cultura, uma

indecidibilidade quanto ao passado e ao presente.

Tanto a releitura como a reescrita são duas estratégias de questionar a

prática colonialista. Entretanto, o que mais nos interessa, aqui, é aprofundar as

discussões sobre releitura, porque este é o nosso objetivo com o romance Jane

Eyre (2008). Nossa proposta fundamenta-se, essencialmente, no método da

desconstrução do pós-estruturalista Jacques Derrida, pelo que é mais conhecido

na filosofia e na literatura.

Argelino, mas com carreira profissional na França, Derrida é grande leitor

de Rousseau, Nietzsche, Sartre, Heidegger e, especialmente, Platão, cujo

pensamento é ponto de partida para sua teoria da desconstrução, amplamente

discutida desde os anos 1970, e com ênfase nos anos 1990, por grupos militantes

ou de estudo envolvidos nas questões pós-coloniais, femininas, raciais, étnicas e

sexuais. A matéria-prima para a elaboração do método desconstrucionista está,

fundamentalmente, no “Fedro” dos Diálogos Socráticos (2008) de Platão, onde

seu mestre Sócrates dialeticamente interage com outro de seus discípulos, Fedro,

acerca do mito do nascimento da Escrita no Egito Antigo, apesar de essa

discussão ser periférica, haja vista ela voltar-se para a temática do amor. A partir

desse estrato textual, Derrida faz uma leitura sobre a filosofia platônica,

identificada com a metafísica da presença, isto é, com o privilégio da presença em

relação a qualquer diferença. O teórico faz essa leitura em “A Farmácia de Platão”

(1981).

A tradição metafísica idealiza uma unidade, uma língua única, uma

performance centralizadora com princípio de fixidez. Ela pauta-se na lógica do

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logocentrismo e falocentrismo, na superioridade do discurso oral e masculino,

enfim, em toda lógica que estabelece a presença como a origem da verdade.

Desse modo, a filosofia platônica institui-se a partir do positivo, negando qualquer

elemento derivante dele, sobretudo, a escrita, que corresponde à não aceitação

da reprodutividade de pensamentos, ao cuidado pela preservação de uma origem

fundada na presença, no ser. No platonismo, só o discurso oral é fiel ao

pensamento, porque a sua manifestação carrega lado a lado significante e

significado: o pai é autor do que diz e advogado de seu dizer. Por sua vez, a

escrita está eternamente condenada à repetição, a matar o pai, já que qualquer

um pode decidir por seu destino, seja para o bem, seja para o mal. Na metafísica,

a escrita não tem função democrática8 (cf. NASCIMENTO, 2004).

No texto “A Farmácia de Platão”, Derrida (1981) discute o problema da

phármakon, ou seja, da ambiguidade da escrita. No diálogo entre Sócrates e

Fedro, a escrita se encontra no pólo negativo, indicando a ausência do pai, o

desprezo pela presença desse pai que está em relação direta com seu

pensamento pelo logos, a saber, pelo discurso oral. Nos diálogos com seu

discípulo, o mestre condena a escrita usando o mesmo argumento do Deus

supremo Tamuz apresentado ao deus menor Thoth no mito egípcio, quando este

leva para apreciação daquele a invenção dos caracteres escritos. Tamuz nega a

escrita, por acreditar que, ao invés de ela servir como remédio para a memória,

como pensa o inventor, ela funciona como seu antídoto, significando, pois,

veneno. A escrita toma o sentido inverso, servindo não para ajudar a memória,

senão para favorecer a recordação, o que se torna um prejuízo para a mente. No

mito, o rei aceita o presente, mas o deprecia, pois ele é uma ameaça à sua

independência. Nesse momento, o rei privilegia o discurso oral. O logos não é o

pai, mas sua origem é seu pai. Ele é um filho que pode ser destruído sem a

presença ou assistência do criador, o único ser que pode responder pelo filho.

De acordo com Derrida (1981), em Sophist, o logos é comparado a um ser

vivo, a um animal: passa por um ciclo; tem organismo, estrutura e constituição,

um corpo próprio. Ele, indubitavelmente, nos leva ao pai, aquele que tem relação

direta com a linguagem. Para Platão, o logos penetra mais facilmente na alma dos

88

Apesar de Platão recusar a importância da escrita para a humanidade, somente nos é possível conhecer o seu pensamento a partir de seus escritos.

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discípulos. Nele, o pai pode atender aos seus sinais, garantindo a natureza do

efeito desejado. O logos está associado à memória, vida, conhecimento e

verdade. Memória e verdade estão imbricadas no discurso oral. O logos também

pode ser remédio ou veneno, contudo o pai está presente para defendê-lo. Na

República, afirma Derrida (1981), o logos é definido pela sequência pai-bem-

principal-origem, etc., por todo termo que se relaciona com a presença.

A escrita é discriminada no platonismo justamente porque indica a

ausência do pai. A partir do Fedro, surgem duas hipóteses em torno da

phármakon: ela é uma filha órfã ou parricida, abandona ou mata o pai, porque ao

se repetir já não é possível reconhecer as suas origens, ela já não é filha de

ninguém. Para Platão, a escrita apenas se repete, sempre significa a mesma

coisa. Ela não nos leva ao conhecimento, uma vez que este só é possível nele

mesmo e por ele mesmo, isto é, pelo logos. No discurso escrito, as palavras estão

envelopadas, sujeitas a serem abertas por qualquer indivíduo, o que coloca em

dúvida a verdade, a moral, e abre o questionamento: ela é própria ou imprópria?

A escrita é rejeitada, considerada secundária, simplesmente, um acessório do

logos. É secundária assim como o discípulo, que deve obediência ao rei e não

tem poder de decisão (cf. DERRIDA, 1981). A escrita é angustiante; seu destino é

incerto. Nenhuma sabedoria a protege da criação dos sentidos. Ela é, ao mesmo

tempo, criatura e pai do logos. A escrita é a ausência de lugar e de escritor. “A

ausência é a permissão dada às letras para se soletrarem e significarem.”

(DERRIDA, 2002, p. 63). A permissão sugere a impossibilidade da origem, do

centro. O centro é o nome de um buraco, o limiar. A escrita é, portanto, um

grande labirinto (cf. DERRIDA, 2002, p. 78-79).

O deus da escrita, Thoth, é considerado o autor da diferença:

Como o deus da segunda linguagem e da diferença linguística, Thoth pode tornar-se o deus da palavra criativa unicamente pela substituição metonímica, pelo deslocamento histórico, e, às vezes, pela subversão violenta

9 (DERRIDA, 1981, p. 89; tradução nossa).

9 “As the god of language second and of linguistic difference, Thoth can become the god of the

creative word only by metonymic substitution, by historical displacement, and sometimes by violent subversion.”

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A escrita aparece como um desafio à superioridade do logos,

manifestando-se, pois, como seu substituto. Ao mesmo tempo em que é a

opositora do elemento presente, por ser a ausência, ela, também, substitui-o,

representa-o, surgindo, então, o movimento subversivo, a infinita permutação de

substitutos. O jogo das substituições faz desaparecer a origem. A repetição do

significante mata o pai. Assim, a escrita é um elemento externo que afeta o

interno, a memória. Ela produz o esquecimento, a alienação das pessoas.

A lógica das substituições mostra o perigo do suplemento. Platão sonha

com uma memória que não precise de nenhum substituto. A seu ver, toda

substituição é venenosa, ao poder provocar o desaparecimento da presença.

Quando o substituto toma o lugar do substituído ele não só preenche uma falta,

mas também adiciona algo. A adição é a diferença: a série de diferenças causará

a morte da origem. Assim, sendo a escrita o suplemento da fala, é acusada de

não garantir a verdade sobre a vida.

Consoante Derrida (1981, p. 136-142), Platão esclarece o problema do

suplemento na República quando trata da origem do leito: Deus é o Pai, o

artesão, o imitador do Pai, e o poeta o imitador do artesão. Nesse jogo de

imitações, a poesia é a imitação de uma imitação. A poesia aqui é o logos. Nesse

caso, a escrita é, então, a imitação da imitação da imitação. Ao imitar, o imitador

pode tornar-se outro ser, que já não é o imitado. A imitação não corresponde a

uma essência. Desse modo, a escrita não mantém a essência da verdade,

alcançada pela fala. Ela transforma o interior em ornamento, o mundo em

cosmético. A escrita é uma droga sem substância.

A ideia de escrita como suplemento da fala, derivada de Rousseau e base

para a teoria da desconstrução derridiana, só é apresentada no final do Fedro

quando Sócrates chama a phármakon de droga, termo que contempla tanto o

sentido de remédio como de veneno. Derrida (1981) interpreta essa substituição

de significante como a indecidibilidade da linguagem, como a lacuna originária. As

duas possibilidades de tradução da phármakon asseguram o caráter ambíguo das

palavras, a relação suplementar entre o par logos/escrita e todos os outros que se

associam a ele pelo critério presença/ausência: vida/morte, pai/filho, rei/servo,

primeiro/segundo, filho legítimo/órfão-bastardo, alma/corpo, interno/externo, etc.

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Pela lógica do suplemento, ambos os elementos são interdependentes, um

elemento só existe porque o outro existe:

A falsidade é a verdade. A ausência é a presença. A différance10

, o desaparecimento de qualquer presença originária, é imediatamente a condição de possibilidade e a condição de impossibilidade da verdade.

11(DERRIDA, 1981, p. 168; tradução nossa).

“Imediatamente”, porque os diferentes termos podem dividir, simultaneamente,

um mesmo espaço sem, necessariamente, serem opositores e hierarquizados.

Assim, Derrida propõe uma releitura do modelo da metafísica da presença

adotado pela filosofia ocidental que se fundamenta em pares opositores cujo

primeiro elemento designa a superioridade, o dado, e o segundo, a inferioridade,

o produto. Essa filosofia assegura uma origem, referendada pelo termo superior.

Para o teórico, essa lógica pode ser invalidada pela releitura da hierarquia. Desse

modo, o autor postula que, da mesma forma que se pode apreender a ausência

pela presença, só se pode apreender esta a partir daquela, ou seja, tanto a

presença quanto a ausência podem ser ora causa, ora efeito. Só se pode

constatar o positivo, porque existe o negativo, e vice-versa. A relação entre os

pares é suplementar (cf. CULLER, 1997). Enquanto suplemento, a escrita não se

define apenas como veneno, mas também como remédio.

Platão seria o autor da ambivalência, ao sugerir que não importa nem o

início nem o fim, onde se começa ou se termina, mas o meio, o terceiro espaço. O

10

A différance aparece como um indecidível ao possibilitar várias traduções em português, como “diferência”, “diferaença”, “diferensa”, “diferança”, dentre outras. A palavra deriva do verbo différer que no francês significa tanto “aguardar, “demorar”, quanto “prorrogar”, acumulando, pois dupla semântica. O problema de tradução da différance está associado à modificação que Derrida fez com o termo différence ao escrevê-lo com “a” e não com “e”, uma diferença gráfica que implicou uma alteração imperceptível na fonologia. Seu objetivo com isso era inverter a ordem metafísica, transferindo a atenção da palavra dada à pronúncia para a escrita, defendendo, assim, a indecidibilidade. Derrida ainda trabalha a différance fazendo uma correlação com o termo temporisation, derivado do verbo do verbo temporiser, que pode ser traduzido como “diferir”, “temporização”, “temporizar”, “protelar”, etc. O autor aproveita a noção de temporização para assinalar sua convergência com a noção de espaçamento que a mudança de sinal gráfico no espaço da palavra différence proporcionou; a de que os diferentes não devem ser necessariamente opositivos e hierarquizados, sendo a différance uma distinção de traços na cadeia de remissões, só possível no intervalo e na distância entre os elementos distintivos. Assim, a indecidibilidade na tradução do termo remete à ideia de que um elemento não existe sem o outro, assim como o espaço e o tempo, que são interdependentes. A différance indica a possibilidade da coexistência dos diferentes em um mesmo espaço, que é o da aporia, da impossibilidade (cf. NASCIMENTO, 2004, p. 54-57). 11

“Nontruth is the truth. Nonpresence is presence. Differance, the disappearance of originary presence, is at once the condition of possibility and the condition of impossibility of truth”.

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meio é o lugar onde “os opositores são opostos, o movimento e o jogo que une

uns aos outros, inverte-os ou faz um trocar de lugar com o outro (alma/corpo,

bem/mal, dentro/fora, memória/esquecimento, fala/escrita, etc.).”12 (DERRIDA,

1981, p. 127; tradução nossa). É nesse jogo ou movimento que as diferenças

aparecem. A presença é reconstituída, e, não, originária. Situar a origem é uma

questão de espaçamento. Esse espaçamento configura-se no lugar das

diferenças, da coexistência da atividade e da passividade, da presença e da

ausência, reserva-se ao interstício, ao local da aporia. O filósofo contempla com o

termo diferença tanto a presença quanto a ausência. Discordando de Saussure,

que via os signos como o produto de um sistema de diferenças definido pela

ausência, Derrida sustenta a ideia de que o que existe em toda parte são

diferenças e vestígios de vestígios (cf. CULLER, 1997).

O terceiro lugar demarca o encontro de duas mãos, o lugar-além:

O além do fechamento do livro não deve ser esperado nem encontrado. Está lá mas além, na repetição mas evitando-a. Está lá como a sombra do livro, o terceiro entre as duas mãos que seguram o livro, a diferencia no agora da escritura, a distância entre o livro e o livro, essa outra mão... (DERRIDA, 2002, p. 81).

O número três indica a junção que é a quebra, o buraco, a elipse. Ele nasce de

um jogo, de substituições infinitas em um campo marcado pela falta, ou seja, por

um centro que impossibilita o jogo das substituições. O terceiro espaço representa

a ausência de origem, o movimento da suplementaridade:

Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir uma falta do lado do significado (DERRIDA, 2002, p. 245).

No mundo dos signos, a relação suplementar se concretiza como um jogo

onde as substituições deslocam o centro. Com a ideia de suplemento, Lévi-

12

“opposites are opposed, the movement and the play that links them among themselves, reverses them among them or makes one side cross over into the other (soul/body, good/evil, inside/outside, memory/forgetfulness, speech/writing, etc.)”.

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Strauss fornece a matéria-prima para o método desconstrucionista de Derrida,

aplicado à análise do Fedro.

A desconstrução derridiana é uma estratégia filosófica voltada para uma

compreensão dialética acerca da metafísica da presença. A estratégia

desconstrucionista visa a reverter a hierarquia, mas entendendo que a reversão é

dinâmica, ela não se afirma, porque ao se afirmar acaba voltando a ser

centralizadora. A proposta de uma substituição no sistema está longe de deslocar

o centro para o lado contraposto. A desconstrução propõe uma reversão e uma

substituição dialética, não se trata de criticar a oposição clássica e defender uma

nova hierarquia cujo excluído possui a verdade. O desconstrucionista não

abandona os conceitos tradicionais, ele os aproveita para confrontá-los com os

conceitos ascendentes daqueles que foram prejudicados pelo discurso

hegemônico. Pela desconstrução, é possível minar uma filosofia secular,

questionando-a e abrindo espaço para as diferenças. Essa estratégia possibilita

interpretar objetos pela lógica da contiguidade e da simultaneidade, ao invés da

oposição e da sucessividade; eles podem ser trabalhados como partes

interdependentes, ao mesmo tempo, presença e ausência, causa e efeito, centro

e periferia, eu e outro. Nessa lógica, qualquer um pode ocupar a posição superior

ou inferior, e a origem, o lugar desejado, não é mais originária, ela passa a ser, na

verdade, uma função (cf. DERRIDA, 2002, p. 232).

Derrida (2002) desenvolve sua teoria desconstrucionista servindo-se de

quiasmas, de indecidíveis e do princípio suplementar. Desconstruir significa

interferir na herança platônica e repensá-la, significa abalar discursos metafísicos,

questionando-os. A desconstrução sugere o olhar duplo, que é o da

indecidibilidade, da aporia. Ela concebe as coisas no descentramento, no limite,

nos entre-lugares. O descentramento significa a possibilidade de pensar o ser sob

a perspectiva de um jogo. Não se trata exatamente de inverter a ordem na escala

hierárquica, porque, ao fazer isso, sempre se teria um centro, mudava-se apenas

a posição dos sujeitos. O jogo, então, não seria da inversão, mas da repetição, de

substituições infinitas dentro de um campo limitado que impossibilitaria a

determinação de um centro, de uma origem. Na lógica derridiana, um signo, ao

substituir outro não esgota a sua totalização, ele o supre, é um suplemento. A

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condição suplementar não indica um acréscimo que pode se dispensar; significa

uma soma que complementa uma falta do lado do significado.

O desconstrucionista trabalha com a différance, que só pode ser entendida

na unidade espaço-tempo, ideia consoante a Bakhtin (2011), especificamente do

livro Estética da Criação Verbal, onde diz que a história deve ser compreendida a

partir dessa unidade. Para Derrida, os diferentes não são opositores, mas

suplementos, um elemento depende do outro para existir. A presença é tão

importante quanto a ausência para a existência das partes. A diferença se

constitui na cadeia de remissões. Nesse sentido, a desconstrução é a

possibilidade do advento do outro e da diferença no discurso metafísico pelo

recurso da indecidibilidade, que marca o limite do discurso platônico (cf.

NASCIMENTO, 2004).

Para Derrida (2002), há duas formas de compreender o ser: uma que

deseja definir-lhe um centro, uma origem, uma verdade, e outra que procura

compreendê-lo no jogo das substituições, na noção de suplemento, em um

sistema de diferenças e de movimento de uma cadeia. Para o teórico, são duas

interpretações que precisam ser consideradas no plano da metafísica, nenhuma

deve ser desprezada, porque estamos em uma região de indecidibilidade. Sua

proposta é de levar em conta o terceiro espaço, a elipse, ou seja, considerar o

lugar da quebra, onde se forma o buraco e de onde nasce a diferença. Esse

espaço se trata da junção das duas interpretações.

Nosso objetivo, aqui, com a obra Jane Eyre (2008) é justamente seguir o

pensamento desconstrucionista derridiano: levar em consideração duas

interpretações, a colonialista e a pós-colonialista, ao analisar a loucura e o

silêncio de Bertha Mason, mas sem fazer escolha em um campo tão múltiplo

como é o da literatura. Pela junção das duas interpretações chegaremos a uma

terceira, a do entre-lugar, da aporia, do terceiro espaço, ou seja, nenhuma leitura

será excluída. A análise, ainda, contemplará a questão do discurso e do poder, ao

tratar da construção da identidade da personagem louca, a partir das vozes dos

personagens, principalmente, da de seu esposo, e da narradora. Assim, nossa

proposta é analisar o silêncio de Bertha Mason e o silêncio sobre ela no romance

pela lógica da desconstrução e pela relação discurso e poder.

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2 CAPÍTULO II: SOBRE QUESTÕES DE RAÇA EM JANE EYRE

2.1 A construção da identidade de Bertha Mason pelo discurso europeu

O romance Jane Eyre (2008), editado pela primeira vez em 1847 e

assinado por Currer Bell, um pseudônimo criado pela autora Charlotte Brontë

(1816-1855), surge em um contexto em que a ideologia europeia de supremacia

racial e de classe justificam projetos de colonialismo/imperialismo geográfico,

cultural, religioso, e, sobretudo, econômico (cf. MEYER, 1996). A Inglaterra vive

sob o reinado da Rainha Vitória e é considerada o maior império do mundo,

chegando a ser chamado de “o império onde o sol nunca se põe”, já que em

qualquer hora do dia o sol brilharia em uma colônia inglesa. A incorporação de

valores humanos em territórios ingleses baseia-se na crença da superioridade

biológica do branco sobre as outras raças, consideradas inferiores, da metrópole

sobre a colônia, do cristianismo sobre outras crenças religiosas, da evolução

técnica e científica em relação ao atraso tecnológico de outros povos e países,

sendo garantida pela educação vitoriana, que, por sua vez, está fincada na teia do

capitalismo cujo código de conduta social fundamenta-se nos ideais de

pontualidade, sobriedade e sofisticação (cf. SILVA, 2005). A presença da

ideologia patriarcal ainda está atrelada à imperial, apesar de o momento ser de

conquista de espaço social feminino.

Sendo mulher, Charlotte Brontë enfrentou preconceitos de gênero, como se

verifica pela opção de um pseudônimo para ter esse romance editado assim como

The Professor e Villette. Suas irmãs Emily (1818-1848), autora de The Wuthering

Heights, e Anne (1820-1848), autora de Agnes Grey que não obtivera muito

sucesso comparado ao das irmãs, também usaram do mesmo procedimento: a

primeira publicou suas obras sob o pseudônimo Ellis Bell e a segunda, sob o

pseudônimo Acton Bell. As irmãs, provavelmente, herdaram a paixão pela

literatura do pai, o Reverendo Patrick Brontë, que era poeta. Mas a empregada

Thabitha, carinhosamente chamada de Taby, foi outra pessoa que ajudou

Charlote Brontë a desenvolver sua imaginação, ao contar histórias sobre “guerras

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da Inglaterra na África para conquistar não sabiam bem o quê.” (ABRIL

CULTURAL, 1971, p.72).

Com base nos enredos de Taby e nos relatos do pai que ouvia em jornais,

a autora começa a imaginar a história de Jane Eyre, a partir de uma brincadeira

com soldados de madeira, presente que o irmão Branwell recebera do pai um dia,

quando este retornara de uma viagem a Leeds. Na brincadeira, Charlotte e as

irmãs batizaram os soldados e incumbiram-lhe missões imperialistas; imaginaram

lutas empreendidas pelo exército britânico na África, onde ampliaria seu mercado

de consumo e adquiriria mais fontes de matéria-prima (cf. ABRIL CULTURAl,

1971, p.72). Assim, Charlotte Brontë decide demonstrar seu conhecimento

geopolítico e seu engajamento com conflitos raciais e de gênero e com a história

imperialista exercendo sua imaginação, ou seja, escrevendo. Por essa razão, a

maioria de suas heroínas, incluindo Jane Eyre, é criada vivenciando a experiência

da força do imperialismo britânico (cf. MEYER, 1996, p. 60-61).

O enredo de Jane Eyre (2008) concentra-se na história da personagem que

dá nome ao romance que ela mesma conta, focado em seu processo de

formação. A narrativa inicia-se em Gateshead, na casa do único irmão da mãe de

Jane Eyre, o senhor Reed, que a adota quando fica órfã. Ali, a menina passa a

ser tratada como subalterna, a partir da morte do tio, pela viúva Reed e por seus

três filhos: Elisa, Georgiana e John Reed, a pessoa a mais humilhá-la na casa.

Nesse espaço, Jane Eyre sofre tortura física e psicológica, por não ter posses,

embora pertencesse a uma família de linhagem aristocrata (sua mãe fica

deserdada pela família, quando decide casar-se com o pai de Jane Eyre, um

religioso pobre, fato ao qual Reed se opôs, e, por isso, a esposa criou antipatia

pela cunhada e, depois, pela sobrinha). Mas a menina não se cala diante do

regime opressor imposto por Gateshead, mostrando-se, assim, uma criança de

espírito revolucionário, razão por que a tia a manda para Lowood, um colégio

interno de regulamentos e sistemas severos, apenas para mulheres cujas

doutrinas moral e religiosa eram usadas para corrigir desvios espirituais. Lá, ela

viveu seis anos como aluna e dois, como professora, de onde saiu um modelo de

autêntica senhora inglesa, pelo gosto refinado e educação à vitoriana. Sua nova

residência será Thornfield, do senhor inglês Edward Fairfax Rochester, onde

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exercerá o papel de instrutora da menina Adèle, possivelmente, filha do patrão

com a dançarina francesa Céline Varens.

Em Thornfield, Jane Eyre sentia-se livre, não via a diferença de posses

como um obstáculo às boas relações sociais, pois não era apenas uma

empregada, mas também amiga do patrão e, depois, seu grande amor. A

princípio, a vida ali era tranquila, mas logo essa atmosfera vai se perdendo à

medida que Jane Eyre vai começando a perceber sinais estranhos na mansão,

vindos do terceiro andar, como gritos, gargalhadas, resmungos, que eram

atribuídos pela governanta, a senhora Fairfax, e por Rochester à criada Grace

Poole. Dia a dia o ambiente vai se tornando mais sombrio, principalmente, quando

a figura estranha começa a agir violentamente: primeiro, incendiando o quarto do

dono, fato para o qual este age com indiferença; segundo, estrangulando um

hóspede cuja chegada provocara no dono da casa a sensação de um golpe; e,

terceiro, rasgando o véu da preceptora, na noite que antecedia o dia em que seria

seu casamento com Rochester. Mas a tranquilidade na mansão é, finalmente,

extinguida no momento desse enlace matrimonial, quando um oficial da lei

denuncia o crime de bigamia do noivo, mostrando um documento assinado pelo

irmão de sua legítima esposa, o qual está a acompanhá-lo. Trata-se de Richard

Mason, a vítima do acidente do estrangulamento. Revelado o segredo e o

casamento, pois, impedido, Rochester resolve contar “a verdade” sobre a

existência de sua esposa, a crioula jamaicana Bertha Antoinette Mason. Então,

conduz todos à mansão e mostra-lhes sua mulher, presa em um quarto do

terceiro andar, vivendo sob os cuidados da criada Grace Poole. Naquele lugar ele

declara a todos os presentes que Bertha Mason é louca.

Jane Eyre deixa Thornfield e seu próximo lar será a casa de primos, que

lhe dão hospitalidade durante o período em que se encontra em total abandono e

cujo parentesco só será revelado ao tomar conhecimento de uma herança,

deixada por seu tio John, irmão de seu pai, que vivia na Ilha de Madeira.

Independente, Jane Eyre decide voltar à mansão e descobre que Bertha Mason

havia incendiado a propriedade. No acidente, ela morre, mesmo Rochester

tentando salvá-la, como fizera com os demais habitantes da casa. Quanto a ele,

conseguira sobreviver, todavia ficara temporariamente cego e tivera uma mão

amputada. Já não mais residia ali, mas em outra propriedade para onde Jane

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Eyre se muda para formar família com seu grande amor. Mais tarde, Rochester

recupera a sua visão.

Como se vê, Bertha Mason, embora sem voz na narrativa, aparecendo de

forma marginal nela, assume o papel de protagonista, por ser o fio a desatar

costuras imperialistas no romance, desenhadas, principalmente, pelo dono da

mansão e pela narradora Jane Eyre. A jamaicana atua de forma principal na

história que acaba de ser contada, porque grande parte do enredo gira em torno

de seu silêncio, da ausência de sua voz. O que sabemos sobre ela é o que nos

conta Jane Eyre, Richard Mason, Edward Rochester e, ainda, o hoteleiro que

informa a Jane Eyre o incêndio na mansão Thornfield. Pelos discursos deles,

podemos relacionar seu silêncio à sua loucura. O que Jane Eyre, a narradora,

pôde nos confidenciar sobre Bertha Mason foram apenas os registros de seus

ataques neuróticos e de seus atentados provocados na mansão, conforme

vivenciou.

A relação entre Bertha Mason e Jane Eyre é fundamental para

compreender a trama, haja vista as duas personagens aparecerem no romance

como metáforas coloniais e raciais: a primeira, representando a colônia, a raça

não europeia, e a segunda, simbolizando a metrópole, a raça europeia. Bertha

Mason é um exemplo de mulher submissa à ordem colonial e, também, patriarcal,

antes representada pelo pai e, depois de casada, pelo esposo. Na narrativa, não

há informações de que ela tenha tido algum tipo de formação educacional na

Jamaica ou fora de seu país. Aparece, portanto, como alguém sem instrução,

dependente e sem evolução. Já Jane Eyre aparece como uma jovem branca

admirável, devido à sua história de vida ser repleta de aprendizado. De órfã

escravizada, ela torna-se uma mulher independente: vence a escravidão de

Gateshead e, depois, de Lowood, onde o regimento para a educação de meninas

inglesas baseava-se em tortura, humilhação e resignação espiritual. Jane Eyre

suporta oito anos nessa instituição, tendo uma educação rígida; lendo muitos

livros, e aprendendo a falar algumas línguas, a pintar, a tocar, etc. Ela sai de lá

uma mulher já emancipada, já que, durante os dois últimos anos, vivia de seu

trabalho. A seguir, conquista espaço social, ao sair daquele ambiente privado, no

momento em que ela começa a trabalhar em Thornfield como professora e torna-

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se dona de seu próprio teto13. A diferença fundamental entre as duas

personagens é que Jane Eyre apresenta um belo bildungsroman14, enquanto

Bertha Mason é apagada na história, por não sair de seu estágio primitivo, por

não buscar o conhecimento. Enquanto a primeira caminha da dependência para a

independência, a segunda faz o caminho aparentemente inverso.

Pelas descrições que Jane Eyre faz acerca de Bertha Mason, esta mulher

não passa de uma figura fantasmagórica, selvagem, demoníaca. A primeira vez

que se refere a ela, embora acreditando ser Grace Poole, é para falar de suas

gargalhadas graves, trágicas e transcendentes, ouvidas com frequência na casa:

Assim ia, na ponta dos pés, quando soou aos meus ouvidos o último som que eu esperava ouvir naquele lugar: uma gargalhada distinta, absoluta e maquinal. Estanquei. O som cessou, por um instante. Mas recomeçou mais forte: porque a princípio, embora audível, era abafado. Passou numa rajada clamorosa, que parecia acordar os ecos de todos os quartos solitários. Apontei a porta de onde ela partia: - Senhora Fairfax – agora descendo as escadas. Ouviu uma gargalhada? Que é isso? - Talvez as criadas, e muito provavelmente Grace Poole – respondeu ela. - Ouviu? – perguntei novamente. - Perfeitamente! Tenho-a ouvido muitas vezes. Ela costura num destes quartos. Às vezes Leah lhe faz companhia; e as duas juntas sempre são barulhentas. A gargalhada repetiu-se no seu tom grave e metálico. E terminou num regougo arrastado. - Grace! – exclamou a senhora Fairfax. Para falar a verdade não acreditei que nenhuma Grace respondesse porque a gargalhada me parecia trágica e transcendente.

15 (BRONTË,

2008, 68).

13

Em sua obra Um teto todo seu (2004), publicada em 1929, a autora Virgínia Woolf relaciona a emancipação feminina à independência financeira. A seu ver, a mulher ocupou o posto de maior inferioridade já existente na História da Humanidade, e a solução para essa condição infeliz reside na questão de ela poder ter, literalmente, um teto todo seu, ou seja, poder financeiro e um lugar de trabalho. 14

A origem do termo deve-se ao professor de filologia clássica Karl Morgenstern que o empregou pela primeira vez na Universidade de Dorpat, no Báltico, atual Tartu, na República Báltica da Estônia. Como o termo ficou restrito ao âmbito dessa Universidade, não ganhou popularidade. Ele foi ampliado pelo filósofo idealista Wilhelm Dilthey em sua obra Das Leben Scheleimacher (A vida de Scheleimacher) de 1870. Dilthey usa o termo para referir-se ao romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795- 1796), onde o protagonista busca conseguir o aperfeiçoamento humano e a ascensão social, de burguês para nobre. O “Bildungsroman” é um processo, uma “sucessão de etapas, teleologicamente encadeadas, que compõe o aperfeiçoamento do indivíduo em direção à harmonia e ao conhecimento de si e do mundo” (MAAS, 2000, p.27). 15

While I paced softly on the last sound I expected to hear in so still a region, a laugh, struck my ear. It was a curious laugh; distinct, formal, mirthless. I stopped: the sound ceased, only for a instant; it began again louder: for a first, though distinct, it was very low. It passed off in a

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De acordo com Rich (2001, p. 477), esse comportamento de Bertha Mason é

descrito repetidamente por Rochester como força física e como doença violenta,

ambas qualidades inaceitáveis para uma mulher do século XIX.

A segunda vez que Jane Eyre percebe a presença da figura

fantasmagórica é por suas mesmas gargalhadas e resmungos excêntricos e

repetitivos que a deixavam amedrontada:

Nestes instantes de isolamento, eu ouvia com frequência a gargalhada de Grace Poole; o mesmo tom rolante e grave, o lento – rrô-rrô-rri – que a princípio me arrepiara. Também ouvia os seus resmungos excêntricos: tão excêntricos como a gargalhada. Certos dias ela ficava inteiramente muda; porém havia outros em que os regougos eram incontáveis. Vi-a, várias vezes; saindo do quarto com uma terrina, um prato, ou uma salva, indo à cozinha e voltando logo, em geral [...] trazendo de lá um canjirão de cerveja preta.

16 (BRONTË, 2008, p.70).

Um detalhe nessa narração de Jane Eyre diz respeito à bebida que Grace

Poole levava para seu quarto, que nos provoca a seguinte dúvida: essa bebida

era para a própria Grace Poole ou para Bertha Mason? Na continuação desse

trecho, Jane Eyre não esclarece essa pergunta. Porém em outro momento,

quando narra os preparativos para a chegada das senhoras Igram em Thornfield,

a professora de Adèle diz que a cerveja era para a enfermeira, sendo esta “sua

íntima consolação na soturna caverna em que morava.”17 (BRONTË, 2008, p.

103). Antes disso, também já podemos saber que a bebida era para Grace Poole,

porque, no dia posterior ao atentado contra o patrão, quando esta tem sua

clamorous peal that seemed to wake an echo in every lonely chamber; though it originated but in one, and I could have pointed out the door whence the accents issued. „Mrs. Fairfax!‟ I called out: for I now heard her descending the great stairs. „Did you hear that loud laugh? Who is it?‟ „Some of the servants, very likely,‟ she answered: „perhaps Grace Poole.‟ „Did you hear it? I again inquired. „Yes, plainly: I often hear her; she sews in one of these rooms. Sometimes Leah is with her: they are frequently noisy together.‟ The laugh was repeated in its low, syllabic tone, and terminated in an odd murmur. „Grace!‟ exclaimed Mrs. Fairfax. I really did not expect any grace to answer; for the laugh was as tragic, as preternatural a laugh as any I ever heard; (BRONTË, 2001, p. 91). 16

When thus alone I not unfrequentely heard Grace Poole‟s laugh: the same peal, the same low, slow ha! Ha! Which, when I first heard, had thrilled me: I heard, too, her eccentric murmurs; stranger than her laugh. There were days when she was quite silent; but there were others when I could not account for the sounds she made. Sometimes I saw her; she would come out of her room with a basin, or a plate, or a tray in her hand, go down to the kitchen, and shortly return, generally […] bearing a pot of porter. (BRONTË, 2001, p. 93-94). 17

“her private solace, in her own gloomy, upper haunt.” (BRONTË, 2001, p. 140).

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conversa com Jane Eyre interrompida pela cozinheira, que veio chamá-la para

almoçar, a mesma responde que só “Bote a minha caneca de cerveja e um

pedaço de pudim na badeja.” (BRONTË, 2008, p. 98)18. No final da narrativa, mais

uma vez fica evidenciado que a cerveja era para Grace Poole, pois o hoteleiro da

mansão diz para Jane Eyre que, no dia do incêndio da propriedade de Rochester,

a empregada deste estava embriagada.

No entanto, esses argumentos não comprovam, de fato, que a bebida era

sempre para Grace Poole. Ora, sabemos que a existência da esposa de

Rochester em Thornfield constituía segredo ali, exceto para a enfermeira, o que

justifica qualquer omissão em torno dela. Sendo assim, é possível desconfiar que

a cerveja não fosse só para Grace Poole, mas também para a sua paciente. O

que nos guia a esse entendimento é a informação dada por Rochester, no dia da

revelação de sua companheira, de que Bertha Mason era uma bêbada, assim

como a mãe. Sob essa perspectiva, podemos considerar que a caribenha era

uma mulher que não se importava com os princípios morais de seu círculo social,

já que a conduta vitoriana não aprovava o uso de qualquer tipo de entorpecente,

tanto por mulheres, quanto por homens (cf. SILVA, 2005). Nesse sentido, Grace

Poole também não escaparia de uma falha moral, tanto por ingerir a bebida como

por dá-la à sua paciente? Na narrativa, entretanto, a personagem não sofre tal

condenação. No primeiro caso, ela é perdoada em nome de seu árduo trabalho,

tanto por Jane Eyre como pelo hoteleiro da mansão; no segundo, porque,

possivelmente, pretendia com sua atitude acalmar o espírito da enferma.

Na colonização, a bebida alcoólica era usada para deixar os nativos mais

cordatos às ordens, para viciá-los e entorpecê-los, como fizeram os portugueses

ao chegarem ao Brasil, dando-as em abundância aos índios em troca de

informações e de objetos da Nova Terra, conforme descreve Pero Vaz de

Caminha em sua carta remetida ao rei de Portugal Dom Manuel (cf. BRASIL,

2000). Mas a bebida era mais usada na prática colonial para animar os espíritos

dos colonizados, como bônus para que eles se esforçassem mais nas produções

agrícolas e dessem maiores lucros aos colonizadores.

Voltando ao modo como os sons de Bertha Mason são percebidos pela

protagonista, esta diz que eles partiam do quarto em momentos de isolamento, de

18

“Just put my pint of porter and bit of pudding on a tray” (BRONTË, 2001, p. 132).

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silêncio na casa, sempre à noite. Eles eram frequentes, mas havia dias em que

ela permanecia calada, talvez, em estado de lucidez ou embriaguez. As

gargalhadas despertavam na professora de Adèle curiosidade e preocupação, por

isso ela fazia perguntas às criadas sobre a protegida de Rochester, embora nunca

obtivesse respostas convincentes, porque as conversas logo eram interrompidas.

A princípio, a figura estranha amedrontava Jane Eyre apenas com as

gargalhadas, resmungos, gritos, mas depois o medo transformou-se em cuidado

desde o dia em que Bertha Mason foi até seu quarto; tentou abrir sua fechadura,

e, não conseguindo realizar o seu plano, investiu sua fúria contra Rochester:

Era um riso demoníaco – baixo, estrangulado e profundo – gorgolejando, ao que parece, bem no buraco da fechadura do quarto. A cabeceira da cama ficava perto, e a princípio pensei que o fantasma-gargalhante estivesse ao meu lado, ou melhor: colado ao meu travesseiro; mas saltei, olhei em torno e não vi nada. E, de pé, estarrecida, ouvi novamente as vibrações do som sobrenatural. Constatei que vinham através da porta. Meu primeiro impulso foi agarrar o ferrolho. O último foi de gritar de vez: - Quem está aí? Qualquer coisa casquinhou e gemeu. Passos deslocaram-se pelo corredor, em direção à escada do terceiro andar. Depois uma porta rangeu lá em cima. Ouvi-a abrir e fechar-se. E tudo emudeceu. - Terá sido Grace Poole? Estará endemoninhada? – pensei. Já não podia ficar ali sozinha: era preciso procurar a senhora Fairfax. Corri a enfiar o vestido e o agasalho. Virei a chave, abri a porta com as mãos trêmulas. Na esteira da galeria vi um candeeiro aceso. O fato surpreendeu-me. Porém, a surpresa foi maior quando senti que o ar estava inteiramente escuro, parecendo cheio de fumaça. Olhei para um lado e para outro, à procura de onde saíam aquelas nuvens azuladas, - e nessa hora fui despertada por um cheiro a queimado. Ouvi um estalido. Vi uma porta entreaberta – a porta do quarto de Mr. Rochester. E dali, em rodas, se elevavam novelos de fumo. Não pensei mais na senhora Fairfax, nem em Grace Poole e na sua risada: num arranco, achei-me dentro do quarto. Línguas de fogo sitiavam a cama: os cortinados ardiam. E no meio das chamas e da fumaça, jazia Mr. Rochester, hirto num sono profundo. - Acorde! Acorde! – bradei

19. (BRONTË, 2008, p. 94).

19

This was a demoniac laugh – low, supressed, and deep – uttered, as it seemed, at the very key-hole of my chamber-door. The head of my bed was near the door, and I thought at first the goblin-laughter stood at my bedside – or rather, crouched by my pillow: but I rose, looked round, and could see nothing; while, as I still gazed, the unnatural sound was reiterated: and I knew it came from behind the panels. My first impulse was to rise and fasten the bolt; my next again, to cry out, „Who is there?‟ Something gurgled and moaned. Ere long, steps retreated up the gallery towards the third story staircase: a door had lately been made to shut in that staircase; I heard it open and close, and all was still. „Was that Grace Poole? And is she possessed with a devil? Thought I. Impossible now to remain longer by myself: I must go Mrs. Fairfax. I hurried on my frock and a shawl; I withdrew the bolt, and opened the door with a trembling hand. There was a candle burning just outside, left on the matting in the gallery. I was surprised at this circumstance: but still more was I amazed to perceive the air

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O atentado contra Rochester deixa Jane Eyre intrigada com a reação do

patrão, devido a ele não penalizar a suposta criada, à qual responsabiliza pela

tentativa de homicídio. Ao invés disso, dirige-se ao seu quarto para assisti-la e,

ao voltar, pede segredo à sua heroína quanto aos episódios daquela noite. No dia

que sucede ao crime, Jane Eyre é surpreendida pelas exclamações feitas pelos

criados da casa (Fairfax, Leah, a cozinheira e John) acerca do acidente:

“Que felicidade o patrão não ter-se incendiado com a cama!” “Felizmente teve presença de espírito para se lembrar do jarro de água!” “Deixar candeeiro aceso durante a noite é um perigo!” “O que me admira é que ele não acordou ninguém.”

20 (BRONTË, 2008, p. 96).

Conforme evidenciam os comentários, duas personagens envolvidas no fato

foram apagadas: tanto a autora do crime como a própria Jane Eyre, que socorrera

a vítima. Além disso, a consciência sem sinal de culpa de Grace Poole provoca

mais desconfiança na professora de Adéle. Acrescido a esse fator, está a história

contada pela hipotética delinquente, em concordância com o que os empregados

já haviam dito:

- Nada de grave. O patrão ficou lendo na cama, na noite passada. Adormeceu com o candeeiro aceso e os cortinados incendiaram-se. Felizmente acordou antes que a roupa da cama e a madeira do leito pegassem fogo e, com a água do jarro, conseguiu dominar as chamas.

21

(BRONTË, 2008, p. 97).

Enquanto Thornfield é tomada por uma atmosfera enigmática, Rochester continua

com a esposa louca em casa, sob os cuidados da enfermeira Grace Poole,

dando-lhe a assistência necessária, talvez, para que seu tratamento de saúde

quite dim, as if filled with smoke; and, while looking to the right hand and left, to find whence these blue wreaths issued, I became further aware of a strong smell of burning. Something creaked: it was a door ajar; and that door was Mr. Rochester‟s and the smoke rushed in a cloud from thence. I thought no more of Mrs. Fairfax; I thought no more of Grace Poole or the laugh: in an instant, I was within the chamber. Tongues of flame darted round the bed: the curtains were on fire. In the midst of blaze and vapour, Mr. Rochester lay stretched motionless, in deep sleep. „Wake! Wake!‟ I cried (BRONTË, 2001, p. 126-127). 20

„What a mercy master was not burnt in his bed!‟ „It is always dangerous to keep a candle lit at night.‟ „How providential that he had presence of mind to think of the water-jug!‟ „I wonder he waked nobody!‟ (BRONTË, 2001, p. 130). 21

„Only máster had been reading in his bed last night. He fell asleep with his candle lit, and the curtains got on fire; but, fortunately, he awoke before the bed-clothes or the wood-work caught, and contrived to quench the flame with the water in the ewer.‟ (BRONTË, 2001, p. 131).

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mental não fosse prejudicado, bem como para que evitasse escândalos, o que,

depois, o inglês não conseguira evitar.

A próxima vez que Thornfield é surpreendida por ato criminoso é na noite

em que Richard Mason instala-se na mansão, quando este vai visitar a louca em

sua enfermaria e ela o estrangula; morde suas carnes; bebe seu sangue, e só não

o violenta mais ou o assassina, porque Rochester o socorre:

- Então, bom amigo? Como está? – perguntou. - Acho que ela me liquidou! Foi a débil resposta. - Qual nada! Coragem! Perdeu apenas um pouco de sangue! Carter, diga-lhe que não há perigo. - Posso dizer conscientemente – confirmou Carter, que agora desenrolava um penso de urgência. – Sinto é não ter chegado aqui mais cedo. Você não teria sangrado tanto... mas, que é isto? A carne do ombro está arrancada! Esta ferida não foi feita a faca. Por aqui andaram dentes! - Ela me mordeu – murmurou ele. – Avançou para mim como um tigre quando Rochester arrancou-lhe a faca da mão! [...]- Eu o avistei – retrucou o amigo. – Eu lhe disse: cuidado quando chegar perto dela. Além disso você poderia ter esperado até amanhã e ir comigo. Foi loucura rematada tentar vê-la esta noite, e sozinho - Pensei que assim fosse melhor. - Pensou! Pensou! Fico até irritado ouvindo isto. Em todo caso você já sofreu e parece que ainda sofrerá bastante por não ter seguido o meu conselho. Por isso não direi mais nada. Carter, depressa! Depressa! O sol já vai sair e temos de levá-lo antes disso. - É já, senhor. O ombro está pronto! Vou ver esta outra ferida do braço. Acho também aqui ela meteu os dentes! - E chupou o sangue, e disse que queria esvaziar meu coração – informou Mason. [...]- Vamos, cale-se, Richard! Não ligue às tolices dela! E não repita isto! - Ah, se eu pudesse esquecer! – redargüiu Richard. - Esquecerá quando sair do país, quando voltar para Spanish Town. Deve considerá-la morta e sepultada. Ou melhor: você tem necessidade de não pensar nela, absolutamente

22. (BRONTË, 2008, p. 132-133).

22

„Now, my god fellow, how are you?‟ he asked. „She‟s done for me, I fear,‟ was the faint reply. „Not a whit – courage! This day fortnight you‟ll hardly be a pin the worse of it: you‟ve lost a little blood, that‟s all. Carter, assure him there‟s no danger.‟ „I can do that conscientiously,‟ said Carter, who had now undone the bandages; „only I wish I could have got here sooner: he would not have bled so much – but how is this? The flesh on the shoulder is torn as well as cut. This wound was not done with a knife: there have been teeth here!‟ „She bit me,‟ he murmured. „She worried me like a tigress, when Rochester got the knife from her.‟ […]„I warned you,‟was his friend‟s answer; „I said- be on your guard when you go near her. Besides, you might have waited till to-morrow, and had me with you: it was mere folly to attempt the interview tonight and alone.‟ „I thought I could have done some good.‟ „You thought! You thought! Yes; it makes me impatient to hear you: but, however, you have suffered, and are likely to suffer enough for not taking my advices; so I‟ll say no more. Carter – hurry!- hurry! The sun will soon rise, and I must have him off.‟ „Directly, sir; the shoulder is just bandaged. I must look to this other wound in the arm: she has had her teeth here too, I think.‟

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O início da passagem supramencionada representa o momento em que

Rochester chega acompanhado do médico Carter para tratar dos ferimentos do

cunhado. Mas, antes disso, enquanto o primeiro providencia o socorro imediato

de Richard Mason, este permanece na parte externa do quarto de Bertha Mason

sob a companhia de Jane Eyre, a qual cumpria um pedido de seu patrão. A

situação emergencial vai sendo controlada, e, durante esse quadro, vão sendo

revelados detalhes do crime, como que os ferimentos não tinham sido cometidos

por faca, já que Rochester havia tomado o instrumento da esposa, mas que

tinham sido feitos a dentes, como um ataque de um tigre, e que a agressora além

de rasgar as carnes, ingeriu o sangue fraterno, assumindo, desse modo, uma

forma selvagem e vampiresca, destacada pelo próprio irmão, que pode se

relacionar ao seu estado de crise mental, à animalidade desenfreada da loucura

(cf. FOUCAULT, 2010, p. 152). Por outro lado, essa cena mostra que a relação

entre os cunhados é de amizade, consoante o vocativo “bom amigo” proferido por

Rochester a Richard Mason, o qual é enfatizado, também, pela narradora mais

adiante, porém sem o uso do primeiro adjetivo. Outrossim, o diálogo entre os dois

mostra que Rochester mantinha uma preocupação com o irmão de sua esposa:

primeiro precavendo-o quanto ao perigo de aproximação da irmã sem sua

companhia; depois, providenciando-lhe socorro e preocupando-se com seu

estado psicológico, o que pode justificar seu pedido para Richard Mason voltar

imediatamente para Spanish Town; esquecer Bertha Mason, e confiar-lhe os

cuidados da irmã, como vinha acontecendo:

- Cuide dela...dê-lhe o tratamento mais carinhoso que for possível... dê-lhe... – e Mr. Mason interrompeu-se e prorrompeu em pranto. - Farei tudo. Assim tenho procedido, assim procederei – foi a resposta

23

(BRONTË, 2008, p. 134).

„She sucked the blood: she said she‟d drain my heart,‟ said Mason. […]„Come, be silent, Richard, and never mind her gibberish: don‟t repeat it.‟ „I wish I could forget it,‟ was the answer. „You will when you are out of the country: when you get back to Spanish Town, you may think of her as dead and buried – or rather, you need not think of her at all.‟ (BRONTË, 2001, p. 180-181). 23

„Let her be taken care of; let her be trated as tenderly as may be: let her – „ He stopped and burst into tears. „I do my best; and have done it, and will do it,‟ was the answer (BRONTË, 2001, p. 183).

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Richard Mason atende ao pedido de Rochester: vai embora para as Índias

Ocidentais e deixa a irmã sob os cuidados do esposo. O inglês assume, sozinho,

a responsabilidade de cuidar da doente.

Depois desses acidentes, o atentado contra o dono de Thornfield e, em

seguida, contra Richard Mason, as relações entre Rochester e Jane Eyre vão se

tornando mais íntimas. Entre os dois começa a surgir um jogo de confidências (cf.

STERNIEB, 2001, p. 503). A professora de Adèle torna-se a confidente do dono

de Thornfield, a única pessoa a ouvir os seus desabafos melancólicos e a

solidarizar-se com ele. Jane Eyre pouco a pouco vai conquistando o coração do

“cavalheiro fechado, vingativo, arrogante”24 (BRONTË, 2008, p. 98) pelo dom da

escuta, mas também pela agradável oratória da “amiguinha”, carregada de

conhecimentos culturais, de imaginação e revelando uma pessoa de fibra e de

muita fineza. Jane Eyre representa para Rochester uma fada que viera do “País

das Fadas” para fazê-lo feliz, a princípio, como sua “amiguinha”, e,

posteriormente, como a mulher inteligente e boa, o verdadeiro oposto de sua

esposa, o ideal de mulher que sempre procurara pelo mundo, especialmente, pela

Europa, para ser sua companheira.

Jane Eyre torna-se, então, a grande rival de Bertha Mason. Mas isso a

esposa certamente já tinha previsto, senão como explicar sua primeira tentativa

de entrar no quarto da professora antes do dia em que, de fato, entrou e rasgou

seu véu em duas partes quando do segundo casamento de seu marido? Desde

que Jane Eyre entrara na mansão a vida ali mudara: Rochester passava menos

dias viajando; parecia mais feliz; ficava horas conversando com a instrutora de

Adèle; sentia-se realizado. Já Bertha Mason passara a ter um comportamento

mais agressivo, seu estado mental piorara: ela não só mais gritava ou gargalhava

ou resmungava. Agora, ficava exaltada, inquieta, violenta; estava sempre a tramar

crimes. Mas por que culpar Jane Eyre? A “inglesinha” de Rochester não tinha

conhecimento da verdade ainda, e, como podemos constatar por sua narrativa,

desde o início ela fora a pessoa a querer ajudá-la, seja procurando colher

informações das criadas sobre sua identidade, seja recriminando Rochester, mais

tarde, quando ele lhe propusera deixar a louca em Thornfield sob os cuidados de

Grace Poole e fugir com ela: “O senhor é cruel com a pobre mulher! Refere-se a

24

“a bold, vindictive, and haughty gentleman” (BRONTË, 2001, p. 132).

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ela com ódio, com uma antipatia vingativa. É inexorável. Ela não sabe o que faz, é

louca!”25 (BRONTË, 2008, p. 187). Jane Eyre solidariza-se com Bertha Mason, ao

renunciar viver com seu amor, por compreender que esta era doente. Por outro

lado, ela está preocupada com sua própria imagem, de ser amante, e com a

imagem de Rochester, de tornar-se um homem fora da lei pelo crime de bigamia.

Mas em que circunstâncias o conto de fadas foi interrompido? Aconteceu

no dia em que ocorreria o enlace matrimonial do patrão com a empregada,

quando o advogado Briggs comunica que Rochester tem uma esposa que reside

na mansão Thornfield e mostra como prova de suas palavras o documento escrito

por Richard Mason, informando os principais dados de seu casamento com a irmã

do cliente, bem como apresentando o próprio Richard Mason a todos os

presentes. Diante disso, Rochester decide contar “a verdade” sobre seu segredo:

Fui casado e a mulher com quem me casei ainda vive! Você disse que nunca escutou-se falar da senhora Rochester nestes arredores, Wood. Acho, entretanto, que muitas vezes apurou os ouvidos para ouvir contarem de uma lunática misteriosa que vive na mansão. Uns deviam ter-lhe cochichado que se tratava de uma meio-irmã bastarda; outros, de uma amante repudiada. E agora eu lhe declaro que se trata de minha esposa, com a qual me casei há quinze anos passados, Bertha Mason chamada. Irmã deste valente personagem que agora, com o rosto sem sangue e o corpo trêmulo, está mostrando como se comporta um homem de coração enérgico. Ânimo, Dick! Não tenha medo de mim! Não espanco pusilâmines como você! Bertha Mason é louca, e vem de uma família de loucos: três gerações consecutivas de idiota e maníacos!A mãe, a creoula era ao mesmo tempo doida e bêbada, como verifiquei, depois de ter-me casado com a filha, - porque o fato constituía segredo de família. Bertha, filha obediente, seguiu a mãe em ambos os pontos. Tive assim, uma companheira encantadora: pura, sensata, modesta! Os senhores podem imaginar como fui feliz! Vi belos espetáculos! Oh, foi uma experiência celestial! Porém não quero fatigá-los com explicações. Briggs, Wood, Mason, convido-os a irem à minha casa em visita à paciente da senhora Poole, à minha esposa. Os senhores verão que espécie de gente desposei, e poderão julgar se tenho ou não o direito de quebrar o compromisso, e buscar a simpatia num ente que ao menos seja humano.

26 (BRONTË, 2008, p.182).

25

„Sir,‟ I interrupted him, „you are inexorable for that unfortunate lady: you speak of her with hate – with vindictive antipathy. It is cruel – she cannot help being mad.‟ (BRONTË, 2001, p. 257). 26

I have been married; and the woman to whom I was married lives! You say you never heard of a Mrs. Rochester at the house up yonder, Wood: but I dare say you have many a time inclined your ear to gossip about the mysterious lunatic kept there under watch and ward. Some have whispered to you that she is my bastard half-sister: some, my cast-off mistress; I now inform you that she is my wife, whom I married fifteen years ago, - Bertha Mason by name; sister of this resolute personage, who is now, with his quivering limbs and white cheeks, showing you what a stout heart men may bear. Cheer up, Dick! – never fear me! – I‟d almost as soon strike a woman as you. Bertha Mason is mad, and she came of a mad family; - idiots and maniacs through three generations! Her mother, the Creoule, was both a mad woman and a drunkard! – as I found out

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Rochester justifica o crime de bigamia informando aos convidados de seu

casamento que havia desposado, há quinze anos, uma mulher que procedia de

uma família de loucos. Assim como a mãe, a filha era doente mental, o que

sempre a desculpava por qualquer ato errado, e dissimulada, por ter-se

apresentado ao noivo como uma pessoa sã. Quando Bertha Mason se casou não

demonstrava nenhum sinal de distúrbio mental, era uma linda mulher, mas pouco

tempo depois sua personalidade neurótica vai se revelando até tornar-se

insuportável aos olhos do esposo. Desse comportamento, podemos inferir que

além do problema psicológico, havia uma dimensão má na jamaicana. Outrossim,

quando Rochester casara, desconhecia a verdade sobre a sogra, isto é, ele não

sabia que ela vivia internada em um asilo e que era alcoólatra, do mesmo modo

que a filha, como podemos verificar pelas confissões de Jane Eyre, que

costumava ver Grace Poole sair da cozinha carregando consigo cerveja preta

para o quarto. Para Rochester, ele não estaria a quebrar um compromisso,

porque fora enganado no passado e, agora, sentia-se no direito de livrar-se

daquele fardo.

Esse momento, marcando o rompimento do silêncio de Thornfield, define

também, uma mudança na forma narrativa, visto que a palavra do advogado

convida o leitor a reler a história, desconfiando da narradora que até agora vinha

construindo uma imagem negativa acerca de Grace Poole. A chegada inesperada

dos cavalheiros para impedir o casamento na hora de sua realização revela um

corte na linearidade textual, porque a constituição do melodrama sugere uma

retomada de ponto de vista. Esse tipo de estrutura narrativa provoca um efeito

retroativo27 naquele que lê o romance, porque o leva a associar o comportamento

selvagem e as ações monstruosas de Bertha Mason com o fato de ela ser

jamaicana e crioula. Diante desse impasse, surge a força dramática do discurso

de Rochester, dando credibilidade à voz narrativa, e fazendo-o justificar-se

socialmente: primeiro, contando que se casara com uma louca, sem que

after I had wed the daughter: for they were silent on family secrets before. Bertha, like a dutiful child, copied her parent in both points. I had a charming partner – pure, wise, modest: you can fancy I was a happy man, - I went through rich scenes! Oh! My experience has been heavenly, if you only knew it! But I owe you no further explanation. Briggs, Wood, Mason, - I invite you all to come up to the house and visits Mrs. Poole‟s patient, and my wife! You shall see what sort of a being I was cheated into espousing, and judge whether or not I had a right to break the compact, and seek sympathy with something at least human. (BRONTË, 2001, p. 249). 27

Freud (2010) chama esse efeito de Nachträglichkeit.

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soubesse do fato; segundo, pedindo para Richard Mason não ter medo de falar a

respeito do assunto, o que torna seu discurso o único com a veracidade

testemunhal, e terceiro, convidando todos para ver a prova da verdade, isto é,

conhecer a esposa. Assim, Rochester trabalha para consolidar a imagem negativa

acerca de Bertha Mason, inicialmente, construída pela narradora (e pelo leitor)

acerca de Grace Poole e para livrar-se de um erro do passado cuja autoria não

lhe pertencia, já que fora traído.

A traição a que Rochester se refere fora planejada e executada por seu pai,

homem muito ambicioso, avarento, que age conforme a tradição cultural cuja

“prática de primogenitura assegura que os filhos segundos casarão por dinheiro”

(SCHWARTZ, 1996, p. 559; tradução nossa)28. Assim,

Resolveu que tudo devia pertencer ao meu irmão Rowland. Mas, por outro lado, também não podia tolerar que o filho mais moço fosse um homem pobre. Era preciso arranjar para mim um casamento rico. Procurou logo um partido: Mr. Mason, lavrador e comerciante nas Índias Ocidentais, um velho conhecido dele. Meu pai sabia que as posses de Mason eram reais e vastas [...] Soube também que Mr. Mason podia dar, e daria, à filha, um dote de trinta mil libras. Isso bastou. Quando deixei o colégio fui enviado para a Jamaica, a fim de desposar a mulher que já me haviam designado. Meu pai não tocara na questão do dote. Dissera-me porém que, pela sua beleza, Miss Mason era célebre em Spanish Town. Não mentiu [...] A família queria me agarrar porque eu era de boa linhagem. Era também essa a intenção da moça. Apresentaram-nos em festas, ela esplendidamente vestida. Raramente a vi sozinha e tivemos muito poucas palestras íntimas. Eu me sentia envaidecido e ela, para me agradar, estadeava perdulariamente encantos e prendas. Todos os rapazes de nossa roda pareciam admirá-la e me invejar. Eu vivia atordoado, estimulado. E, ignorante, jovem e inexperiente, convenci-me de que a amava.

29 (BRONTË, 2008, p. 190).

28

“practice of primogeniture ensures that second sons will marry for Money.” 29

He resolved, should go to my brother Rowland. Yet as little could he endure that a son of his should be a poor man. I must be provided for by a wealthy marriage. He sought me a partner betimes. Mr. Mason, a West India planter and merchant, was his old acquaintance. He was certain his possessions were real and vast […] Mr. Mason, he found, had a son and daughter; and he learned from him that he could and would give the latter a fortune of thirty thousand pounds: that sufficed. When I left college I was sent out to Jamaica, to espouse a bride already courted for me. My father said nothing about her money: but he told me Miss Mason was the boast of Spanish Town for her beauty: and this was no lie. […] Her family wished to secure me, because I was of a good race; and so did she. They showed her to me in parties, splendidly dressed. I seldom saw her alone, and had very little private conversation with her. She flattered me, and lavishly displayed for my pleasure her charms and accomplishments. All the men in her circle seemed to admire her and envy me. I was dazzled, stimulated: my senses were excited; and being ignorant, raw, and inexperienced, I thought I loved her. (BRONTË, 2001, p. 260).

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Conforme Rochester, ele é apenas uma vítima de um erro cometido por

seus familiares e pelos familiares de sua esposa, inclusive por ela mesma que

agiu com dissimulação, enchendo-o de agrados e encantos, enquanto evitava

conversas íntimas que podiam lhe denunciar problemas nervosos. Rochester

aparece como a solução para os problemas das duas famílias: seu pai resolveria

o problema financeiro do filho e o pai de Bertha Mason introduziria a filha em uma

linhagem30 respeitável, procedimento comum nas relações coloniais. A colônia se

beneficiaria com títulos europeus, e a metrópole, com as riquezas nativas, um

negócio vantajoso para ambos os lados. Nesse caso, as reclamações do inglês

não estão relacionadas à tradição do mercado matrimonial em si. Sua indignação

é tão somente com o fato de ter sido lesado, de ter-se casado com uma mulher

louca, realidade que não podia mudar, já que a Lei da Inglaterra vitoriana não

permitia a realização do divórcio, especialmente, quando um dos cônjuges

apresentasse qualquer tipo de problema mental31. Para provar sua inocência

diante do erro, e não do crime que cometera, como mesmo dissera a Jane Eyre

certo dia antes de pedi-la em casamento, “o meu patrão convidara a todos para a

apresentação da verdade. E apresentava uma prova concreta”32 (BRONTË, 2008,

p. 184):

Afastou os reposteiros da parede, descobrindo uma segunda porta, que também foi aberta. Num quarto sem janela, um fogo crepitava por grades altas e fortes. Suspensa do teto por uma corrente, ardia uma lâmpada. Grace Poole, debruçada, parecia cozinhar qualquer coisa numa caçarola. Na sombra espessa, na extremidade mais distante do quarto, um vulto ia e vinha. O que era, se um ser humano ou uma fera, ninguém poderia dizer ao primeiro olhar: caminhava de gatinhas, saltava e grunhia como animal selvagem. Mas estava vestido. Grande massa de cabelos negros e emaranhados, incultos como uma juba, cobria-lhe a cabeça e a face. - Bom dia, senhora Poole! – disse Mr. Rochester. – Como vai? E como está hoje o seu fardo? - Vamos indo, senhor, muito obrigada – respondeu Grace Poole deixando cuidadosamente a panela ao lado do fogão. – Ela está muito exaltada, mas não furiosa. Um urro atroz desmentiu esta informação favorável. A hiena vestida empinou-se e ficou na ponta dos pés.

30

A palavra usada no texto original é raça, e não linhagem, o que torna importante a análise de Jane Eyre, observando as questões de raça. 31

Cf. Humanitarianism and the treatment of women in the 19th century. Disponível em: <http://en. wikipedia.org/wik/Humanitarianism#Treatment_of_the_mentally_ill>. Acesso em: 12 maio.2013. 32

“an open admission of the truth had been uttered by my master; then the living proof had been seen.” (BRONTË, 2001, p. 252).

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- Ah, senhor! Ela o viu! – exclamou Grace. – Antes o senhor não tivesse vindo! - Um instante apenas, Grace! Conceda-me um instante! - Então tenha cuidado, senhor! Pelo amor de Deus tenha cuidado!

33

(BRONTË, 2008, p.183).

De acordo com a narração de Jane Eyre, percebemos que Rochester

reveste “a prova concreta” de intensidade dramática, começando por exibir um

cenário assombroso aos espectadores: um espaço fechado, sem janelas, envolto

por grades, iluminado apenas por uma lâmpada presa ao teto e com apenas uma

entrada secreta, tratando-se, pois, de um sótão no interior de um quarto. Em

primeiro plano, mostra a imagem de Grace Poole, sua criada fiel, e, por fim, a de

sua esposa, que aparece sob a forma de um fantasma, de um vulto

incandescente na parte mais interna do local. Segundo Jane Eyre, sua impressão

sobre a figura de Bertha Mason fora indistinta, porque não sabia discernir se esta

se tratava de um ser humano ou de uma fera, devido ao aspecto monstruoso de

sua fisionomia e à sua forma de caminhar, a qual a narradora assemelha a de um

animal selvagem. Adentrando o espaço, Rochester cumprimenta a enfermeira, e

pede notícias de sua paciente e concessão para “a apresentação da verdade”. Foi

quando, advertido pelos apelos da empregada, para que tivesse cuidado com a

esposa, que

A maníaca bramiu. Arredou da testa os cachos que rolavam e fitou desvairada os visitantes. Reconheci bem aquela face purpúrea, aquelas feições espessas. A senhora Poole avançou. - Afaste-se! – disse Mr. Rochester, empurrando-a para um lado. – Desta vez ela não tem faca? Estou em guarda. - Oh, nunca se sabe o que ela tem, senhor. É tão dissimulada! Não há mortal que possa prever as suas manhas!

33

He lifted the hangings from the wall, uncovering the second door: this, too, he opened. In a room without a window there burnt a fire, guarded by a high and strong fender, and a lamp suspended from the ceiling by a chain. Grace Poole bent over the fire, apparently cooking something in a saucepan. In the deep shade, at the further end of the room, a figure ran backwards and forwards. What it was, whether beast or human being, one could not, at first sight, tell: it groveled, seemingly, on all fours; it snatched and growled like some strange wild animal: but it was covered with clothing; and a quantity of dark, grizzled hair, wild as a mane, hid its head and face. „Good-morrow, Mrs. Poole!‟ said Mr. Rochester. „How are you? And how is your charge to-day?‟ „We‟re tolerable, sir, I thank you,‟ replied Grace, lifting the boiling mes carefully on to the hob: „rather snappish, but not „rageous.‟ A fierce cry seemed to give the lie to her favourable report: the clothed hyena rose up, and stood tall on its hind feet. „Ah, sir, she sees you!‟ exclaimed Grace: „you „d better not stay.‟ „Only a few moments, Grace: you must allow me a few moments.‟ „Take care then, sir! – for God‟s sake, take care!‟ ‟ (BRONTË, 2001, p. 250).

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[...] Os três cavaleiros [Briggs, Wood e Richard Mason] recuaram ao mesmo tempo. Mr. Rochester protegeu-me com o corpo. A louca saltou, agarrou-o ferozmente pela garganta e tentou morder-lhe o rosto. Lutaram. Ela era mulher possante, quase tão forte quanto o marido, e mais corpulenta. Mostrava-se viril no combate – e mais uma vez quase o dominou, atlético como ele era. Mr. Rochester podia tê-la reduzido à impotência como um golpe rijo. Mas não queria bater: desejava apenas imobilizá-la. Afinal, dominou-lhe os braços. Grace Poole deu-lhe uma corda e ele a manietou. Com mais corda – que estava à mão – a louca foi amarrada a uma cadeira. Esta operação decorreu no meio dos mais horrendos rugidos e brados e de repelões mais convulsivos

34 (BRONTË,

2008, p.183).

Agora, Bertha Mason, finalmente, é revelada, e a maneira como ela se

comporta diante da apresentação parece não deixar dúvidas aos espectadores da

cena de que Rochester contava “a verdade”. Seu comportamento agressivo,

animalesco e viril, só contribui para inocentá-lo do crime de bigamia, uma vez que

serve para ele justificar seu desejo de ter, de fato, uma esposa, e não, uma

companheira louca, perigosa, que precisa ser controlada com cordas; uma mulher

causadora de vergonha, de dor, de amargura, conforme mostra seu próprio

discurso:

- Eis a minha esposa – disse. – Esse é o único abraço conjugal com que eu tenho conhecido, esses são os carinhos que têm consolado as minhas horas de repouso! E isto foi o que eu quis obter, [...] esta jovem que se mantém tão serena e grave na boca do inferno, olhando, senhora de si, para os arreganhos do demônio. Eu a quis justamente como um contraste com este horror. Wood e Briggs, olhem a diferença! Comparem estes claros olhos com aquelas bolas vermelhas dali. Esta face com aquela máscara. Esta forma com aquela massa. E julguem-me, padre do Evangelho e o homem da Lei, e lembrem-se de que, pelo julgamento que fizerem, serão julgados! Agora, saiam. Vou libertar a minha presa

35

(BRONTË, 2008, p.183).

34

The maniac bellowed: she parted her shaggy locks from her visage, and gazed wildly at her visitors. I recognized well that purple face – those bloated features. Mrs. Poole advanced. „Keep out of the way,‟ said Mr. Rochester, thrusting her aside: „she has no knife now, I suppose? And I‟m on my guard.‟ „One never knows what she has, sir: she is so cunning: it is not in mortal discretion to fathom her craft.‟ […] The three gentlemen retreated simultaneously. Mr. Rochester flung me behind him: the lunatic sprang and grappled his throat viciously, and laid her teeth to his cheek: they struggled. She was a big woman, in stature almost equaling her husband, and corpulent besides: she showed virile force in the contest – more than once she almost throttled him, athletic as he was. He could have settled her with a well-planted blow; but he would not strike: he would only wrestle. At last he mastered her arms; Grace Poole gave him a cord, and he bound her to a chair. The operation was performed amidst the fiercest yells and the most convulsive plunge. ‟ (BRONTË, 2001, p. 250). 35

„That is my wife,‟ said he. „Such is the sole conjugal embrace I am ever to know – such are the endearments, which are to solace my leisure hours! And this what I wished to have‟ […] „this young

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Rochester lamenta a pessoa que recebera para ser sua esposa anos atrás,

o contraste de fada com quem contrairia casamento. Ele enfatiza a diferença

entre Jane Eyre e Bertha Mason, comparando a beleza daquela, mesmo a

professora não sendo bonita, como ela mesma se achava, com a monstruosidade

desta, destacando, portanto, as qualidades de uma e os defeitos de outra.

É importante frisar que as três últimas passagens marcam o momento em

que Bertha Mason é descrita, gradativamente, de forma negativa, começando

pelo discurso feminino e encerrando-se pelo discurso masculino, o que dá crédito

aos primeiros comentários. Quem inicia a descrição é Jane Eyre, chamando-a de

“fera”, “animal selvagem”, “hiena”, “maníaca”, “louca”, “lunática”; depois, surge

Grace Poole, caracterizando-a como “dissimulada” e como ser perigoso, e, por

último, Rochester, designando a esposa de “louca”, “demônio”, “minha presa”,

“megera”, etc.

O desabafo de Rochester causara menos sofrimento para Jane Eyre que

compaixão pelo patrão querido:

Perdoei-o logo, ali mesmo. Havia um remorso tão profundo no seu rosto, uma dor tão sincera na sua voz, uma energia tão máscula na sua atitude e, além disso, um amor tão persistente no seu olhar e nas suas maneiras, que eu o perdoei completamente. Não em palavra e gestos, mas no recesso do meu coração.

36 (BRONTË, 2008, p.186).

Rochester fora descrito pela narradora como um inocente; ele estava

absolvido de seu erro pelo amor de Jane Eyre, que, mesmo ferida, não cessava

de criar admiração e piedade pelo amado. Seu amor não diminuíra, porém não

havia espaço para crescer em uma sociedade regida por princípios severos de

conduta moral e religiosa, ou seja, ir de encontro aos valores que aprendera em

Lowood, o ambiente que, segundo Newman (1996, p. 592), ensina Jane Eyre a

civilizar suas emoções selvagens, descritas como paixões. Assim, embora

girl, who stands so grave and quiet at the mouth of hell, looking collectedly at the gambols of a demon. I wanted her just as a change after that fierce ragout. Wood and Briggs, look at the difference! Compare these clear eyes with the red balls yonder – this face with that mask – this form with that bulk; then judge me, priest of the gospel and man of the law and remember, with what judgment ye judge ye shall be judged! Off with you now. I must shut up my prize.‟ (BRONTË, 2001, p. 251). 36

I forgave him at the moment, and the spot. There was such deep remorse in his eye, such true pity in his tone, such manly energy in his manner; and, besides, there was such unchanged love in his whole look and mien – I forgave him all: yet not in words, not outwardly; only at my heart‟s core. (BRONTË, 2001, p. 255).

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sabendo do problema genético de Bertha Mason, Jane Eyre abandona seu patrão

idolatrado, por preocupar-se tanto com a sua imagem moral quanto com a de

Rochester.

Desse modo, a trajetória de Jane Eyre mostra que, embora ela não fosse

rica, ainda, ela apresenta-se como uma mulher independente, uma vez que

ganhava seu dinheiro de forma digna, usando os conhecimentos que adquirira em

Lowood. Já a de Bertha Mason mostra que, mesmo sendo de procedência

financeira estimável, não passa de uma mulher sem conhecimento – porque não

tem razão – totalmente dependente do esposo. Enquanto aquela é uma mulher

ativa, esta é passiva, sem voz. Outra característica singular de Jane Eyre envolve

a sua disposição para as missões, para lutar pela liberdade do sujeito minoritário,

criando a possibilidade de contato, ou aproximação, entre civilização e

colonização.

A inclinação para defender os minoritários, para educar, para levar

conhecimento e trabalhar o espírito humano fazia parte da natureza de Jane Eyre.

Podemos observar esse aspecto de sua identidade em Lowood, onde ela se

aproxima de Helen Burns e Mary Ann Wilson, meninas que eram perseguidas lá

pelas superioras; em Thornfield, quando dá mais atenção a Adéle, ao descobrir

que esta é filha de uma possível prostituta, e em Moor House, quando divide sua

fortuna, herdada do tio John da Ilha de Madeira com seus primos, e, antes disso,

quando, ali mesmo, educa meninas pobres, o que motiva o primo St. John a

convidá-la para ser sua esposa, para ajudar-lhe em sua missão na Índia como

pregador do Evangelho, convite que Jane Eyre nega pelo fato de que um item da

proposta, o de ser sua esposa, a colocaria em uma condição subalterna:

Imaginei-me sua mulher... Oh, nunca! Como discípula, ajudante, tudo iria bem. Nesta função eu atravessaria oceanos com ele, arrostaria os sóis do Oriente, nos desertos da Ásia, admirando e imitando a sua coragem, a sua devoção, o seu vigor, aceitando humildemente o seu jugo, sorrindo imperturbável à sua inalterada e inextirpável ambição, diferenciando o Cristão do homem – estimando sinceramente o primeiro e livremente esquecendo o outro. Decerto, vivendo com ele em tais circunstâncias, teria que sofrer. Meu corpo penaria sob um domínio massacrante. Meu coração, porém, e meu espírito, permaneceriam independentes. Eu possuiria o meu mundo, para o qual poderia me voltar, meus pensamentos sem peias, com os quais poderia me entreter nas horas de solitude. Haveria na minha alma um recanto só meu, no qual ele jamais penetraria. E aí me fora possível conservar os meus sentimentos, florindo frescos e abrigados, sem que a sua austeridade os crestasse e

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os seus passos de conquistador os esmagasse. Mas, como esposa – sempre ao seu lado, contida sempre, sempre oprimida – forçada a manter baixa a flama do meu ser, obrigando-o a se estiolar sem emitir um grito sequer enquanto a chama prisioneira lhe consumisse as fibras, uma por uma – seria inaturável.

37 (BRONTË, 2008, p. 255).

Ser missionária, mas, ao mesmo tempo, ser escrava de um homem era um

grande paradoxo. Em nome de Deus, seria até possível justificar a condição de

submissa, o altruísmo, viver em uma terra distante, dedicar toda uma vida para

pregar a liberdade e a igualdade humana. Mas como pregar esses valores, sendo

submissa a um esposo? Nenhuma liberdade será completa se houver qualquer

forma de relação colonial, e, a dependência de uma mulher a um esposo não

deixa de ser um exemplo disso, sendo que é mais complexa ainda, porque, nesse

caso, há uma exploração dupla: a mulher tanto é explorada como gênero quanto

como autóctone. Por outro lado, Jane Eyre nem sempre se mostrou simpática

com os minoritários, visto que, mesmo sofrendo a opressão em Gateshead,

quando criança, preferiu viver ali a morar com algum de seus parentes paternos,

pelo fato de ela abominar a ideia de proceder de uma família pobre. Isso porque

ela “não era bastante heroica para comprar a liberdade com o sacrifício da

casta.”38 (BRONTË, 2008, p. 20).

Enquanto Jane Eyre parece assumir a espada da liberdade, Bertha Mason

caminha para o abismo, incentivada por seus impulsos neuróticos, como narra o

hoteleiro da estalagem de Thornfield:

Quando a senhora Grace Poole adormeceu, depois da aguardente, a louca, astuciosa como uma bruxa, tirou-lhe as chaves do bolso, saiu do quarto e, percorrendo devagarinho a casa, executou o horroroso plano que tinha na cabeça.

37

[I] fancied myself in idea his wife. Oh! It would never do! As his curate, his comrade, all would be right. I would cross oceans with him in that capacity; toil under eastern suns, in Asian deserts with him in that office; admire and emulate his courage and devotion, and vigour; accommodate quietly to his masterhood; smile undisturbed at his ineradicable ambition; discriminate the Christian from the man: profoundly esteem the one, and freely forgive the other. I should suffer often, no doubt, attached to him only in this capacity: my body would be under rather a stringent yoke, but my heart and mind would be free. I should still have my umblighted self to turn to: my natural unenslaved feelings with which to communicate in moments of loneliness. There would be recesses in my mind which would be only mine, to which he never came; and sometimes growing there fresh and sheltered, which his austerity could never blight, nor his measured warrior-march trample down: but as his wife – at his side always, and always checked – forced to keep the fire of my nature continually low, to compel it to burn inwardly and never utter a cry, though the imprisoned flame consumed vital after vital – this would be unendurable. (BRONTË, 2001, p. 347). 38

“I was not heroic enough to purchase liberty at the price of caste.” (BRONTË, 2001, p. 20).

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[...] Sei que naquela noite ela começou por incendiar as cortinas do quarto vizinho ao seu. Depois desceu e entrou no aposento que pertencera à governante (como se soubesse de tudo e a odiasse). Tocou fogo na cama. Felizmente já não havia ninguém ali [...] Então Mr. Rochester estava em casa quando houve o incêndio? - Estava, sim senhora. E, quando tudo queimava, subiu para acordar os criados e ajudá-los a descer. Depois correu ao quarto da esposa. Gritaram-lhe que ela estava no telhado. Sim, lá estava ela, agitando os braços e gritando. De tal forma que se podia escutar a uma milha de distância. Eu a vi e ouvi com os meus próprios olhos e ouvidos. Vi, e muitas pessoas viram, quando Mr. Rochester, arrostando o incêndio, galgou a cumeeira. Ouvimos quando ele chamou “Bertha!” Vimo-lo quando correu para ela. E então, minha senhora, a mulher soltou um brado, pulou e veio cair esmagada no chão. - Morta? - Morta? – Sim! Tão morta quanto as pedras que ficaram salpicadas de sangue e dos pedaços dos seus miolos!

39 (BRONTË, 2008, p. 266-268).

Como podemos verificar, antes de morrer, Bertha Mason ainda tenta

prejudicar Jane Eyre, já que entrara em seu quarto e tocara fogo em sua cama,

embora ela já não se encontrasse mais lá. Completamente desgovernada, ela

incendeia a mansão, sobe para o telhado e, ali, vive instantes de desvario intenso

que culmina com seu suicídio, que Rochester não fora capaz de impedir, quando

arrisca a sua vida subindo até a cumeeira para tentar salvá-la, como todos que

presenciaram a cena podiam dizer.

Diante do que expomos, fica sugerido, portanto, que Rochester age como

um verdadeiro herói, por ter cuidado de sua esposa louca até o último evento

mental de sua alma. Quanto a Jane Eyre, podemos concluir que ela agiu

39

For when Mrs. Poole was fast asleep, after the gin-and-water, the mad lady, who was cunning as a witch, would take the keys out of her pocket, let herself out of chamber, and go roaming about the house, doing any wild mischief that came into her head. […] On this night, she set fire first to the hangings of the room next her own; and then she got down to a lower story, and made her way to the chamber that had been the governess‟s – (she was like as if she knew somehow how matters had gone on, and had a spite at her) – and she kindled the bed there; but there was nobody sleeping in it fortunately. […] „Then Mr. Rochester was at home when the fire broke out?‟ „Yes, indeed was he; and he went up to the attics when all was burning above and bellow, and got the servants out of their beds and helped them down himself – and went back to get his mad wife out of her cell. And then they called out to him that she was on the roof; where she was standing, waving the arms, above the battlements, and shouting out till they could hear her a mile off; I saw her and heard her with my own eyes. She was a big woman, and had long black hair: we could see it streaming against the flames as she stood. I witnessed, and several more witnessed Mr. Rochester ascend through the skylight on to the roof: we heard him call “Bertha!” We saw him approach her; and then, ma‟am, she yelled, and gave a spring, and the next minute she lay smashed on the pavement.‟ „Dead?‟ „Dead? Ay, dead as the stones on which her brains and blood were scattered.‟ (BRONTË, 2001, p. 364-365).

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conforme os preceitos religiosos e morais de sua época, ao casar-se com

Rochester só quando ele já está viúvo, respeitando Bertha Mason, que era

indefesa, perturbada, um ser desamparado socialmente. A “inglesinha” representa

dignamente o homem branco, pelo exemplo de coragem, honra e espírito

libertador. Já Bertha Mason nos é apresentada como um sujeito inferior, incapaz e

fracassado.

2.2 Uma leitura colonialista sobre o silêncio e a loucura de Bertha Mason

A análise colonialista que, esteticamente, acabamos de fazer, partiu da

ideologia de superioridade da raça branca em relação a outras raças presente na

Inglaterra do século XIX, época em que o país se torna o maior império do

mundo. De acordo com Seeley (2009, p. 75-76), as grandes possessões coloniais

britânicas incluíam o Canadá, as Índias Ocidentais (hoje, países independentes

do caribe, como Trinidad, Tobago e Jamaica), a África do Sul, a Austrália, a Nova

Zelândia e a Índia, a primeira e maior de todas. Nesse período, aproximadamente

dez milhões de ingleses viviam fora das ilhas britânicas, mas esse montante não

incluía os indianos, povos que, segundo a ideologia inglesa, estavam unidos a

eles por laços de sangue, sendo, portanto, da mesma raça. A quantidade referida

era formada apenas por povos de raça e religião alienada, a quem estavam

unidos por laços de conquista. Por isso, “naquele século a história da Inglaterra

não é na Inglaterra, mas na América e Ásia.”40 (SEELEY, 2009, p. 74; tradução

nossa).

Embora sabendo que muitos críticos, adeptos do estruturalismo, defendem

a imanência textual absoluta, a busca dos sentidos no próprio texto, somos

daqueles que preferem acreditar que “A forma literária aparece [...] como

resultado de duas forças conflitantes e igualmente significativas: uma que

funciona de fora, e a outra de dentro.” (MORETI, 2003, p. 15). Pensamos que os

sentidos textuais surgem da relação dialética entre texto e contexto, fundindo

literatura e sociedade, arte e história, autor, obra e público (cf. CANDIDO, 2010).

Assim, acreditamos que a questão de raça em Jane Eyre (2008) cujo núcleo

principal envolve a justaposição da personagem branca Jane Eyre e da

40

“in that century the history of England is not in England but in America and Asia.”

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personagem negra Bertha Mason, em uma relação hierárquica, onde a primeira

ocupa lugar superior em relação à segunda, pode ser discutida de forma melhor,

relacionando-a com o contexto de produção da obra. Isso porque a ficção

vitoriana, nesse momento, começou a registrar a consciência do imperialismo, a

ideologia de que os ingleses eram superiores aos outros nacional e racialmente

(cf. DAVID, 2007, p. 85). Por essas razões, faremos algumas considerações

acerca da relação raça e império na Inglaterra vitoriana para, em seguida, darmos

nossa interpretação sobre o que analisamos.

Na Inglaterra do século XIX, a ideia de raça sustentava-se na teoria da

evolução de Darwin cuja premissa fundamental diz que, no processo evolutivo,

sobrevivem os mais fortes, aqueles que têm melhor capacidade de adaptarem-se

ao ambiente (cf. SILVA, 2005, p. 227). Muitos pesquisadores ocidentais

apropriaram-se desse discurso para explicar a superioridade da raça branca

sobre as demais, especialmente, sobre a negra durante o imperialismo,

subvertendo, pois, “a visão bíblica de humanidade como uma espécie singular

com origem comum.”41 (BRANTLINGER, 2009, p. 37; tradução nossa). Contudo,

grande parte deles usou a teoria de forma equivocada, ao buscar justificar a

evolução pela biologia e, não, pela adaptação ambiental, como defendera o autor

do evolucionismo. Carlyle (2012), por exemplo, em seu artigo “Ocasional

Discourse on the Negro Question” [Discurso Ocasional sobre a Questão Negra],

editado em 1849 e republicado em 1853 sob o nome “Occasional Discourse on

the Nigger Question42”, procurou explicar as diferenças raciais por leis biológicas.

A seu ver, o negro nasceu para o trabalho forçado, porque assim sua natureza o

permitiu, ao dotar-lhe de força física, enquanto o branco nascera para administrar,

dominar, já que biologicamente era mais sábio que aquele. Com base nesse

pensamento, o cientista diz que todas as Índias Ocidentais pertenciam aos

brancos.

Mill (2012), em seu artigo “The Negro Question” [A Questão Negra],

publicado em 1850, posiciona-se totalmente contra a ideia de Carlyle (2012), ao

postular que o que é responsável pelas diferenças raciais é o ambiente e, não, a

natureza, com o intuito de relacionar o poderio britânico ao poder comercial. Por

41

“the biblical view of humanity as a single species with a common origin.” 42

A tradução dessa segunda edição é a mesma, mas a palavra nigger é mais ofensiva que negro.

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sua lógica, a justificativa para a grande expansão imperial britânica, para o

enorme desenvolvimento econômico inglês, está voltada para o domínio

ambiental. Como foram os ingleses os homens que mais conquistaram terras,

usando sua inteligência e força, acharam-se no direito de considerarem-se

superiores aos outros povos. Independentemente da justificativa biológica ou

ambiental, os ingleses continuavam a se sentirem superiores aos colonizados.

Conforme Murray (2012, p. 247; tradução nossa), em seu artigo “Charles Darwin,

The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex” (1871) [Charles Darwin, A

Descendência do Homem e a Seleção em Relação ao Sexo], essa crença está

bem associada ao pensamento de Darwin de que as raças que sobreviveram e

dominaram o mundo foram aquelas que tiveram melhores condições ambientais e

culturais, rejeitando, assim, “a ideia de que diferenças entre grupos humanos

poderiam ser compreendidas com relação à essência ou pureza racial.”43.

Outro pesquisador que seguiu a linha de Carlyle (2012) foi Gallton (2012),

que, em seu artigo “Hereditary Talent and Character. Second Paper”, [Talento e

Personalidade Hereditários. Segundo Artigo], publicado em 1865, aplicou a teoria

darwiniana sobre a origem das espécies aos estudos sociais para justificar o

comportamento humano. Para o autor, as características comportamentais são

transmitidas de geração a geração assim como as características físicas, ou seja,

elas são de ordem biológica. No seu entender, não somos diferenciados por

intelecto ou disposição, mas por heranças comportamentais:

Homens que nascem com disposições selvagens e irregulares [...] são alienados para o espírito de um país civilizado, e eles e suas raças são eliminados dele pela lei da seleção (GALTON, 2012, p.244; tradução nossa)

44.

Isso significa dizer que os negros, os seres que apresentam comportamento

selvagem, estão fadados a serem eliminados pelos brancos, a serem excluídos

dos lugares desenvolvidos. A eliminação sugere a pureza racial, a limpeza social

nas metrópoles, sendo necessário, portanto, o negro ficar na colônia, sendo

civilizado lá.

43

“the idea that differences between human groups could be comprehended with relation to racial essence or purity.” 44

“Men Who are Born with wild and irregular dispositions [...] are alien to the spirit of a civilized country, and they and their breed are eliminated from it by the law of selection.”

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Charles Dickens também argumentava que os negros deviam ser

civilizados em sua terra, e acreditava que a expansão europeia poderia levar as

raças escuras da humanidade ao desaparecimento. O escritor não esconde sua

aversão ao negro: “Eu não tenho a mínima crença no Nobre Selvagem. Eu o

considero um incômodo prodigioso, e uma superstição enorme.45” (DICKENS,

2012, p. 241; tradução nossa). Dickens relata que não se preocupa como o

chamam, assim como não se preocupa em chamá-lo de selvagem, cruel, falso,

ladrão, assassino. E conclui que os negros são meros animais, que os brancos

não têm nada a aprender com eles, porque “Suas virtudes são uma fábula; sua

felicidade é uma desilusão; sua nobreza, uma falta de senso.”46 (DICKENS, 2012,

p. 241; tradução nossa). O romancista inglês deixa, portanto, bem clara a sua

posição de que o negro é inferior ao branco, que ele é uma raça sem valor, um

empecilho para o europeu.

Mais um estudioso a considerar os negros como animais, contudo sob uma

perspectiva menos grosseira, é Froude (2009), ao tratá-los como gente ingênua,

inocente, pura, muito fácil de ser governada. Outro atributo que o autor diz

contribuir para a animalização dos negros é sua força física, sua coragem para

trabalhar nas colônias. Conforme Moretti (2003), possivelmente, esse atributo do

negro está associado ao desenvolvimento na indústria britânica, já que as

fazendas escravagistas podem ter favorecido a Revolução Industrial47.

Mesmo com a industrialização, com o surgimento de uma nova classe na

sociedade inglesa, a burguesia, a hierarquia social no período vitoriano não era

mais baseada em diferenças culturais e de classe, mas em diferenças de raça (cf.

DAVID, 2007). Isso está simbolizado em Jane Eyre (2008), já que o romance

celebra a vitória da raça branca sobre a não branca, pela metáfora do casamento

de Rochester com Jane Eyre, enquanto marginaliza a negra Bertha Mason. O que

se sobrepõe na obra, portanto, não é a diferença de classe, o fato de quem é

superior, se a descendente aristocrata Jane Eyre ou a descendente burguesa

45

“I have not the least belief in the Noble Savage. I consider him a prodigious nuisance, and an enormous superstition.” 46

“His virtues are a fable; his hapiness is a delusion; his nobility, nonsense.” 47

De acordo com Eagleton (2005), as Brontës surgiram no início de uma Inglaterra capitalista industrial, não sendo estranha, pois, a presença de conflitos de classe entre aristocracia e burguesia em Jane Eyre (2008).

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Bertha Mason, mas a diferença racial, porque aquela pode ser considerada

superior a esta devido a ser branca.

A princípio, porém, o que se destaca, na narrativa é a questão de classe,

visivelmente simbolizada pelo arranjo matrimonial de Bertha Mason com

Rochester, uma manobra que se articulou entre duas forças de poder: a

aristocracia e a burguesia. Como o pai da noiva era um rico lavrador e

comerciante nas Índias Ocidentais, um representante burguês, o pai do noivo via

na filha do autóctone um caminho para garantir a posição social de seu filho

deserdado. Assim, a história de que a herança do pai teria sido destinada só ao

filho mais velho pode esconder o que se procurava esconder na Inglaterra do

século XIX: a aristocracia estava perdendo seu status para a mais nova classe

social, a burguesia, e, nesse caso, o casamento entre Rochester, o filho mais

novo, e Bertha Mason pode simbolizar tensões e alianças entre as duas classes

sociais (cf. EAGLETON, 2005). A relação agora com o contexto de produção do

romance é pertinente se levarmos em conta que, nessa época, a Inglaterra é vista

como o país do “mercado de casamento”, a potência aberta para o mar e unida

por laços de interesse a terras estrangeiras. E, ainda, que as possessões

coloniais britânicas teriam possibilitado e garantido o desenvolvimento industrial

da Inglaterra (cf. MORETTI, 2003).

Dessa forma, o que prevalece no romance são conflitos raciais mais que a

luta de classes, como ocorria com a Inglaterra vitoriana (cf. BRANTLINGER,

2009, p. 37), a saber, a ideologia de raça fundada no evolucionismo de Darwin,

todavia com o incremento do determinismo biológico. Os argumentos de que o

negro nasceu para o trabalho braçal e o branco para o trabalho mental (cf.

CARLYLE, 2012); de que os ingleses tiveram o domínio ambiental porque nascem

mais inteligentes (cf. MILL, 2012); de que o comportamento, assim como os

traços físicos, também, é uma herança racial, e de que o negro é um animal, um

selvagem, podem ser verificados na relação do branco – Rochester, Jane Eyre e

o hoteleiro, aqueles que constroem a imagem do outro – com a crioula Bertha

Mason, sendo a loucura desta personagem apenas uma justificativa para o

empreendimento colonialista pautado na lógica de instituir o complexo de

inferioridade e anormalidade ao não branco, ao passo que garante para o

ocidental a imagem do sujeito bom, que salva o selvagem (cf. SAID, 2008). Desse

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modo, geográfica e ideologicamente, o romance está dividido em dois mundos: o

da raça branca e o da raça de cor (cf. MEYER, 1996). A raça de cor designa

qualquer povo que não seja um branco puro, inclusive o crioulo.

Por essa perspectiva, o que podemos dizer com relação à identidade racial

de Bertha Mason, de forma precisa, é que ela não é uma branca pura. Conforme

relata Jane Eyre para Rochester, ao falar da noite em que aquela rasgou o véu

desta, Bertha Mason apresenta “Um rosto horrendo, selvagem! [...] olhos

injetados e a medonha intumescência enegrecida daquelas pálpebras!”48

(BRONTË, 2008, p. 177) e quando ele responde: “Em geral os fantasmas são

pálidos, Jane.”49 (BRONTË, 2008, p. 177), ela afirma: “Este era purpúreo, senhor.

Os lábios grossos e escuros. A fronte enrugada. As sobrancelhas pretas,

largamente arqueadas sobre os glóbulos sanguíneos.”50 (BRONTË, 2008, p. 177).

Pela descrição feita, sobretudo dos lábios, há uma grande probabilidade de

Bertha Mason ser negra.

A ambiguidade de sua raça, porém, é construída por Rochester, ao sugerir

que sua esposa seja negra, ao confessar a Jane Eyre que sofre ao imaginar “a

cara negra e intumescida da fera”51 (BRONTË, 2008, p. 193) atacando-a,

praticamente usando as mesmas palavras que a inglesa usara para caracterizá-

la, e ao chamá-la de crioula e dizer que ela tinha origens nas Índias Ocidentais

(cf. MEYER, 1996, p.68). Mas esse fato não nos leva a supor que Bertha Mason

pudesse ser uma branca autêntica, pois estamos “Diante da impossibilidade para

os caribenhos de se reconhecerem na unicidade de uma raiz única.” (BERND,

2004, p. 103), já que eles fazem parte de um território que, durante o processo de

colonização, foi ocupado por uma massa intercontinental: por imigrantes da

África, índia, Ásia, Oriente Médio e Europa (cf. ASHCROFT; GRIFFITS; TIFFIN,

2010). Portanto, o crioulo é uma raça sincrética, nascida da confluência do

múltiplo, da abertura étnica, da mestiçagem, do entrecruzamento cultural, da

integração transacional, da imprevisibilidade, da desierarquização, o que quer

dizer que esse significante comporta uma série de significados (cf. BERND, 2004,

48

„It was a savage face. [...] the red eyes and the fearful blackened inflation of the lineaments.‟ (BRONTË, 2001, p. 242). 49

„Ghost are usually pale, Jane.‟ (BRONTË, 2001, p. 242). 50

„This , sir, was purple: the lips were swelled and dark; the brow furrowed; the black eyebrows widely raised over the bloodshot eyes.‟ ‟ (BRONTË, 2001, p. 242). 51

„its black and scarlet visage.‟ (BRONTË, 2001, p. 264).

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p. 102-103). Ser crioulo significa não se originar de uma raiz única e soberana, ter

uma gênese, como os ingleses acreditam ter, mas fazer parte de um rizoma, de

um conjunto de culturas que se tangem para formar uma identidade (cf.

GLISSANT, 2005, p. 71). Devido à ambivalência da raça de Bertha Mason, negra

ou crioula, usaremos um ou outro termo para opô-la à raça branca, e, certas

vezes, empregaremos a expressão ambígua não branca.

Mas que implicações sociais estão relacionadas à origem crioula de Bertha

Mason? Antes de responder a essa pergunta lembraremos como era sua vida na

América Central antes de casar-se: ela era alegre; frenquentava bailes; andava

esplendidamente vestida; era cortejada por todos os rapazes, enfim, preenchia os

requisitos de uma dama encantadora, segundo o próprio Rochester relata. Filha

de um lavrador e comerciante das Índias Ocidentais, suas posses sempre foram

consideradas mais importantes que sua raça. Lá, a jamaicana era beneficiária das

próprias práticas de escravidão da família (cf. BRANTLINGER, 2009, p. 37). Ou

seja, na Jamaica, Bertha Mason conhecera a realidade da escravidão como uma

branca: “Ser branco é pensar como branco. O negro que pensa como branco é

branco. A definição de raça ultrapassa a cor da pele.” (FANON, 1983, p. 51). Ela

vive a experiência do colonizador, ao embranquecer-se, isto é, ao incorporar a

visão de superioridade da raça europeia em relação ao seu próprio povo,

experiência que ela pode ter desejado intensificar com o casamento. Não

obstante, para Rochester, ela continuava sendo uma crioula.

Agora respondendo à última pergunta, as implicações sociais relativas à

origem racial de Bertha Mason dizem respeito à forte discriminação sofrida por

ela, já que, para os ingleses, o indivíduo pertencente a uma estrutura rizomática,

ou seja, o miscigenado, normalmente é mais discriminado do que o negro puro,

porque ele traz em si o maior medo do europeu, o medo da integração das raças,

da impossibilidade de separá-las. Nesse sentido, a miscigenação de Bertha

Mason pode estar na origem da loucura, na incapacidade de ela lidar com sua

origem mista, isto é, na impossibilidade de gerenciar duas origens, de não ser

branca nem negra por completo, o que significaria não ter um local definido, ser

deslocado, ou dividido entre identidades contraditórias.

Por esse prisma, a evolução da doença de Bertha Mason está,

fundamentalmente, vinculada à sua nova existência, doravante, contada de forma

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minuciosa. Sob uma perspectiva colonialista, sua loucura se desenvolve quando

ela se torna a senhora Rochester, muito embora seu problema esteja relacionado

a uma causa genética, consoante discurso do esposo:

a mãe, a creoula era ao mesmo tempo doida e bêbada, como verifiquei, depois de ter-me casado com a filha – porque constituía segredo de família. Bertha, filha obediente, seguiu a mãe em ambos os pontos

52

(BRONTË, 2008, p. 182).

A informação de que Rochester só toma conhecimento da loucura de

Bertha Mason depois de desposá-la leva-nos a inferir que a patologia pode ter

evoluído quando os costumes, as crenças e a cultura da jamaicana começaram a

ser substituídos pelos do esposo europeu, que lhe oferecia a oportunidade de ter

uma vida civilizada; conhecer uma cultura superior; ensinar-lhe o Evangelho, e

tirar-lhe de seu estado primitivo. Uma vez tendo uma personalidade fraca, como

mostraria a sua procedência, o espírito da autóctone talvez não tenha sido capaz

de acompanhar o elevado grau de sabedoria ocidental e isso tenha ocasionado o

distúrbio mental definitivo, piorado quando ela é transferida para a metrópole,

onde prosperava a modernidade, especialmente quando percebe que havia no

seu lar outra mulher que se iguala ao marido pela inteligência, pelo conhecimento

de mundo, pela religião, pela raça.

Tornar-se uma boa esposa para a colônia significava abandonar a

personalidade de falsa dama europeia, os costumes selvagens, como a bebida, a

devassidão, o que se constituía em uma vergonha, em um mau exemplo para a

sociedade vitoriana. O dever de Rochester como cavalheiro era cuidar da esposa

louca, dar-lhe a assistência necessária, como fizera, ao contratar uma enfermeira

e um médico, sujeitos que tinham a autoridade para garantir a ordem, a

obediência, o comportamento correto (cf. FOUCAULT, 2011). Sua atitude de

mantê-la presa em sua casa foi um procedimento comum ao de muitas famílias

inglesas do século XIX, uma orientação médica respaldada no argumento de que,

perto dos entes, o louco é mais bem assistido do que em um asilo, mas, ao

mesmo tempo, a doença devia constituir segredo para a sociedade, para não

52

Her mother, the Creoule, was both a mad woman and a drunkard! – as I found out after I had

wed the daughter: for they were silent on family secrets before. Bertha, like a dutiful child, copied

her parent in both points (BRONTË, 2001, p. 249).

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envergonhar a família. O retiro constituía para Bertha Mason uma forma de

purificar-se religiosa e moralmente, uma maneira de não perturbar a sociedade. O

retiro seria o espaço para a doente confinar-se no silêncio, na sua própria

linguagem (cf. FOUCAULT, 2010). Para isso, Rochester tem o apoio do cunhado,

o único parente são da louca que só o havia visitado naquela única vez na qual

fora estrangulado pela irmã em momento de agitação mental, quando ela investe

sua força física com selvageria contra ele, mordendo-o e chupando seu sangue.

Em virtude desses comportamentos agressivos de Bertha Mason, de seus

constantes ataques nervosos, causando terror na mansão, Jane Eyre reprova a

sua permanência lá. Embora não lhe quisesse nenhum mal, não considerava

correto manter, em um ambiente aristocrático inglês, uma bêbada, uma devassa,

uma estranha, incapaz de transformar-se em uma senhora britânica, em uma

mulher como a própria Jane Eyre, verdadeiro exemplo de dama inglesa mesmo

estando deserdada. Talvez essa dificuldade de ser como Jane Eyre, de

europeizar-se tenha sido o motivo por que Bertha Mason, sujeito de nervos

desequilibrados, tenha criado um complexo de vingança contra a europeia, o que

a levou a rasgar seu véu. Dessa forma, a identidade da caribenha parece não ter

sido substituída, por ela não ter conseguido assimilar os costumes e princípios

vitorianos, continuando, pois, indiferente à cultura europeia. A cultura, nesse

sentido, adquire os sentidos de elevação e refinamento, o reservatório do que há

de melhor em cada sociedade, no saber e no pensamento (cf. SAID, 2011, p. 10).

De acordo com essa lógica, Jane Eyre aparece como a grande rival de

Bertha Mason, por aquela ser a branca que esta desejara, mas não conseguira

ser. Contudo, a aparição da professora na mansão não deve ser interpretada

como uma ameaça à raça estrangeira, mas sua identificação com a missão

civilizadora de libertar os escravos, visto que Liberdade e Democracia foram as

palavras que melhor definiram o imperialismo britânico (cf. SEELEY, 2009, p. 73).

Não podemos deixar de lembrar mais uma vez a relação da obra com o contexto

histórico: em meados do século XIX já não se podia mais falar em escravidão nos

territórios britânicos, devido à Inglaterra ter declarado o fim da escravatura em

1833. Jane Eyre tinha consciência disso e parece lembrá-lo a Rochester, quando

lhe diz que Bertha Mason não tinha culpa de nada, “Ela não sabe o que faz, é

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louca!”53 (BRONTË, 2008, p. 187). Com isso, Jane Eyre, talvez, quis dizer ao seu

amado que seria injusta, ilegal, a implantação de um regime análogo à escravidão

em Thornfield, simbolizada pelo abandono da louca naquele lugar enquanto os

dois passariam a usufruir de sua riqueza pelo mundo. Por outro lado, Jane Eyre

não poderia renunciar aos princípios morais aprendidos em Lowood, os quais

corrigiram seu espírito rebelde e tornaram-na uma verdadeira dama inglesa, ou

seja, a “inglesinha” não se submeteria à condição de amante. Desse modo,

podemos inferir que seu modelo de dama não está relacionado a uma condição

natural, por ela ter nascido branca, mas que ele foi imposto, sendo, portanto,

cultural, artificial, ou seja, Jane Eyre foi moldada para ser uma senhora à

vitoriana.

Desse modo, a Jane que entra em Thornfield é a mulher branca que se

solidariza com a mulher de cor, ao lutar pela liberdade do gênero, não se

importando com a diferença racial. Ao recusar o pedido de casamento de

Rochester, após a revelação da esposa louca, Jane Eyre denuncia a condição de

subalternidade da mulher, que já havia sido elucidada pelo próprio noivo, ao dizer

que “Uma amante e uma escrava são, constantemente por feitio, e sempre pela

condição, criaturas inferiores.”54(BRONTË, 2008, p. 194). Ser amante implicaria

Bertha Mason, também, submeter-se ao regime patriarcal de Thornfield55. Por

essa razão, Jane Eyre luta para que ela e a esposa não se tornem o segundo

sexo56. Como mulher branca do Primeiro Mundo, a inglesa defende a mulher não

branca do Terceiro Mundo cujo espaço social é duplamente subalterno: por ser

mulher e por ser originária de uma colônia (cf. SPIVAK, 2010). Entretanto, a

ideologia de superioridade da raça branca mantém-se no romance, porque a

53

„She cannot help being mad.‟ (BRONTË, 2001, p. 257). 54

“both [a mistress and a slave] are often by nature, and always by position, inferior”. (BRONTË, 2001, p. 266). 55

Conforme a feminista Kate Millet em seu livro Sexual Politics, o regime patriarcal refere-se a uma política sexual em que o homem assume a posição de dominador e, a mulher, de dominada (ZOLIN, 2005). 56

Em sua obra O Segundo Sexo (1980), publicada em 1949, a francesa do final da primeira onda da crítica feminista, Simone de Beauvoir emprega essa expressão para designar a hierarquia nas relações de gênero. Para a autora, o homem tem ocupado a primeira posição, que é a de senhor, enquanto a mulher por sua vez ocupa a posição secundária, que é a de escrava. Sua crítica volta-se para a problemática da imanência feminina ao criticar que o destino da mulher está determinado por sua condição biológica, ligada à maternidade e à sexualidade por elas serem responsáveis pela perda de sua subjetividade. Em contrapartida, considera que o homem ocupa a posição de senhor devido ao aspecto transcendente ao qual está relacionado, no sentido de que seus desejos e ímpetos encontram receptividade por parte de sua aptidão biológica.

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felicidade da crioula depende da europeia, da mulher que tem a razão, isto é, do

ser que é superior cognitivamente. Nesses termos, Bertha Mason não deixa de

ser eliminada pelo processo de seleção natural.

Na produção de Charlotte Brontë, a personalidade missionária de Jane

Eyre, sua disposição para propagar os ideais de liberdade e democracia no

processo de civilização do subalterno, é enfatizada pelo primo St. John quando

este a convida para ir para a Índia com ele como sua esposa. O pastor vê em

Jane Eyre a cristã ideal para pregar o Evangelho em territórios estrangeiros, pois

conhecia bem a Palavra de Deus; era poliglota, e tinha uma bagagem cultural e

um conhecimento geopolítico invejável, requisitos importantes para ser

instrumento da civilização. A própria Jane Eyre reconhece essa sua

personalidade. Se ela rejeita o convite, é apenas por não aceitar ser esposa de

um homem que não amava, o que significaria renegar a sua liberdade de espírito.

De fato, Jane Eyre não macula sua imagem vitoriana, seus princípios

morais, éticos e religiosos até o último estágio de seu bildungsroman. Quando ela

volta para Rochester, Bertha Mason já era uma espécie extinta em territórios

ingleses. Sob um olhar colonialista, o desaparecimento desta teria sido

consequência de sua própria condição de inferioridade: ao nascer miscigenada e

louca, a caribenha teria sido determinada biologicamente a ser vencida pelo mais

forte: o branco. Sem voz na sociedade, uma vez que suas palavras não tinham

valor, primeiro, porque o discurso de um não branco, de um colonizado, sempre

seria inferior ao do branco, a raça superior, e segundo, por ser diagnosticada

como louca, por suas palavras não ganharem valor de verdade no verdadeiro de

uma época (cf. FOCAULT, 2009). Se possuir a linguagem significa possuir o

mundo que esta linguagem abarca (cf. FANON, 1983, p. 18), Bertha Mason

estava excluída dele porque vivia no silêncio. Em nenhum momento da narrativa,

ouvimos a sua voz, apenas manifestações de seus desvarios mentais.

Nesse caso, é possível que o suicídio da jamaicana seja considerado a

maior prova de sua fraqueza espiritual, pois, ao autoeliminar-se da sociedade, ela

pode estar demonstrando, com isso, ser uma espécie inferior, por ser incapaz de

adaptar-se às condições históricas, culturais (principalmente, à linguagem

metropolitana) e ambientais do meio onde passara a viver após casar-se. Esse

pensamento ficou marcado na memória do povo europeu, como podemos

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observar no discurso do hoteleiro, ao narrar a Jane Eyre a cena do incêndio de

Thornfield e o fim trágico da esposa de Rochester. Se, por um lado, temos a

manifestação de inferioridade da raça negra pela atitude de Bertha Mason, por

outro, podemos verificar a demonstração de heroísmo da raça branca, quando

Rochester salva todos os habitantes de Thornfield e coloca em risco a sua vida

para salvar a da esposa incapaz. Podemos verificar a vitória da raça branca em

Jane Eyre (2008) ainda pelo casamento de Jane Eyre com Rochester, e,

especialmente, pela formação de sua prole autenticamente branca. Com Bertha

Mason, o inglês não tivera nenhum filho, a obra evita a miscigenação, a mistura

do branco com as demais raças, já que ser crioula significa carregar uma

heterogeneidade racial. Nesse sentido, Bertha Mason mais uma vez é

representada como inferior por ter sido vencida pela branca Jane Eyre.

Diante do exposto, a loucura funciona, no romance, como uma

manifestação da dificuldade de a crioula reconhecer sua identidade; de não

possuir o saber; depender do branco para civilizar-se, e ser tratada como um

animal, um selvagem, um sujeito cuja voz não existe para a sociedade (cf.

FOUCAULT, 2009). Assim como as palavras do louco não ganham valor de

verdade nos sistemas discursivos, da mesma forma acontece com o discurso do

não branco: este não existe, porque não apresenta valor para a sociedade, qual

seja, biologicamente, ele é considerado menos inteligente que o branco. Sendo o

louco uma pessoa que necessita de cuidados, de vigilância, de controle, de

segurança, de disciplina, que precisa de um sujeito consciente e civilizado para

garantir-lhe a saúde, (cf. FOUCAULT, 2011), Bertha Mason, então, não deixa de

receber a autenticação de sua condição subalterna, de sujeito dominado pelo

mais forte, o europeu racional. Como louca e, paralelamente, como não branca, é

excluída pela seleção natural, porque é vencida pela raça superior, por esta ter

uma ideia elevada para trabalhar e ordenar e, portanto, progredir (cf.

BRANTLINGER, 2009, p. 36). Nesse sentido, podemos inferir que a derrota de

Bertha Mason fora uma consequência biológica: ela perdeu devido a ser menos

forte do que o branco, do que o colonizador, pois, como “selvagem” e “bárbara”,

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fora considerada “racialmente inferior e talvez inapta para sobreviver.”57

(BRANTLINGER, 2009, p. 36; tradução nossa).

Comparando, desse modo, a trajetória de Bertha Mason com a de Jane

Eyre, as personagens que representam a raça não branca e a raça branca,

respectivamente, observamos que a primeira, biologicamente, é determinada para

o fracasso, e a segunda, para o triunfo. Enquanto a jamaicana é lembrada pelos

crimes que cometera em Thornfield, a saber, pela imagem de sujeito violento,

pavoroso, selvagem, criminoso, a inglesa é lembrada pelo exemplo de mulher de

fibra, corajosa, refinada, uma autêntica dama europeia, educada conforme os

princípios vitorianos. Sua história é uma metonímia do heroísmo, da bravura, da

moral e do espírito civilizador ocidental, como atesta sua personalidade

missionária. Se Bertha Mason fica na memória do leitor como ser primitivo,

ignorante e mau, por outro lado, Jane Eyre fica como modelo de ser inteligente,

culto e bom. Enquanto a trajetória de Jane Eyre registra formação, crescimento,

evolução, a de Betha Mason registra destruição, fracasso, regressão. Nesse

sentido, o romance sacrifica a crioula jamaicana em favor da britânica (cf.

MEYER, 1996, p. 25). Pela lei da seleção natural, a raça branca, a mais forte,

vence a raça inferior, a não branca. Mas é importante frisar agora que a voz

narrativa é do próprio europeu, o que pode delimitar a valoração das

personagens/raças na história.

57

“racially inferior and perhaps „unfit‟ to survive.”

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83

3 CAPÍTULO III: UMA RELEITURA SOBRE QUESTÕES DE RAÇA EM JANE

EYRE

3.1 Silêncio e loucura: uma produção social

O trabalho com a palavra lança ao leitor e, especialmente, ao crítico da

literatura o desafio de jogar dialeticamente com a semântica ambivalente de um

mesmo significante. Um texto favorece mais de uma interpretação, por ser

caracteristicamente ambíguo: ele tanto pode ser interpretado por uma lógica

monológica, sendo, pois, compreendido como detentor de um significado, uma

verdade, uma origem, como pode ser interpretado como um jogo de substituição

de sentidos, em um sistema de diferenças. Ambas as interpretações são válidas,

aquela não desfavorece esta, já que uma é o suplemento da outra, isto é, a

primeira só existe por causa da segunda e vice-versa. Lidar com a palavra é

situar-se no entre-lugar, na zona dos interstícios, no terceiro-lugar, onde só há

espaço para a indecidibilidade, a aporia (cf. DERRIDA, 2002).

Pela proposta derridiana de desconstrução supramencionada, queremos,

neste capítulo, fazer outra interpretação sobre a questão de raça em Jane Eyre

(2008). Enquanto a primeira orientou-se pela metafísica da presença, pelo “eu”,

procurando mostrar a verdade, a origem dos conflitos raciais, relacionando-a com

a ideologia do centro, da metrópole, do branco, e fundamentando-se no saber da

época, nossa interpretação agora é do lugar do outro, da periferia, do subalterno.

A interpretação anterior mostrava o colonialismo como uma política velada por

uma ideologia democrática, pacífica, civilizadora, e o branco como uma raça

geneticamente superior às outras. Assim, o par feminino Jane Eyre/Bertha Mason

é representado, respectivamente, como: superior/inferior; racional/irracional;

boa/má; civilizada/primitiva, etc.

A interpretação que doravante faremos visa a desconstruir a leitura

colonialista que fizemos no segundo capítulo. Desconstruir não é desmantelar um

texto, mas demonstrar que ele em si é desmantelado (cf. MURFIN, 1996, p. 536).

Nosso objetivo é ressignificar o discurso do colonizador pela perspectiva pós-

colonialista, fazer uma releitura do Jane Eyre (2008), que significa balancear o

discurso do europeu, deslocar o significado instituído por sua ideologia em favor

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da inclusão dos sentidos construídos pelas vozes sociais (cf. BHABHA, 2010).

Reler corresponde, aqui, a ouvir as elipses históricas; atravessar zonas

nebulosas; adentrar terrenos perigosos e relativizar a ordem discursiva

(FOUCAULT, 2000; 2009), pois “Se há um silêncio que apaga, há um silêncio que

explode os limites do significar.” (ORLANDI, 2010, p. 85). Em síntese, a releitura

que objetivamos fazer significa atribuir novos sentidos para o silêncio e a loucura,

como: 1) o de interdição, o de princípio de exclusão social (cf. FOUCAULT, 2009),

ou, ainda, o de carimbo da opressão, da dominação, da rejeição da alteridade (cf.

FANON, 1983), e 2) o de discurso da resistência, da subversão colonial.

Nesta primeira parte do capítulo, focalizaremos o primeiro sentido,

mostrando, portanto, que o silêncio de Bertha Mason sugere a imposição da

autoridade colonial sobre o subalterno e que sua loucura pode ter sido

consequência da opressão e repressão coloniais sofridas após o casamento, e

não, causa genética (cf. FOUCAULT, 2009). Quanto à associação do não branco

a um animal, analisaremos a questão, considerando a ambiguidade do termo

discriminar, empregado, nesta pesquisa. Embora significando, tanto na leitura

colonialista, quanto na pós-colonialista, distinguir; discernir; separar, estabelecer

diferenças (cf. FERREIRA, 2005), há uma distinção na acepção do termo para

cada caso. No primeiro, o ato de discriminar é tomado em uma acepção natural;

ele apresenta o sentido de separação dada, a natureza que se encarregou de

determinar o branco como ser superior, e o não branco como inferior,

assemelhando este a um animal, biologicamente. Já no segundo, o termo é

compreendido em sua acepção cultural, ou histórica: foi o homem branco que

instituiu essa divisão, baseando-se em relações de poder. Na leitura pós-

colonialista, o não branco não nasce animal, ou seja, ignorante, primitivo, inferior

intelectualmente ao branco, ele é animalizado pelo europeu, ideologicamente. O

discurso do europeu constrói uma imagem negativa do não europeu pelo racismo.

Assim, enquanto mostramos no capítulo anterior que Bertha Mason é

discriminada por ter uma origem mista, onde poderia residir a sua loucura, fato

que atestaria a sua condição animal e revelaria, desse modo, a sua inferioridade

diante do branco, agora mostraremos, pela ótica pós-colonialista, que ela pode ter

sido animalizada pelo discurso europeu, e sua loucura pode estar associada ao

transplante ideológico de raça, à imposição de seu embranquecimento pelo

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colonizador, como discorre Fanon (1983). Além disso, a leitura pós-colonialista

visa a desvendar o significado de civilização, revelando a possibilidade de ela

carregar consigo um sentido negativo, de que, por meio do conhecimento, do

Evangelho, da modernização e liberdade, ela também pode servir para escravizar

o outro. Ou seja, civilizar pode ser uma alternativa ideológica para efetuar a

colonização.

Dessa forma, observaremos a relação colonial e racial em Jane Eyre

(2008) não como uma realidade gratuita, como designação da natureza, mas

como uma construção social cuja lei de organização tem sido controlada pelo

homem branco, não porque ele nasceu biologicamente superior ao não branco,

mas por ter tido a seu favor um clima que favorece o plantio e, desse modo,

permite-lhe preocupar-se com outros assuntos que não sejam limitados a

questões de sobrevivência mais básica, e por ter nascido em uma localização

geográfica propícia para o domínio do mundo, um território cercado por mares,

garantindo, com isso, seu poder, também, em outras dimensões. Desbravando os

oceanos e conquistando novas terras, o europeu, secularmente, foi elaborando a

ideologia de que a metrópole era superior às colônias, em termos econômicos e

culturais. Contudo, esse discurso diz mais sobre o sujeito do que mesmo sobre o

objeto: ao disseminar essa ideologia, o branco diz muito mais sobre ele do que

sobre o outro, mostrando, paradoxalmente, que o centro é dependente da

periferia, o que desconstrói a imagem de que sua raça é superior à não branca.

De acordo com Moretti (2003, p. 37), a riqueza colonial é um assunto

frequente nos romances sentimentais britânicos do século XIX, uma vez que

As colônias são uma presença verdadeiramente ubíqua: são mencionadas em dois romances em cada três, e as fortunas feitas no exterior chegam a um terço, senão, mais, da riqueza nesses textos.

A Jamaica é um exemplo dessas colônias, devido a ela enviar as riquezas

para mundos distantes, como se verifica em Jane Eyre (2008), através de Bertha

Mason, a personagem que atrai o olhar europeu. Nos romances, as histórias das

fortunas coloniais costumam ser narradas em forma de comentários rápidos,

duvidosos e míticos, como é a história contada por Rochester sobre a origem de

seu casamento.

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O que se evidencia nesses romances é, portanto, a relação colonialismo e

capitalismo, personagens de um centro industrial atravessando o Atlântico para

ocupar territórios vazios e, por conseguinte, explorar suas riquezas, usando, para

tal fim, o trabalho escravo. O olho do europeu preenche esses vazios com sua

força, com sua ideologia, com sua cultura e torna-se dono das novas terras e de

tudo o que nela existe, inclusive seu povo (cf. BONNICI, 2000, p. 69). Ao fazer

isso, o colonizador age como supersujeito, ao considerar-se como centro,

enquanto outremiza o nativo, criando, assim, uma relação hierárquica definida

pela superioridade da raça branca sobre a não branca (cf. BHABHA, 2010, p. 173-

174). Charlotte Brontë cria o personagem Edward Rochester exatamente para

exercer esse papel. Ele deixa a Europa, atravessa o Atlântico e chega às Índias

Ocidentais, de onde sai rico. Segundo Meyer (1996, p. 77),

Um rico homem branco vivendo na Jamaica antes da emancipação poderia indubitavelmente ter tido escravos para servir-lhe e sua fortuna jamaicana poderia ter sido o produto do trabalho escravo.

Se lembramos da conversa do dono de Thornfield com Jane Eyre acerca do

comércio escravo, a partir de uma comparação que ele faz dela com uma escrava

oriental, “então quando Rochester discute como é comprar e viver com escravos

ele sabe do que está falando.” (MEYER, 1996, p. 77).

Relacionando com o contexto de produção da obra, a questão do trabalho

escravo e sua relação íntima com o capitalismo estão vinculadas à política

colonialista. A exploração do trabalho humano fora a alavanca para o

desenvolvimento industrial europeu, tendo se iniciado já na metade do século XVII

no Caribe, quando os ingleses importaram escravos africanos para trabalhar nas

produções agrícolas. “No final do século XVIII, os produtos de trabalho escravo

nas Américas constituíram um terço do valor do comércio europeu.”58 (HARDT;

NEGRI, 2000, p. 121; tradução nossa). Mas a relação entre colonialismo e a

subordinação do negro não funcionou apenas como uma estratégia para

solucionar a crise da modernidade europeia relativa à economia e política, mas

também concernente à identidade e cultura (cf. HARDT; NEGRI, 2000, p. 124).

58

“By the end of the eighteenth century, the products of slave labor in the Americas constituted one third of the value of European commerce.”

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A abundância de enredos descrevendo a expansão colonial e o

levantamento de riquezas nas novas terras, como já foi dito, fez parte do cotidiano

de Brontë, seja pelas narrativas da empregada Taby, seja pela leitura de

romances narrando histórias de navegações e conquistas territoriais, como As

viagens de Gulliver, mais tarde mencionado em Jane Eyre (2008), como uma das

histórias prediletas de Jane Eyre. No romance, a narradora, também, não omite a

sua preferência por aulas de geografia, outro fato que pode tê-la ajudado a narrar

suas memórias, principalmente, a parte que envolve o casamento de Rochester

com Bertha Mason, simbolizando a colonização inglesa no Caribe,

especificamente, na Jamaica. Sob seu ponto de vista, Jane Eyre conta essa

história, baseando-se no que ouviu de Rochester no dia em que seria seu

casamento com o patrão, quando ele lhe informa em que circunstâncias ocorrera

a sua união com a caribenha. Assim, Brontë (2008) constrói uma narrativa dentro

de outra narrativa. Para a leitura que estamos fazendo, a escolha dessa estrutura

textual pode remeter a uma corroboração da ideologia ocidental (cf. SPIVAK,

2010), porque isso significa dar voz dupla ao europeu, ao demonstrar a

complexidade de suas narrativas, ao passo que anula a voz do colonizado,

negando-lhe o direito de, também, narrar o fato de seu ponto de vista.

A partir do discurso europeu, representado pela narradora Jane Eyre, pelo

esposo Rochester e pelo hoteleiro de Thornfield, o qual ganha um pouco de

espaço na narrativa no final do romance, contando o episódio da destruição da

mansão, passaremos agora a analisar a relação colonial e racial no romance,

destacando a construção da alteridade, ou a animalização de Bertha Mason e

incluindo a questão da loucura e do silêncio. Dizer que a identificação de Bertha

Mason só é possível pela voz do branco significa pressupor que ela, por ser não

branca, não escapa ao processo de objetificação, à imagem estereotipada do

outro, negativamente expressa sob a forma de animal, demônio, selvagem,

primitivo, bêbado (cf. BONNICI, 2000).

De acordo com Hardt e Negri (2000, p. 124; tradução nossa), o sujeito

colonizado é construído no imaginário metropolitano como alteridade, como outro,

aquele que não sabe pensar, não respeita o valor de vida humana, apenas

entende o que é violência. O outro tem capacidade para ser mau, para ser

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bárbaro; ele é o reverso do branco, que é bom e civilizado. A construção colonial

de identidades repousa em fronteiras, já que

A identidade colonial funciona antes de tudo por uma lógica maniqueísta de exclusão [...] Os colonizados são excluídos do espaço europeu não apenas em termos físicos e territoriais, e não apenas em termos de direitos e privilégios, mas também em termo de pensamento e valores.

59

A fabricação de identidades pela abstração ocidental configura-se,

portanto, em uma expropriação, em um apartheid, devido ao branco ter

compartimentado o mundo em duas raças, a europeia e a não europeia. A

“Alteridade não é dada, mas produzida.”60 (HARDT; NEGRI, 2000, p. 125;

tradução nossa). O outro é uma produção cultural cujo pedestal é a natureza.

Nas relações coloniais, o colonizador fabrica uma identidade negativa para

o colonizado em oposição à sua, que é imaginada de forma positiva. A produção

dessa imagem é frequentemente repetida em obras do cânone ocidental, com o

objetivo de contribuir com a disseminação da ideologia de superioridade do sujeito

branco em relação a qualquer outro povo, sendo, pois, a cultura um instrumento

do empreendimento imperialista europeu (cf. SAID, 2011). Um exemplo disso é a

obra Jane Eyre (2008), que reforça a imagem da alteridade através da

animalização do sujeito subalterno miscigenado Bertha Mason pelo homem

branco.

Quando Jane Eyre faz as primeiras descrições de Bertha Mason, a

representação que ela cria sobre o sujeito colonial sugere mais o aspecto de um

animal do que o de um ser humano, ao narrar o episódio do incêndio do quarto de

Rochester, relatando que o som que ouvira “Era um riso demoníaco – baixo,

estrangulado e profundo – gorgolejando, ao que parece, bem no buraco da

fechadura do quarto.”61 (BRONTË, 2008, p. 94). Todos esses sons descritos por

Jane Eyre não parecem ser de um animal domado, obediente, mas de um ser

revoltado, gritando por liberdade e desafiando uma ordem. O riso demoníaco

59

“Colonial identity functions first of all through a Manichaean logic of exclusion […] The colonized are excluded from European spaces not only in physical and territorial terms, and not only in terms of rights and privileges, but even in terms of thought and values.” 60

“Alterity is not given but produced.” 61

This was a demoniac laugh – low, suppressed, and deep – uttered, as it seemed, as the very key-hole of my chamber-door. (BRONTË, 2001, p. 126)

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funciona como zombaria, como atitude sarcástica de uma entidade inferior, diante

da arrogância de uma entidade dita superior. Continuando a narrar a cena, Jane

Eyre ainda diz que “Qualquer coisa casquinhou e gemeu”62 (BRONTË, 2008, p.

94). “Qualquer coisa” revela menosprezo, indiferença, racismo, e não sugere a

ideia de que se tratasse de gente, assim como “fantasma-gargalhante”, outra

expressão que ela costumava usar para chamá-la. A outremização aqui é mais

nociva, porque qualquer coisa pode até não ser um animal, mas um objeto.

Na noite em que Jane Eyre entra no quarto de Bertha Mason para cuidar

de Richard Mason ela fala que vinha do quarto interno, onde a louca ficava

trancafiada, “um rosnado irritado, quase como o de um cão.”63 (BRONTË, 2008, p.

130). Mais uma vez, a narradora deixa subentendido que o animal não se

submete à vontade do dono, pois a sua irritação quer dizer encolerizar-se,

impacientar-se com uma situação que não lhe agrada. O animal aqui descrito não

é aquele domesticado, que entende o seu lugar, mas aquele que perturba a

autoridade. Ao descrever Bertha Mason, Jane Eyre usa os significantes “besta-

fera”, “demônio”, e confidencia ao leitor sua dificuldade em afirmar o que via

diante de si: “Que criatura era aquela que, disfarçada num corpo e num rosto

humanos, às vezes casquinhava o riso de um demônio sarcástico, às vezes

emitia o grito de uma ave de rapina em busca de presa?”64 (BRONTË, 2008, p.

132).

A ambiguidade acerca de Bertha Mason pode estar vinculada ao processo

de fabricação de sua alteridade, pois, conforme Bonnici (2000, p. 65),

Na descoberta do Novo Mundo, a fabricação do nativo, diferente, outro, contrastante, envolve a repetida construção do monstro, dando-lhe um aspecto ambíguo e aterrorizante.

E, consoante Hardt e Negri (2000, p. 124; tradução nossa), “O sujeito colonizado

negro [...] parece primeiramente obscuro e misterioso em sua alteridade.”65. O

outro é, portanto, uma figura estranha, confusa, que não é. Mas a comparação

62

Something gurgled and moaned. (BRONTË, 2001, p. 126). 63

a snatching sound, almost like a dog quarrelling. (BRONTË, 2001, p. 178). 64

What creature was it, that, masked in an ordinary woman‟s face and shape, uttered the voice, now of a mocking demon, and anon of a carrion-seeking bird of prey? (BRONTË, 2001, p. 179). 65

The dark colonized subject [...] seems at first obscure and mysterious in its otherness.

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com uma ave de rapina também sugere que Bertha Mason fosse um animal

ameaçador, um tipo carnívoro com visão a longo alcance e garras fortes, prontas

para atacar o inimigo e assegurar a sua existência.

Ao descrever os sons como irritantes, demoníacos, gargalhantes, e, ao

nomear o animal de cão ou ave de rapina, Jane Eyre constrói um texto com

armadilha, ambíguo, pois, ao tempo que é construído para dizer que o outro é

inferior, acaba dizendo que esse outro é superior, porque esses sons e esses

tipos de animais servem para caracterizar Bertha Mason como sujeito e, não,

como alteridade, ao revelar a sua capacidade revolucionária, como veremos

abaixo.

Quando Jane Eyre narra a cena do véu, descreve Bertha Mason como uma

criatura monstruosa, aterrorizante com um “rosto horrendo, selvagem!”66

(BRONTË, 2008, p. 177). A selvageria da jamaicana é associada aos caracteres

de sua raça: cor purpúrea, “Os lábios grossos e escuros. A fronte enrugada. As

sobrancelhas pretas, largamente arqueadas sobre os glóbulos sanguíneos.”67

(BRONTË, 2008, p. 177). Ao chamar o outro de selvagem, Jane Eyre deixa

implícita a sua própria arrogância, por estabelecer como parâmetro de beleza a

definição facial da raça branca e tendo ela mesma uma beleza que não estava de

acordo com os cânones. Dessa descrição, Jane Eyre conclui que Bertha Mason

se parece com um vampiro, o que a coloca novamente em uma armadilha,

porque, aqui, o vampirismo pode ser uma metáfora de retomada da força vital

sugada por um poder patriarcal ou colonizador.

Ao contar a história da aparição de Bertha Mason a Rochester, a narradora

não esconde seu medo, seu pavor, sua perplexidade pelo objeto descrito.

Segundo Césaire (1977, p. 26), constituía estratégia do colonizador o complexo

de inferioridade, do medo, do desespero, do servilismo. Bertha Mason é tratada

como objeto, porque Jane Eyre coisifica o sujeito negro, ao reduzi-lo à condição

animal. De acordo com Fanon (1985), fez parte do projeto colonialista a divisão

racial em Homem e animal para referir-se, respectivamente, aos ocidentais e não

ocidentais. Por outro lado, o medo de Jane Eyre denuncia a sua fragilidade em

oposição à força, ou resistência, de Bertha Mason.

66

„It was a discoloured face – it was a savage face.‟ (BRONTË, 2001, p. 242). 67

„the lips were swelled and dark; the Brow furrowed; the Black eyebrows widely raised over te bloodshot eyes.‟ (BRONTË, 2001, p. 242 ).

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A animalização da crioula é mais intensa na parte em que é apresentada

por Rochester, onde Jane Eyre associa seu modo de caminhar com o de um

animal, sob a forma de saltos e gatinhamentos, bem como relaciona a sua voz

com o grunhido de uma fera, embora isso sirva, também, para mostrar uma

qualidade da alteridade: sua esperteza, sua capacidade de elaborar estratégia

para surpreender o dominador e lutar contra ele. Outrossim, a animalização de

Bertha Mason pode ser evidenciada naquela gradação de predicativos negativos

(hiena, demônio, vampiro, fera, monstro, dissimulada, lunática, louca, dentre

outros), sendo, inicialmente, construída por Jane Eyre, depois, confirmada por

Grace Poole e, finalmente, chancelada pelo poder patriarcal, isto é, pelo discurso

de Rochester.

Contudo, o que mais se destaca nessa cena é o habitat de Bertha Mason:

um quarto sem janelas, cercado por grades altas e fortes, nos fundos de outro

quarto. Nele, um vulto enfurecido que vai e volta de uma extremidade a outra do

local cuja imagem faz lembrar uma dança. De acordo com Bonnici (2000, p. 141),

a dança é uma forma alternativa da expressão da alteridade. No que concerne à

imagem geral, isto é, Bertha Mason trancafiada em um pequeno lugar, ela se

assemelha a de um enorme animal feroz dentro de uma jaula, procurando libertar-

se de uma prisão. Além disso, uma “Grande massa de cabelos negros e

emaranhados, incultos como uma juba.”68 (BRONTË, 2008, p. 183), a cobrir a

cabeça e face dela, faz relacionar o comportamento de Bertha Mason com o de

um animal, por ela desprezar seu corpo, ao não cuidar de sua aparência física. As

descrições do retiro sugerem, assim, que Bertha Mason vivia em péssimas

condições ambientais; ela era tratada como um animal selvagem em um espaço

regido por um forte sistema de controle social, equiparado ao das prisões do

século XIX (cf. FOUCAULT, 2011).

A ênfase que Jane Eyre dá à face de Bertha Mason, com ângulo especial

para seus cabelos, pode corresponder ao segundo plano da segunda tela pintada

pela professora de Adèle, a qual é apresentada a Rochester e apreciada por ele

em uma de suas primeiras entrevistas com o patrão. Como a própria Jane Eyre

interpreta o objeto representado, “Os seus olhos rutilavam negros e selvagens, e

a massa dos seus cabelos esvoaçava tragicamente, como uma nuvem de

68

A quantity of dark, grizzled hair, wild as a mane, hid its head and face. (BRONTË, 2001, p. 250).

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tormenta dilacerada pelo raio.”69 (BRONTË, 2008, p. 80). O modelo que Jane

Eyre criou acerca do outro nos últimos dias em que esteve em Lowood é o outro

real que o dono de Thornfield conhecia e mantinha sob seu poder: uma criatura

escura, horrorosa, selvagem, imagem que se opõe, por exemplo, a da ex-

namorada de Rochester, a inglesa Blanche Ingram.

Outro detalhe acerca da personalidade da jamaicana, observado por Jane

Eyre, quando ainda narra a cena de sua espetacularização70, diz respeito à sua

virilidade, à sua força física, que não só pode representar a sua determinação

biológica para o trabalho forçado, igualando-a a um animal selvagem (cf.

CARLYLE, 2012), mas também pode significar a sua coragem para enfrentar o

regime colonial. Então, quando Rochester precisa usar corda para amarrá-la em

uma cadeira, violentando-a fisicamente e ela reage a isso, somos levados a crer

que a violência de Bertha Mason pode funcionar como um ponto de equilíbrio à

violência que sofreu. Por outro lado, podemos descrever a relação dos dois como

uma relação colonial, já que não há “nenhum contato humano, mas relações de

dominação e de submissão.” (CESÁIRE, 1977, p. 25), levando-se em conta que

Bertha Mason consegue ser dominada pela força patriarcal. Rochester age como

um déspota, porque “habitua a ver no outro o animal, se exercita a tratá-lo como

animal, tende objetivamente a transformar-se, ele próprio, em animal.” (CESÁIRE,

1977, p. 25). Ao tratar Bertha Mason como animal, Rochester acabou, pois,

animalizando-se, movido por sua própria ignorância.

A primeira vez que vemos Rochester animalizar sua esposa verbalmente é

no dia em que ela estrangula Richard Mason, ao chamá-la de lobo enquanto

nomeia a empregada de ovelha e se autodefine como pastor: “Seria um mau

pastor se tivesse deixado uma ovelha – a minha ovelha favorita – tão próxima da

69

The eyes shone dark and wild; the hair streamed shadowy, like a beamless cloud torn by storm or by electric travail. (BRONTË, 2001, p. 107). 70

Do Classicismo à Renascença, todas as formas do mal deviam ser mantidas em segredo, exceto, o louco, o qual devia ser conduzido à espetacularização, ao escândalo público. A exposição pública consistia em dar ao mal um poder de exemplo e resgate. Até o começo do século XIX, o louco continua a ser interpretado como um monstro, imediatamente relacionado com sua animalidade, que merece ser mostrado. Com a psiquiatria positiva do século XIX, as práticas de uma cultura clássica foram sendo repensadas (procurou-se evitar o escândalo com o internamento ou retiro doméstico, procedimentos que deveriam constituir segredo familiar), mas ainda habitadas pela ética do escândalo da animalidade (FOUCAULT, 2010, p. 145-159).

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furna de um lobo e indefesa. Você estava em segurança.”71 (BRONTË, 2008, p.

135). A comparação com um lobo também é dúbia, porque tanto serve para

descrever uma imagem negativa de Bertha Mason, por defini-la como animal,

como serve para enaltecer sua personalidade, pois o lobo é um ser valente e de

audição muito apurada; além disso, é um animal que trabalha em grupo. Com

isso, Rochester sugere que se Bertha Mason não podia falar, ela poderia recorrer

a esse outro sentido para lutar contra a opressão em Thornfield, e, assim,

defender, metonimicamente, o seu povo. Em contrapartida, ele define Jane Eyre

como uma ovelha, símbolo do bem, da paz, mas também do sacrifício. No

contexto, os dois sentidos são coerentes, pois naquele momento ela estava

trabalhando pela paz e pelo bem, ao cuidar de Richard Mason, e, por

conseguinte, de toda a mansão, já que estava a tranquilizá-la, como também

estava arriscando ser sacrificada pela jamaicana, uma vez que era indefesa. O

sacrifício simbolizaria a imolação de Jane Eyre, não voluntária, mas forçada,

enquanto estaria a consagrar Bertha Mason como uma entidade superior. Ainda

destacamos, nessa fala, a correspondência que Rochester faz entre ele e a

empregada, pela associação “ovelha” e “pastor”, outro exemplo de ambiguidade,

visto que, concomitantemente, Rochester defende a liberdade da branca Jane

Eyre, que se vê ameaçada pela não branca Bertha Mason, e recusa-lhe essa

liberdade em termos de gênero, ao colocar-se como pastor dela, simbolizando o

poder patriarcal.

O menosprezo pelo sujeito colonizado ainda pode ser percebido através do

repúdio e do desprezo do europeu pela jamaicana, quando ele expressa seu

desejo de “buscar a simpatia num ente que seja ao menos humano.72 (BRONTË,

2008, p. 182). Pela expressão incisiva “ao menos humano”, percebemos a carga

de negatividade semântica usada pelo europeu para caracterizar o sujeito

subalterno. Rochester fabrica o outro, ao fazer uma separação radical entre o

branco e o não branco, entre o primitivo e o civilizado. Esse tipo de fabricação da

alteridade é feito, portanto, pelo processo de discriminação (cf. BONNICI, 2000, p.

135). Essa discriminação, contudo, não é natural, mas cultural.

71

„I should have been a careless shepherd if I had left a lamb – my pet lamb – so near a wolf‟s den, unguarded: you were safe.‟ (BRONTË, 2001, p. 184). 72

“ [to] seek sympathy with something at least human.” (BRONTË, 2001, p. 249).

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Rochester ainda fabrica o outro quando insinua que sua esposa é uma

criatura violenta, ao perguntar para Grace Poole, no momento em que se

aproxima da esposa para exibi-la ao público: “Desta vez ela não tem faca?”

(BRONTË, 2008, p. 183)73. Essa idéia é reforçada pelo discurso da enfermeira da

louca, devido a ela dizer, repetidamente, para o patrão que tenha cuidado com a

esposa. Embora separados socialmente pela classe, os dois sujeitos brancos

compartilham da ideia de que Bertha Mason, o subalterno, é uma pessoa

astuciosa, propensa para o crime. De acordo com Bonnici (2000, p. 70), o

vocabulário do colonizador favorece uma interpretação acerca do colonizado

voltada para o sentido de barbárie. Por outro lado, a insinuação de Bertha Mason

estar armada indica sua preocupação em defender-se do colonizador.

Outro momento que marca a inferiorização do sujeito colonial em Jane

Eyre (2008) é aquele em que Rochester faz o espetáculo público de Bertha

Mason, articulando um discurso de homem inocente, em legítima defesa:

Eis a minha esposa – disse. – Esse é o único abraço conjugal com que eu tenho conhecido, esses são os carinhos que têm consolado as minhas horas de repouso! E isto foi o que eu quis obter, [...] esta jovem que se mantém tão serena e grave na boca do inferno, olhando, senhora de si, para os arreganhos do demônio. Eu a quis justamente como um contraste com este horror. Wood e Briggs, olhem a diferença! Comparem estes claros olhos com aquelas bolas vermelhas dali. Esta face com aquela máscara. Esta forma com aquela massa. E julguem-me, padre do Evangelho e o homem da Lei, e lembrem-se de que, pelo julgamento que fizerem, serão julgados! Agora, saiam. Vou libertar a minha presa.

74

(BRONTË, 2008, p.183).

A entonação que Rochester dá à “minha esposa” pode ser interpretada

pelo menos de duas formas: uma, ressaltando a ideia de dono do subalterno

feminino e colonizado, e outra, acentuando seu desprezo, a sua antipatia pela

alteridade. Essa segunda interpretação está mais explícita, porque o europeu

contrasta claramente as duas raças, a branca e a não branca, ao comparar

73

“she has no knife now, I suppose?” (BRONTË, 2001, p. 250). 74

„That is my wife,‟ said he. „Such is the sole conjugal embrace I am ever to know – such are the endearments, which are to solace my leisure hours! And this what I wished to have‟ […] „this young girl, who stands so grave and quiet at the mouth of hell, looking collectedly at the gambols of a demon. I wanted her just as a change after that fierce ragout. Wood and Briggs, look at the difference! Compare these clear eyes with the red balls yonder – this face with that mask – this form with that bulk; then judge me, priest of the gospel and man of the law and remember, with what judgment ye judge ye shall be judged! Off with you now. I must shut up my prize.‟ (BRONTË, 2001, p. 251).

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Bertha Mason com Jane Eyre, usando o recurso da cor dos olhos, um dos

elementos que os antropólogos levam em consideração para diferenciar as raças.

Rochester ainda estabelece a fronteira racial, ao atribuir uma imagem humana

para a “inglesinha”, ao decifrar sua face como de gente, enquanto confere à

jamaicana o aspecto de um monstro, já pressuposto pela expressão “arreganhos

do demônio” usada por ele no início da comparação para caracterizá-la. Outra

expressão que ressalta o sentido de posse, de domínio é “minha presa”. No texto

original, o caso é pior, porque a palavra usada é “prize”, prêmio, que dá um tom

sarcástico e amargo à frase, e conjuga com a lenda da phármakon, de não se

poder recusar um prêmio.

Ao confrontar Bertha Mason com Jane Eyre, Rochester, simultaneamente,

fabrica a imagem do “outro” colonizado e a do “nós” colonizadores. A produção da

alteridade se dá ao passo que o europeu constrói sua identidade. Isso porque “A

construção negativa do outro não europeu é [...] o que fundamenta e sustenta a

própria identidade europeia.”75 (HARDT; NEGRI, 2000, p. 124). Em síntese, a

fabricação da alteridade e da identidade europeia efetua-se em um movimento

dialético, em uma relação suplementar. Assim sendo, Bertha Mason é o

suplemento de Jane Eyre.

O que ainda chama a atenção na cena da espetacularização de Bertha

Mason é a relação linguagem e colonialismo. Quem possui o poder de controlar o

discurso é Rochester, apenas ele é quem tem autoridade para a “apresentação da

verdade”76, como relata Jane Eyre (BRONTË, 2008, p. 184). Na realidade, esse

poder já fora maior, exatamente quando Rochester conseguia impor o silêncio a

Thornfield, especificamente a Jane Eyre, e, sobretudo, ao irmão de sua esposa,

como podemos observar nesta passagem que ilustra o momento em que a

professora de Adèle fica a sós com Richard Mason cuidando de seus ferimentos

enquanto o patrão vai à procura do médico Carter, a outra pessoa que sabia de

seu segredo:

- Tenho que deixá-la neste quarto, com este cavalheiro por uma ou talvez duas horas [...] Sob pretexto algum você deverá falar com ele. E

75

“The negative construction of non-European others is […] what founds and sustains European identity itself. 76

the truth had been uttered by my master. (BRONTË, 2001, p. 252).

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Richard, você arriscará a vida se conversar com ela: abra os lábios, faça um movimento – e eu não responderei pelas consequências. O pobre homem tornou a gemer. Não ousava se mover. O medo, medo da morte, e de qualquer coisa mais, parecia paralisá-lo [...] - Lembre-se! Não converse! – disse ele. E saiu do quarto [...] Devia vigiar aquela figura fantasmal, aqueles lábios imóveis e azulados proibidos de falar – aqueles olhos que ora se fechavam, ora se abriam, ora vagavam pelo quarto, ora me fitavam, empanados sempre pelo horror.

77 (BRONTË, 2008, p. 131).

Tanto Jane Eyre quanto Richard Mason são submetidos ao silenciamento,

principalmente, o irmão da louca. Em “você arriscará a vida se conversar com ela:

abra os lábios, faça um movimento – eu não responderei pelas consequências”,

Rochester articula um discurso ambíguo. Ao dizer que o autóctone poderia

arriscar sua vida falando com Jane Eyre, tanto podemos entender que o ato de

falar poderia prejudicar seu estado de saúde, como podemos entender que contar

alguma coisa acerca do segredo seria motivo para ele colocar em risco sua

própria vida. Não responder pelas consequências poderia, por conseguinte,

significar que Rochester não seria responsável por resultados piores acerca da

saúde do enfermo ou significar que o europeu não se responsabilizaria por

qualquer ato que viesse a cometer contra o cunhado se ele revelasse “a verdade”.

As duas interpretações são coerentes, levando-se em consideração o que Jane

Eyre disse: “O pobre homem tornou a gemer. Não ousava se mover. O medo,

medo da morte, e de qualquer coisa mais, parecia paralisá-lo.” Portanto, Ricahrd

Mason obedece a Rochester, calando-se, porque tinha medo de agravar seu

estado físico e, também, porque tinha medo da ameaça do inglês, insinuada aqui

como “qualquer coisa mais”. De acordo com Césaire (1977, p. 26), ao colonizado

o colonizador institui o complexo de inferioridade, do medo, do desespero e do

servilismo, e, consoante Foucault (2010, p. 479-481), embora falando do louco,

provocar o medo, o terror ao subalterno era uma estratégia do poder do século

XIX para manter o controle sobre ele.

77

„I shall have to leave you in this room with this gentleman, for an hour, or perhaps two hours […] You will not speak to him on any pretext – and – Richard – it will be at the peril of your life if you speak to her: open your lips – agitate yourself – and I‟ll not answer for the consequences.‟ Again the poor man groaned: he looked as if he dared not move: fear, either of death or of something else, appeared almost to paralyse him […] „Remember!‟ – No conversation,‟ he left the room. […] I must keep to my post, however. I must watch this ghastly countenance – these blue, still lips forbidden to unclose – these eyes now shut, now opening, now wandering through the room, now fixing on me, and ever glazed with the dullness of horror. (BRONTË, 2001, p. 178-179).

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A obediência do estrangeiro ao europeu não significou para Jane Eyre

simplesmente um sinal de aprovação dos cuidados de Rochester com a saúde do

enfermo, devido a ela ter ficado intrigada com a situação:

E aquele homem sobre o qual eu me debruçava – aquele estrangeiro comum e clamo – porque se teria visto na rede de terror? E por que a Fúria investira contra ele? Que o teria levado a procurar aquele quarto da casa numa ocasião inoportuna, quando devia estar dormindo na sua cama? Eu tinha ouvido Mr. Rochester indicar-lhe um apartamento no andar de baixo. Por que fora ele ao terceiro andar e por que se mostrava resignado com a violência e a traição que havia sofrido? Por que se submetia ao silêncio imposto por Mr. Rochester? E por que Mr. Rochester impunha um tal silêncio? [...] eu via que Mr. Mason era submisso a Mr. Rochester. Que a vontade impetuosa de um dominava completamente a inércia do outro. As poucas palavras que os dois trocaram me convenceram desse fato. Era evidente que nas suas antigas relações o gênio passivo de Mason havia sido sistematicamente influenciado pela energia ativa de Mr. Rochester. De onde, então, procedera o desmaio de Mr. Rochester ao saber da chegada de Mr. Mason?

78 ( BRONTË, 2008, p. 132).

Na realidade, todos esses questionamentos querem dizer que Richard

Mason se resigna a obedecer Rochester, coisa que Bertha Mason não faz. Por

outro lado, eles levantam a suspeita de que Rochester guarda um grande segredo

em Thornfield, e que ele é do conhecimento de Richard Mason, além do de Grace

Poole e do médico Carter, quem cuida com agilidade dos ferimentos do autóctone

e acompanha-o na saída da mansão. A suspeita se intensifica pelo desespero de

Rochester e seu desejo de apressar a partida do hóspede, agindo no silêncio e

providenciando tudo o mais rápido possível para que a viagem começasse antes

de o dia amanhecer para que ninguém percebesse o fato:

Carter, depressa! Depressa! O sol já vai sair e temos de levá-lo antes disso.

78

And this man I bent over – this commonplace, quiet stranger – how had He become involved in the web of horror? And why had the Fury flown at him? What made him seek this quarter of the house at an untimely season, when he should have been asleep in bed? I had heard Mr. Rochester assign him an apartment below – what brought him here? And why, now, was he so tame under the violence or treachery done him? Why did he so quietly submit to concealment Mr. Rochester enforced? Why did Mr. Rochester enforce this concealment? […] I saw Mr. Mason was submissive to Mr. Rochester; that the impestuous will of the latter held complete sway over the inertness of the former: the few words which had passed between them assured me of this. It was evident that in their former intercourse, the passive disposition of the one had been habitually influenced by the active energy of the other: whence then had arisen Mr. Rochester‟s dismay when he heard of Mr. Mason‟s arrival? (BRONTË, 2001, p. 179-180).

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- É já, senhor. O ombro está pronto! Vou ver esta outra ferida do braço. Acho também aqui ela meteu os dentes! - E chupou o sangue, e disse que queria esvaziar meu coração – informou Mason. Vi Mr. Rochester estremecer. Uma expressão singularmente forte de desgosto, de horror, vincou-lhe, convulsionou-lhe a fisionomia até a contorção. Porém ele apenas exclamou: - Vamos, cale-se, Richrad! Não ligue às tolices dela! E não repita isto! - Ah, se eu pudesse esquecer! – redarguiu Richard. - Esquecerá quando sair do país, quando voltar para Spanish Town. Deve considerá-la morta e sepultada. Ou melhor: você tem necessidade de não pensar nela, absolutamente.

79 (BRONTË, 2008, p. 133).

Enquanto Rochester providencia a súbita saída de Richard Mason de

Thornfield, este procura dar detalhes do acontecimento, como o de ter seu

sangue chupado pela agressora, insinuando, com isso, o que Jane Eyre já havia

pensado: que Bertha Mason fosse uma vampira. Assim, o estrangeiro,

inconscientemente, dissemina a ideologia do branco acerca da fabricação da

imagem negativa do colonizado. Por outro lado, a atitude vampiresca de Bertha

Mason também pode significar a reaquisição da força falocêntrica, porque, na

verdade, quem é parasita é seu irmão, por compactuar com Rochester e o regime

colonial. Mas o que mais se destaca nessa passagem é a ordem que este dá ao

cunhado: “Cale-se”. O europeu não o proíbe de falar só durante o tempo em que

ainda está ali, mas por toda a vida, ao dizer para ele ignorar a irmã quando deixar

a Europa. Esse desejo de ver Richard Mason distante de Thornfield fora

externado desde a sua chegada ali, por Rochester compreendê-la como um

golpe, sendo evidenciado, também, no momento em que o jamaicano está

recebendo atendimento médico, quando o inglês diz-lhe: “você poderia ter

esperado até amanhã e ir comigo. Foi loucura rematada tentar vê-la esta noite e

sozinho.”80 (BRONTË, 2008, p. 133), discurso que tanto pode sugerir cuidado com

79

„Carter – hurry! – hurry! The Sun Will soon rise, and I must have him off.‟ „Directly, sir; the shoulder is just bandaged. I must look to this other wound in the arm: she has had her teeth here too, I think.‟ „She sucked the blood: she said she‟d drain my heart,‟ said Mason. I saw Mr. Rochester shudder: a singularly marked expression of disgust, horror, hatred, warped his countenance almost to distortion; but he only said: -„Come, be silent, Richard, and never mind her gibberish: don‟t repeat it.‟ „I wish I could forget t‟, was the answer. „You will when you are out of the country: when you get back to Spanish Town, you may think of her as dead and buried – or rather, you need not think of her at all.‟ (BRONTË, 2001, p. 181). 80

“you might have waited till to-morrow, and had mewith you: it was mere folly to attempt the

interview tonight and alone.‟(BRONTË, 2001, p. 181).

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o cunhado, como ódio por ele, devido a Richard Mason ter desafiado o conselho,

colonial/patriarcal, indo sozinho visitar a irmã, e, não, sob a tutela do esposo.

Esse discurso ainda possibilita a ideia de que o autóctone também fosse louco.

Desse modo, o dono de Thornfield mostra a sua força soberana; ele age como um

juiz, que tem o poder de fazer cumprir uma ordem. De acordo com Foucault

(2011, p. 37), “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem calar-se.”

Ao ordenar o esquecimento da esposa, Rochester sugere que Richard

Mason devia não lembrar que ali habitava a sua “irmã”, a saber, a sua gente, a

sua cultura, os seus costumes, a sua religião, o que poderia já não mais haver em

Thornfield. Por uma interpretação pós-colonialista, podemos deduzir que a

identidade da jamaicana passa a submeter-se a um processo de aniquilamento

desde que ela é introduzida no mundo europeu, quando Rochester começa a

impor-lhe um transplante ideológico de raça, ao qual ela procura resistir, e diante

da dificuldade de lidar com isso, acaba agravando sua loucura. Por outro lado, a

imposição do silêncio ao cunhado remete a uma estratégia do colonialismo de

não expor à sociedade a verdade sobre essa política, de que ela se define pela

força, pela brutalidade, pela violência para assegurar o empreendimento

etnocidário (cf. ANDRADE, 1977, p. 5). Sob essa perspectiva, o silenciamento

ainda pode estar associado ao direito capitalista de o comprador manter o

domínio sobre o objeto adquirido, enquanto o antigo proprietário passa a não ter

qualquer relação de poder sobre ele. Nesse caso, como a transação é inter-racial

e interclasse, significa dizer que o branco assume a posse do sujeito não branco;

que a aristocracia passa a ter o controle sobre a burguesia.

Contudo, o silêncio sobre a identidade do sujeito colonizado é rompido no

dia em que Rochester casaria com sua “inglesinha”, quando Richard Mason

testemunha a denúncia de crime de bigamia do europeu feito por seu advogado

Briggs, invertendo, assim, os papéis entre civilizado e bárbaro, pois quem

cometeria a bigamia, considerada pela ideologia ocidental uma prática de seres

menos evoluídos (os africanos, os mulçumanos, etc.), seria um europeu. Ao

apresentar-se timidamente, o cunhado mostra seu medo diante do inglês, do

colonizador, isto é, seu receio perante o regime colonialista, já que estava ali a

exigir do branco uma explicação pública para a relação colonial que ele

estabelecera entre si e a jamaicana. Em contrapartida, o rompimento do silêncio

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de Richard Mason só nesse dia também pode significar a reclamação do

vendedor (como ele era o único filho são da família poderia estar assumindo o

papel patriarcal) ao comprador, por ter negligenciado o contrato nupcial, o que

simbolizaria a frustração do colonizado de não pertencer à família europeia, a

qual a tem como parâmetro (cf. FANON, 1983, p.18).

Nesse contexto, Rochester é convocado a contar a história de seu

casamento, “a verdade” sobre sua esposa. A primeira informação que ele dá,

ainda na igreja, é que a mulher que desposara era uma louca, filha de uma crioula

que também era louca, informação que ele só conhecera após ter-se casado, já

que consistia em um segredo de família. A seguir, Rochester, já na mansão,

mostra a prova viva de sua realidade, ao exibir sua companheira louca,

trancafiada no terceiro andar, vivendo como um animal selvagem preso em uma

jaula. Mas a informação mais importante que ele conta, agora só a Jane Eyre,

depois de todos terem saído de Thornfield, é que seu casamento tinha sido um

negócio arranjado por seu pai e pelo pai da noiva, um rico lavrador e comerciante

nas Índias Ocidentais. Rochester diz que, de fato, como atestava o documento

apresentado por Briggs, seu casamento havia sido realizado em Spanish Town.

Vivera na Jamaica por quatro anos e só após decorrido esse tempo, o europeu

descobriu a loucura da esposa. Quando os médicos atestaram sua doença,

Bertha Mason passou a viver trancada, porém já não mais suportando a loucura

da jamaicana e a vida tropical, Rochester imagina levá-la para a Europa:

Lá não se conhece o nome conspurcado que tens, nem o fardo imundo que carregas. Leva a louca para a Inglaterra. Instala-a em Thornfield, com a devida solicitude e as cautelas necessárias [...] Deixa que caiam no esquecimento a sua identidade e sua ligação contigo. Cerca-a de conforto e vigilância. Envolve em segredo a sua degradação – e abandona-a [...] Trouxe-a, então para a Inglaterra. Fiz com o monstro uma viagem temerária. Fiquei contente quando, por fim, alcancei Thornfield e a vi seguramente confinada naquele quarto do terceiro andar, cujo compartimento há dez anos ela transformou em jaula de fera e furna de duende. Tive muito trabalho para arranjar-lhe um guarda: era preciso escolher alguém cuja fidelidade estivesse provada, porque os delírios da louca trairiam inevitavelmente o meu segredo. Além disso, a doente tinha momentos lúcidos, dias, às vezes, semanas inteiras – intervalos que me enchiam me insultando. Afinal encontrei Grace Poole, do Grimsby Retreat. Ela e o cirurgião Carter [...] são as duas únicas pessoas que admiti no meu segredo [...] A louca é, ao mesmo tempo, velhaca e malvada [...] Quando a imagino, pendendo para o leito do meu

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amor, a cara negra e intumescida da fera que esta manha se atirou à minha garganta, sinto o sangue gelar.

81 (BRONTË, 2008, p. 192).

Essa passagem ilustra bem a política colonial em Jane Eyre (2008), a

relação colonialismo e capitalismo, ao mostrar o despotismo do europeu com o

outro, a estratégia usada por ele para aniquilar a identidade estrangeira, enquanto

procura resguardar a sua, segredando a história de um casamento inter-racial por

interesse capitalista. Rochester toma providências para que a Inglaterra não tome

conhecimento de Bertha Rochester, ao segregá-la em Thornfield durante uma

década. Para isso, ele usa o dinheiro da própria esposa para pagar uma

enfermeira e um médico82 para serem seus cúmplices na manutenção da

loucura83 da esposa.

É possível que a loucura de Bertha Mason tenha sido fabricada,

consequência da opressão colonial e feminina e da imposição cultural, inclusive

da raça, de forma ideológica, imposta por Rochester. Isso pode justificar a doença

de Bertha Mason, devido à sua loucura ter sido manifestada ou piorada só após

quatro anos de relação conjugal. Essa hipótese ainda pode ser verdadeira se

levarmos em consideração que o casamento do europeu com a jamaicana

simbolizou uma empreitada colonialista, isto é, a exploração da colônia Jamaica

81

“there it is not known what a sullied name you bear, nor what a filthy burden is bound to you. You may take the maniac with you to England; confine her with due attendance and precautions at Thornfield […] Let her identity, her connection with yourself, be buried in oblivion: you are bound to impart them to no living being. Place her in safety and comfort: shelter her degradation with secrecy, and leave her.” […] „To England, then, I conveyed her; a fearful voyage I had with such a monster in the vessel. Glad was I when I at last got her to Thornfield, and saw her safely lodged in that third-storey room, of whose secret inner cabinet she has now for ten years made a wild beast‟s den – a goblin‟s cell. I had some trouble in finding an attendant for her: as it was necessary to select one on whose fidelity dependence could be placed; for her ravings would inevitably betray my secret: besides, she had lucid intervals of days – sometimes weeks – which she filled up with abuse of me. At last I hired Grace Poole, from the Grimsby Retreat. She and the surgeon, Carter […] are the only two I have ever admitted to my confidence. […] The lunatic is both cunning and malignant; […] When I think of the thing which flew at my throat this morning hanging its black and scarlet visage over the nest of my dove my blood curdles‟ (BRONTË, 2001, p. 263-264). 82

Conforme Foucault (2011, p. 178), a partir do século XVIII a medicina passa a funcionar como mais um suporte institucional de controle, ao lado da religião e da administração. O médico tem o poder de examinar, de atestar uma verdade quase perpétua sobre um doente. Assim, sua voz é um discurso incontestável. 83

Na literatura brasileira, o conto “O alienista” de Machado de Assis mostra claramente como a loucura é produzida pelo discurso científico no Brasil do século XIX. O protagonista da estória, Dr. Simão Bacamarte, maior médico do Brasil, Portugal e Espanha, faz uso de sua autoridade para instituir aos grandes nomes de Itaguaí, inclusive a sua própria esposa, o status de louco. Mais tarde, ele consegue o apoio do Estado para dar continuidade ao seu projeto de exploração humana. Desse modo, a loucura funciona como uma produção social, uma estratégia do poder para colonizar o povo, e não, como uma patologia.

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pela metrópole Inglaterra. Rochester casa-se com uma crioula, mas não é

qualquer crioula, é a filha de um homem com vastas posses nas Índias

Ocidentais. O interesse capitalista do europeu é o que justifica a união racial do

branco com a negra.

Na empreitada colonialista, uma grande preocupação era garantir a ideia

de superioridade da identidade europeia e de seus valores culturais. Embora sem

apoio no texto, através de uma interpretação pós-colonialista, podemos verificar,

no romance, essa preocupação através da atitude de Rochester em aprisionar

sua esposa em Thornfield, levantando a suspeita de que, possivelmente, isso

possa ter ocorrido não somente por ela ser louca, mas também por ela ser crioula,

autóctone, posto que a única narração do episódio, com ênfase à origem genética

da doença, é do próprio Rochester, que representa a voz do colonizador. Nesse

caso, o discurso do inglês é ambíguo, pois, ao dizer que constata a loucura da

esposa só depois de casados, isso, ao mesmo tempo, inocenta-o perante o crime

de bigamia, e incrimina-o, uma vez que o problema mental de Bertha Mason

associa-se à sua nova vida. O que queremos dizer com isso é que, segundo essa

leitura, existe a possibilidade de a loucura de Bertha Mason ter sido uma invenção

do europeu para esconder seu racismo e a sua fortuna colonial. De qualquer

forma, sendo louca ou não branca, Bertha Mason continuaria sendo inferior, pois,

conforme a ideologia da época, tanto o louco quanto o não branco se

assemelhavam a animais. O racismo de Rochester não deixa de ser revelado pelo

tom de desprezo, raiva e revolta de suas palavras quando expressa a Jane Eyre

seu sofrimento ao imaginar ela sendo tocada, agredida pela “cara negra e

intumescida da fera”. O aprisionamento de Bertha Mason adquire o sentido de

abandono pelo que o europeu faz depois disso:

- E que fez o senhor depois de escondê-la? Para onde foi? [...] - O que fiz, Jane? Virei fogo-fátuo. Para onde fui? Percorri o continente e vagabundei por todos os seus países. Minha ideia fixa era encontrar uma mulher inteligente e boa a quem eu pudesse amar: um contraste com a megera que tinha ficado em Thornfield...

84 (BRONTË, 2008, 193).

84

„And what, sir, [...] did you do when you had settled her here? Where did you go?‟ „What did I do, Jane? I transformed myself into a Will-o‟-the-wisp. Where did I go? I pursued wanderings as wild as those of the March-spirit. I sought the Continent, and went devious through all its land. My fixed desire was to seek and find a good and intelligent woman whom I could love: a contrast to the fury I left at Thornfield‟----- (BRONTË, 2001, p. 264).

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Enquanto mantinha a esposa sob controle em um espaço doméstico,

Rochester gozava de liberdade plena, conhecia o mundo, buscava encontrar uma

mulher inteligente e boa, o oposto de Bertha Mason, que é descrita como uma

megera. Ao dizer isso, fica pressuposta a ideia de inferioridade intelectual da raça

não branca e sua imagem negativa por ser considerada má, porém não só pela

pressuposição estabelecida nessa fala, mas porque antes disso Rochester chama

a esposa de louca malvada, e pelos crimes que ela cometera. Por ser negra,

Bertha Mason não merecia ser amada. Só uma branca poderia ser eleita para ter

o amor do cavalheiro europeu. Dessa forma, Rochester buscara seu “ideal entre

damas inglesas, condessas francesas, „signoras‟ italianas e „grãfinnem‟ alemãs”85

(BRONTË, 2008, p. 193). Portanto, por causa de sua raça, a jamaicana é

destinada ao abandono. Por outro lado, o discurso de Rochester corresponde a

uma autoincriminação, levando-se em conta o emprego do léxico fury no texto

original para referir-se a Bertha Mason, que significa fúria. Na mitologia romana,

as Fúrias são personificações da vingança, ou deusas da justiça. Elas têm o

poder de perseguir ou castigar mortais que cometem crimes, especialmente,

contra o matrimônio. Sua aparência expressa semelhanças com a forma

vampiresca, pois seus olhos são molhados por sangue86. Nesse sentido, tanto

física quanto moralmente, Bertha Mason pode encaixar-se nesse papel, com o

objetivo de castigar seu esposo pelos delitos morais, inclusive financeiros

cometidos contra ela.

De acordo com Fanon (1983, p. 65), a desvalorização afetiva está

relacionada sempre com o abandônico, com a construção de sua alteridade. Isso

porque o desprezo pelos sentimentos do outro leva-o a sentir-se excluído, sem ter

lugar87 no mundo. Como “o outro”, ele sente-se em uma posição instável, a

85

“ideal of a woman amongst English ladies, French countesses, Italian signoras, and German gräfninnen.” (BRONTË, 2001, p. 265). 86

Cf. Erínias. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Er%C3%ADnias>. Acesso em : 3 set.

2013. 87

De acordo com Bonnici (2005b, p. 26-27), o conceito de lugar está relacionado com o de espaço vazio e deslocamento, e o que é responsável pelo nexo é a linguagem. O lugar é o espaço que deixa de ser vazio, desocupado, para ser o local da interação entre a civilização e o povoamento. Isso acontece quando ocorre o deslocamento, ou seja, “quando o colonizador se desloca para as colônias; quando populações inteiras são recolocadas em outros lugares por causa da escravidão, migração, fome ou guerra; quando é imposta a língua do colonizador que cria o hiato entre o ambiente e a linguagem alheia [...] O lugar colonial, portanto, representa, ao mesmo tempo, o conjunto ambivalente separação/continuação entre o colonizador e o colonizado.” O sentido de

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procurar sempre uma tranquilidade só permitida pelo branco. O abandônico vive

em um estado de insegurança profunda, de carência afetiva, pronto para ser

repudiado e dizimado. Para o autor,

O negro tem sua identidade dizimada quando este [o europeu] o designa como pequeno, inferior, crápula, animal, sem fineza, alienado, o que provoca no negro uma sensação de não ser reconhecido como humano (FANON, 1983, p. 51).

A situação de Bertha Mason é, pois, na visão do colonizador, a do

abandônico, a do imigrante perdido, marginalizado, expatriado, ilegal, intruso,

criminoso, indecente, perverso; a do sujeito ambulante, sem origem, sempre visto

com desconfiança, como “o outro” deslocado, ou seja, aquele que enfrenta

conflitos identitários. É, ainda, a do parasita do mundo, porque ela vive um

complexo de dependência, no sentido de que Rochester submete-a a uma nova

cultura e impõe-lhe uma discriminação, estabelecendo para ele um complexo de

autoridade, de chefe88 (cf. FANON, 1983, p. 82). Pela aproximação de sentidos

entre os significantes “fúria” e “vampiro”, que fizemos acima, podemos

compreender que a comparação de Bertha Mason com seu aspecto parasitário

pode simbolizar, também, seu desejo de voltar às suas origens, de sair da

condição de ambulante, de recuperar a sua identidade. Consoante Bonnici (2000,

p. 266),

O deslocamento, seja físico, seja cultural, gera uma crise de identidade e autenticidade. O deslocamento físico pode ser pela migração forçada, a cultural pela degradação da cultura, do idioma, da literatura.

Assim, na ótica pós-colonialista, o autor estabelece dois tipos de

deslocamento: o físico e o cultural, ambos vivenciados por Bertha Mason, haja

vista ela ter sido trazida das Índias Ocidentais de forma forçada e seu isolamento

ter funcionado como artifício do colonizador para apagar sua cultura. Impondo o

silêncio à esposa, Rochester impedira que sua língua, seus costumes, suas

lugar é mais abrangente do que o de terra, por ele ser, também linguagem, um discurso em desenvolvimento e por estar intimamente associado ao conceito de identidade nacional. 88

Vale ressaltar que quem é parasita, de fato, é Rochester, pois é ele quem se apropria da riqueza de sua esposa.

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crenças e sua literatura contaminassem a cultura europeia e, por conseguinte,

maculassem a identidade inglesa. Por outro lado, isso significou a destruição

violenta da identidade jamaicana pela hierarquização cultural (cf. CÉSAIRE, 1977,

p. 57-58).

Ao proteger sua raça, Rochester defende a formação da identidade

nacional sob a perspectiva pedagógica, isto é, do significado, ao invés dos

sentidos, impondo a ideia de homogeneidade cultural (cf. BHABHA, 2010). O

inglês acredita em uma estabilidade racial, em uma verdade absoluta, em uma

homogeneidade cultural, nascida no passado e que deve se perpetuar no futuro.

O europeu pretende, assim, ensinar que o branco é autêntico, legítimo, uma raça

superior justamente por isso. Ele deseja calcificar a sua cultura e fragilizar ou

eliminar a da nativa, porque é insignificante. Ao recusar o hibridismo, o europeu

pensa que a pureza racial garante a identidade de sua nação. No entanto, a

identidade

não implica necessariamente, em termos ontológicos, uma estabilidade dada e eternamente determinada, nem uma exclusividade, um caráter irredutível ou um estatuto privilegiado como algo total e completo em si e sobre si mesmo (SAID, 2011, p. 480).

Nesse sentido, a identidade é uma construção histórica, híbrida,

incompleta, ela não se relaciona com singularidade, essência ou fechamento.

Porém, para Rochester ele conseguiria evitar a abertura ao hibridismo cultural

pela imposição do silêncio, pela exclusão do subalterno do mundo da linguagem

verbal. Ora, pela língua um homem carrega sua cultura, sua história, assume um

mundo e existe para ele (cf. FANON, 1983, p. 18).

Charlotte Brontë realiza o sonho europeu, ao criar um final trágico para o

colonizado com a morte de Bertha Mason, que representa o extermínio de sua

identidade cultural, de seu povo, e, portanto, a vitória do branco sobre o não

branco. Em síntese, o colonizador pratica o genocídio cultural (cf. ANDRADE,

1977, p. 6). Isso está implícito na própria simbologia do nome Thornfield, que

significa “campo de espinhos”, que, a princípio, representa o sofrimento de

Rochester, por ter que conviver com a esposa ali, bem como aceitar uma filha

que, possivelmente, não é sua para criar, e, a seguir, torna-se o campo de

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espinhos de Jane Eyre, pela grande decepção que ela sofre. Contudo, ele só é

um campo de espinhos para Bertha Mason, já que os outros dois se conhecem e

se apaixonam ali, terminando juntos, enquanto só ela, além de sofrer toda a

opressão e prisão naquele lugar, sem poder sair, tem que ver o marido cortejar

outra mulher à sua frente e quase vê-lo casar e morar maritalmente com essa

outra mulher embaixo de seu teto. Além disso, Bertha mason morre ali, sem

nunca mais ver sua terra natal.

A história de Bertha Mason, nesse sentido, é a de uma negra colonizada

cuja identidade paulatinamente vai sendo exterminada pelo colonizador.

Rochester representa um símbolo do despotismo inglês, do heroísmo da raça

branca. Heroísmo, sim, pois ele é aplaudido como herói pelo povo britânico que

testemunhara o momento em que ele tenta salvar a louca no dia do incêndio de

Thornfield, como dissera o hoteleiro da estalagem a Jane Eyre, quando ela volta à

procura de seu amor. A voz desse hoteleiro e o testemunho verídico do povo

funcionam como outros recursos linguísticos que contribuem para a disseminação

da ideologia de superioridade racial no romance e a prática do colonialismo.

Mas ainda podemos verificar a representação colonialista e os conflitos de

raça em Jane Eyre (2008) a partir de outras situações. Por exemplo, percebemos

o racismo em uma brincadeira em que Rochester se traveste de cigana. Quando

ele aparece na mansão, empregados e hóspedes tratam-no como animal ou

escrava, por tentar expulsá-lo de lá a ferros e gritos, chamando-o de “importuna” e

de “feiticeira autêntica”. Essas expressões, o enxotamento e a própria brincadeira

sugerem a sua inferiorização. Brincar de ser cigana adquire o sentido de

zombaria, riso, ridicularização dessa raça, como interpretou Heathcliff em O Morro

dos Ventos Uivantes (1971), quando Catherine retorna da casa dos Linton e ri

descontroladamente dele, e o cigano repreende seu comportamento, por

considerá-lo uma forma de humilhá-lo diante do branco.

Outra passagem que alude à questão do preconceito racial é a da

descrição de Richard Mason feita por Jane Eyre no dia em que o jamaicano

chega a Thornfield, exatamente antes da chegada da cigana ali. Logo ela o

designa como não branco, ao perceber seu sotaque. E, depois, antipatiza-se com

ele, porque “apesar de” ser bonito, seus caracteres faciais e comportamento

denunciavam que ele não era europeu. O articulador sintático de oposição

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“apesar de” funciona como um exemplo do problema da violência linguística

enfrentada pelo colonizador (cf. BONNICI, 2000, p. 117).

No que concerne à representação colonialista no romance, ela ainda está

vinculada à missão religiosa de John Rivers na Índia. O jovem burguês espiritual

age como colonizador, ao sugerir a Jane Eyre o estudo do idioma hindu e ao

querer que a prima o acompanhasse no processo de evangelização como esposa

(cf. EAGLETON, 2005, p. 22). Aprender a língua do nativo é uma das estratégias

do colonialismo, pois é pela linguagem que o branco trabalha o espírito do nativo,

leva sua cultura, seus costumes, suas crenças, sua ideologia. Como no século

XIX, a escravização física estava proibida, restava ao colonizador escravizar pelo

discurso.

Jane Eyre seria a esposa ideal para St. John, porque desempenhava bem

o papel de missionária, de educadora, como mostrou em Moor House, onde

trabalhara como professora, educando meninas, mas também porque ela “pela

sua fortuna pessoal, não depende de subvenção da Igreja.”89(BRONTË, 2008, p.

258). Jane Eyre concorda que não teria problema em educar meninas indianas,

em ser missionária em um lugar estrangeiro, o que atesta a sua simpatia com a

colonização. De acordo com David (2007, p. 92; tradução nossa), na Índia, Jane

Eyre poderia sentir-se inteiramente em casa como se aquele lugar fosse apenas

uma extensão de sua pátria. Para o autor,

Ela é uma personagem que, por sua perfeição moral, força física e celebração do inglês, ajuda a construir a identidade nacional inglesa, e como um emblema simbólico das práticas coloniais impecáveis, ela pinta os espaços vermelhos no mapa do império.

90

Vale salientar que o papel de missionária não deve ser entendido aqui só

como de pessoa que está interessada, de fato, em fazer filantropia, em civilizar o

nativo, levando-lhe o conhecimento, o Evangelho, o Direito (cf. CÉSAIRE, 1977,

p. 15). Isso porque a civilização pode esconder a violência do colonizador com

relação ao minoritário, sendo usada, também, com o objetivo de aniquilar a

identidade do nativo, praticando o genocídio de suas crenças, costumes, idiomas,

89

“Your own fortune will make you independent of the Society‟s aid;” (BRONTË, 2001, p. 352). 90

She is a character who, through her moral perfection, physical strength, and celebration of Englisness, helps to construct English nacional identity, and as a symbolic emblem of impeccable colonial practices, she draws red spaces on the map of empire.

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valores, etc. pelo processo de transculturação, ou seja, pela substituição de sua

cultura pela do branco (cf. RAMA, 2001).

Pela leitura feita, mostrando como o projeto colonialista está implícito, e, às

vezes, explicitamente demarcado no fio narrativo, sempre amarrado às questões

de raça, tendo como principal representação a metáfora do casamento da

jamaicana Bertha Mason com Rochester, pensamos que o silêncio da nativa e o

silêncio sobre ela, bem como a sua loucura podem ter sido uma produção da

ideologia do colonizador. Sua doença pode ter sido efeito da opressão e

repressão impostas pelo esposo europeu, que, depois de explorá-la,

simbolicamente, como colônia, e, ainda, como mulher, submete-a a um regime de

escravidão, embora ela se mostre resistente a esse regime. Já sua morte pode

ser interpretada como a incapacidade de o subalterno ter voz em sua sociedade

controlada pelo poder colonial e patriarcal. Por outro lado, o enlace matrimonial de

Jane Eyre com Rochester e sua prole podem servir para autenticar o triunfo da

raça europeia sobre a não europeia. Contudo, a justificativa para esse triunfo não

está relacionada com a ideologia da seletividade darwiniana, de que o europeu

venceu o não europeu, porque biologicamente nasceu determinado a ser superior

a ele; ela está fundada na conjugação do colonialismo com o capitalismo, no

despotismo inglês.

3.2 Silêncio e loucura: formas de resistência colonial

Pelo método da desconstrução derridiana e pela abordagem pós-

colonialista foi possível, no subtópico anterior, contrapormos a ideia metafísica,

defendida no segundo capítulo, de que a loucura de Bertha Mason estava

relacionada a uma causa genética e seu silêncio significava o reconhecimento do

subalterno de que a raça não branca é determinada biologicamente a ser inferior

à branca, tida como superior às demais raças. Assim como foi possível fazermos

esse contraponto, ao defendermos a tese de que a loucura e o silêncio de Bertha

Mason estavam associados à política de opressão do colonizador sobre o sujeito

da colônia, ainda existe a possibilidade de, por esse mesmo método e por essa

mesma abordagem, expormos outra tese acerca desses recursos em Jane Eyre

(2008), o que nos leva a mostrar, desse modo, que as obras canônicas não só

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servem para disseminar a ideologia de superioridade do europeu, conforme

assevera Said (2011). Assim, nosso objetivo agora é demonstramos a

ambivalência do romance, interpretando o silêncio e a loucura de Bertha Mason

como formas de resistência colonial (cf. BONNICI, 2005b, p. 53). Com isso,

queremos dizer que Charlotte Brontë não riscou totalmente a pessoa colonizada

em sua escrita.

Como no capitulo anterior lemos Jane Eyre (2008) sob a perspectiva

colonialista, destacando Bertha Mason como sujeito biologicamente inferior ao

branco, por ela ser crioula, e, no primeiro subtópico deste capítulo, frisamos mais

uma vez essa inferioridade da personagem, porém sob a ótica pós-colonialista,

mostrando sua condição como produção social, vinculada à ideologia europeia,

agora, nesta parte, podemos reconhecê-la como sujeito resistente, ao lado de seu

irmão. Nesse sentido, a resistência do subalterno pode ser observada, no

romance, por meio de quatro estratégias: a sly civility (a cortesia dissimulada), a

mímica, a ab-rogação e a apropriação, sendo as duas primeiras uma

denominação de Bhabha (2010) e as duas últimas de Ashcroft et al. (2010, p. 37),

como vimos no primeiro capítulo91. Bertha Mason, a principal representante da

subalternidade, faz mais uso da sly civility e da ab-rogação, enquanto Richard

Mason, o outro representante subalterno, utiliza-se mais da mímica e da

apropriação, estratégias que estão muito imbricadas. Isso porque Bertha Mason

age muito mais com fingimento, com dissimulação, que imitando o sujeito

colonizador, como faz seu irmão. Ela repudia a cultura do centro, ao negar a

linguagem europeia, diferentemente de Richard Mason que procura imitá-la, ao

apropriar-se do discurso do colonizador para garantir seu lugar social, e, desse

modo, o hibridismo cultural.

Os sinais de fingimento de Bertha Mason estão voltados para sua variação

comportamental: ora ela está em transes mentais, ora ela está completamente

lúcida; ora ela está calma, ora ela está violenta; ora ela grita, resmunga, gargalha,

ora ela permanece em profundo silêncio. Essa alternância de espírito pode ser

compreendida de dois modos: quando Bertha Mason está lúcida, calma e em

silêncio, está fingindo que está aceitando a opressão, a repressão, o domínio

91

Cf. p. 34-35; 38-39.

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ocidental. Provavelmente, seu objetivo seja conquistar a confiança do europeu,

fazê-lo acreditar que o colonizado é mesmo um sujeito inferior, sem valor e

incapaz de mudar a ordem discursiva e colonial para depois agir contra ele. Por

outro lado, quando ela está alterada psicologicamente, quando está gritando,

resmungando, gargalhando e tramando e praticando crimes, ela está reclamando

sua condição de subalternidade de forma explícita. De certo modo, Bertha Mason

age dissimuladamente, porque usa a loucura como estratégia para não ser punida

pelas forças coercitivas de poder. Assim, nos limites de sua loucura, a caribenha

consegue revidar os crimes coloniais, seu passado, a história de seu povo.

Outra referência à dissimulação da jamaicana é a passagem em que

Grace Poole, no dia da espetacularização de Bertha Mason, pede ao patrão para

ter cuidado, exatamente no momento em que ele pergunta à empregada se sua

paciente “Desta vez ela não tem faca?”92 (BRONTË, 2008, p. 183), e ela

responde: “Oh, nunca se sabe o que ela tem, senhor. É tão dissimulada! Não há

mortal que possa prever as suas manhas!”93 (BRONTË, 2008, p. 183). Bertha

Mason é caracterizada como uma pessoa astuciosa, perigosa e imprevisível. De

forma inesperada, ela pode atacar seu inimigo, surpreendê-lo com alguma arma e

atingi-lo com sua força, como acontece na ocasião em que Rochester se

aproxima dela para apresentá-la aos convidados de seu casamento. De repente,

“A louca saltou, agarrou-o ferozmente pela garganta e tentou morder-lhe o

rosto.”94 (BRONTË, 2008, p. 183). Bertha Mason luta com o esposo, investe toda

a sua fúria contra ele e tenta libertar-se de seu opressor “no meio dos mais

horrendos rugidos e brados e de repelões mais convulsivos”95 (BRONTË, 2008, p.

183). Ela conspira contra o colonizador no silêncio e age, também, no silêncio.

Sua atitude violenta funciona como estratégia colonial para reivindicar lugar

social, o direito à personalidade.

De acordo com Andrade (1977, p. 9-10), o colonizado tem o direito à sua

própria história, a libertar-se do peso colonial, resgatando sua identidade nacional.

92

“she has no knife now, I suppose?” (BRONTË, 2001, p. 250). 93

“One never knows what she has, sir: she is so cunning: it is not in mortal discretion to fathom her craft.” (BRONTË, 2008, p. 250). 94

“the lunatic sprang and grappled his throat viciously, and laid her teeth to his cheek” (BRONTË, 2001, p. 250). 95

“amidst the fiercest tells and the most convulsive plunges.” (BRONTË, 2001, p. 266).

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Isso porque o subalterno sente-se um parasita do mundo, um sujeito sem origem,

sem identidade, uma criatura ambulante (FANON, 1983, p. 82). Esse complexo

deriva da civilização branca, da cultura europeia que “impuseram ao Negro um

desvio existencial.” (FANON, 1983, p. 14). No entanto, não existem fronteiras

biológicas entre grupos humanos, pois

As diferenças que há entre nós não se devem em parte a fatores genéticos, em parte a fatores ambientais ou culturais, mas são essencialmente diferenças entre indivíduos, não diferenças entre grupos raciais separados por barreiras (BARBUJANI, 2007, p. 152).

O que traça divisas entre os humanos não é a raça, mas especificidades

relacionadas a cada indivíduo. Entre as supostas diversidades raciais, existem

poucas diferenças genéticas. Portanto, não é a cor da pele que define nossa

posição na sociedade, sendo as raças apenas uma invenção social.

A alternância de papéis de Bertha Mason sugere, também, a ambivalência

da estratégia colonial. Ao dissimular-se, o sujeito subalterno não troca de lugar

com o déspota, ele fica dividido entre dois lugares: o do colonizador e o do

colonizado, ou seja, fica ocupando a zona fronteiriça, o entre-lugar cultural, o

terceiro espaço. Na realidade, ele não inverte a ordem metafísica, porém mostra

que ela precisa ser repensada, respeitando a noção de diferença cultural. Mas

isso é muito mais importante, pois, segundo Bhabha (2010), significa a quebra de

uma memória mítica de identidades intocadas e a introdução de um novo espaço

nas definições culturais com a inclusão do povo nos enredos históricos, isto é,

significa a possibilidade de negociação entre culturas.

As aparições de Bertha Mason nos corredores da mansão Thornfield com

passos calados durante a noite, enquanto a Inglaterra dorme, representam o

movimento cultural, a presença ameaçadora do outro no local europeu, a

intimidade intersticial. Seu desejo de abrir portas pode significar seu anseio por

romper os limites impostos pelo colonizador ao colonizado, por aterrorizar a

autoridade colonial, desafiando a lógica espacial estabelecida por ela. Isso está

claro, porque a jamaicana descerra as fechaduras colocadas por aqueles que a

oprimem diretamente, como Rochester e Jane Eyre. Para conseguir sair de sua

condição escrava, Bertha Mason finge para a empregada que está dormindo ou

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bêbada e, quando esta se vê vencida pela astúcia da paciente, aquela começa a

lutar contra seus opressores. Se a louca isenta sua enfermeira de algum crime,

provavelmente, é porque esta não deixa, também, de ser uma escrava.

Os crimes contra o branco – o incêndio do quarto de Rochester, o

estrangulamento de Richard Mason, o rasgamento do véu de Jane Eyre e o

incêndio da mansão Thornfield – são planejados e executados secretamente,

usando a estratégia da dissimulação. Ela finge para todos da casa que está

dormindo e, enquanto isso, abala a estrutura colonial. Incluímos Richard Mason

nessa representação do branco, porque ele é um personagem inclinado para o

uso da máscara branca; ele é um negro embranquecido, como diz Fanon (1983).

Richard Mason age como um branco, pensa como um branco e comporta-

se como um branco. Ele o imita, apropriando-se de seus costumes, de seus

valores, de sua cultura, de suas crenças, ou seja, usa as estratégias da mímica e

da apropriação para fazer o revide pós-colonial. Richard Mason camufla-se de

europeu, ao despersonalizar-se e ao amputar aparentemente sua identidade,

assumindo, desse modo, até mesmo para sua irmã, a personagem inventada, o

que a leva a violentá-lo. O jamaicano usa essa personagem falsa, possivelmente,

para conseguir adentrar o ambiente europeu e conhecê-lo, para, em seguida, dar-

lhe uma resposta. Se ele revelasse para a irmã sua máscara, o revide poderia ser

impossível, uma vez que a mímica, segundo Bhabha (2010, p. 135), tem seu lugar

na interdição e seu terreno não é transparente.

Uma prova de que Richard Mason poderia não estar compactuando com a

opressão de sua irmã diz respeito à sua viagem inesperada a Thornfield, que

representou para o dono da propriedade um golpe, como ele mesmo dissera a

Jane Eyre, e, ainda, sua visita ao quarto de Bertha Mason sem a aprovação de

Rochester, quando lá estava hospedado. Outrossim, podemos perceber a quebra

na camuflagem do caribenho no instante em que ele não segura suas lágrimas ao

partir da Inglaterra, deixando, assim, a autóctone sob o domínio do europeu.

A presença de Richard Mason na Europa adquire o sentido de luta pela

libertação do subalterno e de ameaça anticolonial. Rochester não esconde seu

pavor, seu desespero, sua preocupação com o discurso do cunhado. Enquanto

ele tinha total controle sobre o discurso da esposa, com relação ao suposto aliado

a situação era diferente, haja vista Rochester não ter o domínio patriarcal a seu

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favor para garantir o domínio colonial sobre seu principal inimigo. Ao passo que

Bertha Mason estava “completamente” condenada ao silenciamento, seu irmão

significava para o europeu uma grande ameaça, já que este não tinha o poder

absoluto para impedir aquele de sustentar outra voz. O discurso é, portanto, o

poder do qual Rochester quer se apoderar, a saber, ele é também objeto de

desejo do colonizador, como defende Foucault (2009, p. 10).

Podemos verificar o desejo de Rochester de ter o poder do discurso sobre

Richard Mason quando, após a partida do estrangeiro para seu país, ao trancar

os portões de sua mansão, suspira em tom de súplica: “Prouvera a Deus que isto

fosse o fim de tudo!”96 (BRONTË, 2008, p. 134) como se estivesse a dizer que

gostaria de nunca mais sentir a ameaça de ter seu discurso questionado pela voz

subalterna. Ao fechar os portões, ele transmite a ideia de que anseia a

segregação racial, mas também a separação linguística. Ainda podemos

constatar esse desejo de exercer o poder sobre o discurso do outro na conversa

que Jane Eyre tem com Rochester:

- O perigo da última noite passou completamente, senhor? - Não posso garantir enquanto Mason não estiver fora da Inglaterra. Jane, viver – para mim – é permanecer numa cratera que um dia pode rebentar e vomitar fogo. - Mas Mr. Mason parece um homem facilmente dominável. Sua influência sobre ele, senhor, é absolutamente decisiva. Ele jamais o desafiará nem o ofenderá. - Mas, inadvertidamente, num instante, por uma palavra desavisada, pode me despojar, senão da vida, pelo menos da felicidade. - Diga-lhe que seja cauteloso, senhor. Comunique-lhe os seus receios e ensine-o a ser prudente. [...] - Se eu pudesse fazer isso, sua ingênua, onde estaria o perigo? Aniquilado num instante. Desde que conheço Mason basta dizer-lhe “Faça isso”, para ser obedecido. Mas, neste caso, não lhe posso dar ordens. Não lhe posso dizer: “Cuidado, para não me prejudicar, Richard”. Ao contrário: cumpre-me mantê-lo ignorante de que pode me complicar a existência.

97 (BRONTË, 2008, p. 135).

96

„Yet would to God there was an end of all this!‟ (BRONTË, 2001, p. 183). 97

„Is the danger you apprehended last night gone by now sir?‟ „I cannot vouch for that till Mason is out of England: nor even then. To live, for me, Jane, is to stand on crater-crust which may crack and spue any day.‟ „But Mr. Mason seems a man easily led. Your influence, sir, is evidently potent, with him: he will never set you at defiance, or willfully injure you.‟ „Oh, no! Mason will not defy me; nor, knowing it, will be hurt me – but, unintentionally, he might in a moment, by one careless word, deprive me, if not of life, yet for ever of happiness.‟ „Tell him to be cautious, sir: let him know what you fear, and show him how to avert the danger.‟ […] „If I could do that, simpleton, where would the danger be? Annihilated in a moment. Ever since I have known Mason I have only had to say to him “Do that,” and the things has been done. But I cannot give him orders in this case: I cannot say “Beware of harming me, Richard”; for it is

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Nesse diálogo, Rochester admite estar refém do discurso de Richard

Mason, ao assumir sua incapacidade de impor-lhe o silêncio. Sua consolação é

achar que seu cunhado mantém-se na ignorância, alheio à questão da exploração

colonial. Nota-se, nessa passagem, a preocupação do europeu com a linguagem,

com a forma de trabalhar ideologicamente com as palavras para levar adiante seu

projeto colonialista. Jane Eyre acredita que seu patrão é “medalhão”98 nisso, ao

crer na capacidade de ele influenciar facilmente Richard Mason com sua oratória.

Ao pensar assim e ao incentivar Rochester a ensinar o estrangeiro a ser prudente,

a professora de Adèle parece deixar clara sua aprovação à política colonialista.

Por outro lado, ela não deixa de ser uma expectadora inocente, por não perceber

que Richard Mason é um grande ator do revide pós-colonial, devido a ele estar

simplesmente usando a máscara branca.

O irmão de Bertha Mason abandona essa máscara no dia em que seria o

casamento de Rochester com Jane Eyre, no momento em que assume para o

público europeu sua identidade nativa. Richard Mason volta à Europa para

denunciar tanto o crime colonial quanto o crime de bigamia de seu cunhado. Para

ter sua voz validada na ordem das leis, o jamaicano vai acompanhado de um

advogado e com a posse de um documento que atestava a verdade de seu

discurso. Richard Mason tinha consciência de que somente sua voz não seria

suficiente para desestabilizar “a verdade” a ser contada pelo déspota. Conforme

Spivak (2010, p. 15), dificilmente o subalterno pode falar. E mais difícil, ainda, é

ele encontrar os meios para se fazer ouvir.

Mas enquanto esse dia não chegava, a resistência colonial em Thornfield

continuava sob o comando de Bertha Mason. Quando ela rasga o véu de Jane

Eyre e depois atira-o ao chão e pisa-o, seus atos parecem manifestar seu

sentimento de revolta contra o despotismo inglês. A imagem do véu rasgado pode

ser compreendida como o desejo de o subalterno rasgar o véu de civilidade, do

cristianismo; dilacerar a ideologia europeia de superioridade racial; denunciar os

grandes silêncios e hiatos da História; mostrar seu anseio por dividir espaço com

imperative that I should keep him ignorant that harm to me is possible. (BRONTË, 2001, p. 184-185). 98

O conto “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis (2001, p. 220-226), narra a história de um pai com experiência no uso de discursos ideológicos para atender às convenções de uma sociedade hipócrita, ensinando seu filho a ser um medalhão nisso, ou seja, campeão em dominar o outro pela palavra.

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o branco na ordem do discurso. Assim, a divisão do véu pode significar a luta do

não branco pela descentralização, pelo questionamento da verdade e pelo

desmantelamento dos discursos de homogeneidade cultural. Por ser dividido em

dois pedaços, e, não, em muitos, o rasgamento do véu ainda pode simbolizar a

bigamia, as duas esposas de Rochester, bem como as duas raças, a branca e a

não branca, e a própria relação colonial, a metrópole e a colônia. No que

concerne ao arremesso e ao pisoteamento do tecido, os atos podem ser

entendidos como o desejo de o oprimido livrar-se das “cangas” impostas pela

cultura ocidental e de fazer uma revisão do passado, esmiuçando a semântica de

cada significante, empregada pelo homem branco (cf. BONNICI, 2000, p. 31). O

objetivo de Bertha Mason seria, portanto, denunciar o projeto imperial inglês de

espoliação do Novo Mundo. Consoante Bonnici (2000, p. 54), esse projeto insiste

em renovar constantemente ao colonizado a ideia de que o colonizador tem o

segredo da História.

Nessa cena, contudo, identificamos rastros de ambivalência. Por que

Bertha Mason rasga o véu e isenta Jane Eyre de algum crime? A professora de

Adèle seria, de fato, sua rival? Analisando o recurso do espelho é possível inferir

que a imagem que Jane Eyre vê refletida no vidro de seu quarto não é a de outra

pessoa, senão a dela mesma. Essa imagem seria a repetição daquela que ela

vira quando criança no quarto vermelho, onde fora trancafiada pela tia e

submetida a um castigo comparado ao de um escravo. O que há, portanto,

psicanaliticamente, é uma identificação entre as duas personagens: a Bertha

Mason do presente corresponde a Jane Eyre do passado, descrita “como uma

„escrava rebelde‟ ou uma „escrava revoltada‟”99 cujos traumas de criança

configuraram-se em loucura100 (MEYER, 1996, p. 21; tradução nossa). Da mesma

forma que Jane Eyre escapa do quarto vermelho através da loucura (GILBERT,

1996, p. 477), Bertha Mason também pode ter encontrado saída para sua

condição oprimida pela loucura. Assim, “Bertha não age apenas para Jane; ela

99

“as a „rebel slave‟ or a „revolted slave‟”. 100

De acordo com Marcondes Filho (2003, p. 206-219), a loucura resulta da incompetência de o universo familiar não dar conta da pressão social sobre ele, tornando-se, assim, seu instrumento, devido a dilacerar individualidades que nele crescem. A instituição familiar burguesa é responsável por fabricar loucos. Corroborando com o pensamento de Durkheim, ele defende que a loucura é produto da moderna desorganização das estruturas sociais. Em síntese, a loucura é uma produção social.

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também age como Jane.”101 (GILBERT, 1996, p. 493; tradução nossa). Embora a

autora tenha empregado essa fala para referir-se às questões de gênero no

romance, aqui, ela, também, faz-se pertinente.

A ambivalência dessa cena refere-se justamente à ambiguidade da

identidade de Jane Eyre na narrativa: ela age como déspota ou como subalterna

subversiva? Em certos momentos, ela parece agir como defensora da condição

oprimida, por exemplo, quando não compactua com Rochester a ideia de manter

Bertha Mason sob o domínio dele, enquanto os dois passariam a usufruir da

riqueza que ela lhe concedera e quando ele lhe diz que não trocaria sua

“inglesinha por todo o serralho do Grão turco!”102 (BRONTË, 2008, p. 167), ao que

ela responde:

- Num ambiente de serralho eu não ficaria com o senhor nem um minuto! Portanto não me considere igual a uma escrava. Se tem alguma fantasia deste gênero, vá-se embora, senhor! Vá imediatamente para os bazares de Istambul! E empregue, numa vasta compra de escravas, a soma que parece estar tão empenhado em gastar aqui! - Que faria você, Jane, enquanto eu estivesse ocupado em negociar tantas toneladas de carne e organizar um tão formidável sortimento de olhos negros? - Eu ficaria me preparando para seguir como missionária e pregar a liberdade das cativas, inclusive as habitantes do seu harém. Arranjaria ser recebida nele e promoveria uma insurreição. E o senhor, poderosíssimo Pachá, se encontraria inerme nas nossas mãos. Não haveria nada neste mundo que fizesse cortar as suas amarras antes do senhor assinar um decreto, e o decreto mais liberal que um déspota já assinou!

103 (BRONTË, 2008, p. 167).

Em contrapartida, ao reprovar a comparação com uma escrava (oriental!)

feita por Rochester, condição que nunca aceitara, motivo por qual ela se revoltara

contra Gateshead, e ao mostrar-se a favor da libertação dos negros, expressando

101

“Bertha not only acts for Jane; she also acts like Jane.” 102

“one little English girl for the grand Turk‟s whole seraglio.” (BRONTË, 2001, p. 229). 103

„I‟ll not stand you an inch in the stead of a seraglio,‟ I said; „so don‟t consider me an equivalent for one; if you have a fancy for anything in that line, away with you, sir, to the bazaars of Stamboul without delay; and lay out in extensive slave-purchases some of that spare cash you seem at a loss to spend satisfactorily here.‟ „And what will you do, Janet, while I am bargaining for so many tons of flesh and such an assortment of black eyes?‟ „I‟ll be preparing myself to go out as a missionary to preach liberty to them that are enslaved- your harem inmates amongst the rest. I‟ll get admitted there, and I‟ll stir up mutiny; and you, three-tailed bashaw‟ as you are, sir, shall in a trice find yourself fettered amongst our hands: nor will, for one, consent to cut your bonds till you have signed a charter, the most liberal that despot ever yet conferred.‟ (BRONTË, 2001, p. 229-230).

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seu desejo de lutar como missionária para defender os escravos da exploração

humana, Jane Eyre deixa subentendidas duas coisas: a primeira, sua indignação

contra o fato de ser escravizada, sendo aristocrata pelo sangue, e o mais

importante, sendo branca (cf. SCHWARTZ, 1996, p. 550), e a segunda, sua

defesa pela liberdade dos escravos só no papel, ficando resguardada, desse

modo, a ideia de escravização ideológica, através do cristianismo.

Já o problema de Bertha Mason é outro: ela era rica, mas passa a ser

tratada como escrava em Thornfield, por ser crioula. Também, diferentemente, de

Jane Eyre, Bertha Mason age com dissimulação, o que a inglesa não faz,

conforme suas próprias palavras, revidando a tia Reed:

Não sou dissimulada. Se o fosse diria que gosto de você. Mas digo-lhe que não gosto; odeio-a mais do que a qualquer outra pessoa no mundo, com exceção de John Reed. E este livro sobre a mentirosa, você devia dar à sua filha Georgiana, porque ela é quem mente. Eu não.

104

(BRONTË, 2008, p. 26).

Jane Eyre classifica-se como uma pessoa autêntica, corajosa e rebelde.

Sua fala demonstra indignação contra aqueles que usam a mentira para

relacionar-se socialmente. Quanto à rebeldia de Jane Eyre, ela simboliza a saída

da opressão pela violência, a mesma estratégia que o colonizador utiliza para

dominar o colonizado (cf. CÉSAIRE, 1978). Nesse ponto, contudo, ela iguala-se a

Bertha Mason, já que esta sempre procurou sair de sua condição oprimida pela

violência. Não obstante, podemos questionar a autenticidade de Jane Eyre, por

exemplo, quando ela finge defender a liberdade do escravo estando,

possivelmente, a favor da escravização ideológica, como frisamos acima.

Em relação a Bertha Mason, sua última tentativa de romper as barreiras

raciais impostas pelo colonizador é ateando fogo na mansão Thornfield. Ela

aproveita o momento em que sua enfermeira está embriagada e rouba-lhe as

chaves de sua prisão; analisa a casa silenciosamente, e, depois, começa a

incendiá-la. Bertha Mason vai até o aposento que pertencera a Jane Eyre e toca

104

„I am not deceitful: if I were, I should say I loved you; but I declare I do not love you: I dislike you the worst of anybody in the world except John Reed; and this book about the liar, you may give to your girl, Georgiana, for it is she who tells lies, and not I.‟ (BRONTË, 2001, p. 30).

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fogo em sua cama, “como se soubesse de tudo e a odiasse”105, segundo o

depoimento do hoteleiro de Thornfield à própria Jane Eyre quando esta volta à

propriedade (BRONTË, 2008, p. 266-268). A partir desse discurso, podemos

inferir que a jamaicana tinha consciência da realidade colonial e que sua loucura

era apenas um meio para ela escapar do domínio europeu. É importante lembrar

agora que Bertha Mason “tinha momentos lúcidos, dias, às vezes semanas

inteiras – intervalos que enchia me [Rochester] insultando”106 (BRONTË, 2008, p.

192). Disso, constatamos um impasse na narrativa: se por um lado, Rochester

afirma que sua esposa tinha seus momentos de lucidez, por outro, somos levados

a pensar na reversão de sua oratória, enxergando a possibilidade de, na verdade,

a jamaicana ter momentos de loucura para poder escapar de sua condição

oprimida, conforme revela seu comportamento.

A resistência de Bertha Mason culmina com a destruição da residência

Thornfield, que sugere metonimicamente a destruição da metrópole. De acordo

com Meyer (1996, p. 7; tradução nossa), “O espaço doméstico do lar é ao mesmo

tempo um domicílio individual, mas também a sugestão de um espaço doméstico

em amplo sentido, como o espaço doméstico da Inglaterra.”107 A ruína física tem o

sentido extensivo de ruína ideológica. Desse modo, o sujeito subalterno efetua os

dois tipos de resistência elencados por Said (2011, p. 328): a primária, que é a

reação contra a dominação geográfica, e a secundária, que é a subversão à

ideologia e à cultura do colonizador.

Assim, o que se vê em Jane Eyre (2008) é uma sucessão de atos

subversivos com características próprias de movimentos rebeldes, como as

tendências incendiárias. O fogo aparece no romance como um símbolo da luta

social, mas também adquire o sentido particular de referência aos trópicos, à

colônia americana em oposição ao gelo do centro imperial. Consoante Gilbert

(1996, p. 475; 494), Charlotte Brontë usa consistentemente os pares oposicionais

fogo/gelo para caracterizar as experiências de Jane Eyre. Pela lógica

suplementar, as atitudes incendiárias de Bertha Mason lembram as da inglesa em

105

“she was like as IF she knew somehow how matters had gone on, and had a spite at her”

(BRONTË, 2008, p. 364). 106

“she had lucid intervals of days – sometimes weeks – which she filled up with abuse of me.” (BRONTË, 2001, p. 264). 107

“The domestic space of the home is at once an individual domicile and suggestive of the domestic space in a large sense, the domestic space of England.”

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Gateshead e em Lowood, mostrando sua rebelião contra o despotismo familiar e

religioso, respectivamente.

A batalha final entre colonizador e colonizado, ou entre branco e não

branco acontece no meio das chamas, detalhe que não é casual. As chamas

representam purificação, renovação e, não, o fim. Por isso, a morte de Bertha

Mason não pode ser entendida aqui como derrota do minoritário, e a cegueira de

Rochester simplesmente como castração, como vitória do oprimido sobre o

opressor, compreendida pela substituição de lugar, já que agora quem ficara

louco teria sido este. Outra razão para não se interpretar a perda da visão do

europeu como derrota do opressor é o fato de ela ter sido temporária, finalizada

quando ele desposou outra mulher, aformando-se como homem mais uma vez.

Nesse sentido, a cegueira de Rochester e a morte de Bertha Mason podem

expressar o nonsense colonial, a incerteza no campo da cultura, ou seja, a

indecidibilidade quanto à verdade histórica instituída pelo imperialismo (cf.

BHABHA, 2010, 192-195). Os dois recursos podem revelar a articulação

agonística entre os sujeitos nacionais, as raças branca e não branca, e as

culturas nativa e europeia. Além disso, podem mostrar que o espaço social

precisa ser interpretado pela lógica suplementar, pelo redesenho histórico, pela

visão do entre-lugar.

A resistência de Bertha Mason, portanto, significa que o subalterno pode

ter voz social, mesmo sem falar. Através do silêncio, ela pôde romper barreiras

raciais e buscar afirmar sua identidade, rasgando as camisas-de-força sociais (cf.

SANTOS, 2010, p. 263). De acordo com Wadi (2010, p. 341), as tentativas de

transpor as linhas de força e de ultrapassar o saber-poder envolvem o processo

de subjetivação do subalterno. Arrebentar as teias imperiais é, pois, uma

premissa para o reconhecimento do sujeito nativo.

Outrossim, podemos relacionar o silêncio de Bertha Mason com a

estratégia da ab-rogação definida por Ascroft et al (2010). A ausência de sua voz

na narrativa pode indicar sua recusa pela língua do colonizador, e, paralelamente,

por sua cultura, já que, como afirma Ngugi (2011), a língua transporta a cultura e,

esta, por sua vez, os valores pelos quais nós nos percebemos e percebemos

nosso lugar no mundo. Assim, o silêncio de Bertha Mason sugere sua luta pela

descolonização, uma maneira de ela sair do jugo colonial. Sua exclusão da

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linguagem não a impede de sustentar outro discurso, de responder ao centro, pois

“São outros sentidos que ganham existência nesse silêncio. Ou seja, ao silêncio

imposto pela censura, ele responde com o silêncio dos „outros‟ sentidos que ele

constitui em outra região.” (ORLANDI, 2010, p. 85).

O silêncio de Bertha Mason funciona como a linguagem do sujeito

deslocado, reclamando o desconforto do não pertencimento, ou seja, da angústia

de não pertencer a um lugar definido e de não ter uma identidade. Conforme

Bauman (2005, p. 19),

Estar totalmente ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente em algum lugar [...] pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, oferecer e barganhar.

O sujeito deslocado sonha em ter um vínculo nacional, porque deseja ter

segurança, a qual é garantida pela afirmação de sua identidade, pelo seu

reconhecimento social. Uma vez que o deslocamento causa ao nativo a sensação

de alheamento, de desprezo, de incômodo, seu anseio é de libertar-se dessa

experiência. Desse modo, a busca pela asseveração da identidade parece um

grito de guerra, uma estratégia defensiva: o indivíduo ameaçado e mais fraco

ataca uma totalidade maior e mais forte (cf. BAUMAN, 2005, p. 83).

Ainda observamos a ab-rogação em outros aspectos no romance, por

exemplo, no modo de Bertha Mason vestir-se e comportar-se, recusando

obedecer às convenções sociais, ao decidir não cuidar de sua aparência e agir de

forma criminosa em Thornfield. Mas o maior ato de recusa da cultura europeia é o

de praticar um sacrifício proposital pelo suicídio, haja vista ter sido ela mesma a

responsável por esse ato, conforme relatou o hoteleiro de Thornfield a Jane Eyre.

Para executá-lo, Bertha Mason aproveita o estado de embriaguez de sua

cuidadora, rouba-lhe as chaves e começa a incendiar sua prisão108. Depois de

108

Uma observação que não pode ser ocultada aqui é a violação das normas vitorianas por Grace Poole, através do consumo de bebida alcoólica, mostrando com isso, mais um ponto ambíguo do texto, que não só o colonizado infringe a conduta moral inglesa, mas o próprio inglês, embora este seja redimido de sua culpa, como fez o hoteleiro com a enfermeira, tentando justificar sua imprudência com a missão árdua de sua profissão.

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assistir à destruição quase completa do local que simboliza o despotismo inglês, a

autóctone se autoelimina, dando, assim, a maior prova de não desejar viver de

forma subalterna.

Desse modo, a luta de Bertha Mason para afirmar sua identidade está

relacionada a todos os crimes que ela cometera em Thornfield. No entanto, como

afirma Foucault (2011, p. 275), esses crimes não podem ser vistos apenas

como monstruosidades, mas como a volta fatal do que é reprimido, as pequenas ilegalidades não como as margens necessárias da sociedade, mas como o fulcro da batalha que aí se desenrola.

Os atos violentos praticados pela jamaicana, portanto, podem funcionar como

instrumento político para sua libertação.

Mesmo impedida de falar, Bertha Mason encontra meios para denunciar a

política colonialista do branco. A ausência de sua voz no romance não pode ser

entendida apenas como interdição, mas também como resistência. Do mesmo

modo, a loucura de Bertha Mason não pode ser interpretada só como doença ou

efeito da opressão e repressão do colonizador sobre o colonizado, ela, ainda,

pode significar uma estratégia do subalterno para escapar de sua condição de

inferioridade em relação ao branco e afirmar sua identidade.

Através da personagem Bertha Mason, Brontë (2008) comprova que o

sujeito subalterno pode falar, ele pode ter voz social. A autora mostra que sua

escrita é um “processo duplo de dizer e não dizer, de dizer ao não dizer.”

(SCHWARTZ, 1996, p. 551). Jane Eyre (2008) é, portanto, um exemplo de obra

canônica que não pode ser vista tão somente como instrumento de propagação

da ideologia de superioridade da raça branca sobre a não branca, pois do lado

dessa interpretação está a de que ela contribui para desmantelar discursos

instituídos pelas malhas do poder.

Sem necessariamente conhecer Wide Sargasso Sea (Vasto Mar de

Sargaços) (2009), a reescrita do romance, onde Rhys permite-nos escutar mais a

voz da narradora Antoinnete (a Bertha, como assim nomeou o colonizador

Rochester), justificando sua loucura como produção social e, ainda, como

resistência colonial, e denunciando a política colonialista do branco sobre o

crioulo, é possível, apenas com a leitura do texto original, atribuirmos, também,

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esses sentidos para o silêncio da personagem louca. Brontë (2008) possibilita

isso, ao criar pistas textuais que favorecem a ambivalência de sua escrita, o ir

além do que está dito. Sua linguagem, em uma acepção deleuziana, admite

“atravessar o caminho dos ruídos, da voz e da palavra para passar ao Verbo e

seu silêncio [...] à organização do sentido e do não-sentido” (MARCONDES

FILHO, 2004, p. 64).

Com a criação de uma personagem de origem caribenha e louca,

aparentemente marginal na narrativa, por ser excluída do sistema da linguagem, o

texto explode os limites dos significantes loucura e silêncio: a partir do

comportamento de Bertha Mason e do comportamento de seu esposo com

relação a ela, somos provocados a estranhar a ideia visível de patologia mental e

de sua consequente omissão linguística, para, ao seu lado inserirmos as

hipóteses de que esses significantes ainda podem acumular os sentidos de

produção social e resistência colonial. Sendo louca e sem voz no romance, e,

ainda, não branca, Bertha Mason desperta a nossa curiosidade acerca da

honestidade da narradora, ao contar sua autobiografia, por esta ser branca e seu

discurso ser construído a partir de discursos de personagens também brancos,

principalmente o de Rochester cujo casamento com a autóctone fora considerado

uma empreitada colonial, mas, além disso, porque sua voz seria suspeita, devido

ao inglês ter uma representação afetiva na vida de Jane Eyre, inicialmente, como

patrão, depois, como amigo, e, finalmente, como seu grande amor. Dessa forma,

somos motivados a compreender a exclusão do subalterno do mundo da palavra,

em correlação com sua procedência racial, cultural e mental, extraindo disso, a

possibilidade de as cesuras discursivas simbolizarem a opressão e repressão

coloniais de um sujeito duplamente colonizado: por ser mulher e por ser terceiro-

mundista.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura dupla que fizemos sobre Jane Eyre (2008), especificamente sobre

o silêncio e a loucura de Bertha Mason, reifica o estilo ambivalente da narrativa de

Charlote Brontë cuja trama marginal projeta-se em uma relação suplementar entre

a raça branca e a não branca, entre o colonialismo/patriarcalismo e a submissão,

entre o sujeito e o objeto. Pelo recurso da ambiguidade, a autora cria o sujeito, ou

o homem branco, articulando seu discurso sobre o objeto, ou a alteridade, de

forma a abrir espaço para a reflexão acerca da ideologia desse sujeito. Em virtude

disso, o texto possibilita tanto a leitura do lugar do colonizador como do lugar do

colonizado sobre a louca e sobre sua exclusão da ordem discursiva.

A análise do romance concentrou-se na comparação entre as personagens

Bertha Mason, a crioula jamaicana sem voz na narrativa, e Jane Eyre, a narradora

inglesa, e, ainda, na relação daquela com seu esposo Rochester cujo casamento

simbolizou uma empreitada colonial articulada entre os pais dos noivos: uma

autóctone burguesa e um europeu aristocrata. O ponto fulcral da pesquisa

envolveu o segredo sobre esse contrato nupcial, principalmente sobre o

confinamento da esposa em um sótão do terceiro andar da mansão Thornfield,

em solo europeu, o qual só era compartilhado, na Inglaterra, pelo médico Carter e

pela enfermeira Grace Poole até o dia em que Richard Mason decidiu romper com

o silêncio envolvendo sua irmã, porque Rochester estaria a negligenciar a

transação matrimonial, ao cometer o crime de bigamia, casando-se com sua

empregada. Nessas circunstâncias, Rochester é intimado a contar “a verdade”, o

que lhe rendem muitas linhas de performance melodramática, as quais orientam a

narrativa de Jane Eyre. Enquanto isso, observamos quase que um apagamento

total da voz do não branco no romance, haja vista a narradora ceder pouco

espaço discursivo a Richard Mason e nenhum a Bertha Mason. Devido a esses

aspectos estruturais, Jane Eyre (2008) apresenta-se como uma obra ambígua,

permitindo, assim, além da leitura colonialista, a leitura pós-colonialista, que é a

releitura daquela, com ênfase para a relação inter-racial e colonial.

Na leitura colonialista, mostramos que Bertha Mason pode ser interpretada

como um exemplo de ser inferior, primitivo, selvagem. Consoante a teoria da

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seletividade darwiniana, biologicamente, ou pela lei da natureza, socialmente, ela

teria nascido determinada a ser dominada pelo homem branco, a raça superior,

por ser crioula e louca, aspectos que a assemelhariam a um animal. Já Jane Eyre

seria considerada superior, por nascer branca e dotada de razão; ela é civilizada,

evoluída, educada. Seu bildungsroman revela sua coragem, determinação e

inteligência. Além disso, destaca-se pela inclinação para defender os minoritários,

por exemplo, solidarizando-se com Bertha Mason na defesa pelo gênero feminino.

Por sua vez, Rochester seria visto como um bom esposo, devido a ele, apesar de

ter sido lesado, tanto por seu pai quanto pela família da esposa, inclusive por ela

mesma, por terem-no escondido sua loucura, não lhe recusa assistência médica e

material. Ao descobrir a doença, Rochester transfere Bertha Mason da colônia

para a metrópole, precisamente para o seu lar, ao invés de interná-la em um asilo,

como era o procedimento comum no século XIX, possivelmente, para oferecer-lhe

o melhor tratamento existente e evitar um escândalo público, o que foi inevitável.

Já na leitura pós-colonialista, Bertha Mason, também, é lida como um ser

inferiorizado; contudo sua inferiorização não seria natural, e, sim, construída

culturalmente pela ideologia europeia, devido ao branco discriminá-la racialmente,

comparando-a a animais selvagens, tais como cão, lobo, hiena, ave de rapina,

fera, predicativos ambíguos por construírem, paradoxalmente, uma imagem

negativa e positiva acerca do subalterno, haja vista não servirem apenas para

caracterizá-lo como alteridade, mas por contribuírem, concomitantemente, para

mostrar o não branco como sujeito, como uma ameaça às forças coercitivas de

poder, pela coragem, fidelidade ao grupo e defesa de sua identidade. Desse

modo, a ambivalência do discurso do branco serviria mais para criar uma imagem

negativa sobre ele mesmo que sobre a outra raça. Ainda podemos observar que,

nesse âmbito, Bertha Mason é excluída do sistema discursivo: submetida ao

regime de escravidão de Thornfield, seu campo de espinhos, ela caminha da

independência para a dependência, pois antes de casar-se era uma mulher lúcida

e livre em sua pátria e, depois disso, fica louca; é arrancada de sua gente, de sua

cultura, de sua linguagem, e trancafiada na propriedade de seu esposo, em terra

estrangeira, onde é subordinada a um processo de aniquilamento identitário. Por

outro lado, Bertha Mason seria mostrada, ainda, como sujeito revolucionário, ao

lutar para reconquistar sua independência, pelas estratégias da cortesia

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dissimulada e da recusa da cultura metropolitana, reagindo, desse modo, contra o

regime de colonização.

No caso de Jane Eyre, seu bildungsroman revelaria seu lado ambicioso,

sua vontade de dominar o outro pelo saber. Seu perfil missionário ilustra esse

pensamento, no sentido de que seu interesse por civilizar o outro e promover sua

liberdade pode esconder seu desejo de escravizá-lo ideologicamente, já que a

escravidão oficial havia sido proibida na Inglaterra. Outrossim, seu processo de

formação mostra, paradoxalmente, que ela caminha da independência para a

dependência, qual seja, a menina revolucionária de Gateshead transforma-se em

um exemplo de dama à vitoriana de Lowood. Já Rochester seria visto como um

déspota: tem o poder do discurso e da medicina, o que indicaria uma

possibilidade de fabricar a loucura da esposa e escravizá-la. No entanto, tem seu

discurso questionado e sofre o revide pós-colonial, simbolizado por sua castração

visual, embora temporária.

As duas interpretações feitas sobre o triângulo Bertha Mason – Rochester –

Jane Eyre, como frisamos, sempre tiveram como referência o primeiro

personagem, diferentemente do romance que nos oferece o caminho inverso:

conhecê-lo a partir dos dois últimos. Assim, com o objetivo de compreender o

papel desse sujeito subalterno, nossa discussão acentuou a temática da loucura e

do silêncio de Bertha Mason, e, associados a essa questão, foram discutidos

outros pontos, como seu confinamento, seus crimes, seu casamento com

Rochester, e, também, o casamento deste com Jane Eyre. Contudo, nosso

propósito diante da escolha de uma análise focada em um sujeito minoritário não

quis dizer que ela assumisse só tintas subversivas, ideia que poderia ter sido

reforçada com a linha teórica eleita: a pós-colonialista. Aliás, se isso pressupõe

também outra ideia, a de elaboramos uma leitura colonialista forjada, dizemos que

nossa intenção não foi essa. Em todo caso, nossa finalidade foi criar espaço para

o outro falar, para sua voz ser comparada à voz do colonizador, conforme mostra

a forma de nosso trabalho. Nesses termos, o que aqui argumentamos, passamos

agora a sintetizar.

Na leitura colonialista, a loucura de Bertha Mason pode ser reconhecida

como patologia; sua doença revelaria sua incapacidade de civilizar-se, de lidar

com sua origem mista, com sua crioulidade. Por sua vez, seu silêncio simbolizaria

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a inferioridade do não branco em relação ao branco: sem saber, aquele estaria

destinado a provocar sua própria exclusão social, enquanto este estaria a dominar

o mundo com sua inteligência. Com relação ao confinamento de Bertha Mason,

ele estaria associado à sua condição: seria uma forma de proteção, de cuidado. O

fato de ela incendiar Thornfield confirmaria essa necessidade de ela proteger-se

de si mesma.

Na leitura pós-colonialista, a loucura de Bertha Mason pode ser

interpretada como produção social: a doença teria sido consequência da opressão

e repressão coloniais e femininas, sendo, portanto, fabricada pelo colonizador

com o apoio ideológico da medicina, para justificar o racismo e a fortuna

escravagista. Mas também, ela pode ser vista como forma de resistência colonial,

como estratégia do colonizado para perturbar a ordem colonial. Em se tratando do

silêncio, ele tanto simbolizaria o aniquilamento da cultura nativa, o controle sobre

o outro, quanto, paradoxalmente, representaria a subversão colonial, a rejeição da

cultura do colonizador. No caso do confinamento, este simbolizaria, de forma mais

evidente, o regime de escravidão. Thornfield representaria a dissolução da

identidade nativa através da imposição do transplante racial ideológico e cultural.

Mas esse lugar adquire ainda outra conotação: sua destruição funcionaria como a

libertação do subalterno.

Na leitura colonialista, os crimes cometidos por Bertha Mason – o incêndio

do quarto de Rochester, o estrangulamento de Richard Mason, o rasgamento do

véu de Jane Eyre e o incêndio de Thornfield, incluindo seu suicídio - são

entendidos como prova de fraqueza da caribenha, associada à sua inferioridade

intelectual, mas também como sua tendência animalesca à violência. Já na leitura

pós-colonialista, todos esses crimes tanto podem revelar a incapacidade de o

subalterno falar em uma sociedade regida pelo poder colonial e patriarcal, como,

de forma contraditória, sugerir sua luta pela independência, pela recuperação da

identidade nativa, de sua história, de sua cultura. Esses crimes podem mostrar o

lado revolucionário de Bertha Mason, suas batalhas para desmantelar a ideologia

ocidental, pautada na crença de superioridade racial, a qual é usada para explorar

sujeitos minoritários (nesse caso, a violência seria a única maneira de ser ouvida,

já que ela fora excluída da ordem discursiva). Encarcerada em seu silêncio e em

sua loucura, Bertha Mason denuncia seus opressores, inclusive seu irmão, que

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age de forma ambivalente na narrativa, ora defendendo seu povo, ora

apropriando-se da ideologia metropolitana, através da mesma estratégia usada

pelo colonizador, a violência, mesmo essa prática não sendo louvável, por não

resolver o problema em si, mas intensificá-lo. No entanto, é dessa forma que

Bertha Mason revida seu passado, bem como seu presente, e reivindica seu

reconhecimento como sujeito, desconstruindo, assim, a imagem gendrada de

animal selvagem fabricada pela estereotipia colonial.

Por fim, outro ponto que analisamos foi o casamento de Bertha Mason com

Rochester em comparação com o casamento deste com Jane Eyre. Na leitura

colonialista, o primeiro casamento se ajustaria na tradição cultural, segundo a

qual os filhos segundos casavam-se por dinheiro. Nesse caso, Rochester

apareceria como vítima do pai, do irmão e da família de Bertha Mason, somente

devido a eles terem omitido a doença da esposa. Não obstante, com a morte do

irmão, a esposa rica de Rochester perde a função, e, agora, ele precisa ser

continuador do nome da família, tornando, dessa forma, o casamento com a

caribenha indesejável do ponto de vista da sociedade inglesa. Em outras

palavras, sendo segundo filho, ele poderia diluir o sangue da família em troca de

riqueza, mas sendo filho único, não. Além disso, o segundo casamento mostraria

que, pela lei da seleção natural, a raça branca vence a não branca, qual seja,

como a narrativa celebra a união de Rochester com Jane Eyre, inclusive

permitindo a formação de uma prole só de forma intrarracial, fica sugerida a ideia

de superioridade da raça europeia sobre a crioula.

Por outro lado, na leitura pós-colonialista, podemos inferir o casamento de

Bertha Mason com Rochester como metáfora da exploração colonial, a saber, a

metrópole Inglaterra explorando a colônia Jamaica, a raça branca, a não branca,

mas também essa união pode significar uma aliança entre duas forças de poder:

a aristocracia e a burguesia. Relacionamos, ainda, esse casamento à causa dos

crimes praticados pela autóctone: seu comportamento violento funcionaria como

uma resposta ao silenciamento imposto por seu esposo. Em contrapartida, o

casamento de Rochester com Jane Eyre deixaria subentendido o impedimento da

miscigenação. Nesse sentido, a bigamia é observada como a inversão de papéis

na ordem discursiva, pois o bígamo é um europeu e quem denuncia o crime é um

subalterno. Outra interpretação relacionada a essa questão é a de que o

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rasgamento do véu de Jane Eyre por Bertha Mason em duas partes pode

simbolizar o rasgamento do véu de civilidade, do cristianismo; as duas raças; a

bigamia; a metrópole e a colônia, a aristocracia e a burguesia, dentre outros

significados.

Diante das considerações feitas, podemos dizer que, ao criar Bertha Mason

descerrando as próprias fechaduras de sua prisão, simbolizadas por seus gritos

mudos e crimes, especialmente a destruição de Thornfield, Brontë estaria

possibilitando o descerramento do próprio Jane Eyre (2008), ou seja, estaria

convidando o leitor para reler sua obra; para adentrar no espaço do silêncio e da

loucura com dois olhares: o colonialista, mas também o pós-colonialista. Nesse

sentido, detalhes da narrativa não poderiam ser omitidos nem compreendidos

como aleatórios, por exemplo, a insistência de Bertha Mason por abrir portas e

atravessar corredores, haja vista esse desejo revelar uma carga semântica

profunda, como de romper limites, de possibilitar a voz do outro em uma ordem

discursiva, de permitir a intimidade intersticial, mas também esses corredores

podem representar o feminino, em termos psicanalíticos. A forma textual

ancorada em falas ambíguas ainda favorece uma leitura dupla do romance, uma

análise dialética da temática pela comparação de discursos de raça. Desse modo,

compreendemos a obra como um lugar do desacordo de vozes sociais, do

desencontro cultural, da desconstrução subjetiva; um local para o movimento

suplementar dos sentidos por ela evocados, sendo, portanto, as leituras aqui

realizadas uma adição a outras leituras que já foram feitas e que ainda estão por

vir. Outrossim, ratificamos a tese de que ambas as interpretações não se

excluem, ao contrário, delas derivam outras interpretações, incluindo a

desconstrucionista, a saber, a dos entre-lugares, a dos interstícios culturais, ou a

da indecidibilidade.

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