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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA COUTINHO. Conceição do Coité 2012

O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

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Page 1: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA

PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA

MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS

O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO

SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA

COUTINHO.

Conceição do Coité

2012

Page 2: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

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MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS

O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO

SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA

COUTINHO.

Monografia apresentada ao Departamento de Educação da

Universidade do Estado da Bahia (UNEB), curso de Letras

com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas –

Licenciaturas, como parte do processo avaliativo para

obtenção do grau de Licenciada em Letras.

Orientadora: Profa. Ms. Eugênia Mateus

Conceição do Coité

2012

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“Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura,

poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo –

e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que sabemos,

tudo o que fomos” (David Harvey, 2001).

"A forma de uma cidade muda mais rápido, infelizmente, do que um

coração mortal" (Charles Baudelaire).

"A cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo o que povoa

a solidão. A cidade é o vazio" (Pierre Drieu La Rochelle).

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Dedico a Deus...

À minha mãe.

Ao meu filho.

À minha família.

Aos meus amigos

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me permitir humana.

Aos meus pais, sobretudo, à dona Joana, por me concretizarem humana.

Ao meu filho Gustavo, causa da minha plenitude humana.

Àqueles que comigo compartilham a honra de sermos unidos por laços sanguíneos.

Aos colegas de faculdade que, movidos pela mesma sede, alcançamos juntos uma

vitória.

Aos que se tornaram amigos, grata pela cumplicidade e companheirismo.

Aos mestres que passaram e deixaram sua contribuição.

À professora Jussimara Lopes por acreditar no que eu ainda não havia percebido.

À escritora Sonia Coutinho, por sua produção artística.

À minha orientadora, professora Eugênia Mateus, pelas inúmeras contribuições, pela

paciência, profissionalismo, disponibilidade, credibilidade no meu trabalho, pelo

humanismo.

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RESUMO

O presente trabalho discute a interferência da cidade na (des)construção identitária do sujeito

moderno. As características especificas desse individuo que, de dia ou de noite, é andarilho

das cidades, foram evidenciadas com o objetivo de enfatizar os fatores sociais colaboradores à

sua manutenção enquanto sujeito social. Para tanto, utilizam-se os conceitos tradicionais e

contemporâneos da literatura com vistas a analisar o Modernismo brasileiro à revelia do que

se considera Pós-modernismo. A análise literária de alguns contos da escritora contemporânea

Sonia Coutinho, indica, por vezes, um diálogo com os estudos culturais que, bem como a

produção literária brasileira atual, chama a atenção para os sujeitos historicamente isolados

das estruturas sociais. Os cantos da cidade ecoaram o ritmo da vida das personagens na

incessante busca pelo seu eu. Com base na constatação de que os anseios vivenciados pelas

personagens estão presentes tanto no universo feminino, como no masculino, realizou-se o

levantamento das características que definem o indivíduo em sua obra. Observou-se, então,

que para além de uma escrita tratando exclusivamente do universo feminino, Coutinho produz

uma arte que possibilita analisar o comportamento do humano contemporâneo em diversas

esferas sociais. Narrativas extremamente convidativas, envolventes, pois as sensações

demonstradas pelas personagens se misturam a estrutura urbana e geram fascinantes histórias.

Pessoas, aparentemente, perdidas de si mesmas e movidas pelo desejo de serem felizes. Os

leitores são seduzidos a embarcarem no mundo das personagens e, quem sabe, tentar

desvendar junto com as mesmas as veredas que as conduzirão à felicidade. Neste trabalho, a

cidade apresentada, adquire a forma dos desejos das personagens, justificando assim a sua

plasticidade e múltiplas faces. Erguida, segundo os sonhos dos que a desejam, a cidade segue

soberana, enquanto que em seu redor, ou pelas suas entranhas, sonhos irrealizados esvaem-se,

enquanto que aqueles que neles creram perdem-se nos labirintos urbanos. E a vida vai

passando. A análise foi baseada nos estudos de David Harvey (2001), Walter Benjamin

(1989), Ítalo Calvino (1990), Steven Connor (2000), Linda Hutcheon (1991), Leyla Perrone-

Moisés (1998) alguns dos teóricos que sustentam a interferência da cidade na (des)construção do eu.

Palavras-chave: Literatura. Conto. (des)construção identitária. Contemporaneidade. Cidades.

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ABSTRACT

The present work makes an analysis of the interference of cities in the identity deconstruction

of a modern man. The specifics characteristics of this individual, that, night and day, is a

cities´ walker. It was evidenced with the goal, emphasize some social factors that contributed

to maintain the man as a social subject, but, use traditional literature concepts and

contemporary literature concepts, in relation to the contemporaneity. The literary analysis of

some contemporary short stories by writer Sonia Coutinho, show us the dialogue with the

cultural studies, that, as the Brazilian production nowadays, call attention to the historically

isolated man of the social structures, the four cities corners echoed the rhythm of characters'

life, seeking their own identity. Based on in this observation that this anxiety makes part in

the female personality and male personality, was made some characteristics definition in her

literary work, notice that when the writing makes part of the female universe, Coutinho makes

an art that allows an analysis about contemporary human behavior in different social status.

It’s a extremely inviting narrative, engaging, some sensation showed by the characters have a

mix in some urban structures and allows fascinating stories. People, apparently lost in

themselves are moving because they wish to be happy, the readers are seduced to know the

characters’ world, and maybe try to discover what will conduct them to happiness. In this

work the city acquires the characters’ wishes; this way justifying the city’s multiple faces,

built by those who wish to, the city keeping on the top, whereas around it, some dreams has

been destroyed. Some of them who believed in the dreams are lost in the urban labyrinth, the

life is passing by. The analysis was based on some studies of: de David Harvey (2001),

Walter Benjamin (1989), Ítalo Calvino (1990), Steven Connor (2000), Linda Hutcheon

(1991), Leyla Perrone-Moisés (1998) some of theoretical, who believe in the city as a man’s

deconstruction.

Key- words: Literature. Shorts stories. Identity deconstruction. Contemporaneity. Cities.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO AO PASSEIO PELA CIDADE, EM SONIA COUTINHO .............. 08

1 LITERATURA E TALENTO: a tradição revisitada ............................................ 13

1.1 Modernismo ou pós-modernismo: a dialética e o espaço literário ............................. 17

1.2 Da tradição à contemporaneidade: quem conta um conto .......................................... 21

1.3 Originalidade e estilo na literatura finissecular .......................................................... 25

2 O EU PELAS RUAS DA MODERNIDADE .......................................................... 28

2.1 Andarilho noturno e o eu boêmio ............................................................................... 33

2.2 O Flâneur e a descoberta da cidade ........................................................................... 37

2.3 A modernidade e a velocidade desequilibrante do sujeito ......................................... 42

3 OS CANTOS DA CIDADE E A CONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA: uma

leitura da contística de Sonia Coutinho ..................................................................

47

3.1 Sonia Coutinho e a idealização de cidade: uma revisão bibliográfica ....................... 51

3.2 Desconstrução de identidades espelhadas nas ruas da cidade .................................... 56

3.3 Escrita de gênero: simplesmente a arte literária de um(a) autor(a) ........................... 60

AINDA NAS RUAS DA CIDADE: UMA ESCRITA (IN)CONCLUSA ..................... 66

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 69

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INTRODUÇÃO AO PASSEIO PELA CIDADE, EM SONIA COUTINHO

“MIL OLHOS DE ORVALHO DE UMA ROSA a

olharam, transparentes. Uma rosa molhada no Jardim

Botânico, de manhã cedo, sob o céu nublado. Tinha

chovido forte e agora caía uma poeira de chuva. A rosa

era chá, com um número infinito de pétalas macias

fechadas sobre si mesmas. A rosa, como um repolho do

céu. Abaixou-se, aproximou o nariz, cheirou. As pétalas

exalavam levíssimo perfume. De perto, o orvalho grosso:

viu que havia espelhos dentro das gotas, como se elas

fossem bolas de cristal. Mas é obvio que não adianta

fazer planos, pensou Tina. Que não adianta pensar no

futuro. Como também não adiantava lembrar o passado,

estar presa a recordações distantes. Apenas o presente,

ordenou a si mesma. Não havia passado nem futuro, só

esse agora. Enquanto mil olhos de orvalho de uma rosa a

olhavam, simplesmente” (COUTINHO. In: Mil olhos de

uma rosa, 2001, p. 9).

Em meio à selva de pedras da cidade, Rio de Janeiro, eis que uma gota de vida pura e

singela aspira antigas sensações. Nem tudo são horrores nesse lugar, o Jardim Botânico

mostra isso. Mas, ela, a rosa, não permite que a divagação chegue ao longe, entre cheiros e

prazeres o toque da realidade, o verbo viver, não no pretérito, tão pouco no futuro e sim no

presente.

Sonia Coutinho apresenta em sua contística inúmeras histórias, diversos personagens

perdidos nos labirintos da vida e presos nas garras da cidade, mas que, mesmo assim, se

tivessem oportunidade não fariam nada para mudar seu modo de viver, afinal, não

conseguiriam sobreviver de maneira diferente, em outro lugar. As personagens, sem terem

consciência plena da dimensão da telha que as envolve, buscam encontrar-se, querem uma

identidade.

Movidas pelas incertezas urbanas, desde as trazidas lá da cidadezinha, seguem em

romaria, sim, todas as personagens realizam a mesma trajetória, rumo à cidade prometida, Rio

de Janeiro. Com um poder envolvente, quase sobrenatural, atrai suas presas com belas

promessas, sucesso profissional, um lugar ao sol que, por muitas vezes, encontra-se escondido

atrás das nuvens, mesmo que o conto seja O último verão em Copacabana. Os fantasmas

surgidos na cidade a tornam uma verdadeira Doce, porque não, mas também cinzenta,

Copacabana. Não há obstáculos resistentes o suficiente para expulsarem os desbravadores

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dessa selva, embora a única saída, em algumas situações, seja o suicídio concretizado na

cidade. Importa assegurar a permanência na cidade, garantir que a sociedade visualize a sua

felicidade, falsa, e não voltar atrás, jamais, afinal, a cidadezinha não os quer de volta.

Com base na incerteza que assola a vida desses indivíduos, vivenciando situações

tipicamente contemporâneas, extremas, de amores e desencantos, tentar-se com esse trabalho,

traçar os impasses com os quais convivem esses indivíduos e que, os impossibilitam de

consolidar a sua identidade. Mas, discutindo, também, a possibilidade de que o objeto

desejado nessa incessante busca seja, de fato, utópico, impossível de ser encontrado e que é,

justamente, essa busca incessante que lhes garante a permanência da cidade.

O trabalho encontra-se estruturado do seguinte modo, apresentação, na qual se fará

uma abordagem geral do que está contido na pesquisa. Seguido de três capítulos, cada um

com três sessões e as considerações finais, numa conclusão incerta, como a escrita de Sonia

Coutinho, mas possibilitadora de diálogos outros. No primeiro capítulo, intitulado “Literatura

e talento: a tradição revisitada” a discussão respalda-se em conceitos tradicionais e

contemporâneos da literatura, bem como o uso de conceitos que a definem, além de apontar

alguns dos recursos linguísticos que utiliza. Para tanto, há uma abordagem mais específica em

momentos históricos específicos do panorama literário brasileiro, desde o Modernismo à

contemporaneidade, haja vista Sonia Coutinho estar inserida nesse contexto histórico e social.

Do mesmo modo, um diálogo com outra área de estudo, os estudos culturais, por

ambos dispensarem o foco de suas pesquisas ao espaço que o sujeito, historicamente rejeitado,

ocupa na estrutura social moderna. Aspectos como o estilo e a originalidade são abordados

como característica dos contos em estudo, assegurando com isso o valor artístico dessa

produção escrita.

Seguido pelo segundo capítulo, “O eu pelas ruas da modernidade”, discute-se os

aspectos dos andarilhos das cidades, de dia ou pela noite e o modo como a velocidade da vida

moderna contribui para que estes indivíduos não consigam encontrar estabilidade social e,

sobretudo, psicológica. Estabelece-se uma relação sobre as características do mundo moderno

que interferem à construção identitárias dessa época. E por último o capítulo “Os cantos da

cidade e a configuração identitária: uma leitura da contística de Sonia Coutinho” aborda os

aspectos atrativos da cidade e que servem de isca aos personagens dos contos em estudo. Há

uma revisão bibliográfica da contística em análise buscando apontar os indícios que

constituem, no imaginário das personagens, a cidade ideal. Na incessante busca por uma

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identidade as personagens driblam a adversidade da vida urbana, dando início a um processo

que passará a ser constante em sua (des)construção identitária.

Neste último capítulo há a apresentação da vida da escritora e a análise de uma

entrevista de Sonia Coutinho, na qual se puderam observar algumas características de sua vida

destacadas na trajetória de suas personagens. As narrativas de Coutinho têm como

personagens principais, na grande maioria, mulheres, fato que não impede de algumas

histórias terem como protagonistas homens que, por sua vez, compartilham dos mesmos

conflitos do universo feminino.

A partir da constatação de que os conflitos descritos pela escritora são recorrentes no

universo masculino e feminino, ou seja, típicos dos sujeitos pós-modernos, realizou-se uma

sucinta abordagem acerca de sua escrita. Logo, percebeu-se que, muito além, de uma

abordagem específica sobre gênero, a contística em análise oferece possibilidades para se

analisar o comportamento humano em diversas esferas sociais, desde as familiares à dinâmica

dos grandes centros urbanos.

Na conclusão deste trabalho tentou-se realizar um encerramento do corpus em

estudo, porém o objeto em análise não possibilitou, efetivamente, um fechamento da

discussão. São tantas as temáticas instigantes, capazes de conduzir os seus leitores a situações

inimagináveis no mundo real, mas totalmente possível no universo literário. Morte, solidão,

amores não correspondidos, incertezas, inseguranças, (des)construção de identidades,

conflitos com a estrutura urbana, dilemas familiares, fracassos profissionais, repressão

sexual, desejos contidos, nostalgia, descoberta dos (des)encantos da cidade, são alguns dos

elementos encontrados da contística de Sonia Coutinho.

Todas essas sensações se misturam à desconcertante estrutura das cidades e

produzem as mais fascinantes narrativas. Cenas fantásticas descritas deparam-se com uma

infinidade de personagens totalmente perdidas, mas, em meio à instabilidade, é latente o

desejo de desvendar os segredos da cidade e, quem sabe, sair do lugar de desbravadores da

felicidade.

Na busca por uma construção e consolidação identitárias, as personagens conduzem

os leitores a embarcarem em seus universos e observar, com um olhar mais atento, a multidão

contemporânea e, quem sabe, reconhecerem-se e, através da literatura, ressignificarem a sua

existência, cumprindo com maestria a função primeira da literatura, representar a realidade

provocando catarse nos seus amantes.

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A discussão aqui abordada tem como tema Literatura e identidade, instigado pelo

desejo de compreender o panorama literário do país após o Modernismo. A literatura, ao

longo da história do Brasil, consolida-se enquanto arte sempre na sustentação da sua

característica essencial, a arte da palavra. Contudo, em face de um novo cenário da história do

país há a intensificação no uso de alguns conceitos, bem como a exigência de novos, os quais

abarquem a complexidade contemporânea. Dentre os vários conceitos, pode-se apontar o de

identidade que, respaldado na efemeridade e fragmentação do sujeito contemporâneo oferece

aos leitores obras literárias compostas de ferramentas que lhes possibilitam pensar sobre os

fatores contribuintes para a afirmação do ser humano como tal.

A escritora Sonia Coutinho, na sua contística, apresenta narrativas, cujas personagens

principais estão em constante conflito existencial, sobretudo, o conflito interno motivado,

principalmente, pelo fato de elas não conseguirem se autoafirmarem. A escritora oferece um

riquíssimo material para que se pense sobre a condição do indivíduo na busca pela sua

identidade, por aquilo que é constante na vida das suas personagens, ao menos a maioria

delas, dar significado à sua vida, à sua história.

Assim, considera-se com esse trabalho assinalar: quais elementos da literatura

contemporânea são utilizados pela autora nos contos? Quais características garantem a

originalidade das obras? De quais subsídios se utiliza Sonia Coutinho para desmistificar o

paradigma de que, em sua escrita, trata, unicamente, de conflitos femininos? E, diante de tais

elementos, será possível afirmar que o espaço físico contribui para (des)construção identitária

dos sujeitos contemporâneos?

Com base nos questionamentos supramencionados delineou-se o objetivo geral:

verificar, sob o olhar da literatura contemporânea, as características do espaço físico

interferentes para as (des)construções identitárias na contemporaneidade. Seguido dos

específicos: Comparar Modernismo/Pós-modernismo à revelia da literatura tradicional;

Conceituar o conto sob a perspectiva tradicional e contemporânea; Identificar elementos da

literatura contemporânea nos contos em análise; Apontar a importância do espaço físico para

a (des)construção de identidades nos contos analisados; Analisar a escrita de Sonia Coutinho

como arte literária enigmática para além das discussões de gênero.

Tomando como princípios basilares a finalidade deste projeto e as múltiplas

possibilidades permitidas nos contos de Sonia Coutinho, chegou-se a sua concretização.

Incerta, (in)conclusa, apaixonante. Revigorou-se a função da literatura de oferecer novidades

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possíveis, vivenciadas e sustentadas num universo envolvente que só a literatura pode

proporcionar. Em um trilhar incansável pelas páginas da arte contemporânea, moldada pelas

mãos da artista contemporânea Sonia Coutinho, através de becos e vielas da cidade, algo novo

foi tecido.

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1 LITERATURA E TALENTO: a tradição revisitada

A literatura, como agente transformador e intensificador da linguagem, apropria-se

do sistema linguístico comum, representa a realidade e, por consequência, ressignifica-a e

desenha um estilo próprio que provoca estranheza e, ao mesmo tempo, catarse no leitor.

Com relação aos outros discursos, a linguagem literária distingue-se por desfigurar,

de várias formas, o sistema comumente usado. Essa distorção faz com que o cotidiano torne-

se um universo, inesperadamente, desfamiliarizado. Elementos como imagem, métrica, rima,

entre outros, produzem o efeito de estranhamento. Diante de situações, aparentemente

corriqueiras, o sujeito torna-se inseguro da sua realidade.

O novo cenário posto pela literatura instiga o leitor a ter outro olhar sobre o real.

Embora se trate de representação, nota-se que, pelo fato de o sistema linguístico utilizado ser

o mesmo do mundo verossímil, contribui para que objetos e situações da vida sejam

percebidos por outro ângulo. Uma linguagem mais intensificada e, portanto, revestida de

ressignificações sugestivas à autoconsciência. Eagleton (2006, p. 5-6), baseado na concepção

dos formalistas russos, destaca:

A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova

essas reações habituais, tornando os objetos mais “perceptíveis”. Por ter de

lutar com a linguagem de forma mais trabalhosa, mais autoconsciente do que

o usual, o mundo que essa linguagem encerra é renovado de forma mais

intensa.

A renovação dessas reações habituais revela-se contínua e intensa na linguagem

literária e, na contemporaneidade, muitas são as expressões artísticas retratadas. Sonia

Coutinho1, por exemplo, transporta a interrogação do quem sou eu, em sua narrativa. Ela, de

posse de um sistema linguístico, inteira-se do ato de fingir somado à seleção e à combinação,

representa, sobretudo, temáticas concernentes aos conflitos existenciais do indivíduo.

Coutinho apresenta, em sua contística, inúmeras narrativas, nas quais se podem observar

personagens imersas em constantes conflitos existenciais; são histórias que convidam o leitor

a embarcar, com um olhar mais atento, no mundo das personagens.

Percebem-se, em sua obra, características que corroboram com a afirmativa

apresentada por Eagleton. Propositalmente, ou não, a escritora traz elementos que consolidam

a sua literatura como original, esteja essa originalidade relacionada aos conceitos abordados

na tradição ou na contemporaneidade. No conto, Doce e cinzenta Copacabana (2005, p. 45),

pode-se ilustrar a capacidade do texto literário de impor novas possibilidades às meras

situações cotidianas, como a saída da personagem para um breve passeio em seu bairro: “[...]

1Autora dos contos em análise nesse estudo e que se encontra apresentada no último capítulo do

trabalho.

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ela pode estar aqui em Copacabana sem causar estranheza a ninguém, assim de calças

compridas um tanto sujas, mas então lembra a roupa para lavar, o apartamento imundo, os

restos de comida [...]”.

A peculiaridade da literatura ao utilizar o sistema linguístico convencionado faz com

que a sua leitura conduza o leitor, mais que criar um mundo fictício, imaginário, a acreditar

veementemente no universo inventado pela sua imaginação. Essa submersão, mergulho numa

outra realidade, é possibilitada através do uso de alguns artifícios literários, como a linguagem

conotativa. Acerca do uso e da função da linguagem comum pela literatura, D’Onofrio (2007,

p. 15-6) afirma:

A linguagem literária acentua o próprio signo linguístico, estando orientada

para a mensagem como tal e não apenas para seu significado. Sua função,

mais do que referencial, é essencialmente expressiva, pois confere um novo

sentido às palavras.

A discussão apresentada por D’Onofrio encontra respaldo na escrita de Sonia

Coutinho, pois a autora, ao se apropriar da convenção linguística, oferece uma nova visão,

uma ressignificação para o comportamento humano. No conto O leque do Afeganistão (2005),

a personagem do Professor Anaximandro demonstra uma conduta contraditória a que sempre

apresentara, ao menos no seu discurso, fica consternado ao perceber a mudança no

comportamento da sua esposa Sibila, ao notar que ela não o deseja mais. Nesse momento, o

Professor mostra a sua verdadeira face:

Ele remexeu, depressa, em alguma coisa atrás da orelha, e Sibila viu que

Desafivelava a Máscara. [...] Debaixo da cobertura de borracha que

compunha seus traços corriqueiros havia um misto de focinho de lobo e

feições grosseiras de sátiro (COUTINHO, 2005, p. 15).

A estranheza do texto literário que, ao mesmo tempo, afasta e convida o leitor a

trilhar pelos caminhos das suas narrativas, dá-se pelo fato de serem atribuídos, ao significante

o próprio texto literário, novos significados, sensações, emoções. O inanimado torna-se peça

fundamental do jogo de palavras criado e sustentado pela literatura. A verossimilhança é

característica do texto literário, pois o autor ao produzi-lo está sujeito às influências do mundo

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que o circunda. Essa proximidade com o real é justificada pela mímese, uma vez que o

universo existente na obra literária torna-se verossímil.

Apesar de a literatura estar cercada de artifícios que confirmam a sua escrita como

diferenciada e original, questiona-se, ainda, se haveria, efetivamente, algo a ser considerado a

essência da literatura. Nesse sentido, Eagleton (2006, p. 14) afirma não existir “uma

‘essência’ da literatura”. Análise de obras a partir do contexto social no qual estejam

inseridas, semelhanças e diferenças com esse ambiente, bem como a sua finalidade e a

maneira como o texto literário se comporta diante das práticas humanas que o rodeiam, são

alguns dos argumentos levantados pelo autor para fundamentar a sua discordância.

A concepção de texto literário, alicerçada apenas nestes princípios torna-se, o que

deveria ser uma obra de arte, em uma prática comum da linguagem, “puramente formal,

vazia” (EAGLETON, 2006, p. 14), nas palavras do escritor. Além de igualá-la a outros tipos

de realização linguística não-pragmática, como a piada que, assim como a literatura, nessa

concepção estritamente mecanizada, poderia transportar os interlocutores, de um dado

processo comunicativo, ao mundo apresentado por uma piada, dependendo do modo como é

contada.

Cabe salientar, portanto, outro conceito, intrinsecamente ligado à concepção de

literatura: o julgamento de valor. Nessa perspectiva, Perrone-Moisés (1998) afirma que as

considerações tecidas acerca da história literária neste século, deixaram à margem, senão de

maneira explícita, as questões inerentes a essa discussão.

Perrone-Moisés (1998) afirma, inclusive, que, para que a literatura seja utilizada

como instrumento fortalecedor das experiências de mundo dos leitores, os críticos literários

deveriam explicitar quais valores são utilizados em seus julgamentos. Essa atitude contribuiria

para que o leitor decidisse qual história literária serviria para aperfeiçoar a sua fruição num

contato com as obras.

Para o aprofundamento da sua critica, Perrone-Moisés (1998) discute sobre a

importância do passado para a consolidação de qualquer legado literário construído num dado

presente. Segundo a escritora, os autores, em sua contemporaneidade, devem ter consciência

sobre o passado que contribuiu para a organização de sua obra. A releitura do passado se dará,

segundo a autora (1998, p. 25-26), à luz de valores do presente e, como consequência,

garimpar-se-á subsídios para novas produções:

Page 17: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

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A leitura valorativa do passado literário efetuada pelos escritores-críticos

modernos afeta significamente a historiografia literária. A escolha efetuada

por um escritor entre os nomes-obras do passado é fortemente interessada:

trata-se, para o escritor, de julgar e selecionar com vistas a um fazer.

Os pressupostos apresentados por Perrone-Moisés (1998) dialogam com o que, em

outrora, fora proposto num ensaio por T.S. Eliot (1988). Neste ensaio, a individualidade é

fundamental para a consolidação e manutenção da literatura dos escritores. Cada leitor ao

entrar em contato com algum manuscrito tenta buscar o que o difere de textos anteriores,

sobretudo os mais próximos, algo novo, até então irrevelável e com isso deleita-se na sua

leitura.

A tradição está além da mera utilização dos êxitos deixados pela última geração. O

passado não é renegado, mas ressignificado, revigorado. O texto da tradição é lido no presente

como no período da sua escrita. Esta implicação exige que o escritor torne-se mais consciente

da sua contemporaneidade. O seu significado torna-se mais valoroso, pois se constrói, através

de comparação com artistas mortos, não apenas numa perspectiva histórica, mas crítica.

Tais pressupostos permitem ao poeta evoluir enquanto artista que, consciente do

passado, imprime na sua produção suas peculiaridades. Eliot (1989) afirma que essa evolução

relaciona-se a um autossacrifício, além de constante perda da personalidade. A partir dessa

afirmativa, o escritor apresenta a correlação da despersonalização com a tradição. A

característica da valoração do passado é encontrada na escrita de Sonia Coutinho. Através da

intertextualidade2, a autora revisita o passado e ressignica-o. Em Nos olhos do cão (2004, p.

85), os descompassos da vida da personagem são relacionados ao conflito vivido em um

clássico da literatura universal, a história de João e Maria: “Eu não queria nada disso pra mim,

pensou o homem de 50 anos para quem não haveria resgate. Estava perdido no bosque, depois

que os pássaros comeram a trilha de migalhas de pão”. Nesse sentido, a poesia deverá ser

concebida como “um conjunto vívido de toda a poesia já escrita até hoje” (ELIOT, 1989, p.

42-3).

O conflito interno do poeta com o seu próprio ser possibilita matéria-prima às suas

produções, pois poeta perfeito, certo de seus pensamentos separa o seu sofrer de sua mente

2 COMPAGNON, Antoine (2006). Expressão do léxico literário, criado pela semioticista Júlia Kristeva, o qual

designa o diálogo entre os textos.

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criadora, não se torna um artista atemporal. A mente do poeta é um reservatório de um

emaranhado de frases, imagens, palavras capazes de, unidas, constituírem um novo composto.

O artista utiliza-se, poeticamente, de emoções cotidianas, quase despercebidas, talvez

imperceptíveis e, com a ressignificação da linguagem, além de demonstrar todos os anseios

implícitos nesses sentimentos, impingem o objetivo do artista. Assim, entrecruzam-se a

individualidade dos escritores, através do talento, às sensações dos leitores para que a tradição

continue sendo construída.

Acerca das emoções baseadas no cotidiano, possivelmente estimuladas no leitor,

Sonia Coutinho apresenta diversas situações corriqueiras, mas somadas ao seu talento de

descrevê-las e a receptividade do leitor asseguraram a longevidade de sua obra. Discutir

literatura implica, quase sempre, um retorno ao seu passado histórico. Essa retomada, não

nostálgica, é a sua permanência ao longo dos tempos.

As diferentes abordagens no universo literário podem ser entendidas não como

progressos, mas como adequação e aperfeiçoamento, pois enquanto representação da

realidade, a literatura continua oferecendo novos olhares sobre o comportamento do ser

humano que, independentemente da época, conviverá com os conflitos próprios do seu ser.

A linguagem como instrumento primeiro da literatura reveste-se de novos focos, e

novos olhares a redimensionam a fim de trazê-la às perspectivas de um presente, mas que no

passado, inclusive, terá viéses imprescindíveis àquela atualidade. Apesar de tantas discussões,

a dialética se instaura, dando continuidade permanente ao discurso literário.

1.1 Modernismo ou pós-modernismo: a dialética teórica e o espaço literário

A produção literária, tradicionalmente, fora dividida em períodos determinados, não

por datas estabelecidas a rigor, mas pelo fato de os escritos de alguns autores que viveram

numa mesma época serem marcados por iguais características, senão muito próximas ou,

ainda, estarem voltados às mesmas ideologias.

O Modernismo brasileiro, movimento em estudo, surge no bojo das grandes

transformações sociopoliticoeconômicas, oriundas, principalmente, como consequências da

Primeira Guerra Mundial. Como uma nova estética que visava maior vivacidade na

representação dos sentimentos, emoções e ideais artísticos daquela época, esse movimento

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requereu um estreitamento com as camadas populares, pois a massa brasileira, enquanto

constituinte social, não poderia ser deixada à margem da representatividade do povo.

Nessa perspectiva, inúmeras são as definições acerca do que seria esse momento no

panorama literário. Apresentam-se conceitos que engendram desde a ruptura com tendências

literárias já estabelecidas à retomada de temas abordados em outrora, como as inquietudes do

ser humano mediante a incerteza do seu destino, bem como uma literatura que expusesse a

sociedade brasileira tal como ela é, afastando-se, com isso, dos resquícios europeus.

Percebe-se a importância do movimento para o país. Ele exerceu forte influência na

criação de um novo estilo que aguçava a consciência nacional de modo a exprimir as novas

perspectivas brasileiras frente às artes e às letras, à vida e à cultura da massa brasileira.

Alguns teóricos, afirmam não tratar o Modernismo apenas de um período histórico a ser

conceituado, mas estar relacionado aos valores culturais do país. Candido (2000, p.124)

ressalta essa ideia:

Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de

movimentos das idéias, e não apenas das letras) corresponde à tendência

mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Nele, e, sobretudo, na

culminância em que todos os seus frutos amadureceram (1930-40),

fundiram-se a libertação do academicismo, dos recalques históricos, do

oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social: o

ardor de conhecer o país.

A literatura, diante dos conflitos existenciais contemporâneos, apodera-se,

ficcionalmente, daquilo que a ciência não consegue explicar para se consolidar como arte, isto

é, enquanto representação da realidade apresenta hipóteses, ferramentas que podem levar o

sujeito a questionar a sua existência, deixando-o mais certo de si ou mais alheio a sua história,

desconstruindo, pois, a ideia de um mundo moderno coerente, igual, para reconstruí-la com

base numa realidade fragmentada, heterogênea e imprescindível às experiências desses atores

sociais.

Hutcheon (1991, p. 19) afirma que o “[...] pós-modernismo é um fenômeno

contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia

[...]”. Este período não deve ser percebido tão somente como o momento da história substituto

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19

do Modernismo, mas como um movimento denso e questionador da modernidade3 que, dentre

outros, discutirá os aspectos culturais para a formação das identidades. Ainda sobre o pós-

modernismo, a autora (1991, p. 31-2) considera:

[...] um processo ou atividade cultural em andamento, e creio que

precisamos, mais do que de uma definição estável e estabilizante, é de uma

“poética”, uma estrutura teórica aberta, em constante mutação, com a qual

passamos a organizar nosso conhecimento cultural e nossos procedimentos

críticos [...].

Há de se observar que a afirmação de Hutcheon encontra solidez na

contemporaneidade, pois além de perceber esse momento histórico como um processo, em

constante movimento, destaca-o como uma possibilidade a mais para compreender a

constituição cultural de uma dada época.

As definições apresentadas sobre Modernismo e Pós-modernismo apontam para as

peculiaridades de cada um desses momentos. Aquele, embora buscando uma melhor

representação de um Brasil preocupado com as demandas sociais, deteve-se, ainda, numa

escrita mais voltada aos conflitos individuais do sujeito, enquanto esse, na

contemporaneidade, discute a concepção de sujeito a partir do contexto em que ele se insere.

Nessa miscelânea de concepções, nota-se uma preocupação comum: a representação

do sujeito, o modo como sua identidade é construída nesse novo universo, tão incerto e

fragmentado. No conto Uma certa felicidade (1994), Coutinho enfatiza aquela que seria uma

constante na vida dos indivíduos na contemporaneidade, a autoidentificação em meio a

desconcertante estrutura dos tempos modernos. Sua personagem, numa possível visita ao

médico, tenta identificar-se, momento em que se evidencia a dificuldade de o sujeito

encontrar-se, definir-se (COUTINHO, 1994, p. 21-22):

Mas eu não tenho pontos de referência para reconstruir minha unidade. Tudo

embaralhado: numa etapa qualquer, houve a ruptura, a continuidade se

perdeu. Esqueci, doutor. Manuseio as pedras do quebra-cabeça espelho na

mesa – fragmentos coloridos, desencaixados, que sou eu.

3 Para Benjamin (1989), cf. Referências, modernidade é compreendida como uma época específica; designa, ao

mesmo tempo, a força que age nessa época e ao mesmo tempo a aproxima da antiguidade.

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As incertezas suscitadas na contemporaneidade tentam, mais que dar respostas aos

leitores, questionar os conflitos humanos com base em concepções de mundo. Nessa

interrelação de mundo real e ficcional, de representação mundana através de textos, ou, mera

criação de novos universos, a literatura encontra malhas para tecer a sua arte. Não se trata, tão

somente, de períodos literários, mas da materialização daquilo que se tornou uma construção

discursiva, a vida. Nessa perspectiva, Connor (2000, p. 107) diferencia:

[...] enquanto a literatura modernista se comprazia no afastamento auto-

reflexivo daquilo que se considerava um mundo real sólido e mudamente

não-discursivo, o mundo real transformou-se em literatura – numa questão

de textos, representações, discursos. O vinculo entre texto e mundo é

remoldado no pós-modernismo não pelo desaparecimento do texto no

interesse de um retorno ao real, mas por uma intensificação da textualidade

que a torna co-extensiva com o real. Uma vez que o real se transformou em

discurso, já não há separação entre texto e mundo a ser transportado.

Diversas são as discussões apresentadas sobre o que seria o tempo vivido pela

sociedade hoje: modernidade, pós-modernidade, ainda, contemporaneidade enfim, tudo o que

está além do que se considerou Modernismo. Percebe-se a necessidade de nomear o presente,

defini-lo como uma época específica a partir do comportamento social, bem como o modo

como será representado na literatura. A motivação para esse fato justifica-se, quiçá, pela

obrigação de situar os discursos a partir de uma dada época. Compreensões como de espaço

coletivo e individual, de ocupação do sujeito e do outro, de linguagem, são valiosas ao

discurso literário, pois serão basilares para a manutenção da literatura como representação da

realidade.

Mais do que nunca, esses debates são pertinentes, haja vista a complexidade

vivenciada por esse período que, com toda sua efemeridade, fragmentação, rapidez, concebe

sujeitos cada vez mais incertos de sua existência, de sua colocação na sociedade. A

insegurança torna-se um importante fator na construção de subjetividades, embora peculiares,

são vítimas de discursos, logo, sujeitas a mudanças. Villaça (1996, p. 186), traz para a

discussão: “No espaço que vai do individual ao social, do eu ao outro, do moderno ao

contemporâneo, constrói-se a subjetividade textual, onde as polaridades se dissolvem na

transformação permanente instalada pelo dialogismo”.

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Na contística de Sonia Coutinho, percebe-se a existência constante dessa concepção

de espaço e sua contribuição para a construção do mundo das personagens. São histórias que

têm como elementos a rua, moldada segundo os conflitos das personagens: “[...] Enquanto

tudo prosseguia em redor, o trânsito engarrafado, muralhas de pedra, a solidão, Copacabana e

um milhão de sonhos irrealizados” (COUTINHO, 2004, p. 88). Embora tenha buscado no

espaço coletivo um refúgio para a sua angústia, a personagem percebeu, apenas, que de nada

valerá a diversidade nele encontrada sem uma harmonização consigo mesma.

A literatura, portanto, como uma representante de discursos, estará sempre sujeita a

modificações, interferências, permanências. Contudo, independentemente do período tratado,

a obra deve manter as características que a asseguram como arte.

O poder, exercido por essa escrita de conduzir leitores ao êxtase e a se reconhecerem

em seus escritos, perdurará para além das discussões de períodos literários. Logo, mantendo-

se com tal habilidade demonstra que, como na tradição, mantêm-se viva, instigante,

inovadora, uma nova opção de realidade.

A arte rejuvenescida aos olhos de cada leitor se renova e se atualiza. As narrativas

que, segundo Cortázar (1993), aproximam-se da fotografia e valem pelo inenarrável (Seixas,

1998), também vasculham da tradição à contemporaneidade.

1.2 Da tradição à contemporaneidade: quem conta um conto

Tradição e contemporaneidade: duas faces de uma mesma história. Dessa maneira,

visualiza-se a trajetória literária que, como qualquer outra, apresenta múltiplas versões,

determinadas, sobretudo, pelo momento em que acontece. Como os indivíduos, a literatura

tem sua identidade construída a partir da sua história, por isso a necessidade de discuti-la

sempre à luz da tradição.

Entretanto, há de se questionar o próprio conceito de tradição, haja vista cada época

ser marcada por seus descompassos que, por consequência, serão impressos naquilo que

futuramente se considerará tradição, possivelmente, essa pode ser uma maneira de, além de

reconhecer a importância do que em outrora se construiu, criar a futura tradição solidificada

em bases concretas, também consolidar a literatura como uma linguagem atemporal, pois

representativa de uma época, oferece instrumentos influentes a novas discussões. Corrobora-

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se com Harvey (2001, p. 273) sobre revisitar a tradição, visando uma identidade, uma tarefa

não simples se entendida apenas como continuidade:

A afirmação de qualquer identidade dependente de lugar tem de apoiar-se

em algum ponto no poder motivacional da tradição. É, porém, difícil manter

qualquer sentido de continuidade histórica diante de todo o fluxo e

efemeridade da acumulação flexível.

A literatura brasileira consolida-se enquanto arte sempre na sustentação de sua

característica essencial, a arte da palavra. Contudo, em face de um novo cenário da história do

Brasil há a intensificação no uso de alguns conceitos da tradição, bem como a exigência de

novos, os quais abarquem a complexidade contemporânea.

Dentre os vários conceitos, pode-se apontar o de identidade que, respaldado na

fragmentação e efemeridade do sujeito contemporâneo, oferece aos leitores obras literárias

compostas de ferramentas que lhes possibilitam pensar sobre os fatores contribuintes para a

afirmação do ser humano como tal.

Nessa perspectiva, no final dos anos 80 e início dos anos 90, várias obras inserem-se

no que se consideram os paradoxos do contemporâneo4, cujas escritas focalizam desde temas

universais, tradicionalmente literários, a questões identitárias. A partir desse novo viés da

literatura, conceitos como o de identidade são ampliados, pois a transitoriedade do

contemporâneo impõe aos indivíduos múltiplos comportamentos, o que, naturalmente,

obrigam-nos a possuir uma identidade plural.

Sonia Coutinho, no conto Uma certa felicidade (1994, p. 14-15), apresenta uma

história na qual são perceptíveis algumas características do conflito identitário vivenciado

pelos sujeitos contemporâneos. A personagem principal, imersa num conflito constante em

busca do autorreconhecimento, mostra-se cada vez mais embaraçada em meio as suas

lembranças, pois não consegue juntá-las a fim de construir uma unidade, a sua unidade:

E eu, que quero afinal? Não sei, e estou com 28 anos e um passado que me

parece incompreensível e não tenho a quem oferecer de presente [...]. Mas, o

fato de ter esquecido tanta coisa me angustia como se tivesse perdido a

identidade. O esforço para lembrar é um esforço de me encontrar.

4 VILLAÇA, Nízia (1996). Conjunto de obras literárias cujo foco discute, entre outros, as crises de

representações identitárias na contemporaneidade.

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A rapidez e a tenuidade com que as concepções são construídas e desmoronadas na

atualidade desconstroem as bases “sólidas” do sujeito que entra em conflito constante.

Inúmeros são os dilemas, as (in)satisfações, a demanda por conceitos que consigam abarcar a

dinâmica da vida em movimento, iniciada nos primeiros anos do século XX. A ampliação

desse panorama exige a percepção das dicotomias com as quais se deparam o sujeito, além de

uma linguagem que contemple a diversidade social. Villaça (1996, p. 158) caracteriza essa

convivência com esse paradoxo:

[...] Vivência da crise da questão política, ética, artística, por uma

subjetividade que se volta para a história, para o nacional, a cidadania [...].

Crise de representação, da valoração, simultânea à procura de uma

linguagem que reflita o multiculturalismo, que mantenha as diferenças

retrabalhando sempre os pares distintos.

Diante da problemática na qual se encontra imersa a sociedade atualmente, torna-se

inconcebível discutir literatura como uma arte absoluta, haja vista o fato de os temas

pertinentes a essa linguagem estarem sendo debatidos em outras vertentes, como os estudos

culturais. A autora continua: “O valor do novo e a tradição de ruptura não se sustentam na

complexidade contemporânea, onde as questões sofrem rearticulações, formam redes” (1996,

p. 162-3).

Culler, assim como Villaça (1996), visualiza a literatura como uma prática cultural

específica que se beneficia ao ter suas obras relacionadas a outros discursos, isto é, os estudos

culturais podem buscar nessas obras o modo como representam as ideias de uma época.

Segundo o autor (1999, p. 51-2), o trabalho desenvolvido nessa perspectiva respalda-

se, sobretudo, no modo conflituoso em que as identidades são construídas. O estudo volta-se,

principalmente, à compreensão das culturas de grupos minoritários, historicamente

marginalizadas pela sociedade, mulheres, negros, que encontram dificuldades para sentirem-

se pertencentes à ampla cultura em que estão inseridos.

Compreende-se a importância de os estudos literários dialogarem com os estudos

culturais. Na contemporaneidade, fragmentação e efemeridade, características muito presentes

nos escritos artísticos, entrecruzam-se para construções identitárias cada vez mais incertas:

“Eu sou isso – meus conflitos, minhas insatisfações, minhas carências afetivas, essa constante

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e dolorosa sensação de perda. Acima de tudo, minha solidão. São coisas que doem, mas que

também aprecio, porque essas coisas sou eu” (COUTINHO, 2004, p. 75).

Surgidos dos estudos literários, os estudos culturais, tradicionalmente concebidos

como opositores da literatura, preocupam-se em apresentar novas possibilidades para que se

discutam grandes obras literárias sob uma nova ótica, abrindo bastantes debates sobre o

comportamento humano em sua contemporaneidade. E como ficam as discussões sobre

originalidade e estilo? As implicações estéticas? As desconstruções evitaram petrificações e

ou cristalização. Há uma nova construção, uma visão renovada. Uma busca do desconhecido.

Um mistério de fontes escondidas.

1.3 Originalidade e estilo na literatura finissecular

A essência da literatura constitui-se em materialidade da linguagem, formas na

página e sons no ar, como afirma Connor (2000, p. 89-90). O autor apresenta a essência da

literatura como um dos princípios literários para a obra. Ele contínua, ao debater a concepção

nas quais devem versar os princípios literários:

O principio da literariedade de uma obra particular como algo inerente não

tanto à sua natureza material quanto à sua forma – quer dizer, às maneiras

particulares pelas quais o estilo e a convenção eram empregados na obra de

arte particular. A literariedade, declaravam eles, estava na intensa

capacidade da obra literária de servir de mediadora às qualidades da sua

forma de atrair a atenção sobre esta.

Embora a contemporaneidade se apresente assolada de novos conflitos,

fragmentação, efemeridade, identidades etc., a literatura mostra-se renovada para continuar

representando a realidade, pois criou novos e intensificou a utilização de antigos conceitos.

Ao se apropriar do sistema linguístico comum para falar sobre o comportamento

humano, a literatura continua atraindo a atenção para as suas obras, pois independentemente

da época de que fala, permanece utilizando-se de seus conceitos para aproximar o leitor do

seu universo. Verossimilhança, mímesis, estranheza, catarse, fruição são alguns dos elementos

que, utilizados pela literatura e despertados no leitor, asseguram a sua originalidade.

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Numa perspectiva teórica, discutir literatura na contemporaneidade implica, também,

abordagem de questões outras, como os valores ideológicos vigentes e as práticas da crítica,

haja vista estes fatores interferirem diretamente para a construção de conceitos. Contudo, sua

interpretação não pode ser reduzida a esse aspecto, mas estendida à sua compreensão a partir

dos efeitos do seu discurso, como se observa no comentário de Connor (2000, p. 108):

A teoria literária pós-moderna, no sentido dual de um conjunto dominante de

idéias e práticas críticas [...] e de uma teoria de um modo dominante de

literatura contemporânea, pode vivenciar e projetar-se numa espécie de crise

eufórica; mas interpretar suas operações somente nestes termos é cometer o

erro comum de um só atentar para o conteúdo manifesto da teoria, em vez de

avaliar seus efeitos discursivos e ver o que ela diz e não o que ela faz.

Percebe-se então que, mesmo a literatura cumprindo com maestria a sua função de

representar a realidade, faz-se imprescindível atentar-se para as novas maneiras de conceber

essa realidade, pois esta tem se apresentado segundo várias concepções. Essa situação obriga

o discurso literário a moldar-se segundo uma nova organização e, automaticamente,

desenvolver novas estratégias de representação. Villaça (1996, p. 162) discute sobre este

aspecto: “Hoje, em plena crise de representação, quando o lugar do saber começa a aparecer

como construção histórica, discurso, interpretação, o par ciência/arte, desenha novos

movimentos, inventa-se numa dinâmica outra”.

Ao se tratar da originalidade na literatura contemporânea, é importante ressaltar outra

característica dessa escrita, o estilo, entendido quase sempre do ponto de vista individual.

Alguns teóricos, como Compagnon (2006), contradizem essa afirmativa, pois, segundo ele, o

estilo é construído sob dois aspectos, individual e coletivo.

Enquanto propriedade do discurso, o estilo imprimirá nos escritos os hábitos de uma

época. Com essa utilização, além desses escritos serem mais facilmente identificados como de

um tempo específico, possibilitarão o reconhecimento de alguns escritores e o legado deixado

por eles. Acerca da concepção de estilo, Compagnon (2006, p. 173), apresenta-o como um

conceito complexo que, imbricado a sua concepção, traz tantas outras:

O estilo, pois está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa,

rica, ambígua, múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores

à medida que adquira outras, a palavra acumulou-se e hoje pode comportá-

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las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, é tudo isso que

queremos dizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos de um

estilo.

Possibilitar êxtase absoluto, reconhecimento com um mundo ficcional, afastamento

da realidade, até mesmo dúvida sobre a condição de ser humano, ou simplesmente deleite

durante uma leitura, é assim a literatura que, discutida à luz de diversos conceitos, em

diferentes épocas, autores variados, deverá primar por manter, tão somente, sua característica

principal, a arte da palavra.

A tradição revisita-se, embriaga-se de conceitos e técnicas, metamorfoseia-se na

aventura humana de renovar-se e pôr na locomotiva da vida as ideias que, indiferentes ao

esgotamento da realidade, auxiliam na construção de símbolos num movimento ininterrupto

do artista que vê e espelha o homem que desfila a noite ou durante o dia pelas páginas

revigoradas do plano mágico do imaginário.

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2 O EU PELAS RUAS DA MODERNIDADE

A imaginação tornou-se um elemento essencial aos sujeitos da modernidade. Através

dela realidades são reinventadas. Em face do cenário vigente nesta época, iniciado na segunda

metade do século XIX (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 180), os indivíduos constituem-se cada

vez mais fragmentados, efêmeros, incertos de si mesmo. Seduzidos pelo fascínio das cidades,

muitos se enveredam pelas ruas, becos, vielas ou, ainda, em seus apartamentos, com intuito

de, não somente atribuir significado à sua existência, mas se encontrar. Contudo, os caminhos

trilhados rumo aos (des)encantos das metrópoles mais tem se apresentado como verdadeiras

bifurcações, pois seus andarilhos, com suas andanças ininterruptas, não conseguem definir

qual o destino alcançar.

A incerteza humana encontra solidez nas representações literárias da

contemporaneidade. Artistas, como Sonia Coutinho, através de sua obra, têm descrito de

modo peculiar o devaneio do sujeito moderno. Seria esse o momento da história da

humanidade em que a mera condição de cidadão, de homem livre, tornou-se insuficiente para

driblar as adversidades desse tempo e assegurar a existência? Alguns estudiosos dizem que

sim. Walter Benjamin, em seus estudos acerca da obra de Baudelaire, afirma que ao sujeito

moderno caberá um novo papel, o de herói. Reinventado nessa nova função poderá o

indivíduo recriar conceitos e identidades que garantam a sua vivência. Para o autor (1989, p.

73), “O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a

modernidade, é preciso uma constituição heróica”.

Para Benjamin, os obstáculos oferecidos ao homem desse tempo estão muito além das

suas forças naturais, por isso ele é impulsionado a buscar refúgio nas ruas, fazendo dela um

teatro a céu aberto no qual a vida possa ser reescrita. Contudo, nem sempre essa tentativa é

acertada, forçando-o a recorrer a outros mecanismos de sobrevivência. Enfraquecido mediante

as constantes dificuldades, o sujeito visualiza, como uma possível saída, a morte.

O autor (BENJAMIN, 1989, p. 75) chama a atenção para este tipo de morte. A

necessidade de ela ser concebida não apenas como uma perda, uma questão espiritual, mas

como a vontade do herói moderno, como uma última tentativa de demonstrar o seu fascínio

por este mundo moderno. “O suicídio podia parecer aos olhos de Baudelaire o único ato

heróico que restara às ‘populações doentias’ das cidades [...]”.

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Uma vez estabelecida a vida como uma peça teatral, inúmeras representações estarão

prontas à espera dos atores sociais. Nesse sentido Benjamin (1989, p. 75) postula: “Mas a

modernidade mantém pronta a matéria-prima de tais representações e espera um mestre. Essa matéria-

prima se depositou nas camadas, que, de ponta a ponta, aparecem como fundamento da modernidade”.

Antes que as cortinas da vida se fechem, muitas cenas são dramatizadas e a literatura

tem possibilitado a representação de muitos espetáculos. Sonia Coutinho traz, em sua

contística, histórias que têm a morte, ou o suicídio, como companheira constante, quase

sempre, como um último recurso frente aos dissabores de modernidade. No conto Doce e

Cinzenta Copacabana, pode-se visualizar o suicídio como um válvula de escape.

A personagem central da história acaba de acordar em um quarto “mergulhado em

cinzenta penumbra” (COUTINHO, 2005, p. 40) em Copacabana. Recentemente completara

28 anos, na semana passada. Desempregada, pois abandonara o trabalho de fotógrafa de um

jornal, guardou algumas economias, além de trabalhos extras que sempre surgem, batizados,

casamentos, festas infantis. “Dinheiro não é um problema imediato” (COUTINHO, 2005, p.

41). Talvez, preencher a lacuna causada pela solidão em sua vida fosse uma questão urgente.

Quem sabe, ainda, arrumar a bagunça do seu quarto, sua mãe não acreditaria que uma pessoa

fosse capaz de dormir num lugar assim.

Imersa em diversos conflitos, viver sozinha, ter fugido de um internato lá na

cidadezinha e, mesmo, assim não poder admitir a sua fragilidade, sente-se completamente

afugentada, desesperada, com medo, desejando proteção familiar: “Essa sua necessidade

inconfessável de ter um pai” (COUTINHO, 2005, p. 42). “[...] e seja como for, não saberia

viver de outra maneira – só que, ao abrir a porta do apartamento, ah, sente um calafrio de

desgosto/medo, tudo tão sujo e solitário e cinzento” (COUTINHO, 2005, p. 46).

Depois de um reencontro com as suas antigas amigas lá da cidadezinha, entra num

estado emocional mais incerto ainda. Todas estão casadas, a maioria com filhos e INFELIZES

Ao voltar ao seu apartamento, sujo e bagunçado, tenta estabelecer um pouco de ordem,

desiste, prefere ir para cama:

[...] então puxa a colcha, encolhe-se lá embaixo, é quente como um útero –

pode suicidar-se em seguida, não seria difícil abrindo o gás do banheiro e

deixando a água correr, iria pegando no sono, devagar – mas logo faz um

esforço e pensa que vai passar, que vai passar, que vai passar

(COUTINHO, 2005, p. 46).

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Colocar fim na própria vida, mesmo que seja em pensamento, é um recurso utilizado

pela escritora. Por vezes, a morte aparece em suas narrativas como uma explicação para

comportamentos observados pela sociedade como subversivos. No conto O leque do

Afeganistão que abre a compilação Os venenos de Lucrécia (2005), narra a história de uma

complexa relação, tumultuada, entre o Professor Anaximandro e Sibila.

Ele, homem austero, dos seus cinquenta anos, figura imponente no prédio onde

moravam. Ela, um tanto jovem demais para ele, trinta e cinco anos, portadora de uma beleza

jovial, mas que era ocultada pelo modo como se vestia e se maquiava, o que, naturalmente lhe

davam o aspecto de mulher mais madura. Os dois eram oriundos de boa família.

Ao longo da narrativa, nota-se que esta mulher carregava consigo desejos simples,

pois, assim como o ser humano tem oportunidade de realizar coisas singelas, pela última vez,

como ver o sol, passear, tomar banho, ela tem seus anseios, pouco significantes para alguns,

mas para ela, de valor inestimado. “Sim, existe uma última vez na vida em que se pode fazer

amor [...] ouvir um homem lhe dizer na rua (pela última vez), que é muito bonita – pois um

dia se morre” (COUTINHO, 2007, p. 8). A partir de tais afirmações, o leitor, poderá ou não,

deduzir que Sibila apresentava possíveis pistas sobre o seu futuro, incerto para aquele, pois ao

início da narrativa não se pode imaginar seu fim, mas certo para ela que, após cinco anos

numa união conjugal monótona, já presumiria seu destino.

Ora, seu esposo, o rigoroso Anaximandro, viu-se numa situação embaraçosa ao

perceber que de uma hora para outra sua companheira, até então uma mulher acima de

qualquer suspeita, segundo os parâmetros sociais, transforma completamente seu

comportamento, o qual ele chamou de “Estranha Vida Interior de Sibila”. E que um objeto em

destaque no meio da sua sala, um leque vindo do Afeganistão, poderia, não se sabe como, ter

alguma influência sobre essa nova mulher, mas um simples objeto adquirido numa sofisticada

butique de Ipanema exerceria, de fato, um poder sobre ela ou se trataria, tão somente, de um

pretexto, para que a mesma permitisse que algo escondido florescesse?

Ao passo que Sibila modifica a tradicional decoração a estilo inglês do seu

apartamento, o Professor a observa. Ela abandonara o comportamento que tanto estimava,

deixara de ser uma “mulher discreta e de classe”. Andava nua pela casa, pintava os lábios de

vermelho, “vermelhíssimos”; as unhas com esmalte roxo, banhava-se ao luar avermelhado

que entrava pela janela, passeava pelo jardim com os seios e o sexo à mostra, decididamente,

para o Professor, “Alguma Doença ela devia ter”. A austeridade apresentada pelo Professor,

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30

mediante a renovação de sua mulher, começa a mostrar-se enfraquecida, fazendo surgir um

homem sensível, fraco, “um pobre diabo”, vivendo o conflito de ter sua esposa submissa e

diabólica de volta ou adaptar-se a esta nova que se desvendava.

Ao receber de Sibila a revelação que estava apaixonada por outro, ficou transtornado,

mas com desejo de mantê-la ao seu lado, manter sua libido efervescente através desta mulher.

“Sua filha da puta [...] não pense que vai sair daqui assim, sem mais aquela, depois de tudo o

que fiz por você [...] Já pus uma bala de prata no meu revolver, tente só uma escapada e verá

– não esperarei por uma segunda oportunidade. Lixo de mulher” (COUTINHO, 2005, p. 16).

Submete-a, pois, à violência física e psicológica.

Contudo, não há evidências que comprovem a existência de outro homem na vida de

Sibila, existem referências, ora um Poeta cego, ora um jovem tuberculoso e ainda um

estudante de Arqueologia. Ou seja, não seria mais um dos vários artifícios usados pelo

narrador para ilustrar a conflitante condição da personagem, que idealiza um mundo

imaginário a partir dos seus desejos, anseios de mudança e sendo impedida de ser uma pessoa

livre, torna-se prisioneira da sua imaginação.

Como desfecho dessa história, o narrador apresenta dois possíveis fins para a relação

de Sibila e o Professor. Um, ela perdeu definitivamente o equilíbrio psicológico. O outro,

propositalmente se esqueceu da sua realidade, o que para ela era o maior pesadelo, “[...]

jamais conseguiu verdadeiramente suportar” (COUTINHO, 2005, p.19). Pode-se, diante disto,

pensar que seria esse o objetivo da personagem ao criar um mundo imaginário, migrar para

ele quando não mais tivesse condições de tolerar seu modo de viver, sem, contudo, ser

criticada socialmente por isso, sim, não se pode ou ao menos não se deve julgar alguém que

abandonou uma vida por motivos de distúrbios psicológicos, motivos que se desenvolvem

independentemente da vontade do ser humano.

Embora essas duas possibilidades tenham sido evidenciadas, pode-se perceber nas

últimas linhas do conto que mais uma vez a morte é usada como principal artifício para o fim

da vida da personagem. O homossexual, amigo presente em todos os seus momentos

conflituosos, propaga várias versões para o fim da história de sua amiga. Dentre elas, aponta o

suicídio:

Entre as várias versões que o Amigo Homossexual, anos depois, apresentava

para o final da história de Sibila, estava a de que ela teria sido rejeitada pelo

Amado, com uma frase áspera e então – a) não resistiu e suicidou-se,

deixando-se picar no seio por uma áspide [...](COUTINHO, 2005, p. 19).

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31

Os conflitos vividos pela personagem encontram solidez nas discussões da literatura

contemporânea. Na representação desse sujeito pós-moderno, efêmero, fragmentado, em

constante conflito consigo mesmo, a literatura deverá representar a desordem que dele emana.

(TESTI apud SABATO, 2008, p. 5), reforça a ideia de representação do indivíduo pós-

moderno:

O homem de hoje vive em alta tensão, diante do perigo da aniquilação e da

morte, da tortura e da solidão. É um homem de situações extremas, chegou

aos limites últimos de sua existência ou está diante deles. A literatura que o

descreve e o interroga só pode ser, portanto, uma literatura de situações

excepcionais.

A afirmação supramencionada descreve algumas características que podem ser

associadas à Sibila nesse ponto de sua vida. Ela encontra-se em alta tensão por conta das

pressões, psicológica e social, as quais o marido a submete. Há um processo de solidão que a

conduz, inclusive, através do sonho de embarcar em um novo outro mundo, sem tampouco

sair do seu apartamento.

A morte, solução encontrada por seu Amigo Homossexual a fim de oferecer–lhe um

fim de vida digno, embora não se sabe concreta, pode ser vista sob um novo olhar. Não seria

essa morte a representação de uma possível saída para tantos conflitos da contemporaneidade?

Há inúmeras discussões acerca do comportamento humano pós-moderno, porém pouco se

falou sobre o modo como ele deve se portar mediante seus conflitos existenciais.

Este é um tema recorrente na contística de Sonia Coutinho. Em Nos olhos do cão, o

homem, de 50 anos para quem não haveria mais resgate, em meio ao seu desespero e solidão,

encontra na morte o refúgio que julga necessário: “A morte como um segredo seu, um grave e

digno segredo seu, a sua morte. Era preciso, pensou o homem” (COUTINHO, 2004, p. 88).

Pare ele, já muito cansado da vida que leva, visualiza na morte o último recurso capaz de

livrá-lo das angústias que o acompanham: “Quase com alívio, ah, ele estava tão cansado da

aventura humana. E, um dia, não tão distante assim, poderia afinal, como um simples vivente

morrer” (COUTINHO, 2004, p. 88).

O papel de heróina modernidade estará sempre à espera dos que quiserem arriscar esse

modo de vida. Contudo, Benjamin (1989, p. 93-94), embora afirmasse anteriormente sobre a

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importante função do herói, reforça que nem mesmo ele conseguirá se libertar das amarras da

modernidade:

A modernidade se revela como sua fatalidade. Nela o herói não cabe; ela não

tem emprego algum para esse tipo. Amarra-o para sempre a um porto

seguro; abandona-o a uma eterna ociosidade. [...] A modernidade heróica se

revela como uma tragédia onde o papel do herói está disponível.

A cidade é, em si, uma demanda de gênero. Ao trilhar por suas intermináveis ruas, o

sujeito depara-se com a infinidade, ora revestida de encantos e magia, ora fantasiada de

desilusões. A cidade, com o seu poder envolvente de serpente, astuta, dissimulada, sedutora,

enreda o andarilho em uma trama de difícil ruptura, o sujeito torna-se uma presa na cidade.

Guiado pelas luzes solares ou, quem sabe, pela luminosidade noturna e enlaçado pelos

descaminhos da modernidade, o sujeito tenta encontrar-se.

2.1 Andarilho noturno e o eu boêmio

A literatura, na permanência de uma das funções, a representação da realidade,

encontrará nos conflitos do sujeito moderno o húmus necessário à fertilização de sua arte.

Sem a obrigação de que este elemento seja sempre de boa procedência e assegure a qualidade

dos frutos futuros, a arte literária apodera-se dos passos firmados na modernidade. Nem

sempre as pegadas são afixadas em solo firme, concreto, se o fosse, não seria nesse tempo.

A cidade, espaço de constantes fabulações, comportará em seus meandros todos

aqueles que dela aproximam-se. Uns, até conseguirão fazer dela o seu porto seguro. Outros,

numa busca permanente pelo seu eu, irão, guiados pelas possibilidades por ela oferecidas,

tentar desvendar os seus segredos através de passeios noturnos, infinitas andanças, quase

sempre limitadas aos poucos metros quadrados de um apartamento em Copacabana. Em Os

olhos do cão, o homem sitiado por sua solidão, tem a insônia como companheira:

Às três da madrugada, insone, observando ao espelho do banheiro seu belo

rosto magro, só ligeiramente gasto – a ruga amarga no canto da boca, barba e

cabelos grisalhos -, tentou determinar a partir de quando, desde a sua

chegada, começara a se sentir ameaçado (COUTINHO, 2004. p. 85).

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33

O desejo por situações ou objetos que, mesmo simbolicamente, remetam à noite, essas

personagens seguem suas vidas encurraladas por sentimentos, desde os mais sóbrios a

vontades simples, como a segurança de um útero:

À noite, ainda angustiado e outra vez sem conseguir dormir, ansiou por uma

morna piscina arredondada e escura onde pudesse, afinal, repousar; quis

voltar para antes da memória e do sofrimento, para a tépida mudez de um

útero (COUTINHO, 2004, p. 87).

O sujeito que se encontra e perde-se das trilhas urbanas, há muito tem sido objeto de

estudo de alguns estudiosos, inclusive daqueles que se autointitulavam boêmios, como

Baudelaire, segundo a obra de Walter Benjamin (1989, p. 30): [...] “Essa boêmia – ela é tudo

pra mim – inclui despreocupadamente essa criatura a irmandade da boêmia”.

As próprias cidades modernas, com seus encantos e magia, oferecem possibilidades

para o indivíduo tornar-se um investigador permanente dos seus indecifráveis segredos. E

nessa busca, muitos acabam assumindo o papel de boêmios, figuras onipotentes e

consolidadas em quaisquer centros urbanos.

O surgimento dessa personagem peculiar relaciona-se, diretamente, ao

desenvolvimento industrial das cidades. Embora, hoje sua função esteja imbricada à

concepção de vagabundo, tivera em outrora uma importante função no desenvolvimento de

muitas metrópoles, como Paris. Benjamin (1989, p. 16), em suas pesquisas no legado deixado

por Baudelaire, aponta que havia, inclusive, antes de ser conhecido o conceito de boêmia, os

que já davam significado à função, os trapeiros:

Maior número de trapeiros surgiu nas cidades desde que, graças aos novos

métodos industriais, os rejeitos ganharam certo valor. Trabalhavam para

intermediários e representavam uma espécie de indústria caseira situada na

rua. O trapeiro fascinava a sua época. Encantados, os primeiros olhos

investigadores do pauperismo nele se fixaram com a pergunta muda: “Onde

seria alcançado o limite da miséria humana?”.

A afirmação acima demonstra que os primeiros boêmios, os trapeiros, deram à sua

contribuição à sociedade. Contudo, inseridos na dinâmica urbana e suas artimanhas

convidativas, o sujeito passa a não mais firmar a sua identidade com o exercício profissional,

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34

mas por trazer, para o centro das vivências modernas, diversas formas de prazer escondidas

atrás das regras sociais. Nesse momento, sim, a figura, vê-se mais fortemente relacionada ao

andarilho que não tem preocupação com mais nada, a não ser com a sua vida sem regras e de

prazeres. Benjamin (1989, p. 9-10) afirma:

Sua existência oscilante e, nos pormenores, mais dependente do acaso que da

própria atividade, sua vida desregrada, cujas únicas estações fixas são as

tavernas dos negociantes de vinho – os locais de encontro dos conspiradores

-, suas relações inevitáveis com toda sorte de gente equívoca, colocam-nos

naquela esfera de vida que, em Paris, é chamada a boêmia5.

Na busca por reconhecimento e fortalecimento da sua arte, a literatura se apodera,

ficcionalmente, daquilo que a ciência não consegue explicar a fim de consolidar-se. Assim, a

concepção acima apresentada encontra respaldo na literatura contemporânea, pois a retratação

de alguns estilos de vida na modernidade dialoga com o perfil dos verdadeiros boêmios, seja

na concepção tradicional apresentada por Baudelaire, ou, numa perspectiva mais atual.

Ambas convergem para um mesmo fim, vida de pessoas que optam por um modo de

vida mais desregrada para além das conveniências sociais. E a literatura frente aos desafios

deste tempo, deverá primar por manter a sua vivacidade através das produções artísticas, sem,

contudo garantir-lhe sucesso absoluto em suas produções. Baudelaire (1846, p. 348 apud

Benjamim 1989, p. 29), nesse sentido, afirma que: “Assim também é a literatura, que

reproduz a substância mais difícil de avaliar, antes de tudo um enchimento de linhas, e o

arquiteto literário cujo simples nome não promete lucros tem de vender a qualquer preço”.

Aliado a este estranho sentimento que assola a vida de muitas personagens de Sonia

Coutinho, a solidão, tem-se um desejo pela escuridão, por hábitos boêmios, como a ida a

barzinhos, apreciar ou extravasar mágoas, através da bebida. Apesar de algumas situações se

5[Boêmia] foi a apropriação dos estilos de vida marginais pelos burgueses jovens e não tão jovens, para a

dramatização da ambivalência em relação às suas próprias identidades e destinos sociais [...]. As pessoas eram

ou não boêmias dependendo da intensidade na qual partes de suas vidas dramatizavam essas tensões e conflitos

para elas próprias e para os outros, tornando-os visíveis e exigindo que fossem confrontados (Seigel,1992, p. 19-

20). Segundo Seigel (apud NUNES e MENDES), a boemia é um fenômeno social e literário que teve lugar em

diversos pontos do planeta e em diferentes épocas. O termo diz respeito àqueles artistas que se reconhecem como

tais, que procuram definir seus valores em contraposição aos da burguesia e em que a arte desempenha papel

fundamental. Refere-se, pois, ao estilode vida especial, identificável, surgido no século dezenove, nas décadas de

1830 e 1840 na França, tornado popular especialmente a partir das histórias de Henri Murger (1822-1861), que

dramatiza o cotidiano de um grupo de intelectuais boêmios na Paris daquele tempo.

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passarem durante o dia, a ânsia pela penumbra da noite permanece: “Entrou num botequim,

pediu cachaça pura e, enquanto levava o copo à boca (suas mãos tremiam), escutou um súbito

silêncio de avesso, viu a escuridão por trás do sol ardente e negro” (COUTINHO, 2004, p.

86).

A literatura, não em conflito com a ciência, deve ser visualizada como uma prática

social, uma vez que, embora ficcionalmente, ofereça instrumentos que poderão perpassar

épocas para que o comportamento humano de um dado período da história seja observado.

Nesse sentido, pode ser um mecanismo na compreensão do modo como as identidades,

individual e coletiva, são construídas e consolidadas e quais fatores historicossociais

contribuíram para tal afirmação. Villaça (1996, p. 160) discute este aspecto:

Na busca da individualidade e da identidade nacional, a literatura funciona

pela reduplicação do paradigma da ciência e não em oposição a ela:

literatura não como válvula de escape para a vida social penetrada de cálculo

e visão mecânica, mas literatura orientada pela mesma racionalidade do

poder.

A cidade, em si, favorece a multiplicidade de comportamentos e o surgimento de

novas identidades. A sua estrutura basilar permite aos seus habitantes vivenciarem inúmeras

sensações a partir de práticas sociais. Para Harvey (2001, p. 69), a aparência das cidades e a

sua organização espacial constituem o esteio necessário para que o indivíduo pense, avalie e

realize diversas percepções do contexto que o circunda. O autor discute, ainda, que a

flexibilidade encontrada nas cidades, aliada ao constante processo de rupturas, típicos da

modernidade, ao qual ela está submetida favorece a uma inacabada e contínua (des)construção

de concepções relacionadas à individualidade do sujeito e ao coletivo no qual está inserido.

Harvey (2001, p. 22) postula:

A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável

ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é

caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações

internas e inerentes.

O autor (2001, p. 18) segue suas análises acerca dos amores e dissabores da cidade

afirmando que embora ela se apresente totalmente plástica, ou seja, passiva às conivências

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identitárias de cada habitante, essa mesma característica poderá conduzir seus andarilhos a

uma incerteza maior ainda sobre, o que até então, concebiam ser liberdade. Essa característica

pode ser observada no conto de Sonia Coutinho Uma certa felicidade (1994, p. 51): “A

liberdade inteira e toda solidão do mundo. [...] minha liberdade inútil a tiracolo, minha

liberdade como uma túnica, como um manto a minha liberdade e solidão [...]”.

Para afirmar o seu ponto de vista sobre a plasticidade da cidade, Harvey (2001, p. 17)

expõe a diferença entre elas e localidades menores, como pequenos municípios e povoados:

“[...] as cidades, ao contrário dos povoados e pequenos municípios, são plásticas por natureza.

Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos moldam por meio da resistência que

oferecem quando tentamos impor-lhes nossa própria forma pessoal”. E é essa incerteza o

principal elemento sedutor e convidativo que a cidade utiliza para atrair os seus amantes.

Estes, movidos pelo desejo de domá-la, seguem, em passeios ininterruptos, por suas trilhas.

A ânsia em decifrá-la é mais latente que o medo por ela oferecido. Ítalo Calvino

(1990, p. 44) discute sobre as cidades; para ele: “as cidades, como os sonhos, são construídas

por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras

sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam outra coisa”.

E o sujeito, numa busca constante por si mesmo, segue pela cidade. Se pela noite não

encontrou o objeto de sua busca, segue em passeio diurno. Quem sabe, conduzido pelos

reflexos solares, este sujeito, encontre-se, descubra-se, reconheça-se, fixe num lugar. Ou

quem sabe, depare-se com uma incerteza maior ainda.

2.2 O Flâneur a descoberta da cidade

A palavra dá vida à fantasia, à imaginação. Através dela novos universos podem ser

criados. E é na literatura que essa atividade é melhor realizada. Independe da época, dos

conflitos que assolam a vida do ser humano, individuais, coletivos, do contexto, a literatura

permanecerá rejuvenescida, revigorada. Com o seu poder de renovar-se representa a

realidade, embriaga-se dos conceitos de qualquer contemporaneidade e descreve, com

maestria, a vida dos sujeitos. Não importa se é um indivíduo seguro de si, ou, ainda,

completamente alheio à sua existência e àquele, que através de passeios intermináveis pelos

labirintos, tenta decifrar o enigma da cidade, definir-se.

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Na contemporaneidade, a literatura não mais se sustenta, tão somente, restrita ao seu

universo. Daí o fato de ela dialogar com outras áreas que, assim como ela, tentam retratar a

vida de um povo, sua cultura, sobretudo, àqueles que seguem na busca por reconhecimento e

consolidação social, como mulheres, negros, homossexuais. Assim, seguirá transportando o

leitor a novos mundos criados e sustentados na literatura, sem que se perca de vista o referente

do mundo real. Calvino (1990, p. 13-20) corrobora essa ideia:

No universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a

explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar

nossa imagem do mundo [...]. Mas a literatura não basta para me assegurar

que não estou apenas perseguindo sonhos, então busco na ciência alimento

para as minhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído.

Calvino (1990, p. 84) segue o seu texto discutindo sobre o poder da obra literária.

Trata não do seu absolutismo, mas da sua eternidade. Da capacidade que tem de atribuir

sentido, embora inexato, ao existir. Algo inexplicável, mas delicado, gracioso, tão intenso ao

ponto de parecer algo concreto, embora seja imaginação, ficção. Mas, de qualquer modo, tão

cheia de vida, quase um organismo vivo.

Ao passo que cria histórias, personagens, a literatura representa diversas figuras da

sociedade. Dentre elas, os amantes dos encantos urbanos, os caçadores dos prazeres da terra

prometida, os que concebem a vida, apenas impressa, na diversidade das cidades. Para o

andarilho do dia das cidades, a vida esconde uma infinidade de tesouros que só poderão ser

notados nos labirintos urbanos. Para Benjamim (1989, p. 35): “Que a vida em toda a sua

diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os

paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo”.

A alusão à cor cinza é uma constante nos contos de Sonia Coutinho. Suas personagens

fazem referência a esta cor ao descreverem alguns cenários do bairro de Copacabana, local

onde se passa a maioria absoluta das situações vivenciadas por elas. A descrição de algumas

cenas acontece de maneira intensa que possibilita a criação de imagens significativas, muito

embora não decifráveis.

[...] um conto é, pois, uma imagem que por razão qualquer apresenta-se a

mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em

termos discursivos ou conceituais.

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[...] fora a brancura cinzenta da espuma (as ondas picadas deixam no ar, em

torno, uma névoa de salitre), está de um cinza profundo, ao lado da areia

cinza, do céu cinza e da fileira de prédios cinzentos, é quando os pombos

branco/acinzentados descem voando em harmoniosa formação [...]

(CALVINO, 1990, p. 104).

Na busca por si mesmo, os sujeitos urbanos terminam por abarcarem as características

de uma típica figura das cidades, o flâneur6 que, para Baudelaire, segundo Benjamin (1989, p.

34): “[...] dias de festa e dias de luto, trabalho e lazer, costumes matrimoniais hábitos

celibatários, família, casa, filhos, escola, sociedade, teatro, tipos, profissões. A calma dessas

descrições combina com o jeito flâneur, a fazer botânica no asfalto”.

Inúmeros estudos apontam para a figura do flâneur como uma referência de alegria, ao

seu modo, de alguém despreocupado com a vida e algumas de suas obrigações, como aluguel

e pagamentos de despesas comuns, cujo único foco era a malandragem, a busca pelo prazer,

pela esbórnia, mesmo que, para isso, tivesse que passar dias a fio perambulando pelas ruas da

cidade.

Entretanto, Walter Benjamin, em estudo à obra de Baudelaire mostra que nem sempre

esses andarilhos das cidades deparavam-se com o fascínio criado em suas imaginações. Eles

sempre eram movidos pelos encantos da cidade, sedentos em descobrir os seus mistérios,

porém, esbarravam, em algum momento da sua trajetória, com a solidão.

6 É através do olhar do flâneur que a cidade de Paris é transfigurada poeticamente por Baudelaire, mediante o

estado de spleen, de que se falará adiante. [...] Nesta ‘nova’ ou reconstruída cidade, e que corresponde também a

um mundo em decadência, de uma cultura derradeira e mortalmente ferida pelo fetiche da mercadoria e pelo

capitalismo burguês, os seus passeios amplos convidavam agora ao passeio, afastando o medo que tomava o

transeunte parisiense, na antiga cidade, e essa actividade (a flânerie) constituía a ocupação privilegiada do

burguês ocioso (o flâneur), aquele que sustentava a convicção da fecundidade da flânerie, de que nos fala, não

apenas Benjamin, nos seus estudos sobre Baudelaire, como também o próprio Baudelaire, na sua obra As Flores

do Mal. [...] A fantasmagoria do flâneur, aquela que irá ser analisada em primeiro lugar, é tomada como

actividade propiciadora de uma embriaguez ou, mesmo, de um êxtase peculiar (comparada frequentemente à

embriaguez provocada pelo uso do haxixe), é, ao mesmo tempo, a expressão de uma situação dialéctica que se

encontra na raiz da lírica alegórica de Baudelaire. [...] Como Walter Benjamin o afirma, o flâneur é um estudioso

da natureza humana. Sob a aparência de um olhar desatento e distraído, esconde-se alguém cuja volúpia reside

na decifração dos sinais e das imagens: algo que pode ser revelado por uma palavra deixada ao acaso, uma

expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que espera o ouvido de um músico atento. Os

conceitos de flânerie e de ócio devem, então, ser aproximados, tomando o segundo como a inaparente condição

do trabalho poético mais fecundo (CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin.

In: Revista de cultura, nº 29. Fortaleza; São Paulo, outubro de 2002. Disponível:

<http://www.revista.agulha.nom.br/ag29benjamin.htm>. Acesso em: 24/12/2011).

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Este sentimento que assolava a vida do flânuer tornava-se mais intenso ao descobrir-

se completamente solitário em meio à multidão. Surgia, então, mais uma artimanha da cidade

com a qual o sujeito andante teria que se adaptar se nela quisesse permanecer. “As pessoas

tinham que se acomodar a uma circunstância nova e bastante estranha, característica da cidade

grande. [...] uma multidão a perder de vista, onde ninguém é para o outro nem totalmente

nítido nem totalmente opaco” Benjamin (1989, p. 35 e 46).

A sensação de estar ilhado pela solidão, mesmo ocupando um espaço no qual

residem milhões de pessoas, é uma característica recorrente nos contos de Sonia Coutinho. A

todo momento, as suas personagens se veem completamente atordoadas por esta sensação

que as toma, envolvendo-as num misto de incertezas e que, na verdade, são os reflexos da

contemporaneidade, sobretudo, nas grandes cidades.

Estas marcas podem ser facilmente visualizadas em Sonia Coutinho, principalmente

no conto Nos olhos do cão (2004, p. 86) no qual o sujeito, um homem de 50 anos, perde-se

completamente nos labirintos da vida contemporânea e deixa-se abater pela incerteza:

No dia seguinte, procurando caminhos entre o tráfego congestionado das

novas avenidas, avaliou sua ilusão ao imaginar que a Cidade permaneceria

ali imóvel, atestado permanente de sua identidade. Corrosiva, ali também

atuara a movediça estranheza da vida – quem seria ele?

A personagem central desse conto retornara à Cidade após uma temporada fora.

Voltara guiado por um turbilhão de sensações, não sabia explicar, mas estava certo de que na

Cidade deveria permanecer. Sempre que estava mergulhado em suas frustrações, segurava-se

em algo para reerguer-se e ir à busca da beleza da cidade, porém, a cada retomada de fôlego

renascia, mais forte ainda, a incerteza.

Mas, na manhã seguinte, reanimado, começou a percorrer as ruas da Cidade,

com a excitação de quem se empenha numa atividade sexual. Caminha por

ali, pensou, era um largo coito, bíblica fornicação, aquelas ruas poeirentas e

douradas, miseráveis mas luxuosas de objetos e cores [...].Algumas horas

depois, cansado e encalorado, concluiu que, de certa forma, toda aquela

beleza ia além do humano, reduzia as pessoas a insignificantes seres de carne

perecível (COUTINHO, 2044, p. 86).

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40

Para Edgar Poe (apud Benjamin, 1989, p. 48-50), o efeito é ainda mais devastador,

pois se trata de humanos como barreira. Em momento algum o trânsito é mencionado como

empecilho ao deslocamento do flânuer, o bloqueio é dado por outras multidões. O flânuer não

poderia estabelecer o seu lugar na cidade, tão pouco brilhar. O andarilho segue numa rota

deslocada, com movimentos desordenados, num eterno gesticular e falar consigo mesmo,

extremamente incomodado pela incontável multidão que o cerca.

Estranhamente essa personagem, consciente do mar de insegurança no qual estava

imerso, sentia desejo de permanecer nesse conflito. Para ele, em algum momento da sua vida

esquecera nessa Cidade algo essencial à sua existência, precisava resgatá-lo, mesmo num

resgate tortuoso, que custaria a sua paz, ele desejava continuar nesse conflito, uma vez que

explicita a necessidade de permanecer nesse lugar.

Como se tivesse esquecido ali, há muitos anos, uma peça vital de seu

mecanismo interior. Estivesse então em qualquer parte do mundo, à Cidade

permaneceria ligado pelo pequeno elo perdido/escondido. Ou, talvez, já

destruído e entranhado naquele cenário, do qual então necessitava

(COUTINHO, 2004, p.81).

Benjamin (1989, p.55) discute sobre a busca permanente realizada pelo andarilho

diurno das cidades. Ele afirma que aquele que sai à procura do prazer para passar o tempo irá

defrontar-se com diversas barreiras sociais. A limitação seria uma espécie de termômetro, o

qual estabeleceria limites entre o que o flânuer quer da cidade e o que, efetivamente, ela pode

oferecer-lhe.

As ruas, aparentemente, cenário perfeito para o sujeito contemporâneo, serviria de

refúgio tão qual uma morada entre quatro paredes. Contudo, uma morada para muitos,

obrigando aos que optam por esse espaço desenvolver a capacidade criativa de fazer dela o

seu porto (in)seguro. Benjamin (1989, p.194) discorre sobre a diversidade das ruas: “As ruas

são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que,

entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos

ao abrigo de suas quatro paredes”.

Misturam-se nas ruas, a beleza e as maléficas condições urbanas, sim, pois o sujeito

movido pelos encantos da cidade visualiza o que de não tão bela nela existe, mas quer fixar-se

ali. O sujeito, não tão certo do que busca na cidade, segue ao encontro do seu desejo. Nesse

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sentido, Benjamin (1989, p. 203) afirma ser a cidade a personificação desse desejo, desse

sonho: A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flânuer, sem o saber,

persegue essa realidade.

Em Nos olhos do cão, o homem de 50 anos vive num verdadeiro antagonismo consigo

mesmo. Movido pela indecisão de ir ou permanecer em Copacabana segue sua vida. Aponta,

inclusive, o poder devastador de suas paisagens: “[...] porque em torno a beleza de

Copacabana era a de uma vasta ruína, ou montanhoso deserto, gigantesca estátua de lixo”

(COUTINHO, 2004, p.84).

A incerteza que move o sujeito contemporâneo torna-se mais intensa ao perceber que

tudo anda depressa demais na cidade. A rapidez com que a cidade se movimenta,

desequilibra-o ainda mais, contribui para torná-lo uma espécie de folha seca solta ao vento.

Que a cidade não seja tão cruel e conduza-o rumo à certeza de sua vida. Será?

2.3 A modernidade e a velocidade desequilibrante do sujeito

Se por um lado o sujeito tenta, primeiramente, compreender o tempo em que vive,

definir que modernidade é essa que tornara a sua vida tão veloz, por outro, precisa, com certa

urgência definir quem é. Caso contrário, a cidade fará dele uma presa fácil, frágil, um

prisioneiro dos labirintos urbanos, incapaz de conduzir a própria vida.

Os que chegam ao Rio de Janeiro, ao bairro de Copacabana, principal destino das

personagens de Sonia Coutinho, vêm movidos pela imagem criada em suas mentes acerca do

que seria uma cidade grande. Instigados pelo fascínio que imaginam a cidade oferecer,

escolhem esse lugar para se tornarem independentes, longe das regras de conduta sociais que

não os agrada. Saem lá da cidadezinha do interior e encontram em Copacabana a

concretização do sonho de uma vida inteira. Como se pode visualizar no conto Josete se

matou, logo após desembarcar no Rio de Janeiro e instalar-se em seu apartamento, a

personagem confessa:

Copacabana, o sonho de todo jovem do interior, enfim, realizado. O

retângulo do céu amuralhado, sem estrelas, que descortino agora da minha

janela. O guincho de um milhão de pneus é minha música, meu perfume, a

agridoce fumaça dos canos de descarga dos automóveis (COUTINHO, 2004,

p. 20).

Page 43: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

42

A paixão pura, saudável, platônica, por assim dizer, pela cidade não dura muito tempo.

Seus novos habitantes começam, não muito tempo depois, a se darem conta de que as coisas

não são tão belas como sua imaginação julgava. O sentimento leve, do primeiro encontro,

passa a ser substituído pela solidão que assola as suas vidas, pela falta de afeto, de carinho, de

pessoas, embora estejam num universo de milhões delas, como relata, claramente, a

personagem do conto Hipólito, passada a fase do primeiro contato, outra face é apresentada:

“e não tendo ninguém realmente íntimo nesta cidade de oito milhões de habitantes, o Rio de

Janeiro” (COUTINHO, 2004, p. 24).

Ítalo Calvino (1990, p. 125 e 78) afirma que a literatura só seguirá viva descrevendo

os comportamentos desmedidos de ser humano, servindo de consolo ao lado negativo das

experiências do sujeito: “[...] A literatura só pode viver se se propõe a objetivos

desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização” e “[...] só a

esperança e a imaginação podem servir de consolo às dores e desilusões da experiência”.

Os conflitos apresentados por Sonia Coutinho têm como foco os sujeitos

contemporâneos. Entretanto, muito tempo antes de seus escritos chegarem ao público, já se

discutia sobre os conflitos entre o indivíduo e a cidade. Autores apontavam a essa relação

conflituosa numa comparação aos tempos de outrora. Edmond Jaloux7 (1936 apud Benjamin,

1989, p. 210) traz uma importante contribuição à compreensão da relação do indivíduo urbano

com o espaço que ocupa:

Um homem que passeia não devia se preocupar com os riscos que corre, ou

com as regras de uma cidade. Se uma idéia divertida vem à mente, se uma

loja curiosa se oferece à sua visão, é natural que, sem ter de afrontar perigos

tais como nossos avós nem mesmo puderam supor, ele queria atravessar a

via. Ora, hoje ele não pode fazê-lo sem tomar mil precauções, sem interrogar

o horizonte, sem pedir conselhos à delegacia de polícia [...].

Anterior a essa discussão proposta por Edmond Jaloux, Friedrich Engels8 (1848, p. 36-

7 apud Benjamin, 1989, p. 200) já descrevia sobre os conflitos vivenciados nas ruas das

grandes cidades. Os sujeitos, já naquela época, embora em busca dos mesmos objetivos, eram

7 Edmond Jaloux, Le dernier flâneur (O último Flanador) (Le Temps de 22 de maio de 1936).

8 Friedrich Engels, Die Lage der asbeitenden Klasse in England (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra),

segunda edição, Leipzig, 1848, p. 36-37 (Die grssen Stàdte) (As cidades grandes).

Page 44: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

43

incapazes de se reconhecerem no outro, no seu semelhante. Eram completamente estranhos

uns aos outros:

[...] O próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a

natureza humana. Essas centenas de milhares de pessoas, de todas as classes

e situações, que empurram umas às outras, não são todas seres humanos com

as mesmas qualidades e aptidões e com o mesmo interesse em serem felizes?

E afinal, não terão elas que se esforçar pela própria felicidade através das

mesmas vias e meios? E, no entanto, passam correndo uns pelos outros,

como se não tivessem absolutamente nada em comum, nada a ver uns com

os outros, e, no entanto, o único acordo tácito entre eles é o de que cada um

conserve o lado da calçada à sua direita, para que ambas as correntes da

multidão, de sentidos opostos, não se detenham mutuamente; e, no entanto,

não ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferença

brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses

privados, avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses

indivíduos se comprimem num espaço reduzido; e mesmo que saibamos esse

isolamento do indivíduo, esse egoísmo tacanho é em toda parte o principio

básico de nossa sociedade hodierna, ele não se revela nenhures tão

desavergonhadamente, tão autoconsciente como justamente no tumulto da

cidade grande.

Outras contribuições de alguns estudiosos desse tema são de grande relevância à

contemporaneidade, sobretudo para que haja uma visualização, numa perspectiva histórica,

das metrópoles e seus habitantes. A sensação incômoda das pessoas ao se deparem com uma

multidão de outras pessoas, como alguns estudos demonstram, há muito tempo já é uma

problema das grandes cidades. Paul Valéry9 (1930, p. 122-124 apud Benjamim,1989, p. 200),

expusera a sua concepção sobre o estranho comportamento das pessoas mediante os seus

semelhantes:

[...] Parecia-me que aquela não fosse uma multidão de seres individuais,

tendo cada qual a sua história, seu deus único, seus tesouros, suas taras, um

monólogo e um destino; mas, sem saber, à sombra do meu corpo, fora do

alcance dos meus olhos, eu a transformava num fluxo de grãos, todos

idênticos, identicamente sugados por não sei que vazio, e cuja corrente surda

e precipitada eu ouvia passar monotonamente pela ponte. Jamais senti tanto

a solidão, e misturada ao orgulho e à angústia.

9Paul Valéry, Choestues (Coisas Mortas), Paris, 1930, p. 122-4.

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44

O modo conflitante como são estabelecidas as relações nas cidades, como já foi

colocado, não é uma discussão nova. E a literatura, como a função de representar dos

conflitos de uma época, segue no cumprimento do seu papel. Esse intercâmbio com as

práticas sociais mais antigas e as atuais contribuem para uma melhor compreensão sobre o

comportamento humano e que, independente do momento histórico, de modo estranho, os

problemas são os mesmos, sobretudo, relacionados à busca de si mesmo.

No conto Uma certa felicidade (1994), Sonia Coutinho imprimiu marcas dessa

conflituosa busca do sujeito pós-moderno pela realização dos seus desejos. A aparente

satisfação de ter encontrado na cidade grande o primeiro sinal de sua felicidade, as

personagens esbarram em frustrações ao perceberem que o castelo erguido nas bases sólidas

urbanas, começa a desmoronar: “[...] à noite, Copacabana (à nossa imagem e semelhança

projetamos as paisagens que nos cercam – as prisões estavam em nós)? [...]” (COUTINHO,

1994, p. 91).

A solidão estabelecera-se como uma companhia inseparável das personagens de Sonia

Coutinho. Nesse caso adaptar-se a ela pode ser a única e melhor saída, uma vez que é um

problema na vida das pessoas desde os tempos longínquos. Nas narrativas dessa escritora não

é difícil encontrar reflexos evidentes da vida pós-moderna.

No conto A morte (a vida) no ventre (2004, p. 90) tem-se a descrição do que seria uma

certa aceitação de convivência mediante as opções apresentadas: “[...] a volta para seu

apartamento em Copacabana, os fins de semana vazios, a necessidade de procurar companhias

nem sempre muito desejadas, apenas para ajudar a suportar a solidão [...]”. Seguido de Uma

certa felicidade (1994, p. 51) que também aponta, ao mesmo tempo, a fragilidade e a certeza

de sua personagem: “A liberdade inteira. E toda a solidão do mundo”.

Para Calvino (1990, p. 54), essas situações podem ser vistas como normais à mudança

dos tempos e que a rapidez das transformações sociais e do comportamento dos indivíduos

acarretarão, em experiência, a escrita literária: “[...] a experiência das grandes velocidades se

tornou fundamental para a vida humana”.

Diversos autores tem se consolidado na contemporaneidade por conta do poder

exercido pela sua escrita, pela facilidade de transporem, ficcionalmente, as (in)certezas do

homem pós-moderno. Dentre eles, Sonia Coutinho merece atenção especial não apenas por

sua escrita fascinante, convidativa, instigante, mas por trazer para o centro das suas narrativas

Page 46: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

45

as limitações da vida urbana, a capacidade do ser humano em não perceber o outro, logo,

esquecendo-se de si mesmo.

Nas eternas divagações pelos labirintos urbanos, a autora tenta demonstrar que o

quebra-cabeça desta contemporaneidade, as cidades, está longe de se tornar o paraíso das

luzes, o cenário das realizações. Mas que, mesmo assim, vale a pena caminhar por suas trilhas

e tentar, quem sabe, desvendar os seus mistérios.

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3 OS CANTOS DA CIDADE E A CONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA: uma leitura da

contística de Sonia Coutinho

Como uma escrita extremamente convidativa, a autora em discussão, através de suas

narrativas, tem o poder de encantar o leitor, de conduzi-lo a embrenhar-se nos caminhos

traçados para as suas personagens. Durante esse enveredar-se, o leitor é seduzido por um

recurso bastante utilizado por Sonia Coutinho. Um elemento presente em muitas de suas

histórias, a cidade e os seus (dis)sabores.

Sonia Coutinho é romancista, contista e tradutora. Nasceu em Itabuna, Bahia. Uma

certa felicidade, O último verão de Copacabana, Mil olhos de uma rosa, O caso Alice são

alguns de seus livros publicados. Participou de várias antologias do Brasil e do exterior. Foi

premiada por duas vezes com o Prêmio Jabuti, em 1979, com Os venenos de Lucrécia, e em

1999 com Os seios de Pandora. Em 2006, foi agraciada com o prêmio Clarice Lispector da

Biblioteca Nacional para o melhor livro de contos com Ovelha negra e amiga loura.

A autora tem merecido destaque na literatura contemporânea por trazer em sua obra

inúmeras características inerentes aos sujeitos dessa época. O modo como aborda algumas

questões, sobretudo, identitárias, e os possíveis reflexos da sua trajetória de vida têm

contribuído à consolidação da sua arte. Ao descrever as relações entre a cidade e a construção

histórico-identitária do homem pós-moderno, Coutinho agrega diversos elementos

respaldados nas discussões teóricas literárias pós-modernas.

Dentre os conceitos evidentes na obra de Coutinho, pode-se destacar a função do

autor, pois, historicamente, o estudo acerca do legado de algum escritor quase sempre

acontecera como se o mesmo houvesse realizado as suas produções de modo epifânico,

embora características do contexto social, no qual estivesse inserido, pudessem ser apontadas.

Michel Foucault (2002) oferece uma valiosa colaboração para a compreensão do que é

ser autor, bem como a sua importância no momento da análise de obras. Ele apresenta alguns

questionamentos a fim de respaldar a sua discussão, tais como o fato de o autor ter se isolado,

individualizado, diante da cultura em que vivemos. Ainda, em que momento foram iniciados

estudos sobre a autenticidade e a atribuição, bem como em que consiste o sistema que julga o

autor e como instaurou-se essa categoria fundamental pela crítica, “o homem-e-a-obra”.

Para tanto, o crítico aponta a importância de se compreender dois conceitos antes que

se tente entender a questão do ser autor, a de obra e a de noção de escrita. Aquele que,

segundo o autor, deveria ter o propósito de assegurar a sua imortalidade ganhou o direito,

Page 48: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

47

inclusive, de assassinar o seu autor. Ele segue apresentando inúmeras indagações para que se

pense sobre a figura do autor e estes dois elementos supramencionados que coexistem em

relação à obra. Por exemplo, se uma determinada obra houvesse sido produzida por um

indivíduo comum, não teria o seu legado o direito de ser chamado de obra pelo fato de ter

faltado o reconhecimento como autor.

Acerca da definição sobre obra, Michel Foucault (2002) afirma, categoricamente, não

existir. E para reafirmar a sua conclusão exemplifica com aqueles que, ingenuamente, tentam

respaldar suas pesquisas em obras completas e que, devido à falta dessa teoria, seu trabalho,

rapidamente, é paralisado. As acepções acerca da obra são tão incertas como as que

circundam a figura do autor. “A palavra “obra” e a unidade que ela designa são

provavelmente tão problemáticas como a individualidade do autor” (FOUCAULT, 2002, p.

39).

A noção de escrita discutida pelo crítico é um importante aliado na defesa da presença

marcante do autor em suas obras. Essa noção, de algum modo, assegura, sutilmente a

vivacidade do autor e retém o pensamento da supressão do mesmo, preservando assim a sua

existência. Características dos autores, como o uso repetitivo dos mesmos signos linguísticos

ou iguais condições das personagens, psicológico ou fisicamente falando, podem ser

evidenciadas em suas produções.

Na obra de Sonia Coutinho, pode-se identificar, sem maiores dificuldades, algumas

particularidades recorrentes da sua escrita. A autora, além de fazer uso constante dos mesmos

recursos gramaticais, apresenta, por vezes, condições iguais às personagens, embora em

narrativas diversificadas e separadas por diferentes períodos de publicação.

No conto O Leque do Afeganistão (2005), já apresentado no capítulo anterior, a autora

descreve algumas frustrações vivenciadas pela personagem Sibila. A solidão e a incerteza são

companheiras constantes na trajetória das personagens dessa escritora. Nesse conto ilustra-se

a dimensão da carência afetiva da mulher com relação a um amante, um amor: “Sim, existe

uma última vez na vida que se pode fazer amor” (COUTINHO, 2005, p. 8). A cena utilizada

nesse conto encontra-se em outro de Sonia Coutinho. Na história, apresentada em Reflexões

sobre a (in)existência de Papai Noel (2004), Mary, protagonista, terminara de completar 40

anos e ao acordar, diante do espelho, observa as marcas do tempo, principalmente agora com

a nova idade. Mediante o seu reflexo faz uma breve retrospectiva de sua vida, carreira,

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família, amor e chega à conclusão de que há muito tempo não tem um homem em sua vida,

não faz amor: “Existe uma última vez na vida que se faz o amor” (COUTINHO, 2004, p. 77).

Foucault apresenta a função da escrita como umas das possíveis maneiras de se

colocar a bibliografia de um autor num patamar humanizado, ou seja, a obra deixará de ser

analisada numa perspectiva religiosa, epifânica, e sim, dentro das possibilidades oferecidas

por um recurso utilizado, há muito, pela história da humanidade como um importante

elemento da representação cultural do homem, a escrita. A partir da explanação sobre a obra e

a função da escrita, conforme Foucault, pode-se tentar entender o que é um autor e a qual é

sua função. Para ele essas definições são de suma importância uma vez que já não cabe a

recepção dos discursos literários sem a função do autor.

Tanto o nome autor como a função exercida têm um diferencial sobre os demais

discursos de circulação social. Segundo ele “a função do autor é, assim, característica do

modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma

sociedade” (2002, p. 46).

A grandiosidade do nome autor, para ele, um nome próprio como tantos outros, é o seu

diferencial sustentado pelo discurso, automaticamente, agregado ao seu nome:

Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do

discurso: para um discurso, ter um nome de autor, o facto de poder dizer

“isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse

discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e

passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que

deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura,

receber um certo estatuo (FOUCAULT, 2002, p. 45).

Embora a colocação apresentado por Foucault contribua, de maneira significativa, à

valorização do autor, Sonia Coutinho em entrevista ao site Canal Assembleia da Bahia expôs

a sua angústia em face de sua constatação de que o escritor atual no Brasil já não possui o

reconhecimento por ela almejado, não apenas na perspectiva dos leitores, mas também na

visão política do país:

Eu queria “tá” nas livrarias, as pessoas comprando os meus livros, entendeu?

Lendo o livro. Esse “iato” entre o escritor e o público que é terrível aqui no

Brasil é muito doloroso, isso tudo é muito complicado, você vai ficando

mais velha, assim, você sente isso como uma coisa dolorosa [...] deixou de

ter aquela figura do escritor prestigiado, famoso, isso é meio doloroso. Aliás,

eu vi pela televisão, uns dias atrás, o discurso de um ministro. Ele falava na

importância cultural do Brasil, se referiu a várias áreas e não mencionou

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literatura. Falou, assim, artes plásticas, isso, aquilo, nós estamos brilhando

no mundo, não falou, não deu uma palavra sobre literatura10

.

Sonia Coutinho, reconhecendo a pouca apreciação à figura do escritor, não deixa de

sinalizar, positivamente, sobre a boa receptividade da sua obra e os comentários sobre ela,

mas sempre evidencia a aceitação no Brasil:

[...] realmente tem sido boa a recepção [...] não tenho o que me queixar

disso, né? Todos os meus livros, em geral, têm boas resenhas, a verdade é

essa, mas a repercussão dentro do quadro brasileiro é muito pequena né,

entendeu? Não tem mais escritor famoso quase atualmente, são

pouquíssimos11

.

Dentre as várias possibilidades sobre o que poderá garantir êxito de uma escritor(a), a

apresentada por Ítalo Calvino (1990, p. 61) chama a atenção, pois, para ele, o sucesso será

assegurado pela capacidade de o escritor juntar os recursos da linguagem e construir a mais

bela melodia verbal escrita, de construir um som sem igual:

O êxito do escritor, tanto em prosa como em verso, está na felicidade da

expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma

fulguração repentina, mas em regra geral implica uma paciente procura [...]

da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons

e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significados.

A literatura, tradicional ou contemporânea, na sua representação da realidade poderá,

ou não, trazer em seus escritos marcas que remetam à vida de seus autores. Na contística de

Sonia Coutinho aparece, frequentemente, a embate do sujeito moderno, sobretudo feminino,

na busca pelo reconhecimento social, pela consolidação da sua identidade. A busca por um

reencontro consigo mesmo, dá-se, quase sempre, num passeio que se inicia com a saída da

cidadezinha rumo à Copacabana, no Rio de Janeiro.

10 Disponível em: <http://www.canalassembleia.ba.gov.br/DetalhesVideo.aspx?ProgramacaoID=1025>. Acesso

em: 26/12/2011. Entrevista concedida a Roberto Claudio.

11 Disponível em: <http://www.canalassembleia.ba.gov.br/DetalhesVideo.aspx?ProgramacaoID=1025>. Acesso

em: 26/12/2011. Entrevista concedida a Roberto Claudio.

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Sonia Coutinho tem com uma trajetória de vida parecida com as de suas personagens,

ao menos num sentido geográfico, de espaço físico, que movidas pelos encantos prometidos

pela cidade grande seguem em busca de seus sonhos, nem sempre concretizados, mas se

começa viagem.

Uma das consequências desse embarque rumo ao incerto é a solidão, elemento

presente, também na vida da escritora que em entrevista falou sobre os (dis)sabores de sua

saída da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro. Quando questionada sobre um possível

reflexo de sua vida na construção das personagens, Coutinho respondeu:

Essa mudança, também de Salvador para uma cidade, assim, mais alegre,

para o Rio de Janeiro, para uma cidade maior, esse processo de adaptação

me deu também uma sensação de solidão, às vezes, realmente, deve ter a ver

com isso12

.

Vários encontros acontecem na cidade imaginada, mas nem sempre são aqueles

esperados. O encontro com a solidão, mesmo rodeado de milhões de pessoas, o encontro com

a frustração, não existe a cidade idealizada, encontro com a incerteza, companheira

fidelíssima, encontro com a satisfação, afinal desejo realizado, com algumas divergências,

mas concretizado. É a cidade.

3.1 Sonia Coutinho e a idealização da cidade: uma revisão bibliográfica

O fascínio pelas cidades é um elemento constante na vida das personagens de Sonia

Coutinho. Na maioria, são mulheres com mais de trinta anos de idade que decidiram sair em

busca da felicidade. Para isso, tiveram que abrir mão das conivências sociais de sua época,

serem esquecidas por seus familiares, relegadas ao descaso, e, principalmente, arriscar, uma

vez que o destino mostrava-se incerto.

Copacabana surge como a solução mais palpável e possível de ser alcançada por

aquelas pessoas que sonham com uma vida diferente. Ao chegarem ao destino desejado um

misto de sensações passa a ser sentido pelas personagens, uma aparente relação de amor e

12 Disponível em: <http://www.canalassembleia.ba.gov.br/DetalhesVideo.aspx?ProgramacaoID=1025>. Acesso

em: 26/12/2011. Entrevista concedida a Roberto Claudio.

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ódio, pois ao mesmo tempo em que descrevem as angústias vivenciadas nesse lugar,

discorrem o fascínio que tanto as envolvem.

No conto Josete se matou (2004), a personagem protagonista da narrativa é um

homem, jornalista, 40 anos, solteiro e morador de um apartamento deserto e sujo. Ao chegar a

casa após trabalhar até a meia noite na redação do jornal recebe uma ligação, era seu colega

de trabalho informando que a ruiva Janete tinha acabado de morrer, solitária em seu

apartamentinho. Suicidou-se. Começa a lembrar da colega de trabalho que já havia saído com

todos os homens da redação, menos com ele. Pensa que no seu local de trabalho como um

ponto de encontro para os estrangeiros vindos de vários lugares do país. Viera do interior da

Bahia.

O seu maior sonho era escrever um romance jornalista sobre Copacabana. Registrar o

seu (des)amor por aquele lugar. Há uns dez anos escreveu o primeiro parágrafo, apenas ele,

no qual descreve as sensações que as noites de Copacabana lhe provocam: “Há uma oculta

ameaça na noite de Copacabana, como se um olho gigantesco se formasse nas trevas, um

grande olho maléfico e úmido [...] (COUTINHO, 2004, p. 20)”. A citação supramencionada

seria utilizada no seu romance que, ficou preso nas cadeias dos sonhos, mas o antigo desejo

de ser morador da cidade do Rio de Janeiro foi realizado: “Copacabana, o sonho de todo jovem

do interior, enfim realizado” (2004, p. 20).

Copacabana, o lugar das realizações possíveis está ao alcance de várias personagens de

Sonia Coutinho. Ora, onipotente e doadora do grande prêmio para aqueles que, por fim,

conseguiram domá-la o que, automaticamente garante reconhecimento social e uma imensa

sensação de dever cumprido, mas o êxito não tem bases sólidas e, simplesmente, desmorona

levando junto o seu idealizador.

Esse contraste pode ser percebido no conto Palhaço das perdidas ilusões (2006, p. 51-

53) no qual o homem de quarenta anos de idade exibe com prazer o seu sucesso precoce aos

vintes anos, mas que na idade atual escorre-lhe pelas mãos e o conduz à morte:

Naquele tempo, ele recebia as louvações ao seu sucesso com agrado

[...]. Sim, ganhava um ótimo salário, era um publicitário conhecido. Vivia em alto padrão na cidade [...] o Rio. Cantarolou baixinho: “Minha vida

era um palco iluminado, eu vivia de vestido dourado, palhaço das perdidas

ilusões...”

[...] Mas, com quase riso nos lábios, por causa da música que acabara de

cantar, viu a si mesmo - o que o Outro conduzia – pisar numa cadeira e

passar as pernas por cima do corrimão da varanda. O que se seguiu foi o

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corpo em vôo improvável que se estatelou no cimento do playground de

prédio, 12 andares abaixo (COUTINHO, 2006, p. 51-53).

Aliado ao apogeu social segue-se uma nuvem nostálgica de desespero. A decisão

trágica tomada por essa personagem foi motivada após a separação de sua esposa que levara

consigo os filhos, seguido de desemprego que acarretou no afastamento dos “amigos”. Enfim,

o desencadeamento de uma série de conflitos desestruturara completamente a aparente bem

estruturada, vida que levava, conduzindo-o a resolver todos os problemas da forma mais fácil,

o suicídio.

Ítalo Calvino em sua obra As cidades invisíveis (1990), traz valiosas contribuições

para estudos sobre as cidades. Numa viagem, a pedido do rei Kublai Klan, Marco Polo segue

sedento por descobrir as cidades desse reino e descrevê-las para o rei. Curiosamente, todas as

cidades têm nomes femininos: Isidora, Dorotéia, Tamara, Anastácia, Isaura etc. A

apresentação das cidades é dividida por capítulos nomeados: As cidades e a memória; As

cidades e o desejo; A cidade e os símbolos; As cidades e os mortos e outros.

A produção de Calvino representa o fascínio do escritor pela cidade. Inúmeras delas

são descritas a partir de suas peculiaridades que as tornam únicas. A cidade, para o autor, está

pronta para abraçar todos os habitantes com seus desejos, anseios, frustrações, medos. Ela

promete prazeres que jamais serão ser encontrados em outro lugar.

A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do

qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em

outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer.

[...] As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda

que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as regras sejam absurdas,

as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra

coisa (CALVINO, 1990, p. 16-44) .

Na contística de Sonia Coutinho pode-se visualizar a todo momento essa relação

conflituosa da personagem com as amores e dissabores da cidade. A descrição de que em

Copacabana encontrou o melhor lugar para viver ao mesmo tempo é um lugar que propicia a

solidão, o surgimento de sentimentos negativos, como se fosse a cidade, além de tudo aquela

que sugere às fraquezas humanas, incita à necessidade afetuosa do sujeito.

No conto Pelo Telefone (2004), a personagem demonstra sua satisfação de viver em

Copacabana. Contudo, a constante menção que é feita ao apartamento no qual mora, sempre

acontece no diminutivo o que poderia possibilitar duas conclusões, ou a de mimo, excesso de

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carinho por sua casa, ou a de desdém em relação à dimensão da cidade do Rio de Janeiro e

como as personagens, geralmente, acomodam-se em pequenos apartamentos.

Num diálogo com Pedro, seu caso fixo, a mulher demonstra toda a sua fragilidade, a

carência que assola a sua vida, o medo da solidão: “[...] Passei um domingo horrível, o dia

inteiro metida nesse apartamento e agora a solidão não me deixa dormir, fico caminhando de

um lado para outro, pensando com que criatura eu poderia falar (COUTINHO, 2004, p. 70-

1)”.

A cidade, berço de sonhos e desilusões, encontros e desencontros, amores e

dissabores, há muito já é discutida como um importante elemento na constituição de

identidades. Raban (apud Harvey, 2001, p.17) apresenta a cidade como um lugar demasiado e

complexo para ser disciplinada, além de oferecer algumas pistas que podem ajudar os sujeitos

a se encontrarem nesse labirinto.

Para o bem ou para o mal, [a cidade] o convida a refazê-la, a consolidá-la

numa forma em que você possa viver nela. Você também. Decida quem você

é, e a cidade mais uma vez vai assumir uma forma fixa ao seu redor. Decida

o que ela é, e a sua própria identidade será revelada [...] As cidades, ao

contrário dos povoados e pequenos municípios, são plásticas por natureza.

Moldamo-las à nossa imagem [...].

A sobrevivência nos centros urbanos depende de o sujeito decidir-se quem é,

autoidentificar-se e as demais informações lhe serão reveladas pela cidade. Na contística de

Sonia Coutinho, as identidades (des)construídas estão diretamente relacionadas ao lugar

ocupado pelas personagens, sobretudo, a cidade. A personagem segue com o diálogo ao

telefone, expõe claramente a sua angústia. Ela coloca o interlocutor do diálogo como a

possível solução para os medos:

[...] procure preservar alguma coisa entre nós, uma amizade, é o ultimo favor

que lhe peço. [...] Mas ainda preciso de você. É como se só a sua amizade

pudesse me salvar, agora. Veja se consegue entender. Eu tenho medo, Pedro.

É medo o que eu sinto, quando não consigo dormir, sozinha neste

apartamento (COUTINHO, 2004, p. 72).

Ao fim do diálogo a personagem chega conclusão de que conseguirá fazer com que

Pedro se compadeça da sua condição, afinal ela mesma sempre afirmou não precisar de

ninguém e vive muito bem sozinha:

Page 55: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

54

E então torno a caminhar por este apartamentinho que adoro, Copacabana é

o melhor lugar do mundo para se viver, tenho meu próprio espaço, sim,

trabalho, ganho meu dinheiro, compro o que quero para mim, posso viajar,

sou dona do meu nariz [...] (COUTINHO, 2004, p. 74).

A cidade, almejada pela maioria das personagens de Sonia Coutinho, torna-se um

elemento intensificador dos seus conflitos, pois ao se depararem com a inconstância

embarcam num universo ainda mais incerto: “[...] (a Cidade, sim, a Cidade) enquanto tudo

prosseguia em redor, o trânsito engarrafado, muralhas de pedra, a solidão, Copacabana e um

milhão de sonhos irrealizados” (COUTINHO, 2004, p. 88).

Respaldada nas possibilidades oferecidas por esse tipo de escrita, o conto, e a sua

escrita enigmática, Sonia Coutinho, atrai os leitores a adentrarem no universo das suas

histórias e, quem sabe, trilhar pelos labirintos da modernidade através das ruas da cidade.

E para propiciar ao leitor uma fuga da realidade sem, contudo, esquecê-la

completamente, o conto como arte, pressupõe radicalismo. Ao narrar uma história,

desconstrói suas perspectivas para remontá-las sob outros aspectos. Há, inclusive, uma

subversão dos valores na organização do universo, haja vista, o conto apresentar uma essência

inenarrável e configurar-se também na representação do social. O conto é entendido, ainda,

como uma narrativa unívoca, isto é, constitui-se em uma única célula dramática. É tecido em

torno de um só conflito, por isso, o fato de todos os seus elementos culminarem em um único

fim.

Em suma, a dramaticidade contida no conto, por mais breve e incógnita que pareça,

passa a ser, no próprio texto, o mais importante ingrediente da sua constituição. A situação

dramática forma-se em um núcleo absoluto. Os outros elementos apenas neutros, pois seu

valor está, segundo Cid Seixas (1998), no que não é contado e, principalmente, no que não se

pode dizer.

Gotlib (1990), em seu estudo sobre a teoria do conto, apresenta vários aspectos acerca

desse tipo de narrativa, um deles é a comparação entre as concepções tradicional e moderna.

Ela afirma que, tradicionalmente, a história apresentada num conto absorvia no seu

desenvolvimento, ação, conflito, desfecho com crise e resolução final, enquanto na

contemporaneidade a narrativa rompe com este esquema e fragmenta-se. Depreende-se, como

a própria autora confirma, que seus estudos baseiam-se, também, no que Julio Cortázar (1993)

postulou sobre o conto, como a afirmação de que essa escrita parte, primeiramente, da noção

Page 56: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

55

de limite físico, além do poder de converter um mero episódio doméstico numa síntese

implacável de uma dada condição humana ou num marco de ordem social ou histórica.

E, pode-se, a partir desses conceitos, encontrar respaldo para justificar a abordagem

apresentada na contística de Sonia Coutinho, pois se observa nos seus contos que o espaço

físico ocupado pelas suas personagens está para além do que tradicionalmente se concebe

como espaço, mas como fator determinante para a condição sociocultural das personagens.

O espaço físico contemplado na cidade tem função essencial no desfecho da vida das

personagens de Sonia Coutinho, contribui, efetivamente, para a (des)construção das

identidades. A cidade que no imaginário delas, inicialmente, é o lugar onde todos os sonhos se

realizam, mostrar-se-á adiante com suas múltiplas faces: desde o lugar maravilhoso desejado

pelas personagens à floresta de pedra, mórbida, tenebrosa, capaz de levar a uma grande

incerteza àqueles que acreditavam estar certos de sua existência, de suas identidades.

3.2 Desconstrução de identidades espelhadas nas ruas da cidade

Imersos nos conflitos próprios da contemporaneidade os sujeitos dessa época têm,

ainda, lidar com a difícil tarefa de consolidar a sua identidade. Na busca pelo encontrar-se a si

mesmo deslocam-se para as grandes cidades e deparam-se com a grandiosidade imaginada.

Entretanto, diferente de uma criação da mente, a cidade não só se fará apenas realizadora de

sonhos, de fantasias, mas, também, como obra do acaso, do inesperado.

A literatura, como parte constituinte desta moderna incerteza cria novos universos,

intensifica os já existentes, disponibiliza elementos capazes de conduzir os leitores às

condições de vida desejadas através da linguagem. Como válvula de escape propicia a leveza

ao viver. Segundo Calvino (1990, p. 39): “a literatura como função existencial, a busca da

leveza como reação ao peso de viver”.

Sonia Coutinho aborda em sua contística, sobretudo, relações conflituosas vivenciadas

por mulheres que optaram por uma vida distante das amarras patriarcais, mas após tantos

descaminhos chegam à conclusão de que a cidade que abandonaram seria, para sempre, a sua

única referência na vida, como se pode observar no conto Uma certa felicidade:

Page 57: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

56

A cidade deve estar lá, inteira. Mas não existe mais. Que esforço eu fiz para

me libertar dela, sem saber que seria meu único ponto de referência, o fio da

meada que é preciso encontrar, para não me esfacelar em mil momentos que

já nada têm a ver comigo (COUTINHO, 1994, p. 25-6).

Essas incertezas, segundo Calvino (1990, p. 65) alimentam a existência da literatura na

contemporaneidade. Para o autor, é a insegurança humana que tem assegurado à vida literária,

uma vez que a insatisfação humana, mediante o mundo, encontrará sossego no silêncio das

palavras, desse modo, oferece o adubo necessário para saciar o sedento desejo da literatura de

manter a sua arte:

É certo que a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres

humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um

descontentamento com o mundo tal como ele é, a um esquecer-se das horas e

dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas.

O descontentamento abordado por Calvino (1990) encontra respaldo na escrita de

Sonia Coutinho. Os conflitos vivenciados pelas personagens que, em algumas situações, elas

responsabilizam a sua presença no mundo a fim de justificar as suas tristezas.

E o principal obstáculo que encontro é o de estar eu mesma no mundo,

vivendo. A história de ontem não é mais a mesma de hoje. Novos detalhes

somam-se a ela, mas, sobretudo, o próprio fluir do tempo vai transformando

na memória os acontecimentos que eu sabia. Por isso, a história não

consegue fechar-se, fica sem começo nem fim (COUTINHO, 1990, p. 15-6).

A discussão literária atual tem possibilitado muito mais o reconhecimento do incerto

que a segurança de conceitos absolutos a partir dos quais se consiga definir o posicionamento

do sujeito diante o cenário social posto. Sonia Coutinho, ao contar em suas narrativas histórias

da vida humana em relação conflituosa com o espaço físico da cidade dialoga com discussões

teóricas discutidas há muito no cenário mundial.

Ítalo Calvino (1990) discute desde a função da literatura na pós-modernidade, a

contribuição das cidades na vida dos indivíduos dessa época, bem como apresenta possíveis

propostas para que melhor se compreenda esse tempo. Nesse sentido a obra literária tem papel

importantíssimo, pois cria existências possíveis. Para Calvino (1990, p. 84):

Page 58: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

57

A obra literária é uma dessas mínimas porções nas quais o existente se

cristaliza numa forma, adquire um sentido, que nem é fixo, nem definido,

nem enrijecido numa imobilidade mineral, mas tão vivo quanto um

organismo.

Percebe-se na contística em análise, que as identidades construídas pelas personagens

na cidade são frágeis e relacionam-se diretamente com o outro. Ao mesmo tempo em que o

dinamismo da vida nos grandes centros urbanos conduz as pessoas a se tornarem solitárias, as

fazê-las sentir uma necessidade imensurável de aconchego humano: “– Enquanto isso, sinto

que estou falando grego e os carros passam com mil faces desconhecidas, nunca encontro

ninguém conhecido em Copacabana para discutir o quebra-cabeça, minha vida”

(COUTINHO, 1994, p. 15).

A necessidade afetuosa que assola a vida das personagens torna-se um elemento

intensificador na batalha constante pelo desejo de atribuir significado à existência. A cidade

com seus caminhos, aparentemente, fáceis de serem percorridos, reveste-se de muitos

segredos que instigam a imaginação de seus moradores em desvendá-los, embora

desconheçam o que os espera. Benjamin discute essa ideia (1989, p. 224): “[...] Por fim, é, no

labirinto da cidade, o mais novo e inexplorável dos labirintos. Através dela se imprimem da

cidade traços ctônicos até então desconhecidos”.

No conto Uma certa felicidade o conflito vivido pela personagem dá-se porque a

cidade onde mora, constantemente, lhe apresenta, paradoxalmente, os seus (des)encantos: “Os

crepúsculos na Cidade têm um sabor de idéia platônica ou verdade eterna” (COUTINHO,

1994, p. 11). Ora o centro urbano mostra-se como realizador dos seus sonhos, ora como

destruidor de suas verdades: “A fim de vir viver nesta cidade grande a sua condenação à

liberdade” (COUTINHO, 1994, p. 102).

Ainda nesse conto nota-se a angústia da personagem ao tentar compreender o seu

próprio reflexo, pois ao ver-se refletida num espelho, não consegue se reconhecer. Trava-se

uma luta ao adentrar em uma galeria, na qual existem vários espelhos, pois ela, mesmo não se

encontrando, tenta alcançar a sua formação multifacetada, fragmentada, típica da

contemporaneidade.

– Entro, vejo a minha face refletida em intermináveis corredores. Em cada

pedaço de espelho, os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo nariz – e não

sou eu. Caminho através de longas galerias de espelhos, estendo a mão para

tocar, prender, queria segurar um dos fragmentos, nem que só por um

instante (COUTINHO, 1994, p. 23).

Page 59: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

58

Na busca por sua identidade, múltipla, o sujeito tem de se adequar a que for

determinada pelo momento. O sujeito como parte de uma constituição social efêmera e

fragmentada tem de portar-se segundo esses preceitos, logo constitui uma identidade plural.

Hall (2006, p. 12-3) acerca da relação identidade e sujeito contemporâneo, afirma:

[...] A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] O sujeito assume

identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são

unificadas ao redor de um “eu” coerente. [...] A identidade plenamente

unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.

Bernd (1992, p. 10) corrobora com os conceitos apresentados por Hall, ao assegurar

que “[...] A busca da identidade deve ser vista como um processo, em permanente movimento

de deslocamento, como travessia, como uma formação descontínua [...]”. A identidade não é

formada de modo estático, mas ao longo da construção histórica do indivíduo como um

processo contínuo e sujeito a interferências ideológicas e culturais circundantes na sociedade.

A discussão sobre identidade ou crise de identidade na contemporaneidade não

dissocia-se da concepção de espaço, público ou privado, pelo fato de este exercer forte

influência nesse processo de formação. O espaço não significa estritamente um elemento

geográfico, mas parte constitutiva de sua estruturação. Villaça (1996, p. 193) afirma que “[...]

Pensar a crise que atinge o homem contemporâneo é pensar seu imaginário, os processos de

subjetivação, suas representações do tempo e do espaço. Melhor, do espaço/tempo [...]”.

Villaça (1996) a partir dessa afirmação conduz o leitor a conceber o espaço físico, as

cidades, na literatura, para além dos limites geográficos, cuja função não se restringe a tão

somente comportar um aglomerado de pessoas vivendo em torno de uma ordem estabelecida

em nome do bem social.

A cidade é muito além daquilo que a mente humana pode conceber, mais que o

concreto que a sustenta, aparentemente. Dela pouco é aproveitado, quem sabe, compreendido,

apenas as interrogações que provocam são plenas. Calvino (1990, p. 44) traz essa incerteza

amistosa que a cidade provoca: “As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso,

mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não

Page 60: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

59

aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas

perguntas”.

A cidade perfeita construída no imaginário coletivo das personagens é um sonho

distante, mas não inalcançável. As sobras deixadas para trás, ou as que ainda acompanham os

sujeitos da modernidade, serão utilizadas na sua reconstrução da cidade, única, a fim de torná-

la um lugar ideal. Calvino discute sobre a cidade perfeita (1990, p. 149): “[...] construirei

pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes

separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta [...]”.

Através do imaginário dos artistas literários, muitas situações dos sujeitos são

representadas. A vida ganha novos significados, novas possibilidades, novos universos,

encantos e desencantos. Muito além de apegar-se a questão de gênero, a literatura permite

novas discussões acerca do ser humano. Discussões essas que, sustentadas nas ruas das

cidades, garantem belas narrativas, nas quais, ele ou ela, ganham um novo palco para

apresentarem novas versões da arte da existência.

3.3 Escrita de gênero: simplesmente a arte literária de um(a) autor(a)

Inúmeros casos bem resolvidos, ou não, são representados na literatura. A linguagem,

elemento principal na construção de novos universos tem função privilegiada por ser

arraigada de recursos que lhe permitem recriar, intensificar. Ao tentar desenhar cenários

possíveis para a ressignifação da arte do bem viver, a arte pode deparar-se com o incerto, uma

vez que os ocupantes destes lugares são sujeitos impregnados de insegurança.

A literatura possibilita o que nenhuma arte o fará, um lugar ao sol, àqueles que, sem

terem ainda encontrado o seu lugar, perambulam pelas vielas da vida, tropeçam nas incertezas

de pedra, apegam-se a menor chance possível que prometa a solidez, mas que em nenhum

momento abandonam a certeza de uma vida diferente. Assim, a linguagem, oferece pistas

rumo à terra prometida. Segundo Calvino (1990, p. 72): “A literatura – quero dizer, aquela

que responde a essas exigências – é a Terra prometida em que a linguagem se torna aquilo que

na verdade deveria ser”.

Com um trabalho intenso na construção das trilhas que conduzam à Terra Prometida,

os artistas aventuram-se no universo das palavras e intensificam a vida numa nova

representação. Sonia Coutinho, com maestria, apresenta panoramas novos à vida dos sujeitos,

Page 61: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

60

sobretudo mulheres, lá pelos anos 70 que queriam algo além do que a cidade interiorana

poderia oferecer. Percebem-se na descrição da vida dessas personagens alguns reflexos da

vida da escritora, desde a trajetória traçada do interior à cidade grande, a aspectos

comportamentais.

Coutinho, em entrevista, revelou traços do seu posicionamento mediante algumas

práticas comuns no meio social. Certamente, a dimensão do isolamento da escritora não pode

ser equiparada ao de suas personagens. Contudo, algumas características anunciadas pela

autora conduzem a imaginar que esse elemento constante em sua constística, não resulte,

exclusivamente, de sua imaginação aliada ao contexto que se insere, mas, quem sabe, de uma

perspectiva introspectiva.

Bom, eu não sou uma pessoa extrovertida, eu sou uma pessoa muito

introvertida, eu “tou” sendo entrevistada por você aqui agora eu estou me

sentindo a vontade, mas se você me pedir para eu fazer uma palestra, para

falar para um público, eu odeio isso, eu não tenho o menor jeito para fazer

isso, entendeu? Também não faço vida social, não gosto de festa, nunca

gostei, entendeu? Então, eu sou uma pessoa isolada por vocação mesmo, é

uma vocação, não me imagino de outra maneira, isso deve aparecer na

minha literatura13

.

O comportamento da escritora reflete, propositalmente ou não, no de algumas das suas

personagens. Mulheres inseguras demais para quem, com tanta audácia, romperam com a

estrutura social delineada para si em nome da felicidade. Situações como as comemorações de

fim de ano são capazes de conduzi-las ao total desespero, a um completo isolamento. No

conto O fim de ano da mulher sozinha (2006) a personagem demonstra uma relação

conflituosa consigo mesma, uma vez que a decisão de viver sozinha surgiu de um desejo seu,

talvez: “Sim, escolheu ficar assim. Mentira, não escolheu” (COUTINHO, 2006, p. 66).

A mulher, de mais de quarenta anos, segue uma rotina de maneira incansável.

Diariamente sai em passeio ao Jardim Botânico, conversa com as flores. A proximidade dos

feriados de fim de ano a desesperam, pois não terá aonde ir: “[...] Sendo hoje o dia 23 de

dezembro, está empenhada numa estratégia pessoal para enfrentar mais um fim de ano sem

13 Disponível em: <http://www.canalassembleia.ba.gov.br/DetalhesVideo.aspx?ProgramacaoID=1025>. Acesso

em: 26/12/2011. Entrevista concedida a Roberto Claudio.

Page 62: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

61

companhia” (COUTINHO, 2006, p. 65). O fato de o Jardim Botânico fechar nesses dias a

deixa ainda mais angustiada: “Afasta-se imaginando que fará, desta vez, nos dias em que tudo

estiver fechado, em que não houver sequer um restaurante aberto para ela almoçar”

(COUTINHO, 2006, p. 67).

Para viver o sonho de se tornar uma jornalista famosa, no Rio de Janeiro, abandonou a

sua cidade, marido e filho, mas o prêmio que conseguiu conquistar não foi o almejado,

desejado nos seus sonhos. A solidão que lhe custara muito sacrifício assegurá-la, mas agora

que se instalou, definiu-a como o seu permanente estado de espírito: “E, na noite de Natal,

quando pensava estar bem protegida, ali trancada, com a televisão ligada, de repente o

telefone toca. [...] Não atende [...]. Vem-lhe a certeza, neste momento, de que a solidão foi

conquistada a duras penas, sua solidão é o seu premio” (COUTINHO, 2006, p. 72).

A partir dessas considerações faz-se imprescindível trazer à luz dessa discussão alguns

conceitos discutidos por Faraco (2008, p. 37) com base no postulado de Mikhail Bakhtin. São

apresentadas suas concepções de autor, de autor-pessoa e do autor-criador. Aquela se

relaciona ao autor como uma pessoa comum, o profissional escritor, enquanto diz respeito aos

aspectos da obra, ou seja, sua função estético-formal como característica imanente da arte.

A discussão apresentada para autor-criador talvez fundamente ou justifique os

possíveis reflexos da vida de um escritor em sua obra, pois segundo essa definição o autor traz

embutido no seu discurso artístico os seus nos quais acredita. Desse modo, Faraco define: “O

autor-criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele não apenas registra passivamente os

eventos da vida (ele não é um estenógrafo desses eventos), mas, a partir de uma certa posição

axiológica, recorta-os e reorganiza-os esteticamente” (FARACO, 2008, p. 39).

Esse registro não passivo pode ser percebido na contística de Sonia Coutinho. No

conto Ovelha Negra e Amiga Loura (2006) que apresenta os perfis de duas mulheres. Uma

seguidora dos pressupostos sociais, logo aceita. Outra que rompe com a condição pré-

estabelecida às mulheres e sai em busca do que acredita ser a sua felicidade. Lê-se “Naqueles

anos 70 havia pessoas que rompiam com tudo, família, religião, o que fosse. Gente jovem e

sonhadora, que queria virar o mundo de pernas para o ar” (COUTINHO, 2006, p. 13).

O discurso da personagem dialoga com o de sua criadora. Em entrevista Sonia

Coutinho expôs algumas das características das mulheres que descreve, da ruptura que elas

realizam com a estrutura social de sua época, mas que sofrem, também, com as

consequências:

Page 63: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

62

Esses anos 70 que foi que eu entrei assim...era uns anos assim que a mulher

começou a aparecer mais no mercado de trabalho, ocupar lugares que nunca

tinha ocupado antes né, foi uma virada nos costumes aqui do Brasil, foi uma

mudada, realmente, agora uma mudada que valeu um preço para cada

um,não há dúvida, entendeu? [...] Mulheres, em geral, que não são...é em

situação limite, em situações fora do padrão né, mulheres saindo daquele

universo patriarcal para o universo, assim, dessa mulher que trabalha, que se

sustenta, é isso14

.

Faraco (2008, p. 39) afirma que essa é uma característica do autor que é criador,

transportar para a sua obra aspectos da vida real e organizá-los de modo diferente, ou seja,

condensados e acabados nessa nova concepção de mundo. À sua compreensão não se fará

necessária recorrer a referentes do mundo real, pois a unidade recriada se sustenta.

Deve-se essa autossustentação, ou parte dela, ao modo como a linguagem é utilizada

que permite, entre outros, a comunicação de situações presentes, ou não, sem o uso da

palavra. Calvino teoriza sobre o uso adequado da linguagem, justificando seu uso e função:

“por isso o justo emprego da linguagem é, para mim, aquele que permite o aproximar-se das

coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas

(presentes ou ausentes) comunicam sem o recurso das palavras” (CALVINO, 1990, p. 90-1).

A junção da linguagem conotativa e criatividade da escritora tem resultado em

excelentes produções à escritora Sonia Coutinho. São narrativas que discutem a condição de

sujeitos, homens e mulheres, sobretudo estas, em uma trajetória pelas ruas do Rio de Janeiro

numa busca constante por si mesmos.

Porque na cidade é assim, palco para todos, eles ou elas, podem usá-la como palco

para (re)apresentem as sua vidas. Coutinho utiliza com maestria desse cenário para arraigar as

suas histórias de elementos típicos da contemporaneidade, desde o reconhecimento social à

autoidentificação.

Harvey (2001, p. 17) apresenta a cidade com um possível teatro, logo, aberto ao

aparecimento de múltiplas faces, o surgimento de várias personagens, diversos gêneros

14 Disponível em: <http://www.canalassembleia.ba.gov.br/DetalhesVideo.aspx?ProgramacaoID=1025>. Acesso

em: 26/12/2011. Entrevista concedida a Roberto Claudio.

Page 64: O eu, a cidade... e os conflitos identitários do século xx uma análise na contistica de sonia coutinho

63

poderão ser encenados: “A cidade pode ser um teatro, mas isso significa que havia

oportunidade de vilões e tolos se imiscuir ali e transformar a vida social em tragicomédia, e

até em melodrama violento, em especial se não conseguíssemos decifrar os códigos direito”.

Acresce, ainda, sobre uma característica recorrente das cidades, a plasticidade.

Segundo ele, esse elemento que torna os centros urbanos um libertador da identidade humana

pode torná-la, também, em um elo tênue entre a psicose do homem e o pesadelo totalitário.

Absoluto, dissimulado, revestido pelos encantos das cidades, assim mostra-se o

libertador das identidades. Capaz de desabrochar os sentimentos humanos mais sombrios

conduz os sujeitos, ele ou ela, à fragilidade, ao incerto, à certeza de que o que buscam de fato,

na cidadezinha ou no Rio de Janeiro, é o motivo que justifica a continuidade do viver. Os

caminhos que apontam para o objetivo maior, para o grande encontro, nem sempre, são

cobertos de flores, aliás, nunca são, mas forrados pelos fantasmas da incerteza, da

insegurança.

A insegurança tornou-se, na vida dessas personagens, um atrativo a mais, um segredo

a ser desvendado nos labirintos das cidades. Ela, em Aventureira Lola (2004) não se

incomoda tanto com a solidão, os outros pensam que ela se transformou numa super mulher,

só não foi lembrado que ela, ela é simplesmente um ser humano, completo, por isso

imperfeito: “[...] ah, agora todo mundo pensa que ele é uma Mulher Independente e

Emancipada, quando não passa, ahn, de uma pequena criatura solitária e sofrida, marcada por

tantas Carências Afetivas Insanáveis” (COUTINHO, 2004, p. 33).

Ele, a aparente rocha inabalável, também possui suas frustrações, muitas. Até retornou

à cidadezinha e tentou reencontrar o seu amor, a sua esposa, que abandonara em troca de

Copacabana, ela não o quis mais, o desprezou, preferiu o álcool. E ele que jurou nunca voltar

ao passado, não se abater, abate-se pela tristeza. Em Os olhos do cão (2004), entregou-se à

fragilidade quase inocente, de criança, quis chorar: “[...] Pois, em algum ponto, todos somos

ultrapassados – e ele, o Implacável, ele cujo lema era não olhar para trás, a fim de não virar

estátua de sal, ele teve vontade afinal de chorar” (COUTINHO, 2004, p. 86).

Essa é a cidade, extremamente convidativa, encantadora, apaixonante, sedutora, cruel,

mórbida, traiçoeira, manipuladora. Torna-se do tamanho do imaginário de quem a deseja, dos

que a concebem em seus sonhos, mas sonhos, às vezes, se tornam pesadelos. E é isso que

constrói a cidade, que está contido nas suas paredes e muretas de concreto, o paradoxo que

não poderá, jamais, ser visualizado em mapas, números, pesquisas, pois está guardado na

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caixinha dos sonhos e desejos de cada um, no lugar que, mesmo regado pela incerteza, poderá

ser considerado a base sólida do indivíduo.

É intocável, mesmo com as interferências externas, a fábrica de construção dos

mundos possíveis. (Raban, p. 9-10 apud HARVEY, 2001, p. 17) assegura: “[...] A cidade tal

como imaginamos, a suave cidade da ilusão, do mito, da aspiração, do pesadelo, é tão real, e

talvez mais real, quanto à cidade dura que podemos localizar nos mapas e estatísticas, nas

monografias de sociologia urbana, de demografia e de arquitetura”.

A contística de Sonia Coutinho oferece um novo olhar para o universo da vida

humana. Uma nova possibilidade baseada na realidade, mas que carregada dos artifícios da

linguagem literária produzem muito mais sensações que a realidade, tal como ela é,

conseguiria mensurar.

As narrativas são um convite ao leitor para embarcar em diversas aventuras amorosas,

cujos personagens são criaturas tão incertas quanto o destino. Histórias inspiradas em pessoas

que optaram por romper com as amarras sociais em busca de um ideal, constante em suas

vidas, a felicidade. Tão cruel e difícil de ser domada, esta sensação de felicidade até se

apresenta, em raras oportunidades, é verdade, mas deixando sempre a mensagem de que ela é

possível desde que exista merecimento.

A consolidação identitária se torna uma tarefa mais difícil ainda para as personagens,

não há base segura. É desejo permanente encontrar-se, ou, quem sabe, ser encontrada e tornar-

se um ser dentro das “normalidades”, amante e amado, mesmo que, para isso, o preço seja um

trilhar incansável pelos labirintos da cidade, um passeio, aparentemente, (in)concluso.

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AINDA NAS RUAS DA CIDADE: UMA ESCRITA (IN)CONCLUSA

“[...] é sinistro um apartamento vazio de noite, ainda mais

sem telefone. Aliás, a quem eu iria telefonar, há esta

hora? Não quero olhar outra vez o relógio. Vou à janela

do quarto e espio, amedrontada, a intransponível muralha

de concreto, com seus pequenos quadrados agora

apagados, os prédios imensos erguendo-se silenciosos no

escuro, qual árvores de uma floresta toda de metal e

cimento, nenhuma unidade ou frescor, estranho

mecanismo adormecido, Copacabana” (COUTINHO, In:

Essas tardes de maio, 1994, p. 79).

A muralha na contística de Sonia Coutinho, definitivamente, é intransponível, uma vez

ultrapassados os muros dos centros urbanos, o sujeito não mais consegue se libertar de suas

garras. Está para sempre preso às entranhas da cidade, pois ela, com todo seu encanto,

fascínio, beleza e sedução o arrebatou. Embora já o tenha apresentado à sua outra face,

mórbida, gélida, traiçoeira, era tarde demais, ele já é apaixonado.

O poder envolvente que as armadilhas urbanas exercem sobre as personagens da

contística em análise é um recurso recorrente nos textos estudados. Esse poder personifica-se

em várias formas concretas encontradas na cidade. São os apartamentos em Copacabana,

pequenos, verdade, as ruas movimentadas que, às vezes produzem uma enorme sensação de

solidão mesmo em meio a milhões de pessoas, o Jardim Botânico, nesse espaço sim há a

plenitude da felicidade, a completude pode ser alcançada, as luzes da noite carioca encantam.

Contudo, a sensação que se tem durante as leituras é que as personagens,

aparentemente vislumbradas com a imensidão da cidade, não estão nesse espaço em busca,

apenas, da concretude urbana, mas do afeto que na sua cidade de origem não conseguiram

encontrar. Partindo desse princípio pode-se compreender o fato de a insatisfação ser

companheira constante em suas trajetórias de vida, embora a chegada ao Rio de Janeiro seja a

concretização de um sonho de juventude.

Nas ruas da cidade, as personagens constroem identidades plurais, mas em bases não

seguras, logo desmoronam. A adversidade torna-se um fator intensificador dos conflitos das

personagens, uma vez que a todo o momento elas expressam seus desejos mais íntimos,

contrariando as expectativas do leitor, querem afeto, amigos, um parceiro, aconchego,

sobretudo, familiar. A necessidade que elas têm de uma estrutura familiar parece ser o marco

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inicial de seus dilemas, mesmo que nela tenha se iniciado algumas de suas frustrações, como

as sexuais, essa atividade, às vezes, era iniciada em casa, de maneira violenta, pelo pai.

Observa-se, ainda, que o sonho de viver no Rio de Janeiro, no bairro de Copacabana

surge de um desejo de fuga de uma ordem social que contraria as perspectivas de vida, de

felicidade nutrida pelas personagens. Contudo, essa aparente mudança, como a única saída

para os problemas, torna-se uma busca na qual o objeto almejado trata-se delas próprias. Esse

fator pode ser visto como facilitador, afinal seria uma busca por algo que já é seu, porém,

surge como o elemento complicador na caçada, pois as personagens não se conhecem, não se

encontram, não saberiam onde serem achadas.

As narrativas de Sonia Coutinho são nutridas de características típicas do

comportamento humano, provocadoras de muitas sensações. Mais que despertar o prazer na

leitura, deleite absoluto, condução a um novo mundo, criado e sustentado na literatura, o

contato com estes contos pode provocar fruição.

A partir do momento que o leitor se desloca do seu lugar perante a sociedade,

confortável ou não, bem como desestrutura sua formação histórico-cultural, aparentemente

consolidada, cresce em si um conflito contra a linguagem comumente usada, pois na literatura

ela conta muito mais intensamente as peripécias da vida.

Essa miscelânea de sensações provocadas pelo contato com os contos da escritora em

análise oferece à atividade um ar de inacabada. Inúmeras são as temáticas possíveis de serem

observadas, muito embora se tenha partido de um ponto definido, os reflexos do cotidiano da

vida pós-moderna são evidenciados de tal maneira, podendo até confundir o leitor e levá-lo a

questionar se a leitura realizada é, efetivamente, ficcional.

Entretanto, a condução a mundos fictícios, por mais intensa que seja, produz nos

leitores, simplesmente, o desejo por uma nova realidade, mas sim a possibilidade de rever o

universo em que vive, quem sabe transformá-lo. Modificar a sua vivência, dar maior

significado à sua existência, ou, simplesmente, olhar o mundo real com outros olhos e, talvez,

tornar-se mais consciente de si.

A literatura, sempre na sustentação da arte da palavra, na intensificação da linguagem

comumente utilizada, provocadora de sensações, tensões, representa a realidade de modo a

tornar o seu leitor desfamiliarizado do que, até então, concebera como a sua realidade. Recria

mundos, dialoga com a história, passeia pela tradição escrita e a reescreve.

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Ficção narrada com base nos conflitos assistidos na realidade das cidades modernas,

assim é a contística de Sonia Coutinho. Um convite a um passeio, ao certo inacabado, pelas

vielas da modernidade e um despertar a maneira de viver da maioria dos sujeitos dessa época.

No cumprimento de sua função social ou, quiçá, uma mera produtora de prazeres através da

leitura, a literatura, sedenta de vida, renova-se num discurso constante com os sujeitos e sua

contemporaneidade, representando realidades e intensificando o real significado das palavras.

Mediante a velocidade com que conceitos são construídos e desmoronados na

contemporaneidade é fato que a literatura segue nutrindo as suas páginas pelas mãos de

escritores que, somando o talento à conflitante vida moderna, asseguram, com qualidade e

originalidade, a vida literária. E mesmo que em caminhadas inacabadas. Incertas, mantém-se

rejuvenescida para permanecer senhora na arte de representar.

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