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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA CAROLINA DE MATTOS VAZ O FIM DA CANÇÃO COMO SINTOMA DAS MUDANÇAS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA Palhoça 2015

O FIM DA CANÇÃO COMO SINTOMA DAS MUDANÇAS …pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/110838_Carolina.pdf · arquivo de Derrida, a partir do conceito de autêntico de Tinhorão, de intertextualidade

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    UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

    CAROLINA DE MATTOS VAZ

    O FIM DA CANO COMO SINTOMA DAS MUDANAS NA MSICA POPULAR

    BRASILEIRA

    Palhoa

    2015

  • CAROLINA DE MATTOS VAZ

    O FIM DA CANO COMO SINTOMA DAS MUDANAS NA MSICA POPULAR

    BRASILEIRA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Linguagem daUniversidade do Sul de Santa Catarina comorequisito parcial obteno do ttulo de Mestreem Cincias da Linguagem.

    Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Gonalves dos Santos.

    Palhoa

    2015

  • 2

  • Dedico esse trabalho principalmente aos meus

    pais que me ensinaram a lutar pelos meus

    ideais e a ter muita garra para vencer os

    obstculos da vida, aos meus filhos Ziggy e

    Laura e ao meu marido Eduardo Ramos, que

    foram companheiros e tolerantes.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo imensamente coordenadora da minha filha, Evelise Melo, por ter tido

    a sensibilidade de me apresentar um curso com o qual me identifico muito. Ao meu orientador

    Prof. Dr. Antonio Carlos Santos pela eficincia, pacincia e companheirismo em toda a minha

    trajetria. A todos os envolvidos no programa, principalmente coordenadora do curso

    Dilma, Prof. Dra. Ana Carolina, secretria Edna Mazon e colega de curso Flavia Walter,

    por sempre me ajudarem de diferentes formas na concretizao desse objetivo. A minha

    famlia, sobretudo ao meu pai Luiz Aguinaldo de Mattos Vaz, minha irm Fernanda e meu tio

    Edward Vaz, pelo incentivo, minha me Tania Paganini pelas tantas leituras e contribuies

    no decorrer da minha trajetria, Maristela pela disponibilidade e Monica Bergamo pela

    honestidade em seus comentrios. Ao meu companheiro de jornada e marido Eduardo, por

    tantas vezes assumir as responsabilidades com os filhos e casa sozinho, e claro, aos meus

    filhos, Ziggy e Laura, por terem compreendido o quanto eu precisava da parceria deles. Aos

    amigos, em especial, Cristhal Lima e Marcia Knabben por sempre terem acreditado em meu

    potencial e por se colocarem disposio em diversos momentos. Tambm no poderia

    deixar de agradecer aos colegas de trabalho Debora Motta, Ninfa Silva e Mesquita, assim

    como secretria da educao Mri Hang, que sempre acreditaram na importncia do curso,

    dando-me incentivo e instrumentos para que eu concretizasse cada etapa desse trabalho.

    Muito obrigada a todos!

  • A cano uma de nossas verdades, traduzindo de modo nico as contradies e

    felicidades da cultura. Ou melhor: as canes so muitas verdades, prontas para serem

    .

  • RESUMO

    transformaes no campo da msica popular brasileira e da sociedade a partir de declaraes

    do msico e escritor Chico Buarque e do historiador e crtico Jos Ramos Tinhoro. Para isso,

    apoiamos nossa reflexo nos textos de alguns estudiosos do tema, tais como Luiz Tatit, Arthur

    Nestrovski, Z Miguel Wisnik e Chico Saraiva.

    Mostramos que os fins, que tambm

    so fruto de um anacronismo presente na ps-modernidade, assim como traamos um paralelo

    da msica com a escultura e com a literatura, a partir de consideraes a respeito da existncia

    ou no de um cnone em alguns momentos especficos.

    Sobre a Indstria cultural e considerando que a msica, nesse momento, passava a ser um

    objeto de valor e no s entretenimento, ou seja, se antes servia como fonte de lazer, a partir

    do surgimento da Indstria Cultural passa a ter valor de mercado. Para contextualizar esse

    momento recorremos a Marcos Napolitano a Walter Benjamin e Rancire, no que diz respeito

    Indstria Cultural.

    -modernidade como se

    tivesse necessidade em finalizar algo para ento comear algo novo, como se o passado

    pudesse ser extinto.

    Para esse fim, traamos um paralelo do moderno com o ps-moderno atravs, principalmente,

    de Lyotard e Compagnon, e demonstramos que os cortes entre um tempo e outro no so to

    simples quanto propem alguns tericos.

    Sob o ponto de vista de Compagnon e Terry Eagleton, o cnone deixa de estar presente na

    literatura da dcada de sessenta. Nesse mesmo perodo, ocorre tambm a chegada da Indstria

    Cultural, momento em que a cano surge, com um formato especfico, o que transforma o

    cenrio da msica, afinal, os artistas passariam a fazer msicas pensando no modelo que

    poderia ser gravado e haveria interesse do mercado industrial. Na ps-modernidade, o suposto

    fim da cano parece ser consequncia de um esgotamento dessas formas tais como eram

    de

    arquivo de Derrida, a partir do conceito de autntico de Tinhoro, de intertextualidade de

    Kristeva e da ideia benjaminiana de atrofia da aura.

    Percebemos que o campo da msica, artes e literatura se interligam em diferentes perodos,

    atravs de acontecimentos que fazem com que surjam novos conceitos, portanto, traamos um

    paralelo entre intertextualidade, a partir de Julia Kristeva, e polifonia, bem como entre

  • onceito de no-

    pertencimento sob a tica de Florncia Garramuo.

    Palavras-chave: Cano. Sintoma. Fim.

  • RESUMEN

    El objetivo de este estudio es analizar el "final de la cancin" como un sntoma de mltiples

    transformaciones en el campo de la msica popular brasilea y la sociedad de las

    declaraciones del msico y escritor Chico Buarque y el historiador y crtico Jos Ramos

    Tinhoro. Por esta razn apoyamos nuestro reflejo en los textos de algunos estudiosos del

    tema como Luiz Tatit, Arthur Nestrovski, Z Miguel Wisnik y Chico Saraiva.

    Se demuestra que este supuesto "final de la cancin" aparece en paralelo con otros fines, que

    son tambin el fruto de este anacronismo en la post-modernidad, como trazamos una paralela

    de la msica con la escultura y la literatura, de las consideraciones relativas a la existencia de

    un canon en algunos momentos especficos.

    En la industria cultural y teniendo en cuenta que la msica en ese momento, lleg a ser un

    objeto de valor y no slo entretenimiento, es decir, si antes de servir como fuente de placer,

    desde el surgimiento de la industria cultural se sustituye por el valor de mercado. Para

    contextualizar este momento nos dirigimos a Marcos Napolitano Walter Benjamin y Rancire,

    con respecto a la industria de la cultura.

    Observamos que los "extremos" se muestra con suficiente evidencia en la postmodernidad

    como si hubiera necesidad de finalizar algo y luego empezar algo nuevo, como si el pasado

    podra ser extinguido.

    Con este fin, trazamos una paralela de moderno y postmoderno principalmente a travs de

    Lyotard y Compagnon, y demostramos que los cortes entre una vez y otros no son tan simples

    como algunos tericos proponen.

    Desde el punto de vista de Compagnon y Terry Eagleton, el canon ya no est presente en la

    literatura de los aos sesenta. En el mismo perodo, tambin existe la llegada de la industria

    cultural, y en ese momento la cancin viene con un formato especfico, lo que convierte la

    escena musical, despus de todo, los artistas se convierten en canciones pensando en el

    modelo que se podra ahorrar y no habra inters el mercado industrial. En la posmodernidad,

    el supuesto fin de la cancin parece ser el resultado de un desglose de estas formas como lo

    eran antes. Esta "falsa creacin" de nuevos formatos de msica se hace a mano por archivo

    nocin Derrida, desde el concepto de idea Tinhoro autntico, intertextualidad Kristeva y de

    Benjamn de la atrofia del aura.

    Nos damos cuenta de que el campo de la msica, las artes y la literatura estn interconectados

    en diferentes perodos, a travs de eventos que causan la aparicin de nuevos conceptos, por

    lo que establecer un paralelismo entre la intertextualidad, como Julia Kristeva, y la polifona,

  • as como entre "la escultura expandida "Rosalind Krauss, y" cancin ampliado "por Wisnik.

    El concepto de "escultura expandida", nos demuestra un paralelismo con el concepto de la no

    pertenencia a la vista de Florencia Garramuo.

    Palabras clave: Cancin. Sntoma. Fin.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO........................................................................................................ .........11

    2 O FIM DA CANO ENQUANTO SINTOMA...................................................... .....15

    3. A FORMA CANO.........................................................................................................22

    3.1 CANO E ESCULTURA EXPANDIDA ................................................................. ...41

    4 UM CENRIO EM MOVIMENTO............................................................................. ..53

    5 OS REFLEXOS DA INDSTRIA CULTURAL NO CAMPO DA MSICA.......... ..65

    6 OS FINS DA PS-MODERNIDADE........................................................................... ..72

    7 CONCLUSO....................................................................................................................77

    REFERNCIAS .................................................................................................................. ...80

    ANEXOS .............................................................................................................................. ...85

    ANEXO A ENTREVISTA COM CHICO BUARQUE ................................................ ...86

    ANEXO B ENTREVISTA COM O CRTICO JOS RAMOS TINHORO ........... ...92

  • 11

    1 INTRODUO

    Essa dissertao tem como proposta perceber o que ocasionou o pensamento do

    . Esse pensamento da existncia de alguns fins (fim do poema, fim da poesia,

    fim da msica...), demonstra ser mais um sintoma1 de algumas modificaes que tm ocorrido

    na sociedade, que passa por alguns questionamentos na ps-modernidade. Para tanto,

    investigo de que forma esses acontecimentos sociais interferem no campo da msica popular

    brasileira, a tal ponto que h uma necessidade, por parte de alguns estudiosos e crticos da

    msica, em saber o que pode e no pode ser considerado cano.

    Primeiro , defino o que se configura enquanto tal,

    atravs de diferentes pontos de vista; assim como questiono a presena ou no de um cnone

    na cano, e trao uma relao entre a msica e a literatura. Tambm observamos que h uma

    necessidade de se criar um novo termo que possa incluir outras formas de cano, assim como

    outro termo que contemple esculturas em outros formatos, no caso do campo das artes.

    Para isso, investigo o quanto possvel perceber uma relao entre a cano e a

    escultura e se esses novos termos surgem no mesmo instante. Nesse captulo, chamado

    esses dois campos se mostram enquanto consequncia de necessidades decorrentes da ps-

    modernidade.

    Entendemos que a msica se mostra em um movimento constante desde sempre,

    assim, ovim , investigo quando houve essas

    alteraes quanto ao formato da cano e se possvel que tal formato possa ser autntico,

    atravs de estudiosos tanto da msica como da literatura, traando um paralelo entre os

    formatos de cano existentes e o concei

    conceito de autntico e/ou puro tambm ser debatido nesse captulo a partir de Jos Ramos

    Tinhoro.

    Na inteno de perceber o quanto a sociedade pode ou no ser manipulada, em

    ral no Campo da M

    indstria fonogrfica alterou a histria da msica. Esse captulo tambm mostra quando e de

    que forma a msica se consolidou e o quanto so perceptveis misturas de gneros ao longo

    O Fim da C defino sintoma a partir de Freud e Didi-Huberman, a fim

    1

  • 12

    de investigar o quanto um sintoma da ps-modernidade. Com

    essa const -M

    falsa ruptura entre moderno e ps-moderno mostra-se em evidncia e se, de fato, possvel

    e/ou necessrio, que haja o fim do passado para que o presente possa existir.

    no decorrer de uma discusso do historiador e crtico Joo Ramos Tinhoro com o msico,

    compositor e intelectual Jos Miguel Wisnik. Aps trs anos, o msico, compositor e escritor

    Chico Buarque afirma em entrevista no jornal Folha de So Paulo (2004), que a cano

    Em entrevista ao jornalista Daniel Silveira, na Revista Cult (2011), Tinhoro

    comenta o debate e afirma que a cano, da qual j se havia decretado o fim, surgiu desde o

    Para o crtico, quando se pensa em cano, impossvel no nos remetermos a um

    acompanhamento instrumental, assim como a algum cantando versos que normalmente so

    de carter sentimental. Essas duas caractersticas, para ele, definem a cano.

    Em entrevista para o DVD O Fim da cano, 2012, Luiz Tatit, cantor, compositor e

    professor titular do departamento de lingustica da USP, argumenta: O que est acabando no

    a cano, so as maneiras de veicul-la que esto mudando, como o rdio que, atualmente,

    deixou de ter a importncia que j tivera antes. A chegada de novas tecnologias possibilita

    maioria dos msicos fazer discos, de forma que a cano cresce de maneira assustadora e no

    h qualquer chance de que esse crescimento seja interrompido. De fato, tornou-se concebvel

    e praticvel criar msicas, grav-las, assim como alterar o seu formato rapidamente e

    inmeras vezes, devido quantidade de alternativas tecnolgicas que no somente permitem

    uma explorao cada vez maior dos instrumentos, da prpria voz, bem como uma divulgao

    instantnea.

    Tatit garante que o motivo da descentralizao est no surgimento de inmeros meios

    de transmisso. Antes, quando o telespectador ligava a televiso, podamos assistir aos

    festivais de msica promovidos por duas principais emissoras, ainda que divididos entre a

    turma da Elis Regina, do Simonal e outros. Bastava ligar essas emissoras de televiso para

    encontrar todo o panorama da msica brasileira. Mesmo quem no gostava tanto, acabava se

    envolvendo com o nascer de novos movimentos que atingiam a todos, como por exemplo, o

    Tropicalismo. Essa concentrao como j disse, no tem como acontecer novamente porque

    os meios de comunicao e a possibilidade de escolha so inmeros. (TATIT, 2012)

  • 13

    De maneira intrigante, afirma:

    Todo mundo sabia o que acontecia, mesmo que no gostasse porque naquele

    momento faltavam opes de entretenimento musical na televiso e como estavam

    diversos msicos na mesma emissora era impossvel que um grupo no conhecesse o

    outro, ainda que fosse superficialmente. Atualmente, os meios de veiculao so

    inmeros e o receptor pode escolher no ser to passivo, pois no precisa receber

    somente o que a mdia deseja entregar-lhe; possvel buscar aquilo que deseja

    atravs da internet, meio que possibilita a qualquer artista demonstrar e divulgar o

    seu trabalho. (TATIT, 2012).

    Todas essas mudanas em relao ao acesso no campo musical, e essa nova

    configurao de transmisso de informaes e conhecimentos, em que todos podem publicar

    ou divulgar as suas produes, traz, sem dvida, um dos seno o principal traos das

    localizar

    Para

    Tatit, Chico Buarque, ao falar que a cano havia chegado ao fim, se referia aquela cano

    produzida em outro momento. Desse modo, era como se ele dissesse que a cano, tal qual

    sua definio, havia acabado para ele. No entanto, Tatit defende que a cano tem um ncleo

    muito claro, isto , o encontro da melodia com a letra e a harmonia, e justamente por essa

    caracterstica que a cano no tem como acabar, porque se esta acabar, no ser possvel

    cantar.

    Essa distribuio, entretanto, no significa que todos escutem o mesmo gnero

    musical, at porque na sociedade contempornea, h diversas tribos que s ouvem um

    determinado estilo de msica. O socilogo francs Michel Maffesoli, autor da expresso

    pequenos grupos cujo objetivo estabelecer um crculo de amigos a partir de interesses

    comuns, bem como pensamentos, hbitos, vesturios, etc. (MAFFESOLI, 1998, p. 194). Em

    O tempo das tribos

    tribos que pontuam a espacialidade se faz a partir do sentimento de pertena, em funo de

    uma tica especfica MAFFESOLI, 1998, p. 194).

    domnios, intelectual, cultural, comercial, poltico, observamos a existncia desses

    enraizamentos que MAFFESOLI, 1998, p.

    194).

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    Na ps-modernidade, o desejo de receber novidade no se restringe ao campo da

    msica, mas tambm o da arquitetura e da arte, aspecto que estaremos vendo com maior

    enfoque no captulo 2.1 Cano e escultura expandida. Esse captulo demonstra, a partir do

    olhar de Jameson, a necessidade da sociedade em realizar novas experimentaes, que

    acabam por ser desenvolvidas pela Indstria Cultural, principalmente na arquitetura. No

    mesmo captulo, Antoine Compagnon trata da questo da falta de memria da sociedade, ao

    desconsiderar um passado, bem como aponta a necessidade da sociedade em ser possuidora

    de um poder, ao invs do saber.

    A partir dessas transformaes e enfoques a respeito da

    a ateno de diversos intelectuais como Jos Ramos Tinhoro, Z Miguel Wisnik, Luiz Tatit e

    Arthur Nestrovski, analiso como esse fenmeno aparece no cenrio social e cultural, atravs

    de uma contextualizao da msica no palco br

    o

    no cenrio da msica popular e, de maneira mais ampla, em todo o campo social.

    Inicialmente trabalho com as definies do objeto cano sob um ponto de vista mais

    terico. No decorrer da pesquisa, destaco alguns conceitos de intelectuais que permearo esse

    estudo, especialmente os de Jos Ramos Tinhoro, Luiz Tatit, Jos Miguel Wisnik, Arthur

    transformaes na msica brasileira. Outro estudioso abordado com maior nfase ser Chico

    Saraiva, msico que

    com Wisnik) tratando do tema aqui proposto.

  • 15

    2 O FIM DA CANO ENQUANTO SINTOMA

    O fim da cano aparece na modernidade e demonstra ser um sintoma das

    transformaes ocorridas no campo da msica popular brasileira, e, de maneira mais geral, no

    campo social. A palavra sintoma, entretanto, no to simples assim, tanto que teve

    importncia nos estudos de Freud com a Psicanlise. O sintoma, na psicanlise e de acordo

    com FREUD, pode ser definido como:

    1 Um procedimento para a investigao de processos mentais que, de outra

    forma, so praticamente inacessveis por serem recalcados;

    2 Um mtodo baseado nesta investigao para o tratamento de distrbios

    neurticos;

    3 Uma srie de concepes psicolgicas adquiridas por esse meio e que somam

    umas s outras para formarem progressivamente uma nova disciplina cientfica2.

    Segundo Freud:

    O sintoma a substituio do que foi recalcado; o recalque designa o mecanismoatravs do qual o indivduo tenta eliminar do seu consciente representaes queconsidera inaceitvel. um processo ativo no qual o indivduo tenta manter ao nveldo inconsciente emoo, desejos, lembranas ou afetos passveis de entrarem emconflito com a viso que o sujeito tem de si mesmo ou na sua relao com o mundo.(FREUD, 1996, p. 179).

    Ou seja, quilo que foi recalcado pelo Eu, ao retornar, d-se o nome de sintoma.

    Conforme o Dicionrio Tcnico de Psicologia, o Eu definido como:

    Complexo de representaes que constitui, para mim, o centro do meu campoconsciente e que me parece da mxima continuidade e identidade a respeito de simesmo. O Eu tanto um contedo como uma condio da conscincia. Portanto umelemento psicolgico s consciente na medida em que estiver referido aocomplexo do Eu. A relao entre o sintoma e aquilo que o provocou desconhecidapelo sujeito. (CABRAL; NICK, 2001, p. 110)

    Na psicanlise h para o sintoma um sentido inconsciente. De acordo com

    XX, p.112). Os sintomas, para Freud transcries por assim dizer de

    diversos processos psquicos, desejos e vontades, emocionalmente carregados de energia

    2 In Vocabulrio da Psicanlise, Laplanche de Pontalis, Editora Martins Fontes: So Paulo, 1992.

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    libidinosa que, por obra de um processo psquico especial (represso), foram impedidos de

    obter descarga em atividade psquica admissvel para a conscincia. Estes processos

    psquicos, portanto, mantidos em estado de inconscincia, lutam por obter uma expresso que

    p.166).

    Freud constri a teoria do inconsciente, teoria que ir ampliar a percepo do

    universo subjetivo do homem. Esse novo olhar se contrape ideia do sujeito cartesiano.

    Peter Gay, citando Freud, afirma:

    A represso exige um dispndio contnuo de energia. O que foi reprimido no foieliminado. O velho provrbio est errado: o que est longe dos olhos no est longeda mente. O material reprimido foi apenas guardado no sto inacessvel doinconsciente onde ele continua a vicejar, pressionando para obter satisfao. Por issoas vitrias da represso so no mximo temporrias e sempre duvidosas. O que foireprimido acaba retornando como formao substitutiva ou um sintoma neurtico.(FREUD apud GAY, 1989, p. 337).

    de ser consciente no a nica

    No admira que analistas tenham se deparado com ele, pela primeira vez, atravs do estudo da

    represso. O reprimido , para ns, o prottipo do inconsciente. (GAY, 1989, p. 377). Sobre a

    conscincia e o superego, Gay deixa claro que a conscincia e o superego no so

    absolutamente a mesma coisa e, nas palavras de Freud, conclui:

    O sentimento normal e consciente de culpa (a conscincia) no apresentadificuldades interpretao, ele essencialmente a expresso de uma condenao doego pelo seu juzo crtico. Mas o superego uma funo mental mais intricada. Sejaconsciente ou inconsciente, de um lado ele abriga os valores ticos do indivduo, ede outro observa, julga, aprova ou castiga a conduta (...). O homem moral no smuito mais imoral do que acredita, como tambm mais moral do que sabe (FREUDapud GAY, 1989, p. 380).

    O que ocorre que antes se acreditava que no existia um inconsciente. No sujeito

    cartesiano3 tudo muito lgico. Freud afirma que nem sempre o indivduo faz aquilo que

    deseja, justamente por conta do inconsciente.

    Para Freud, h trs passagens em que a humanidade sofre um abalo narcsico. O

    primeiro quando o homem pensava que a terra era o centro do universo e Galileu afirma no

    3 O cartesianismo, doutrina de Ren Descartes, filsofo e matemtico francs (1596-1660), e de seus seguidores,era caracterizado pelo racionalismo, pela considerao do problema do mtodo como garantia da obteno daverdade, e pelo dualismo metafsico. Por meio desta nova concepo do sujeito, inaugura-se, pode-se dizer, ahistria ocidental moderna.

  • 17

    ser. Em segundo lugar, o homem, a partir de Darwin, descobre no ser filho de Deus,

    momento comprovado pela cincia atravs da evoluo das espcies. Por ltimo, por meio de

    Freud, a constatao de que h um inconsciente. At ento, pensava-se que tudo que o

    homem fazia estava ligado a uma noo do sujeito da conscincia da tradio filosfica.

    Se, na Idade Mdia, os fenmenos psquicos eram aceitos como fenmenos

    sobrenaturais, no final do sculo XIX, essa explicao j no se sustentava e cabia cincia

    autoridade respeitada do saber encontrar a resposta adequada para explicar esses fenmenos

    que passaram a ser tratados como adoecer.

    De acordo com a psicanlise, o aparelho psquico busca um princpio constante de

    energia, mas os estmulos excitam e o quantum energtico sofre um aumento de tenso, que

    precisa ser descarregado. Para isso, a psique poder faz-lo de forma direta, tomando contato

    com a realidade e procurando desta forma resolver o conflito. Caso isto no se torne possvel,

    a tenso ser descarregada em alguma fantasia (ou sonho, ou atos falhos, ou sintoma...) que

    possa proteger a psique. Os mecanismos de defesa so as formas que a psique tem para se

    proteger. James Fadiman e Robert Frager (1986) afirmam:

    As defesas evitam a realidade (represso), excluem a realidade (negao), redefinema realidade (racionalizao) ou invertem-na (formao reativa). Elas colocamsentimentos internos no mundo externo (projeo), dividem a realidade (isolamento)ou dela escapam (regresso). Em todos os casos, a energia libidinal necessria paramanter a defesa, limitando efetivamente a flexibilidade e a fora do Ego.

    Os sintomas so produes inconscientes resultantes deste conflito de foras

    intrapsquicas.

    Didi-Huberman, filsofo, historiador e crtico de arte, opera com o conceito de

    sintoma, para trabalhar com as imagens. Considera que o paradoxo visual a apario:

    Um sintoma sobrevive, interrompe o curso normal de uma coisa segundo uma leito soberana como subterrnea que resiste observao banal. O que a imagem-sintoma interrompe no outra coisa seno o curso normal das representaes. Umsintoma jamais emerge em um momento correto, aparece sempre a contrapelo, comouma velha enfermidade que volta a importunar nosso presente. (DIDI HUBERMAN,2000, p. 64).

    com a histria, fragmentao, crise, interrupo do tempo linear, revelando uma

    multip

    ISABELA, 2011).

  • 18

    Didi-Huberman afirma que a imagem fundamental na construo da histria, na

    -HUBERMAN, 2005, p.32). A histria no , entretanto,

    -Huberman, citando Marc

    Block, considera que existe uma separao paradoxal que insiste em extrair do tempo passado

    a mesma pureza que teramos nos mbitos astronmicos, geolgicos, geogrficos.

    Com esses conceitos, o autor ressalta que a histria considera um passado humano

    e, dessa forma, todo passado est ligado a uma antropologia do tempo, toda histria ser a

    histria dos homens. (DIDI-HUBERMAN, 2000, p. 59).

    ante um tempo que no exatamente o passado, tem um nome: a memria. ela quedecanta o passado de sua exatitude. ela a que humaniza e configura o tempo,entrelaa suas fibras, assegura suas transmisses, consagrando a uma impurezaessencial. A memria psquica em seus processos, anacrnica em seus afetos de

    .

    Com base nesses conceitos, no possvel aceitar a dimenso memorativa da histria sem

    aceitar, simultaneamente, sua fixao no inconsciente e sua dimenso anacrnica. Para Didi-

    Huberman h um anacronismo na histria e afirma:

    (...) S h uma histria dos sintomas...palavra difcil de delimitar: no designa umacoisa separada, nem inclusive um processo redutvel a um dos vectores, ou a umnmero preciso de componentes. uma complexidade de segundo grau. No omesmo que um conceito semiolgico ou clnico, inclusive quando compromete umadeterminada compreenso da emergncia (fenomnica) do sentido, e inclusive secompromete a uma determinada compreenso da pregnncia (estrutural) dadisfuncionalidade. Esta noo denota pelo menos um duplo paradoxo, visual etemporal, cujo interesse resulta compreensvel para o nosso campo de interrogaosobre as imagens e o tempo.O paradoxo visual o da apario: um sintoma aparece, um sintoma sobrevive,interrompe o curso normal das coisas segundo uma lei to soberana comosubterrnea - resiste observao banal. O que a imagem-sintoma interrompe no outra coisa que o curso normal da representao. (DIDI-HUBERMAN, 2005, P. 64).

    O sintoma-tempo interrompe o curso da histria cronolgica, mas, ao mesmo

    tempo a

    Didi-Huberman.

    Os anacronismos de Freud no funcionam sem certa repetio das psiques que

    implicam em uma determinada teoria da memria, h uma relao bastante complexa entre a

    histria, a filosofia e a psicanlise. (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 67). Para o estudioso, as

    coisas aparecem de uma forma mais distorcida no campo psquico, o que de se esperar, na

  • 19

    medida em que a psique uma fonte constante de anacronismo. A histria e a psicologia se

    o curso possvel no passado, psicologia de nossos ancestrais tem aplicao global possvel

    nos homens de hoje... Mas o objeto psquico no pode, sem cair na inconsequncia, ser

    -HUBERMAN, 2005, p. 68).

    Com esses conceitos, afirma que no possvel produzirmos uma noo coerente

    de uma imagem (ou, nesse caso, da msica), sem que haja um pensamento psquico, o que

    implica tanto o sintoma como o inconsciente. Da mesma forma, no possvel produzirmos

    uma noo coerente de imagem sem uma noo de tempo, o que implica a diferena e a

    repetio. O sintoma e o anacronismo expressam uma crtica da histria no sentido dessa ser

    completamente submissa (segundo o prprio autor) ao tempo cronolgico.

    contemporneo, aquele que no coincide perfeitamente com este, nem est adequado s suas

    pretenses e , portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente atravs

    desse deslocamento e desse anacronismo, ele capaz, mais do que os outros, de perceber e

    m sintoma da ps-modernidade, deixando claro

    que esta sofre grandes transformaes em diferentes campos, entre eles na msica e na

    arquitetura, discutidas com maior nfase nesse trabalho.

    parece estar

    vivendo uma hibridizao das formas musicais existentes at o momento, assim como a de

    outros campos, como o da arquitetura, de tal forma que h uma necessidade de se finalizar

    algo para se comear um novo formato. Seguindo a linha de pensamento de Maria Cristina

    Ocariz, mestre em Psicologia clnica, poderamos dizer que os crticos parecem no ter

    aceitado as misturas de gneros musicais, e, no aceitando o que considera inaceitvel, ou

    seja, transformando em recalque, que em seguida, sintoma, como o caso da Bossa Nova.

    Em seguida, se renova no campo da msica, porm com uma cicatriz o que impossibilita uma

    satisfao completa, precisando de um segundo caminho para que haja satisfao direta. Ao

    tentar obter uma satisfao, essa aparece sem a aprovao do Eu, sem nem ao menos o Eu

    entend-la. Embora o retorno do recalcado englobe todos os sintomas de formao do

    sintoma, a desfigurao do indivduo em relao ao original muito relevante.

  • 20

    A partir de uma determinada situao de vida, eleva-se uma demanda pulsional que

    pede satisfao. O Eu no aceita esta satisfao, ora porque fica paralisado frente

    magnitude da exigncia pulsional, ora porque vislumbra nela um perigo. Isso leva a

    uma evitao da situao de perigo; o Eu se defende do perigo mediante o processo

    de recalque. O movimento pulsional inibido de alguma forma, e a situao

    esquecida, junto com suas percepes e representaes. Mas o processo no se

    concluiu, ou a pulso perde sua intensidade ou fica adormecida, se acordada em

    outra ocasio, refaz suas foras. Renova ento sua demanda, mas como cicatriz do

    recalque, mantm fechado o caminho para a satisfao direta, facilita-se em alguma

    parte, por um lugar dbil, outro caminho para conseguir uma satisfao substitutiva,

    que aparece como um sintoma sem a aprovao do Eu, e sem que o Eu entenda do

    que se trata. Todos os sintomas de formao do sintoma podem ser entendidos como

    retorno do recalcado, mas a desfigurao que o retornante experimentou em relao

    ao original muito grande. (OCARIZ, 2003, p.52).

    processo de criao de um complexo fenmeno mental ou comportamental que representa um

    compromisso entre um impulso, sentimento ou ideia inconsciente, que procura expresso, e as

    defesas do ego que se lhe opem e procuram elimin-

    Enfim, podemos dizer que o sintoma exprime uma mensagem cujo sentido emana

    do inco

    implica numa dimenso subjetiva, um paciente que fala ao mdico, que relata o que sofre,

    qual o seu padecimento. Esta dimenso subjetiva problemtica porque surgem o equvoco,

    2003, p. 15).

    H uma escuta analtica que a escuta do simblico, ou melhor, do imaginrio ser

    simblico, a realidade psquica que est sendo tratada e no a realidade externa. Os sintomas

    contam uma histria que no pode ser contada, que no pode ser vivida devido a uma

    interdio, o que no significa que deixem de existir.

    mudando em

    ruptura entre a modernidade e a ps-modernidade, colocar o fim das formas. Entretanto,

    como podemos observar, atravs da Psicanlise, o surgimento de um sintoma traz consigo

    memrias inconscientes que respingam na nova configurao.

    Para Bruno Latour, essa ruptura entre a modernidade e a ps-modernidade, no

  • 21

    desejamos abrigar tanto os quase objetos quanto sua Constituio, somos obrigados a levar

    -

    moderno, no podemos voltar a este mundo no moderno- que jamais deixamos sem uma

    modificao na prpria passagem

    Bem, se h uma ruptura entre o moderno e o ps-moderno (e nesse caso teramos

    um fim), no seria possvel voltarmos ao primeiro. Entretanto, o tempo possui uma longitude

    ico, que situa os acontecimentos

    atravs de um calendrio, de outro temos a historicidade, situando os mesmos acontecimentos,

    A ideia de um tempo que passa, vem da Constituio moderna. Segundo Latour

    (2000), a antropologia demonstra que possvel interpretar a passagem do tempo de vrias

    tempo passado abolido pelo presente e, dessa forma, h uma sensao de que tudo que j

    passou, foi eliminado, h uma sensao de que, de fato, houve um progresso, uma

    capitalizao. Partindo de Nietzsche, afirma que os modernos tm a doena da histria,

    querendo datar e guardar tudo, como se isso fosse romper o seu passado. Latour deixa claro

    para os modernos, o passado permanece ou, no mnimo, retorna. Essa incompreenso faz

    ir

    de Freud, seria aquilo que o indivduo tenta eliminar do seu consciente, por achar que

    determinada coisa inaceitvel, entretanto, permanecer em seu inconsciente.

    Como podemos observar no que se refere cano, quando, no ps-modernismo,

    cria-se outro adjetivo para tal cano expandida em que a intertextualidade se mostra

    presente, temos uma contemporaneidade anacrnica.

  • 22

    3 A FORMA CANO

    estudiosos, entre eles Wisnik (1999), Tinhoro (1974), Chico Saraiva (2013), Leandro Maia

    (2012), Guinga (2013) e outros. Esse captulo visa esclarecer o que se configura como tal.

    A cano, assim como os outros gneros musicais, possui uma forma prpria.

    Para entender qual essa forma, creio que seja essencial primeiro tratarmos do significado do

    Estrutura, formato ou princpio organizador da msica. Tem a ver com aorganizao dos elementos em uma pea musical, para torn-la coerente ao ouvinte,que pode ser capaz de reconhecer, por exemplo, um tema ouvido antes na mesmapea, ou uma mudana de tonalidade que estabelece laos entre duas partes de umacomposio. Temas e tonalidades so apenas dois dos muitos elementos que oscompositores utilizam para ajudar a articular a estrutura de uma pea, a fim de dar -lhe clareza e unidade. Existem numerosos meios, inconscientes ou conscientes,atravs dos quais os compositores conseguem, ou tentam conseguir isso,dependendo do estilo em que estejam escrevendo. (Dicionrio Grove de Msica,1994, p.63).

    O elemento de organizao em uma pea de msica. Schoenberg, em Fundamentosda composio musical ifica que uma pea est organizada:

    Mais especificamente, Riemann explicou que a coerncia, lgica e unidade nadiversidade, necessrias para que uma obra se torne formalmente compreensvel,

    reteno de uma cadncia ou ritmo, [...] a repetio de motivos rtmicos e meldicose a formao e repetio de temas imaginativos e fecundos; contraste e conflitoaparecem nas mudanas de harmonia, dissonncias, modulao, alterao de ritmo e

    Essa definio ajusta-se grande maioria das obras compostas entre o sculo XVI ecomeos do sculo XX; mas essas propriedades de integridade, unidade, lgica ecoerncia foram postuladas pela primeira vez por Aristteles na Potica Essesprincpios simtricos so inaceitveis para alguns compositores mais recentes.Escrevendo a respeito da forma aberta de Stockhausen, Roger Smalley expressou

    quem comea com um ponto fixo no tempo e avana a partir da; em vez disso, elemovimenta-se em todas as direes, dentro de um mundo materialmentecircunscrito

    Tendo claro que a forma determina a organizao de uma msica, podemos agora

    definir o que se configura como cano, de acordo com dois dicionrios musicais e tambm

    sob o ponto de vista de alguns estudiosos.

    No Dicionrio de Msica Zahar (1985), temos o seguinte significado de cano:

    Pea curta para voz solista, com ou sem acompanhamento, em estilo simples. Ascanes so comuns a todas as culturas atravs dos tempos. Fragmentos de antigas

  • 23

    canes gregas sobreviveram at nossos dias, mas os primrdios da atual tradioocidental podem ser localizados nas cantigas em acompanhamento do sculo XII.Nelas se incluem a msica dos trovadores e menestris e a tradio das laudas*4. Nosculo XIV, as cantigas com acompanhamento instrumental eram significativas naFrana e Itlia. Evoluram para a chanson renascentista de Dufay, Bichois e outros.A cano para vrias vozes surgiu durante a segunda metade do sculo XV.Compositores desse perodo incluem Obrecht e Josquin, e, no sculo XVI, Sermisy eJannequin. No comeo do sculo XVII, a cano com acompanhamento de aladefloresceu na Inglaterra, nas obras de Dowland e seus contemporneos. Na Franadessa poca, o air de cour (cantiga palaciana com acompanhamento de alade oucravo) fez sua apario. O advento da monodia, no primeiro quartel do sculo XVII,transformou o carter da cano, dando-lhe estilo declamativo mais livre (vertambm ria, recitativo).Esses desenvolvimentos foram rapidamente absorvidos nos novos gneros decantata, pera e oratrio. A cano alem do sculo XVIII evoluiu para o lied* dosculo XIX. A cano francesa foi restabelecida em fins do sculo XIX, atravs dasobras de Duparc e Faur. O ciclo*5 de canes foi uma forma especialmentefavorecida, como em La Bonne Chanson de Faur. Uma slida tradio de canesromnticas e nacionalistas na Rssia, no sculo XIX, emanou das obras de Glinka,Tchaikovsky e do Grupo dos Cinco*6. O Impressionismo* projeta-se nas canes deDebussy. No Brasil, a mais rica tradio de canes a que se liga evoluo damodinha. (Dicionrio de Msica Zahar, 1985, p.63).

    Em definio mais recente, o Dicionrio Grove de Msica (1994) define a cano

    como:

    Pea musical, habitualmente curta e independente, para voz ou vozes, acompanhadaou sem acompanhamento, sacra ou secular. Em alguns usos modernos, o termoimplica msica secular para uma voz.Na Grcia e em Roma existia um grande repertrio de canes, mas poucaschegaram at ns, na maior parte gregas do perodo helenstico. Quaisquer relaesentre as canes crists e as gregas antigas so provavelmente muito tnues. Ascanes judaicas antigas so baseadas em texto salmdico, e pode haver relaesentre a prtica judaica e a prtica crist no canto dos salmos. Alguns cnticosmedievais podem ter sido influenciados pela cano popular, mas os indciosfornecidos pelas melodias remanescentes so inteis para reconstru-los.As primeiras melodias de canes com notao, desde a Antiguidade, chegaram atns nobem posterior), e o estilo de se musicar as palavras, uma ou vrias notas para cadaslaba, era determinado em grande parte por consideraes litrgicas. As partiturasmais merismticas ocorrem nos cnticos que se seguem leitura de escritoscannicos, e que mostram um carter meditativo. Algumas canes latinas nolitrgicas, dos sculos X e XI, chegaram at ns em MSS, e um repertrio maior estassociado aos goliardos (estudante e clrigos itinerantes) do sculo XII.repertrio contemporneo de contuctus consiste de canes estrficas, geralmente

    . (Dicionrio Grove de Msica, 1994, p. 160).

    4 As laudas se referem a um gnero da msica sacra italiana que foi popular na Roma renascentista no sculoXVIII.

    5 A palavra ciclo relaciona-se ao fato de terem havido uma srie de fenmenos, em ordem especfica, na msica.6 O grupo dos cinco era um grupo de compositores russos nacionalistas que, em 1867, que tinham como

    finalidade produzir a msica estritamente russa.

  • 24

    possvel observar que, em ambas as definies, a primeira caracterstica

    destacada sua durao: a cano curta. Em seguida, o fato de ser feita para uma ou mais

    vozes e de poder ser interpretada com ou sem acompanhamento. Dessa maneira, nota-se que o

    termo pode englobar inmeras e diversas canes em diferentes formatos, que vo da bossa

    nova ao RAP. Vale destacar que pensar no RAP enquanto cano ir contra o musiclogo

    Tinhoro, para quem o RAP no seria cano j que demonstra uma nfase na palavra

    ritmada, achatando completamente a ideia de melodia e harmonia e colocando em linha reta a

    cano, de maneira a criar uma pulsao na palavra.

    Na primeira definio, fica claro que a cano se torna mais livre a partir do

    momento em que transformada, no sculo XVII, por meio do aparecimento da monodia, ou

    seja, o canto

    no primeiro quartel do sculo XVII, modificou o carter da cano, dando-lhe estilo

    para compreendermos que ela que muda ao longo das dcadas e em cada gnero musical,

    de msica, 1994).

    Vale observar que as definies de cano, tanto do Dicionrio de Msica Zahar

    (1985) quanto do dicionrio Grove de Msica (1994), apresentam, ainda, o significado de

    ria, e possibilitam uma comparao entre as mudanas de uma dcada para outra. No

    Dicionrio Zahar (1985, p. 20), a ria possui dois significados. Um deles, mais sucinto, diz

    exemplo, a abertura das Variaes Goldberg

    Composio para voz ou vozes solistas e acompanhamento musical. umcomponente caracterstico da pera e, em menor grau, do oratrio e da cantata,assumindo muitas formas diversas. No sculo XVI, o termo era aplicado composio de um poema em determinada forma mtrica, por exemplo, aria diottavarima. No final do sculo, s canes estrficas compostas no novo estilo mondicodava-se o nome de rias, por exemplo, em Le Nuove Musiche (1602), de Caccini, emoposio uniformidade rtmica do madrigal solo. A Itlia seiscentista cultivoubelas melodias com acompanhamento, em contraste com os estilos mondico econtrapontstico. A ria tambm se tornou no estrfica; por exemplo, uma riatpica de Luigi Rossi possui melodia aprazvel em um baixo quase ritmicamenteregular, harmonia bastante consonntica e frases simtricas. A forma potica cadavez menos respeitada. medida que o perodo barroco se desenrolava, a expansoda ria, mais por modulao que por variao, resultou na ria de capo. Esta secaracteriza pela repetio literal da seo de abertura, aps uma seo centralcontrastante, formando assim um esquema ABA. Tais rias foram as maisimportantes e mais comumente usadas aps 1650; desempenharam papel central napera por cerca de cem anos. A forma capo perdeu terreno em fins do sculo XVIII,quando Gluck, principalmente tentou, com inteiro xito, elimin-la da pera, porcausa de suas qualidades no dramticas.

  • 25

    A forma sonata aumentou a escala da ria e, na pera clssica, sobretudo comMozart, as rias foram incorporadas ao prprio drama. Pares de rias lentas e rpidascontrastadas, respectivamente denominadas cavatinas e cabalettas, eram importantecaracterstica estrutural da pera italiana na primeira parte do sculo XIX. Com odesenrolar do tempo, coube a Verdi apagar cada vez mais as demarcaes entre riae o conjunto da obra, a fim de melhorar e intensificar o fluxo da ao dramtica.Wagner, por sua prpria conta, foi ainda mais longe, criando uma contnua unidadedramtica em que as rias se tornam indistinguveis. Na moderna pera, a riaperdeu grande parte de sua finalidade dramtica; em seu lugar, canes usualmentesem ligao alguma com o drama so introduzidas por vezes, a fim de propiciareminterldios lricos. (Dicionrio de Msica Zahar, 1985, p.20).

    No Dicionrio Grove de Msica, a ria definida com mais detalhes:

    Termo que designa uma cano independente, ou que parte de uma obra maior. A

    ria designava composies simples sobre poesia ligeira (p.As rias como melodias, ou esquemas para canes, foram impressas durante amaior parte do sculo XVI e boa parte do sc. XVI, em publicaes tantoinstrumentais quanto vocais.A ria desempenhou papel central nas primeiras peras, na cantata e no oratrio. Amaioria das rias de peras venezianas anteriores a 1660 e em compasso ternrio ouem uma alternncia de ternrio e binrio: muitas das primeiras rias tm quatro oumais versos, embora aps 1650 tenha se tornado habitual na pera o uso de doisversos. A maioria das rias tem acompanhamento de contnuo, com ritornellosinstrumentais entre versos: algumas, a partir dos anos 1640, tm seesinstrumentais entre frases vocais, mas na minoria at boa parte do sculo XVIII.As riasgrupo de linhas do texto ocorrendo duas vezes com msica similar, a cadncia tnica

    copla repetida no final. Este se tornou o modelo de ria da capo, predominante porvolta de 1680. No incio do sculo XVIII o acompanhamento podia variar emtextura e instrumentao: a ria com contnuo veio a se tornar cada vez mais raraaps os anos 1720.Nesse perodo, a preferncia era por rias mais longas. por intermdio doscompositores que introduziram o estilo moderno do sculo XVIII (Vinci, Hasse,Pergolesi, etc.) que modificam-se as propores da estrutura da capo. A seocentral tornou-se mais curta e muitas vezes contrastante em andamento e mtrica: acorrespondente ampliao da primeira seo levou mais tarde prtica de substituirda capo por dalsegn, indicando um retorno no ao incio, mas a um ponto posteriorassinalado. Nos anos 1760 e 1770, seguiu-se um esquema formal cujo perfilassemelhava-se ao primeiro movimento da sinfonia ou sonata contempornea, comuma primeira seo terminando na dominante, uma seo central comodesenvolvimento ou contraste, e uma representao da primeira seo, comorecapitulao tnica. Outros tipos importantes dessa poca foram o rondeau.ABACA, e o chamado rond que comeava com uma seo lenta e terminava comum alegro (AB OU ABAB). Por volta de 1780 o rond (prottipo da cantbile-cabaletta do incio do sculo XIX) substituir em grande parte o modelo francs deandamento nico. As rias da pera cmica eram mais variadas na forma. As perasdo sculo XIX mostram uma contnua reduo no nmero de rias que, emcontrapartida, tornaram-se mais longas. A ria da forma sonata cedeu lugar a formasde andamentos mltiplos, e houve uma mudana do antigo estilo bel canto para umestilo mais dramtico, a partir dos anos 1830. O percurso de Verdi um exemplo detendncia para construes livres e fluidas, porm indissociveis de seu contexto.Tambm em Puccini a ria tende a se tronar parte da trama dramtica: e nas perasde maturidade de Wagner as extensas sees para uma maturidade de Wagner asextensas sees para uma nica voz no podem, normalmente, tornar-seindependente sem mutilao.

  • 26

    A pera italiana teve grande influncia sobre a maioria dos outros gneros lricoscontemporneos, incluindo a grand pera francesa e a pera eslava, em que a ria aceita como uma forma natural de expresso. A influncia de Wagner, no entanto,foi de tal monta que, ao irromper do sculo XX, as tradies mais antigas j haviamsido virtualmente descartadas. Stravinsky, em (1951), reviveua forma mas no o contedo da ria do sculo XVIII, as tendncias mais recentesapontam para formas integradas de msica dramatizada, das quais a ria costuma serexcluda.No incio do sculo XVII, chegando mesmo s Variaes Goldberg, de Bach, uma

    -se a uma srie de variaes instrumentais, e peas chamadasntemente em ritmo de bourre) eram comuns na msica de dana

    executada por conjuntos barrocos. (Dicionrio Grove de Msica, 1994, p. 39).

    Assim, possvel observarmos que a ria passou por vrias transformaes ao

    .. as tendncias mais recentes apontam para formas

    GROVE DE MSICA, 1994). O mesmo ocorre com a forma cano tal qual era antes, que

    vai se transformando ao longo das dcadas. Em 1990, porm, essa sofre maiores

    transformaes, ou, ainda, surge uma infinidade de novas possibilidades de se fazer cano,

    como veremos no decorrer dessa pesquisa. Com essas inmeras possibilidades, surgem novas

    formas de cano. Por esse motivo, alguns estudiosos, como Wisnik e Nestrovski, passam a

    buscar outros termos, ou adjetivos, que as englobem.

    Para Wisnik, o som impalpvel e invisvel, caractersticas que permitem a

    -se o elo comunicante do

    O som e o sentido: outra histria

    das msicas (WISNIK, 1999), o autor prope uma antropologia do rudo, em que rudo seria

    extrair-

    mundo, acorde que projeta o fundamento do

    Nesse sentido, poderamos dizer que qualquer rudo msica, pois rompe o

    silncio, algo muito diferente no caso da cano, que tem uma forma definida, ainda que seja

    ampla. Nestrovski, talvez pela necessidade de falar de um estilo bem especfico de msica,

    o expandida7 . Entretanto, vale dizer que,

    7

    que a massa sonora se expande ao ponto de levar o ouvinte a lugares inesperados. Seriam melodias que

  • 27

    que no tem uma circularidade.

    Para Tatit, o que realmente faz com que uma msica seja cano,

    que ambas esto transmitindo. Deixa claro, ainda, que cano, msica e poesia so objetos

    pode ter tambm uma msica extremamente elaborada, mas se ela no suscitar uma letra, no

    No que concerne a essa sintonia entre letra e melodia, poderamos citar a

    feito de um

    que essa configurao no ocorre em grande parte das canes, ampliando ainda mais as

    possibilidades de se fazer canes, ocasionando o surgimento de novas formas.

    De acordo com o msico e mestre em literatura brasileira, Leandro Maia, no h

    gnero artstico que contm as suas especificidades (conforme j vimos no incio dessa

    pesquisa),

    (MAIA apud BARBOSA, 2007, p. 10). Maia ainda demonstra que possvel que haja na

    cano trs nveis de polifonia:

    (...) Das suas vozes musicais quando melodias sobrepostas ou simultneas formam omaterial musical de uma cano, das suas vozes textuais... considerando quenenhuma linguagem neutra, ao contrrio, dialogam com outros textos, (a letra dacano dialoga com outras letras) e, por fim, o casamento entre letra e msica,linguagens independentes que quando juntas resultam na cano. (MAIA apudBARBOSA, 2007).

    -

    um gnero literrio, poderia ser entendida como uma forma prpria de articular o pensamento,

    que possibilita a construo e transmisso de ideias que o discurso meramente falado (ou

    -texto que inclui material verbal e no

    uma relao com esse segundo ter

  • 28

    verbal - onde o no verbal poderia ser reconhecido atravs de instrumentos e outros elementos

    Dois anos depois, Chico Saraiva, em sua dissertao

    intitulada Violo Cano: dilogos entre o violo solo e a cano popular no Brasil (2013),

    retoma as definies de cano conforme Guinga.

    Vale observar que h uma discordncia entre Saraiva e Guinga sobre a maneira de

    compor. Enquanto Saraiva comenta que, para ele, h momentos em que a msica vem pela via

    da voz e, outros, em que parece vir atravs do violo; Guinga afirma que a cano sempre

    vem pela via da voz e, quando faz msica sem cantar, fica ntido de que ser uma msica para

    violo. Apesar de se declarar compositor de msica para violo, se define como compositor

    de cano. Para Guinga, h msicas, como por exemplo, uma composio sua e de Aldir

    Blanc intitulada Ntido e Obscuro, que no podem ser definidas como cano, isso pensando

    o com a voz com o

    (GUINGA apud SARAIVA, 2013, p. 65). Vale dizer que essa cano feita com

    determinadas escalas, e que, mesmo sendo quase impossvel, o prprio Guinga canta.

    Poderamos dizer, portanto, que Ntido e Obscuro, de Guinga e Aldir Blanc, seria uma cano,

    j que h a juno entre melodia e voz, conforme sugere Guinga em sua concepo.

    GUINGA apud SARAIVA,

    2013, p. 35). Nesse sentido e recorrendo s definies de cano dadas pelos dicionrios de

    uma cano, na medida em que fica claro que a cano pode vir com ou sem

    acompanhamento, conforme destacado anteriormente no Dicionrio de Msica Zahar (1985) e

    no Dicionrio de Msica Grove (1994)-

    estando muito mais em questo as variaes e entonaes causadas por meio da prpria voz.

    Sobre melodia, para Tatit, esta influenciada no s pela entoao e pelo que ele

    estabelecendo uma relao com as vogais e consoantes quando

  • 29

    msica na fala porque existe vogal. Pode durar mais ou menos tempo, mas so elas que

    consoante seria uma representao do corte - da vogal e do sentimentalismo da cano.

    de cada nota que o cantor est cantando. Uma cano mais rtmica no precisa alongar tanto

    IT apud SILVA, 2007).

    Considerando esses ltimos aspectos, possvel constatar que, para o cantor (a)

    permanecer em determinada vogal, h uma sensao de que h uma busca por algo,

    normalmente relacionado ao amor. Outras canes, que so mais aceleradas e no prolongam

    as vogais, demonstram um trajeto condensado e sem qualquer falta ou necessidade. Na maior

    parte das vezes, canes mais aceleradas passam uma ideia de alegria e festividade, talvez at

    pelas prprias letras, que costumam ser mais otimistas.

    Convm apontar aqui que o samba, para Tatit, um dos estilos que mais respeita a

    entoao, na medida em que seu ritmo no se encaixa nos compassos encontrados em uma

    msica convencional, chegando bem perto da fala. O msico e intelectual vai mais longe

    ai

    algum falando, com algumas organizaes de mtrica. O RAP quer passar mensagens e, para

    Tatit acredita que no h uma frmula especfica para compor uma cano, assim

    como no h regra, mas, para ele, deveria haver uma faculdade de cano ou pelo menos um

    departamento especfico que tratasse do assunto na faculdade de msica ou letras. Entretanto,

    deixa claro que isso no faria com que os cancionistas, ou seja, os msicos que no so

    profissionais, mas que compem canes, fossem graduados em msica. A funo dessa

    faculdade dedicada cano seria, alm de passar a teoria da msica, treinar o ouvido e a

    (TATIT apud SILVA, 2007).

    Tatit discorda de Tinhoro ao definir o RAP como no sendo cano; e, apoiando-se

    em Nestrovsky, afirma o RAP como tal, afinal, se no tivesse ritmo, no teria a mesma fora,

    o que prova a importncia do ritmo, da poesia e a fora da cano. Para Tinhoro, seria

    cano apenas aquelas cujo modelo se enquadrassem nas dcadas de 60 e 70, em que havia

    uma maneira especfica de compor.

    Nesse mesmo vis, Z Miguel Wisnik diz que a palavra cantada frequente, mas no

    Brasil aparece com uma importncia central, um lugar onde nos sentimos localizados. No

  • 30

    8, a cano se tornou um lugar que

    melhor abrigava o Brasil, onde todo mundo se reconhecia. Na ocasio, surgiram diversas

    canes que nos deram essa sensao de compartilhamento, de participar de uma mesma

    experincia.

    Tatit, ao tratar da cano popular considera que...O canto sempre foi uma dimenso potencializada da fala. No caso brasileiro, tantoos ndios como os negros invocavam os deuses pelo canto. Do mesmo modo, asdeclaraes lrico-amorosas extraam sua melhor fora persuasiva das vozes dosseresteiros e modinheiros do sculo XIX... Arnold Schoenberg e Alban Berg, do alto

    Sprechgesang) uma possibilidade de alimentamusical de algumas de suas peas. Acontece que, alm desse vnculo inevitvel como corpo e com os estados emocionais do intrprete, a fala contm suas prprias leisque interagem continuamente com as leis musicais, gerando aquilo quedepreendemos como relaes de compatibilidade entre melodia e letra. O salto dosimprovisos espontneos para o registro em disco fez com que os sambistasbrasileiros rapidamente se imbussem, ainda que de modo inconsciente, da novatcnica de fixao sonora que, paradoxalmente, previa a convivncia de formasestveis e instveis de canto.De fato, por meio da linguagem oral cotidiana, veicula-se um contedo abstrato quedepende da base acstica inscrita nos fonemas e nas entoaes, mas no hnecessidade de preservao dessa sonoridade. Por isso, selecionamos e organizamosas palavras da melhor forma possvel e convocamos as melodias entoativas apenaspara produzir nfases aqui e ali no fluxo discursivo, sem outro tratamento especialque no o exigido pelo texto verbal. No deixa de haver, mesmo nessa fase, algumasregras de conduo meldica das frases, que as fazem parecer afirmativas,interrogativas, suspensivas, etc. e que j pertencem ao repertrio intuitivo dos

    elaboraes de rimas ou reiteraes entoativas, por exemplo pois ser descartadoassim que for transmitida a mensagem. Ao se transformar em cano, a oralidadesofre inverso do foco de incidncia: as entoaes tendem a se estabilizar em

    meldicas recorrentes, acentos regulares e toda sorte de recursos que asseguram adefinio sonora da obra; da letra, por sua vez, liberta-se consideravelmente dascoeres gramaticais responsveis pela inteligibilidade de nossa comunicao diriae tambm se estabiliza em suas progresses fnicas por meio de ressonnciaaliterantes... (TATIT, 2004, p. 41-42)

    No ltimo trecho, Tatit deixa claro que, ao se transformar em cano, as palavras

    Assim sendo, mais uma vez, fica claro que a cano pode ser falada de maneira ritmada, no

    havendo necessidade, portanto, de qualquer instrumento para esse efeito, at porque a prpria

    voz capaz de emitir inmeros sons, inclusive inteligveis, como possvel observar, por

    exemplo, atravs do grupo Barbatuques. Fundado em 1995 e composto por 15 integrantes, o

    8Tatit traz o ttulo O sculo da cano porque considera que a cano no somente uma arte, mas tambm umproduto de consumo. Assim, traa a evoluo da cano popular brasileira do sculo XX, destacando a bossanova e o tropicalismo, pois esses movimentos no s tiveram um considervel sucesso comercial mastambm tornaram-se referncia da msica produzida no Brasil a partir de 1960.

  • 31

    grupo musical paulistano desenvolveu uma abordagem nica da msica corporal atravs de

    suas composies tcnicas, explorao de timbres e procedimentos criativos.A partir de pesquisas e criaes de Fernando Barba, integrante do grupo, e

    tambm de seu contato com o msico Stnio Mendes, o Barbatuques deu origem a diferentes

    tcnicas de percusso corporal, percusso vocal, sapateado e improvisao musical

    desenvolvidas em suas experincias coletivas e somadas bagagem individual de seus

    integrantes. Inovadores na realizao das msicas encontraram inmeras possibilidades de

    extrair os sons do corpo, o que facilitou a expanso do trabalho do grupo. Uma das msicas

    que ficou bastante conhecida foi Beautiful creatures

    (http//www.barbatuques.com.br. Acesso em 02/04/2015).

    Ainda demonstrando a falta de necessidade do instrumento para que haja uma

    cano, Tatit cita o samba, que oscila bastante entre a fala e o canto. Segundo ele, o primeiro

    aspecto a levar em conta quando se trata de avaliar a sonoridade brasileira na forma de

    cano, uma oscilao entre canto e fala, como deixa claro no trecho que segue:O grande feito sempre intuitivo dos sambistas, maior do que a estabilizao dasonoridade foi o encontro de um lugar ideal para manobrar o canto na tangente dafala. Ao mesmo tempo em que atribuam independncia melodia, unificando suaspartes com dispositivos musicais, conservavam seu lastro entoativo para darnaturalidade elocuo da letra. Desse modo, preparavam suas canes para agravao, mas no deixavam de us-las como veculo direto de comunicao:mandavam recados aos amigos e aos desafetos, criavam polmicas e desafios,faziam declaraes ou reclamaes amorosas, introduziam frases do dia- a dia,produziam tiradas de huminflexes entoativas adequadas e, no entanto, conservando a musicalizaonecessria estabilidade do canto. A prpria existncia, desde os primeiros tempos,do samba de breque bem sintomtica: alternando fala e canto na sequncia da obra

    e nunca a fala s fala e nem o canto s canto denuncia a presena simultneados dois elementos nas demais verses do samba.Esse o primeiro elemento a levar em conta quando se trata de avaliar a sonoridadebrasileira na forma de cano: oscilao entre canto e fala. Depois, cabe verificar, noprocesso e fixao do material fnico, quais os recursos que contribuem paraadicionar a esta compatibilidade natural entre a entoao e os versos outros nveis deintegrao. A forma acelerada de estabilizao meldica privilegia os acentos e,portanto, as vogais salientes e breves, entre as quais percutem intensamente asconsonantes. Essas caractersticas favorecem a constituio de clulas rtmicas bemdefinidas que vo se agrupando num processo denominado tematizao. Resultamda canes pouco variadas, geralmente concentradas em torno de um refro, que sereportam em ltima instncia aos velhos batuques com seus cantos responsoriais.Ora, a fora de integrao desses temas tende a repercutir na elaborao da letra,sugerindo modos de unio, encontro ou conjuno dos personagens com seusvalores, seus objetos ou mesmo com outros personagens. Importa saber, entretanto,que essa forma de compatibilidade est presente, ainda que de maneira mais branda,em todo tipo de samba (ou cano lato sensu) produzido no pas. (TATIT, 2004, p.43)

    Conforme possvel observar, j no samba ocorria uma alternncia entre canto e

    fala, com frases do dia-a-dia, demonstrando, de acordo com Tatit, uma situao sintomtica

  • 32

    desde o samba de breque, em que misturam fala e canto apagando as fronteiras entre ambas as

    expresses e nunca fala s fala e nem canto s canto denuncia a presena simultnea

    dos dois elementos nas demais ve

    Para Tinhoro, devido inexistncia de um romantismo, em que os versos

    descrevem determinado estado emocional, demonstrando, assim, um carter mais sentimental,

    afirma que a cano est se extinguindo, mas, ao mesmo tempo, diz que haver novas formas

    de se fazer msica. Embora no considere o RAP9 como cano, Tinhoro tem interesse em

    ritmo ou ausncia de ritmo s

    (Dicionrio Aurlio). Nas palavras de Tinhoro:

    O rap eu acho interessante, e fui o primeiro a falar em nvel elevado sobre aimportncia do fenmeno. Ele a volta da palavra, como o cantocho da igreja, sque ainda mais puro. interessantssimo, um canto falado, que no incio era purareivindicao de forma falada. O cara encontrou uma forma de se expressar que noera mais de fazer discurso em cima de um caixote.10

    Chico Buarque afirma que a cano se transformou em um fenmeno do sculo

    passado e que, talvez, seja o RAP a sua negao. Tal como Tinhoro, ele considera

    igualmente algumas manifestaes da periferia que ocorrem por via musical, como o caso

    do RAP, o que mais chama a ateno do msico no cenrio cultural brasileiro. Em entrevista

    publicada no jornal Folha de So Paulo, o editor Fernando Barros e Silva, argumenta,

    enquanto Chico Buarque fala o que pensa sobre a cano e a chegada do RAP.

    A cano tal como conhecemos, talvez seja um gnero do sculo passado - e o rap

    O caminho do msico Chico Buarque continua, e cada vez mais, iluminado pelofarol de Tom Jobim, seu maestro soberano. Mas os olhos do artista esto mais do

    uma novidade importante a - Isso por toda aparte, mas no Brasil, que eu conheo melhor, mesmo as velhas canes dereivindicao social, as marchinhas de Carnaval meio ingnuas, aquela histria de

    feito por gente de classe

    9 De acordo com Leandro Maia (2012, p. 41), o RAP a sigla de rhythm and poetry, ritmo e poesia, gneroliteromusical nascido nas rdios-postes jamaicanas e reconhecida nos guetos americanos como msica deprotesto, denncia e resistncia cultural e tnica.10 Entrevista de Jos Ramos Tinhoro para a revista Cult em 2011

  • 33

    mdia. O pessoal da periferia se manifestando quase sempre pelas escolas de samba,mas no havia essa temtica social muito acentuada, essa quase violncia nas letras ena forma que a gente v no RAP. Esse pessoal junta uma multid(BUARQUE, 2014).

    Na mesma entrevista, o msico ainda fala sobre as transformaes no cenrio

    musical, traando um paralelo entre a cano e a msica clssica e destaca a quantidade de

    releituras que esto surgindo.

    Talvez tenha razo quem disse que a cano, como a conhecemos, um fenmenodo sculo passado, tal a quantidade de releituras, de compilaes, derelanamentos, de gente cantando clssicos e isso no mundo inteiro. Os meusprprios discos so relanados de formas diferentes pela indstria, em caixas ecaixotes, embrulhados assim e assado, com outra distribuio das msicas. E h uminteresse muito grande por isso. Se eu lanar um disco novo, vou competir comigomesmo. E devo perder... A minha gerao, que fez aquelas canes todas, com otempo s aprimorou a qualidade de sua msica. Mas o interesse hoje por isso parece

    E h quem sustente isso: como a pera, a msica lrica, foi um fenmeno do sculo20. No Brasil, isso ntido. Noel Rosa formatou essa msica nos anos 30. Ela vigoraat os anos 50 e a vem a bossa nova, que remodela tudo e pronto. Se voc reparar, aprpria bossa nova, o quanto popular ainda hoje, travestida, disfarada,

    Essa tendncia de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa opessoal novo. Se as pessoas no querem ouvir as msicas novas dos velhoscompositores, por que vo querer ouvir as msicas novas dos novos compositores?Quando voc v um fenmeno como o rap, isso de certa forma uma negao dacano tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a cano jfoi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando, ao mesmo tempo, que talvez sejacerta defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dvidas arespeito. s vezes acordo com a tendncia de acreditar nisso, outras no.(BUARQUE, 2014).

    O msico, ao afirmar que a cano haveria chegado ao fim, como se tal fato fosse

    possvel para algo to amplo e com tantas variaes como a cano, pareceu estar se referindo

    , parece superar essa forma

    estabelecida para que se componha uma cano. Mesmo assim, essa afirmao feita por Chico

    Buarque na entrevista para Folha de So Paulo em 2004 apareceu de maneira bastante

    provocadora, como se o Brasil tambm tivesse acabado.

    Por sua vez, para Wisnik, a cano com melodia, harmonia e letra intimamente ligada

    melodia, de algum modo sofreu a interveno de dois fatores muito importantes: o

    surgimento do RAP; e a msica eletrnica, em que todos os recursos, timbres, rudos, entre

    outros, entram nas canes e elaboram uma nova forma, chamada por Arthur Nestrovski, de

    -se bem

  • 34

    de linhas do texto ocorrendo duas vezes com msica similar, a cadncia tnica apenas na

    ). Sobre a cadncia tnica, Gabriel Dib,

    mestre em Composio para Mdias visuais pela Columbia College Chicago, demonstra uma

    definio particular:

    A definio da palavra cadncia no Portugus sempre relacionada a elementosmusicais, embora a raiz da p

    a popularmente cadnciacarregue o sentimento de um significado forte no mbito do ritmo, no dia a dia daprtica musical, o uso da palavra refere-se ao movimento entre acordes (tambmvale para intervalos de melodias que representem esses movimentos [ver J.S. Bachpara inmeros exemplos]). Os movimentos mais comuns por serem utilizados j halguns sculos na msica ocidental, foram classificados em categorias e receberam

    cadncia tem seus dois ltimos acordes com as seguintes funes harmnicas:Dominante indo para Tnica. A cadncia perfeita quando a melodia ou a nota maisaguda do acorde final qualquer outra nota que no a fundamental da escala,comumente a tera ou quinta, mas no raramente sexta ou quarta que depoiscaminham para a terceira ou quinta. (DIB, 2015).

    Canes mais populares fazem rica utilizao das cadncias conhecidas devido sua

    facilidade de assimilao. A clareza do discurso musical faz com que o ouvinte se sinta

    confortvel e agradado, podendo voltar a ouvir aquela cano. Da a razo para ser to fcil

    encontrar movimentos simples de acordes na msica popular das massas.

    No caso das canes expandidas, essas cadncias tm um ponto de partida

    bem definido, um movimento e um ponto de chegada que o mesmo do ponto de partida.

    Por exemplo: Uma cano no tom de D com apenas dois acordes, D e Sol, ou seja,Tnica e Dominante. Comea com o acorde D (funo harmnica Tnica, repouso,incio ou concluso), vai para o acorde Sol (funo harmnica Dominante,movimento e atrao para a Tnica) e volta para D. Grandes peas da literaturamusical foram feitas sobre tais cadncias, logicamente desenvolvendo o discursomusical a partir dessa semente Tnica-Dominante-Tnica. H msicas que usamsomente esses dois acordes. Algumas usam trs, outras quatro, e assim por diante.(DIB, 2015)

    O lbum Circle Songs, de Bobby McFerrin, tem esse nome no devido a cadncias,

    porque ele essencialmente meldico. Mas h circularidade de outra maneira: Circularidade

    meldica. Observa-se que as canes desse lbum no necessariamente comeam num ponto

  • 35

    e terminam no mesmo ponto. A circularidade est na repetio meldica. Entretanto, o fato de

    s ter melodia, e no acompanhamento, no significa que no exista uma harmonia, ou vrias

    possibilidades harmnicas, nesse lbum. A circularidade e a cadncia se relacionam na

    medida em que h mudanas regulares nas duraes, facilitando para que o ouvinte assimile a

    melodia com certa facilidade.

    Outro exemplo o primeiro movimento da quinta sinfonia de Beethoven. Ele tem

    um motivo de trs notas (Sol, Sol, Sol, Mi bemol) que se repetem inmeras vezes e cria um

    tecido que a pea toda. (DIB, Gabriel, 2015. Arquivo pessoal). A ideia de circularidade

    perceptvel pela repetio de um ncleo meldico; parecido com o que ocorre com o refro de

    uma cano que, ao ser repetido vrias vezes, levamos o ouvinte de volta ao lugar conhecido,

    dando margem para que todos cantem juntos.

    , para Nestrovski, so as canes de Los

    Hermanos, que trazem aluses, sugestes, introduzindo um tipo de cano difusa, que nos

    convida a entrar em outro mundo. Para Wisnik, Marcelo de Souza Camelo, msico que

    compe o grupo, radicaliza isso e esse um tipo de procedimento muito diferente da grande

    cano do sculo XX.

    O compositor, cantor, violinista e pesquisador formado em letras e msica,

    Marcelo Segreto (2014), trata dessa circularidade mencionando Wisnik...Em o som e o sentido, Jos Miguel Wisnik assinala o carter circular dasconstrues rtmicas e meldicas desta msica no tonal e a singular experincia dotempo que ela proporciona. E este aspecto temporal ligado circularidade, a meuver, importante na construo do sentido de letra e msica nesta cano de CaetanoVeloso.

    A cano qual Segreto se refere Jia. Segundo ele, nesta msica o

    procedimento (em que as melodias colaboram para que haja um tempo de forma circular, o

    j dito por Wisnik) bastante evidente. Vale ressaltar que esse tempo no est relacionado a

    uma questo cronolgica ou a uma casualidade que possa ocorrer no mbito social. (WISNIK

    apud SEGRETO, 2014). Para Segreto, (2014) esta circularidade mostra-se ntida nesta

    cano. De acordo com Wisnik, nesse caso, a circularidade aparece atravs de diferentes

    aspectos musicais, ou seja, ritmo, melodia e harmonia. Em relao ao ritmo, h uma

    caracterstica que comum em msicas europeias, em que h uma estrutura formada por

    figuras rtmicas irregulares, porm recursivas e que giram ao redor de um pulso. Na msica

    Jia h uma regularidade rtmica por conta de uma repetio dos instrumentos de percusso e

  • 36

    maneira ampla, h padres rtmicos variados. Como destacado por Wisnik:

    Em Joia h uma significativa valorizao da pulsao: a primeira linha inferior dapercusso marca ao longo de toda a cano um pedal sobre a nota mi, elementobsico sobre o qual os demais padres rtmicos se apoiaro. Alm disso, comexceo de algumas passagens com sincopas e tercinas, todos os instrumentosinclusive as vozes, reiteram em graus variados este mesmo pulso fundamental. Noentanto, apesar da valorizao da pulsao, nos chama a ateno a combinao defiguras irregulares. As vozes e o pandeiro/platinelas predominantemente dividem apulsao binariamente atravs de colcheias. J o atabaque divide o pulso em tercinase o bong divide deforma ternria o espao equivalente a duas pulsaes.(SEGRETO, 2014, p.169-170)

    De acordo com as observaes de Wisnik, observam-se, nesta ambivalncia

    rtmica, figuraes diferentes que se chocam e se combinam em funo de um tempo

    fundamental. Essa irregularidade tambm se mostra na prpria melodia, quando comparada

    aos instrumentos de percusso que atuam de maneira bastante rtmica. A melodia da voz

    possui irregularidade em relao aos seus acentos, dando uma sensao que est alternando a

    ocidental, as melodias no formam os

    temas to caractersticos da tonalidade e esto de certa maneira relacionadas a um apelo

    ). Para Wisnik, no somente o

    ritmo ligado melodia que contribui para que a melodia seja transformada em pulsao,

    conforme citao...

    Alm da trama rtmico-meldica, outra coisa contribui para converter a ordemmeldica em ordem da pulsao: na msica modal no h temas individualizados,como haver claramente na msica tonal. As melodias so manifestaes de escala,desdobramentos meldicos que pem em cena as virtualidades dinmicas do modo,mais do que motivos acabados que chamam a ateno sobre si. Atravs das melodiasa escala circula, e essa circulao uma modalidade de ritmo, enquanto a figura derecorrncia. (WISNIK apud SEGRETO, 2014, p. 171).

    Segreto (2014) afirma que este vagar pelas notas de escala se relaciona a uma

    circularidade que aparece em muitos elementos presentes na cano.

    E este vagar pelas notas da escala, como aponta Wisnik, se relaciona a uma ideia decircularidade e recorrncia que importante para o sentido da cano ( ...).Observamos ento que a ideia de circularidade est presente em diversos elementosconvocados pela cano: no sentido temporal que a letra sugere, nos aspectosrtmicos, nas melodias, na prpria constituio interna da escala adotada...(...) A circularidade um elo de sentido entre a letra e a sonoridade geral da cano.Circularidade presente nas figuraes rtmicas e no pulso fundamental da percusso,no eixo harmnico do bordo, no incio e trmino em fade in e fade out, naconstruo meldica, na caracterstica interna da escala pentatnica adotada e noparalelismo da sobreposio de vozes. Circularidade do tempo e do espao...(SEGRETO, 2014, p. 171)

  • 37

    Lorenzo Mammi, crtico da msica e da arte, concorda com Wisnik no que diz

    respeito a impossibilidade da existncia de um cnone e afirma que a cultura contempornea

    como uma esfera muito lisa, em que qualquer ponto derrapa e desliza para qualquer outro, ou

    seja, a cultura contempornea no s no possui uma verdade absoluta, como tambm poder

    ser modificada a qualquer momento e em uma velocidade bem maior do que outrora. A

    msica, no permite mais que haja um cnone, e isso porque s possvel a existncia do

    cnone quando h determinado modelo, determinada verdade. Na ps-modernidade no h

    mais espao para essa centralizao, afinal so inmeras as formas que o artista tem de

    transmitir a sua arte, e inmeros os meios que o ouvinte poder escolher para receb-las. No

    momento em que estamos, no possvel haver uma nica verdade, e, portanto, o cnone

    torna-se no s invivel, como tambm impossvel.

    Esse cnone, na msica brasileira, vai de Ernesto Nazar at Chico Buarque e Caetano

    Veloso. Depois, essa hierarquia torna-se impossvel porque ocorre um deslizar em que no h

    centros e ou totalizaes em que houvesse uma nica verdade, um nico valor; algo presente

    na harmonia funcional, em que h toda uma relao com o tom, diferente da harmonia modal

    que no hierrquica, pois a harmonizao feita pela nota da melodia e autoriza uma

    variedade maior de escolhas. Os acordes so autnomos, mas se resolvem em uma tonalidade.

    Poderamos, ento, traar um paralelo da harmonia modal com a ps- modernidade.

    Segundo Mammi, esses artistas foram totalizadores em uma poca em que essas

    centralizaes foram possveis; o mesmo ocorreu tambm por meio de Guimares Rosa com a

    sua transfigurao do serto; porm, na ps-modernidade, no h lugar para encaixar uma

    ambio totalizante dessa natureza, ou seja, no h centralizaes.

    A literatura e a msica mostram-se interligadas, afinal, na cano h inmeras

    possibilidades, algo perceptvel, com clareza, durante os festivais de Msica Popular

    Brasileira. Traando um paralelo entre a literatura e a cano, Wisnik afirma que, assim como

    a literatura mostra-se infinita, a cano, para ele, no possuidora de um fim, e faz uma

    (WISNIK, 2012).

    A cano brasileira, entretanto, alterou-se em sua forma inmeras vezes. Tatit (2004)

    aponta para algumas mudanas, no que se refere questo da fala.

    A cano brasileira, na forma que conhecemos hoje, surgiu com o sculo XX e veioao encontro do anseio de um vasto setor da populao que sempre se caracterizoupor desenvolver prticas grafas. Chegou como se fosse simplesmente outra forma

  • 38

    de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma nica diferena: as coisas ditaspoderiam ento ser reditas quase do mesmo jeito e at conservadas para aposteridade. No mera coincidncia, portanto, que essa cano tenha se definidocomo forma de expresso artstica no exato momento em que se tornou praticvel oseu registro tcnico. Ela constitui, afinal, a poro da fala que merece ser gravada.Entre o lundu, de origem fincada nos batuques e nas danas que os negros trouxeramda frica e desenvolveram no Brasil, e a modinha, cujo carter meldico evocavatrechos de operetas europeias, um gnero apontando para os terreiros e o outro paraos sales do sculo XIX mas ambos j impregnados de sensualidade hbrida que,muitas vezes, os tornavam indistintos -, configura-se a cano do sculo XX, a estaaltura apontando tambm para um terceiro elemento que se tornaria vital suaidentidade: a letra. No tanto a letra-poema, tpica das modinhas, ou a letra cmico-maliciosa dos lundus, mas a letra do falante nativo, aquela que j nasceacompanhada pela entoao correspondente. Sem nunca deixar de lado o lirismo oumesmo a comicidade que j reinavam no perodo oitocentista, a nova letra, que s seconsolidou nos anos 1920 com Sinh, substituiu o compromisso potico pelocompromisso com a prpria melodia, ou seja, o importante passou a ser a adequaoentre o que era dito e a maneira (entoativa) de dizer, bem mais que o valor intrnsecoda letra como poema escrito ou declamado... por no ser nem demasiadamente

    concorrncia para as primeiras gravaes...precisavam da gravao como recurso defixao das obras que, at ento, quando no se perdiam nas rodas de brincadeira,passavam a depender exclusivamente da boa memria de seus participantes.(TATIT, 2004, p. 70-71)

    Arthur Nestrovski, diz que, por definio, a cano ser sempre a juno de letra e

    msica em uma forma curta, curta porque se tem a juno de poesia e msica em um oratrio.

    Para ele, no contexto das culturas musicais do mundo, poucas tm uma tradio de cano

    anloga s que ocorrem no Brasil, com tanta abundncia e h tanto tempo. A relao de

    poesia e msica e o grau de excelncia e originalidade da cano brasileira algo

    excepcional, sendo necessrio apenas gostar de msica e entender portugus para reconhecer

    tal fato.

    Nestrovski ainda aponta que a dita cano popular j teve uma questo de afinidade

    sociedade, por exemplo, como cano pop. A cano comercial de massa parecida com o

    cano de massa seria aquela cano produzida sem autonomia ou autenticidade, pois a sua

    finalidade estaria relacionada totalmente Indstria Cultural. Nesse caso, o artista estaria

    sendo manipulado pelo seu produtor, estando estes ligados cultura regida pelas leis do

    mercado.

    Para o mesmo estudioso, a tradio da cano popular algo extraordinrio que teve

    uma insero na cultura brasileira (especialmente nos anos 60,70 e 80) como raramente se v

    em outros lugares, de tal forma que no conseguimos discutir a cultura sem pensar em Tom

    Jobim, Vincius de Moraes, Joo Gilberto, Tom Z, Tropicalismo, figuras e movimentos

  • 39

    centrais para o debate, no s no campo musical como tambm no cultural daquele momento.

    Alis, a poltica, a cultura e a msica se mostram to completamente interligadas que

    impossvel contarmos a histria do Brasil sem nos remetermos trilha sonora de cada poca.

    A ideia

    entrevista de Chico Buarque foi mal interpretada e distorcida. Segundo Nestrovsky, insistimos

    nessa ideia, claro que no tem como a cano acabar. Para ele, Chico Buarque se referia a

    duas coisas, embora uma delas no seja mais atual. A primeira a respeito do que Chico

    Buarque disse sobre aquele modelo especfico de cano que passa pelo prprio Chico e

    chega at Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhoto em que a msica se relaciona com aquilo

    que est sendo dito, assim como com a harmonia, e que exige uma concentrao, ainda que

    informal e/ou no especializada. No era possvel ouvir as msicas compostas anteriormente

    sem que houvesse certa concentrao: ou acompanhava-se a cano, ou no dava para dizer

    que se tinha ouvido a mesma. Para Chico Buarque, o modelo de composio e escuta musical

    que antes era to bem pensado, demonstra estar desaparecendo. Talvez esta seja uma forma de

    msica caracterstica do sculo XX e, talvez no sculo XXI, no seja to pertinente, no se

    mostrando to central para a produo musical, virando um acervo, virando histria. A cano

    estaria ganhando outros contornos, segundo Chico Buarque na leitura de Tatit -, o que

    demonstra uma transformao no campo d

    seria um sintoma.

    O segundo ponto levantado por Chico Buarque que o papel da cano exercida nos

    debates e na formao da cultura se perdeu. Nada hoje parece ter essa centralidade, at porque

    o momento atual muito diferente; afinal, h uma infinidade de meios miditicos, pois a

    multiplicao de vertentes muito maior, e existe uma distribuio muito diferente e

    independente desses meios. Claro que a cano, tal qual era antes, continua tendo o seu

    pblico, mas no est em horrio nobre porque esse momento j no ocorre, afinal, possvel

    acessar a qualquer momento aquilo que se deseja.

    Nestrovski acredita que no h mais a cano de massa, mas, assim como Chico

    Buarque, entende que essa cano de antes ainda exerce o seu papel, afinal, algumas pessoas

    ainda aguardam o novo disco de Chico Buarque e de Caetano, os mesmos compositores de

    antes, que fazem canes timas, se recriam, assim como outros jovens que continuam

    essencialmente ligados quela cano apresentada nos anos 60, 70 e 80. Para ele, a m notcia

    de que a cano teria chegado ao fim foi um pouco prematura.

    Apesar da quantidade de alteraes ocorrentes na cano, possvel constatar que o

    termo cano se refere msica cantada, acompanhada ou no de algum instrumento. Isso

  • 40

    porque possvel realizar diferentes sons por via corporal, alm de que a prpria voz pode

    obter diferentes e infinitas variaes. O que realmente importa que a fala e a melodia

    estejam em sintonia, ou seja, a melodia deve estar relacionada ao que se deseja transmitir. Nas

    canes, as palavras deixam de ser somente palavras para serem tambm ritmos e melodias,

    ou seja, a cano composta de uma juno entre melodia, harmonia e letra.

  • 41

    3.1 CANO E ESCULTURA EXPANDIDA

    Ao mover-nos entre os no lugares do territrio instvel das permissivas prticascontemporneas, percebemos que parece ter sido negado, ao artista atual, o uso dotermo escultura...na anlise de certas obras contemporneas. Entre a no paisagem, ano arquitcampo ampliado, talvez seja possvel falar em escultura no contexto da artecontempornea (Freitas, 2010, p. 888)

    A arte contempornea, e aqui incluo a msica, est cada vez mais se misturando,

    no sendo mais possvel estabelecer exatamente onde cada obra se enquadra. Sobre esse

    entrelaar, no que se refere s artes visuais, Florencia Garramuo, em seu livro Frutos

    Estranhos: Sobre a inespecificidade na esttica contempornea, aborda a partir do conceito

    de no pertencimento.

    O ttulo dessa obra no foi escolhido por acaso, pois faz referncia a uma

    instalao de Nuno Ramos, de 2010, em que h uma combinao de diferentes linguagens

    artsticas que se entrelaam: rvore seca, msica popular, filme e palavra escrita. Esse no

    pertencimento se mostra bastante comum, de tal forma que h uma sensao de que as artes

    plsticas compartilham um mal estar quando postas frente de qualquer definio especfica,

    ou qualquer categoria de pertencimento em que se mostre.

    Garramuo afirma que houve transformaes na esttica contempornea que

    questionaram o pertencimento, a especificidade e a autonomia. Nas artes, de maneira geral,

    Garramuo cita Rancire, que deixa claro o quanto as artes se misturaram, conforme

    possvel observar em citao:

    Todas as habilidades artsticas especficas tendem a deixar seu prprio domnio etrocar os seus lugares e seus poderes, hoje temos teatro sem palavras e dana falada;instalaes e performances como uma obra plstica; projees de vdeotransformados em ciclos de painis; fotografias tratadas como quadros vivos oupintura histrica; escultura transformada em shows de multimdias, e outrascombinaes. (RANCIRE apud GARRAMUO, 2014, p.2).

    Para Garramuo, por muito tempo, pensou-se que o potencial da arte moderna

    estaria em transformar as diferentes maneiras de produo, ou seja, as possibilidades de

    expanso. A autora assegura que as prticas fundamentalmente geis e dinmicas, atravessam

    a paisagem da esttica contempornea com figuras diversas, muitas vezes difceis de serem

    capturadas ou categorizadas. Essa explorao ocorre de maneira intensa e varivel. Na

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    literatura, Garramuo cita Tamara Kamenszain, Joo Gilberto Noll, Fernando Vallejo, Alan

    Pauls e Diamel Ellit.

    Essas prticas tm sido questionadas constantemente na arte contempornea desde

    1960. O mais importante, sob seu ponto de vista, seria que nessa arte expandida h uma

    explorao da sensibilidade em que h noes muito diversas de pertencimento,

    especificidade e individualidade, as quais so sempre questionadas. (GARRAMUO, 2014,

    p. 2-24)

    A aposta pelo inespecfico vale dizer, no atual, mas agora demonstra-se estar

    sendo reconhecida, o que propicia diferentes modos de no pertencimento. Garramuo,

    atravs de Espsito, define este no pertencimento:

    No o prprio, sim o imprprio ou mais drasticamente o outro o quecaracteriza o comum. Um esvaziamento parcial ou integral, da propriedade em seuoposto. Uma desapropriao que investe e descentra o sujeito e o fora a sair de simesmo. Nessa comunidade, os sujeitos so no um princpio de identificao, nemto pouco um gabinete assptico, em que estabelecida uma comunicaotransparente, ou pelo menos o contedo para se comunicar. Mas isso no est vazio,essa distncia, esse estranhamento os fazem ausentes de si mesmos. (ESPSITOapud GARRAMUO, 2014, p. 23).

    Garramuo, citando Rancire, afirma que, se o potencial poltico da arte no est

    em sua mensagem, nem to pouco em sua forma, est na possibilidade de reconfigurao da

    diviso do sensvel11; na possibilidade de pensar que estas obras, em que h um no

    pertencimento, so propcias para que haja uma redistribuio, cuja finalidade seria a do

    artista poder se organizar de outro modo. (GARRAMUO, 2014, p. 23).

    Essa expanso ocorre tambm na msica a partir do momento em que esta no

    msico explorar ao mximo a sua criatividade. Arthur Nestrovski, citando Wisnik, traz o

    forma bem pensada, a tal ponto que o ouvinte se sente confortvel no sentido de saber o que

    ir acontecer no desenrolar da cano, ou no mnimo saber que as suas mudanas quanto ao

    11 O conem um conjunto comum, como a separao, a distribuio. Esse comum no designa exatamente a ideia depblico/estatal em oposio a um particular/individual, mas, um espao onde constitumos nossasubjetividade, sempre por meio de relaes sociais (na maior parte das vezes desarmoniosas, com lutas eresistncias) e tomadas de posio (aes polticas). Esse comum um espao de produo ecompartilhamento, mas tambm de disputas para ocupar o melhor lugar que determinado campo possaoferecer e, ainda, lutar para permanecer dentro de tal, afinal, h quem est fora e deseja entrar. Logo, apartilha do sensvel um local de bastante tenso.

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    diluir em favor das trajetrias realadas pela evo

    (WISNIK, 2004, p. 74).

    crtica de arte Rosalind Krauss. No caso da escultura expandida, seria, em suma, a conexo de

    diferentes trabalhos com a histria, legitimando, dessa maneira, seu status enquanto escultura.

    Para Krauss:

    Categoria como escultura e pintura foram moldadas, esticadas e torcidas (...), numademonstrao extraordinria de elasticidade, evidenciando como o significado deum termo cultural pode ser ampliado a ponto de incluir quase tudo. Apesar do usoelstico de um termo como escultura ser abertamente usado em nome da vanguardaesttica da ideologia do novo sua mensagem latente aquela do historicismo. Onovo mais fcil