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ROGÉRIO DE AZEVEDO www.institutovaloresmobiliarios.pt O GOVERNO DOS CREDORES Considerações sobre o financiamento societário; as formas de controlo das sociedades devedoras pelos seus credores; e os desafios de Corporate (Debt) Governance

O GOVERNO DOS CREDORES - institutovaloresmobiliarios.pt · toca à influência que estes são susceptíveis de produzir no governo daquelas. ... O colapso da “bolha” do sector

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O GOVERNO DOS CREDORES

Considerações sobre o financiamento societário; as formas de

controlo das sociedades devedoras pelos seus credores; e os

desafios de Corporate (Debt) Governance

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O governo dos credores – Considerações sobre o financiamento

societário; as formas de controlo das sociedades pelos seus

credores; e os desafios de Corporate (Debt) Governance

ROGÉRIO DE AZEVEDO1

Trabalho final2 no âmbito do regime de avaliação de Pós-

Graduação em Direito dos Valores Mobiliários, promovido pelo Instituto dos Valores Mobiliários da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ano lectivo 2014-2015).

Orador(a) do tema a que o presente trabalho alude: Mestre GABRIELA DE FIGUEIREDO DIAS

Lisboa

Julho de 2015

1 Advogado, coordenador das áreas de Direito Societário e Comercial e Propriedade Industrial, da ACFA Law Firm®. Licenciado

em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2 Sob a total responsabilidade do ora autor, o presente trabalho não foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico, sem

prejuízo das citações que foram feitas.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CDS Credit Default Swap

CGF Contrato de Garantia Financeira

CIRE Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

CMVM

CSC

Comissão do Mercado de Valores Mobiliários

Código das Sociedades Comerciais

CVM Código dos Valores Mobiliários

DL Decreto-Lei

EUA Estados Unidos da América

UE União Europeia

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Sumário

1. Introdução....................................................................................................................................................... 6

1.1. Breve contexto histórico-financeiro ...................................................................................................... 7

1.2. O financiamento societário e a estrutura de capital ............................................................................. 9

1.2.1. O efeito dos impostos das pessoas colectivas .................................................................................... 10

1.2.2. O efeito dos impostos pessoais........................................................................................................... 11

1.2.3. O efeito dos custos do financial distress ............................................................................................. 11

1.2.4. O efeito dos problemas de agência (agency problems) ...................................................................... 12

1.2.5. A Informação assimétrica.................................................................................................................... 13

1.3. O incentivo à contracção de dívida ..................................................................................................... 13

1.4. A definição do problema ..................................................................................................................... 14

1.4.1. O paradigma clássico da corporate governance ................................................................................. 14

1.4.2. A influência crescente dos financiadores das sociedades................................................................... 17

1.4.3. A posição privilegiada dos financiadores na intromissão das sociedades financiadas e os problemas

de corporate governance .............................................................................................................................. 18

1.4.4. A monotorização como forma de mitigação de problemas de corporate finance.............................. 19

2. O financiamento como instrumento de controlo das sociedades ................................................................ 22

2.1. A leveraged finance ............................................................................................................................. 22

2.2. Os covenants ....................................................................................................................................... 24

2.3. Os derivados de crédito (credit default swaps – CDS)......................................................................... 30

2.4. Os contratos de garantia financeira (CGF)........................................................................................... 32

3. O governo dos credores perante o sistema jurídico-societário vigente ....................................................... 35

3.1. As lacunas patentes ............................................................................................................................. 35

3.2. Os potenciais mecanismos de tutela ................................................................................................... 36

4. O governo dos credores perante o sistema de Corporate Governance actual ............................................. 38

4.1. As lacunas patentes ............................................................................................................................. 38

4.2. Os potenciais mecanismos de tutela ................................................................................................... 39

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4.2.1. Respostas possíveis de debt governance para protecção dos accionistas .......................................... 40

4.2.1.1. Reforço da transparência sobre contratos de financiamento e acordos laterais com entidades

financiadoras ou titulares de instrumento de dívida da sociedade. ............................................................. 40

4.2.1.2. Mecanismos de mitigação dos efeitos de restrições contratuais à livre transmissibilidade das

acções............................................................................................................................................................ 40

4.2.1.3. Recomendações sobre o conteúdo dos contratos de financiamento.............................................. 41

4.2.1.4. Sancionamento de conflitos de interesse, fenómenos de empty creditor e de indução de ma � fé

(pelos credores) de situações de insolvência em benefício próprio......................................................... 41

4.2.2. Respostas possíveis de debt governance para reforço da posição dos financiadores ........................ 42

5. Considerações finais...................................................................................................................................... 43

6. Bibliografia .................................................................................................................................................... 45

ANEXO A – 2003 MASTER CREDIT DERIVATIVES CONFIRMATION AGREEMEN (Copyright © 2003 by International

Swaps and Derivatives Association, Inc.) .............................................................................................................. 48

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1. Introdução

O presente trabalho escrito «O governo dos credores – ...», incide sobre a matéria

denominada de Debt Governance que foi apresentada pela Exma. Sr. Dr.ª Gabriela

Figueiredo Dias, no dia 9 de Junho de 2015, no âmbito do XIX curso de pós-graduação em

direito dos valores mobiliários, que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa.

Cada vez mais se afigura ténue a separação entre o papel dos equity holders3,

(sócios/accionistas) das sociedades e dos seus financiadores externos, mormente no que

toca à influência que estes são susceptíveis de produzir no governo daquelas. No contexto

actual de crise financeira e de consequente escassez de fontes de financiamento com que as

empresas vivem o seu dia-a-dia, não é raro assistir-se à subserviência das mesmas perante

os seus potenciais e efectivos financiadores. Assim o é porque, muitas das vezes, essas

empresas carenciadas de liquidez – ou simplesmente habituadas a socorrerem-se ao

heterofinanciamento por incentivos financeiros à contracção de dívida (como por exemplo a

poupança fiscal) –, “abrem a porta” à ingerência dos seus credores na sua própria gestão,

por imposição negocial desses credores que se movem com o fundamento da

monotorização da dívida e do seu cumprimento. Essa ingerência pode efectivar-se através

de instrumentos diversos, cada vez mais sofisticados e criativos, celebrados não só no

momento da concessão de crédito como durante o seu (in)cumprimento. Não raras vezes,

tanto a existência como os termos e condições em que esses instrumentos são celebrados

são do completo desconhecimento dos proprietários das sociedades financiadas. Há

situações em que a influência dos credores chega a ser tão forte (e até de terceiros com

quem têm relações contratuais) que os possibilita a posicionarem-se lado a lado com os

equity holders e os administradores das sociedades que eles mesmos financiam.

Contudo, nem as regras jurídico-societárias positivas nem o sistema (clássico) de

corporate governance estão preparados para enfrentar esta problemática crescente,

revelando-se urgente a criação de regras e mecanismos tanto jus-societários como de

3 “The entity owner of shares or stock. More commonly known as a shareholder or stockholder.” – “A entidade titular de quotas

ou acções. Mais comummente conhecidos como sócios ou accionistas.” (a tradução é nossa) – Law Dictionary: definition of EQUITY

HOLDER (Black's Law Dictionary). Página consultada em 27 de Junho de 2015, .

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corporate governance externa (que alguns apelidam de debt governance), que sejam aptos a

dirimir os desequilíbrios e os conflitos consequentemente originados.

A escolha do presente tema prende-se, por isso, com o facto de estar bem presente na

ordem do dia, e de as suas problemáticas e propostas de tutela terem sofrido alguns

desenvolvimentos nos últimos anos (tanto a nível teórico como prático).

Ainda que já existam, tanto na doutrina estrangeira (especialmente norte-americana) e

portuguesa4 (onde se insere a Autora já supra mencionada), opiniões e escritos académicos

que abordam aprofundadamente o tema em análise, o interesse tão actual e crescente que

possui – muito também desencadeado pela Oradora da sessão de pós-graduação em que foi

tratado –, ergueu no ora autor o humilde desejo de estudá-lo e escrevê-lo. Agradece-se a

inspiração!

Contribuíram igualmente outros temas tratados em sessões da pós-graduação para a

feitura deste trabalho (como o foram “Financiamento de sociedades: capital vs. dívida”,

apresentado pela Exma. Sr.ª Prof.ª Doutora Clara Raposo; e “Gestão de activos: conflitos de

interesses, transparência e informação”, apresentado pelo Exmo. Sr. Dr. Carlos

Albuquerque), os quais, não abordando per si a temática da Debt Governance, contiveram

tópicos que com ela se corelacionam, e que serviram para a sistematização e

enriquecimento do conteúdo de alguns dos tópicos que são aqui tratados.

1.1. Breve contexto histórico-financeiro

A crise financeira de 20085 teve origem no sector do mercado de crédito hipotecário

norte-americano (mercado de alto risco), também conhecido por sub‐prime, onde foram

concedidos inúmeros créditos à habitação a entidades que não apresentavam aos

credores (instituições de crédito em particular) as garantias necessárias para serem

considerados como mutuários normais a um nível de análise de risco de cumprimento das

obrigações (os ditos “normais” encontravam-se no denominado mercado de crédito prime).

4 DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance): o terceiro poder” pp. 359-383; assim

como OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, “Os credores e o governo societário: dever de lealdade para os credores controladores?” pp. 95-133. 5 Remete-se para a visão detalhada, feita de um prisma europeu, da autoria de PAULO, SEBASTIAN, A Europa e a Crise Financeira

Mundial – Balanço da resposta política da UE, Edição da representacão da Comissão Europeia em Portugal, traduzida do original

da Fundação Robert Schuman, Abril, 2011.

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O colapso da “bolha” do sector imobiliário nos EUA traiu a as expectativas de rendimento

dos mutuários no mercado subprime, que tinham esperança no aumento de preços dos

bens imóveis para limitar os riscos da concessão de créditos, em caso de

incumprimento, mediante a alienação dos bens imóveis a preços mais elevados. Como é

aliás salientado por TORRE, TIAGO FILIPE MACHADO (2013) os “(…) bancos de investimento

agruparem numa carteira todos os tipos de empréstimos concedidos, a que chamavam de

Collaterized Debt Obligations (CDO �s). Esta carteira consistia num produto financeiro

que era vendido a qualquer investidor, originando uma transacção de risco e contágio, já�

que cada carteira destas continha empréstimos a clientes cuja capacidade de

pagamento não era averiguada.”

Em 2006, este tipo de empréstimos já representava 10% do mercado de crédito

hipotecário norte-americano, o que facilitou o contágio no sistema financeiro.

As titularizações (operações financeiras que permitiram as partilhas de riscos) falharam

com o incumprimento maciço e simultâneo, muito da crise do crédito hipotecário de alto

risco, alastrando o risco a todo o sistema financeiro.

Toda a conjectura criou incerteza e um clima de desconfiança, tendo os bancos deixado

de emprestar dinheiro entre si, que se viram obrigados a vender os activos de “boa”

qualidade.

Muitas instituições financeiras encontraram-se à beira da falência, tendo a Europa

sido tão afectada quanto os EUA (veja-se o exemplo da nacionalização do Northern Rock, o

maior banco de crédito hipotecário do Reino Unido, em Fevereiro de 2008).

A crise atingiu o seu apogeu em Setembro e Outubro de 2008, quando as

autoridades norte-americanas decidiram não resgatar o banco de investimento

Lehman Brothers. Com isto deu-se a desestabilização do mercado financeiro mundial.

Confrontadas com deficiências no sector bancário, as autoridades públicas enfrentam um

dilema de escolha entre o risco moral do resgate garantido e a desestabilização do sistema

financeiro em geral causada pela falência de instituições importantes do ponto de vista

siste�mico (apelidadas de “too big to fail” ou “demasiado grande(s) para falhar”).

A crise financeira começou a atingir a economia real no final de 2008, e em 2009 o PIB

mundial baixou 0,6%, surgindo daí problemas vários como:

− A excessiva exposição a riscos por parte dos administradores;

− A prossecução de interesses de curto prazo, em prejuízo da sustentabilidade das

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sociedades e dos interesses dos seus credores;

− A ineficácia dos mecanismos de monitorização pelos accionistas dos excessos de risco

que os administradores expõem às sociedades;

− O reconhecimento da importância da monitorização das decisões de administração por

parte dos credores.

Atendendo à conjectura, dá-se uma relevante crise de liquidez, com um aumento

exponencial das necessidades de financiamento das empresas e da dependência das

sociedades em relação aos seus financiadores (com uma consequente regulação restritiva e

indisponibilidade de mecanismos de financiamento de longo prazo).

Com tudo isto, as empresas portuguesas são as mais endividadas da UE e as mais

dependentes do financiamento através de capital alheio, situação esta que se antevê

manter-se dado o crescimento da escassez e necessidade de financiamento que advirá da

implementação em pleno de Basel III em 20196.

1.2. O financiamento societário e a estrutura de capital

Ao abordar as formas de financiamento das sociedades – o instrumento de captação de

recursos e limitação de responsabilidade dos seus proprietários – existem duas variantes

fundamentais a considerar. A saber:

i) O financiamento mediante capitais próprios – autofinanciamento – os quais são

oriundos dos titulares da sociedade, i.e., dos equity holders, (os sócios ou accionistas); e

ii) O financiamento mediante capitais alheios – heterofinanciamento – os quais são

oriundos de financiadores / investidores externos, i.e., dos debt holders.

A escolha de volumetria (ratio) entre capitais próprios e alheios no financiamento de uma

empresa, erigiu desde cedo uma longa discussão: qual das formas de financiamento é

efectivamente a mais barata para a(s) empresa(s)?

Ao longo destes vários anos, inúmeras teorias foram avançadas e desenvolvidas para

(tentar) dar resposta àquela questão.

6 Conjunto de propostas de reforma da regulamentação bancária, que forçará os bancos a aumentarem suas reservas de capital,

cf. Basel Committee on Banking Supervision – Basel III: A global regulatory framework for more resilient banks and banking systems.

Disponivel em .

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O artigo de Modigliani e Miller, de 1958, referente à irrelevância da estrutura de

capitais sobre o valor da empresa, desencadeou outros diversos modelos teóricos e

empíricos concernentes a esta temática, nomeadamente as teorias do Trade‐off, da

Pecking Order e do Market Timing.

Para aquela teoria percursora de Modigliani & Miller de 1958 (M&M Proposição I)7, a

escolha da estrutura de capital, num mundo perfeito, seria irrelevante. O valor total da

empresa dependeria do valor dos seus activos (dos fluxos de caixa totais geradas pelo

mercado de seus activos), independentemente de serem financiados com capital próprio ou

capital alheio (dívida).

Todavia, o dito “mundo perfeito” (mercado perfeito) assenta em pressupostos sob os

quais a M&M Proposição I foi elaborada e que não correspondem ao mundo real. Isto

porque para aquela Proposição:

i) não existem impostos, custos de transacção, ou custos de emissão associados à

negociação de segurança;

ii) as decisões de financiamento de uma empresa não mudam os fluxos de caixa

gerados pelos seus investimentos;

iii) há (sempre) racionalidade; e

iv) não existe assimetria de informação.

1.2.1. O efeito dos impostos das pessoas colectivas

Como o dissemos, teorias posteriores partiram do “mundo perfeito” de M&M

(Proposição I), ajustando a sua análise original, por forma a incluir as imperfeições do mundo

e mercado real.

Desde logo, as pessoas colectivas pagam impostos sobre os seus lucros, mas as despesas

com juros despendidos em dívida reduzem a quantidade dos impostos corporativos (o que

confere o denominado “escudo fiscal”, ou “tax shield”). Ora, isso vem criar um enorme

incentivo para usar a dívida (heterofinanciamento) como forma privilegiada de

financiamento de uma empresa (ainda que existam desvantagens na utilização total de

dívida como forma de financiamento, pois se assim não fosse, as empresas escolheriam

7 Para uma análise mais profunda e detalhada, vide RAPOSO, CLARA, Corporate Financing: Equity versus Debt – Financial Theory

and Corporate Practice; e OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, pp. 29 e ss.

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100% de dívida nas suas estruturas de capital).

1.2.2. O efeito dos impostos pessoais

Os investidores, por sua vez, são tributados quando recebem os pagamentos de juros ou

dividendos. Não sendo o escopo deste trabalho dar um enquadramento fiscal desta

temática, sucintamente podemos afirmar que os pagamentos dos juros de dívida

arrecadados são tributados aos investidores como renda, assim como também são

tributados pelos dividendos e ganhos de capital, o que confere um desincentivo

Assim, para a determinação do verdadeiro benefício fiscal de alavancagem, o efeito

combinado de ambos os impostos pessoais e corporativos tem de ser avaliada.

1.2.3. O efeito dos custos do financial distress

Contrariamente ao dito “mundo perfeito”, visto por M&M (Proposição I), na vida real o

processo de falência e até mesmo a suspeita de dificuldades financeiras (financial distress)

de uma empresa são susceptíveis de criar perda de valor.

Os custos podem ser bifurcados nos seguintes:

− Custos directos: suportados pela sociedade durante o processo de insolvência que

reduzem o seu valor; e

− Custos indirectos: suportados pela sociedade devido a grande alavancagem e

antecipação futura de problemas de default.

O processo de falência é demorado, complexo e caro8, e os especialistas externos são

dispendiosos, nomeadamente, assessores jurídicos e contabilistas; consultores; avaliadores;

leiloeiros e até mesmo bancos de investimento (quando a dimensão da sociedade a isso

justifica).

Existem ainda custos indirectos em relação ao financial distress, pois mesmo que a

sociedade não intente o pedido de insolvência, se os níveis de dívida parecerem demasiado

8 No exemplo paradigmático da empresa norte-americana “Enron”, foram despendidos mais de 750 milhões de dólares em

honorários jurídicos e contabilísticos, com todo os processo de falência daquela empresa. Vide novamente RAPOSO, CLARA, Corporate

Financing: Equity versus Debt – Financial Theory and Corporate Practice. Para esta autora, “...Depending on the complexity and size of the

business, direct costs of bankruptcy can amount to 10% of the value of the assets (on average 3-4%).”.

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elevados, avultadas perdas para a sociedade ocorrerão na mesma, nomeadamente, perda de

clientes; perda de fornecedores; perda de trabalhadores; etc.

Estes custos indirectos são difíceis de medir, e variam de sector para sector de actividade,

e de empresa para empresa, mas, para RAPOSO, CLARA (2015) “...há evidências de que [os

custos] podem ascender a 10% a 20% do valor total da empresa.” (a tradução é nossa).

A teoria trade‐off9, que mencionámos supra como decorrente do modelo inicial M&M,

vem analisar uma estrutura ótima de capitais das empresas, com a presença de impostos e

dos custos de insolvência, defendendo que os administradores devem equilibrar os

benefícios da contracção de dívida (advenientes do tax sheild), em contraposição dos custos

da dívida (advenientes do financial distress). Desta forma, e para a teoria contemporânea, as

sociedades deveriam contrair mais dívida, desde que o benefício fiscal incremental seja mais

elevado do que os custos adicionais do financial distress.

1.2.4. O efeito dos problemas de agência (agency problems)

Os conflitos de interesses entre os diferentes stakeholders de uma sociedade são outra

das variantes que podem influenciar a escolha da estrutura de capital. Vejamos os diferentes

de problemas de agência10 existentes:

− Os conflitos entre accionistas e debt holders: diminuem o valor da sociedade quando a

dívida é alta (agency costs of debt);

− Os conflitos entre administradores e accionistas: a dívida pode ser utilizada para

disciplinar os administradores (agency benefits of debt).

Contudo, benefícios na alavancagem são encontradas nos seguintes casos:

− Concentração da propriedade (Jensen e Meckeling, 1976);

− Evita-se a diluição do capital próprio;

− Redução de desperdício de investimento (Jensen, 1986)

− Existe maior pressão sobre a administração para gerir diligentemente, e menos

9 Vide OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, pp. 31 e ss. 10 Os agency problems serão analisados mais concretamente infra, mas até lá já se pode adiantar que “...the interests of the bank

and other stakeholders diverge. In the economic model of the corporation, financial agency problems exist because, as agents of their

shareholders, managers have incentives to make decisions that transfer wealth from debtholders to shareholders.”, cf. TRIANTIS, GEORGE G.

e DANIELS, RONALD J., The Role of Debt in Interactive Corporate Governance, p. 19.

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oportunidades para a gastos excessivos em vantagens pessoais.

− Compromisso da administração, uma vez que uma sociedade em dificuldades

financeiras pode significar mais vigor e empenho da administração, e até tornar-se um

concorrente mais “feroz” no mercado.

1.2.5. A Informação assimétrica

Quando uma sociedade pretende alienar suas participações sociais (equity), verifica-se

uma assimetria de informação, quase da mesma maneira como quando alguém vende um

automóvel em segunda-mão.

Clara Raposo (2015), invocando Akerloff (1977) diz-nos que “...quando um vendedor tem

informações privadas sobre o valor de um bem, os compradores vão descontar o preço que

eles estão dispostos a pagar devido à selecção adversa.”. I.e., quando uma sociedade

(anónima, por exemplo), efectua uma nova emissão de acções através de um aumento de

capital, os potenciais investidores questionam se o investimento é realmente valioso, o se o

mesmo ocorre devido à verificação de más notícias dentro da sociedade. É por isso que

muitas sociedades tendem a emitir (novo) equity quando as assimetrias de informação estão

minimizadas, nomeadamente, logo após a divulgação de resultados da sociedade, o que

remove (tendencialmente) o cepticismo dos potenciais investidores adquirentes de

participações sociais da sociedade.

É nesta esteira que alguns autores falam de uma pecking order theory11 (Myers e Majluf,

1984), mas a que nos absteremos de desenvolver nesta sede.

1.3. O incentivo à contracção de dívida

A crise de liquidez veio erigir um aumento exponencial das necessidades de

financiamento das empresas que são fruto da combinação de factores (crise financeira,

regulação mais restritiva na concessão de financiamento, etc.).

Contudo, como já vimos, a decisão das empresas em contrair dívida não adveio apenas

11 Vide RAPOSO, CLARA, Corporate Financing: Equity versus Debt – Financial Theory and Corporate Practice; e OLIVEIRA, ANA

PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, pp. 31 e ss.

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daqueles factores. No presente capítulo vimos que as decisões empresariais de contrair

dívida advêm de concepções financeiras contemporâneas, que já abarcam implicações do

“mundo real”.

O facto de os impostos tenderem a favorecer o financiamento societário mediante a

contracção de dívida (debt ao invés de equity) – ainda que custos de financial distress e

custos de agência limitem o seu uso excessivo –; a motivação e compromisso da

administração e a selecção adversa (que torna demasiado onerosa a aquisição de equity por

investidores na emissão novas participações sociais) são algumas das concepções financeiras

que fazem com que se tenha assistido nas últimas décadas a um fenómeno crescente de

contracção de dívida por parte das sociedades (logo, não só devido à crise e escassez de

liquidez). Esta conjectura veio abrir a porta à influência e até mesmo ao controlo das

sociedades financiadas por parte dos seus credores, como melhor demonstraremos adiante.

1.4. A definição do problema

1.4.1. O paradigma clássico da corporate governance

O “governo da sociedade” / “governança corporativa” (expressão mais utilizada no Brasil)

ou, segundo a terminologia anglo-saxónica, “corporate governance” (privilegiaremos esta

expressão dada o começo norte-americano à abordagem do problema ora tratado) traduz-

se, sinteticamente, no “...conjunto de estruturas de autoridade e de fiscalização do exercício

dessa autoridade, internas e externas, tendo por objectivo assegurar que a sociedade

estabeleça e concretize, eficaz e eficientemente, actividades e relações contratuais

consentâneas com os fins privados para que foi criada e e� mantida e as responsabilidades

sociais que estão subjacentes a= sua existência”12.

Como é doutamente observado por Gabriela Figueiredo Dias (2014)13., “Ao longo dos

tempos, e sobretudo em resultado dos princípios sobre o governo das sociedades da OCDE,

publicados pela primeira vez em 1999 e atualizados em 2004, os desenvolvimentos em torno

12 Cf. SILVA, ARTUR SANTOS; VITORINO, ANTÓNIO et al., Livro Branco sobre Corporate Governance em Portugal, p.12. 13 Vide DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance): o terceiro poder” pp. 360 e ss.

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do governo das sociedades concentraram-se essencialmente na designação, composição e

funcionamento dos órgãos de administração e de fiscalização, nos processos e decisão este

órgãos e na forma de relacionamento entre estes e os acionistas: (...) tradicionalmente

ligadas à proteção dos acionistas, por um lado, e da própria sociedade, esta última enquanto

titular de interesses autónomos, em relação aos acionistas de controlo e em relação ao

poder, eventualmente oculto e desproporcionado, que estes possam exercer sobre a

sociedade.”.

A corporate governance tem inúmeras fontes normativas: as leis em sentido formal bem

como regulamentos (hard law) – atinentes às matérias de Direito Societário e de Direito dos

Valores Mobiliários; e, igualmente muito relevantes, as fontes de soft law – que se

consubstanciam em normas sociais destituídas de sanção jurídica (normas deontológicas,

recomendações e regras de boa conduta)14 – as quais, quando são substancialmente

respeitadas, podem ser até mais consagradoras e protectoras dos valores protegidos pela

corporate governance do que as próprias regras contidas em hard law.

Existiu e continua a existir uma discussão clássica sobre se o objectivo (o fim último) da

corporate governance é a maximização do shareholder value ou dos stakeholders em geral.

− O valor acionista (shareholder value): para esta abordagem o fim último da corporate

governance será favorecer os rendimentos obtidos pela empresa, os dividendos e o

preço das acções, i.e., aumentar os fluxos de caixa livres, em benefício dos equity

holders. Assenta assim essencialmente na obtenção de retornos para os

sócios/accionistas, e cujas críticas assentam principalmente numa suposta

concentração excessiva na obtenção de lucro a curto prazo - os mercados financeiros

anglo-americanos são caracterizados tendencialmente por este objectivo de

maximização da riqueza dos sócios/accionistas, enquanto fim último da corporate

governance;

− O valor dos stakeholders em geral (stakeholder value): para esta abordagem o fim

último da corporate governance será os administradores tomarem decisões que

tenham em conta os interesses dos diversos stakeholders (os accionistas, os credores,

a administração, os trabalhadores, a comunidade, os fornecedores e até o Estado),

mas os quais têm, axiologicamente, interesses conflituantes. Esta abordagem assenta

14 Cf. CÂMARA, PAULO et al., Código do Governo das Sociedades Anotado, p. 12.

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na ideia de que fim último da sociedade é maximizar o respectivo valor total do

mercado a longo prazo – o modelo continental europeu orienta-se tendencialmente

mais para esta abordagem de que o fim último societário, e assim também da

corporate governance, deverá ser a maximização da riqueza de todos a longo prazo.

Dito isto, se levarmos esta discussão ao ordenamento jurídico nacional – mesmo estando

enquadrado no sistema europeu –, em nossa opinião, a Nossa matriz jurídico-societária

vigente (cf. artigo 64.º do CSC)15, ainda que falando em sustentabilidade e mencionando

trabalhadores, clientes e credores sociais, parece preferir a noção da maximização do valor

accionista (shareholder value), enquanto objectivo (pelo menos imediato) da gestão

societária.

Ainda assim, tal não significa que a sociedade que vise os fins dos seus equity holders não

deva respeitar e salvaguardar (igualmente) os interesses dos demais stakeholders, na

prossecução dos interesses dos equity holders. De todo o modo, como nos esclarece

Gabriela Figueiredo Dias (2014), mesmo esta orientação de maximização (shareholder

value), tem vindo a servir como “...forma de restaurar a confiança dos investidores nas

empresas – o mais essencial pilar e motor de desenvolvimento dos per mercados – [que] viu-

se severamente desgasta a e ameaçada sob o efeito perverso de práticas nocivas,

disseminadas nas grandes empresas e traduzidas essencialmente na desconsideração dos

accionistas minoritários, na passividade consentida ou mesmo incentivada dos mecanismos

de fiscalização e em remunerações e pensões excessivas dos titulares de cargos de

administração assentes em incentivos errados e alinhados com interesses de curto prazo dos

administradores. A confiança dos Investidores sofreu finalmente um golpe decisivo com os

fenómenos de fraude e rotura financeira de grandes sociedades, sobretudo no início deste

século, e finalmente com o eclodir da crise financeira, entre cujas causas foram claramente

identificadas (Relatório de Peritos Larosière) falhas ao nível do governo das sociedades, com

15 “Artigo 64.º (Deveres fundamentais)

1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

(…)

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os

interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.

(…)”.

17

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destaque para as políticas remuneratórias e para a debilidade e inadequação dos sistemas

de gestão de riscos das sociedades.”16.

1.4.2. A influência crescente dos financiadores das sociedades

A corporate goverance tem-se concentrado essencialmente até ao presente em

mecanismos (de soft e hard law) de eliminação, ou pelo menos mitigação, de assimetrias

informativas existentes entre administradores e equity holders (principalmente os

minoritários).

Todavia, de entre todos os stakeholders, os que têm assumido a maior influência e

impacto na corporate governance ultimamente (mais até que os accionistas e os órgãos de

administração), são os financiadores das sociedades.

O incentivo à contracção de dívida na estruturação do capital societário (como já vimos

supra) e o despoletar da crise financeira (o que criou uma regulação mais restritiva na

concessão de financiamento por instituições sujeitas a supervisão, e a indisponibilidade de

instrumentos de financiamento de longo prazo), são factores que resultaram numa

crescente escassez de fontes e formas de concessão de crédito para as empresas. Em

consequência, verificou-se um forte aumento das necessidades de crédito, o que resultou

numa enorme dependência, e até servilismo, das sociedades perante os seus potenciais

financiadores17. Consequentemente, os contratos e instrumentos de financiamento ficaram

progressivamente mais complexos e sofisticados (com alguns exemplos mais concretos infra,

mas podendo já destacar a dívida estruturada e os instrumentos híbridos de capital).

Diz-nos Gabriela Figueiredo Dias (2014), com quem não conseguimos divergir, que “A

resposta a este desafio determina eventualmente uma reconstrução do paradigma de

corporate governance que passa pela consideração de outros interesses relevantes na

sociedade para além do interesse dos acionistas (sem, contudo, diluir este ultimo).”18.

16 Cf. DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance): o terceiro poder” p. 361. 17 Para DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance), haverá uma “tendência crescente

de dependência societária, em relação aos potenciais e atuais financiadores, com a implementação da Diretiva (Diretiva 2013/36/EU) e do

Regulamento Europeu sobre os requisitos de capital em 2019, que estabelece restrições à concessão de crédito pelas instituições

financeiras”. 18 Cf. DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance): o terceiro poder” p. 365.

18

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1.4.3. A posição privilegiada dos financiadores na intromissão das sociedades

financiadas e os problemas de corporate governance

Nos tempos recentes, especialmente devido ao efeito da crise financeira sentida na

esfera ao nível das grandes sociedades cotadas, algumas deficiências de corporate

governance começaram a erigir-se. Entre elas:

i. A predisposição dos administradores para uma exposição excessiva a riscos nas

decisões de gestão e administração das sociedades;

ii. A prossecução de interesses de curto prazo pelos administradores;

iii. A ineficácia dos mecanismos de monitorização, pelos accionistas, da actividade da

administração, designadamente no que respeita à exposição excessiva ao risco,

deficiências na informação financeira, transacções entre partes relacionadas, etc.

Estas deficiências relevaram a necessidade de monitorização das decisões da

administração das sociedades pelos respectivos credores, que além disso encontram-se

melhor posicionados do que os próprios accionistas para o fazer, especialmente se se

tratarem de grandes financiadores institucionais, que podem despoletar, inclusivamente,

operações de due diligence (financeiras e legais) dirigidas ao “levantamento do véu” das

sociedades por si financiadas. Estas operações não estão habitualmente ao alcance de

médios e pequenos accionistas, mas antes de accionistas de elevada dimensão e disciplina

financeira como é o caso de venture capitalists.

Esclarece-nos Gabriela Figueiredo Dias (2014), que o privilégio da posição dos credores

em relação à dos accionistas no que toca ao conhecimento e influência na gestão da

sociedade financiada é visível numa dupla dimensão:

− Na dimensão informativa19: já que os accionistas, salvo situações excepcionais de

pedidos de informação adicional (na medida em que a relevância da participação

acionista legitime esse pedido e obrigue a administração a prestá-la), têm sobre a

situação financeira da sociedade o mesmo conhecimento que o mercado – ou seja, a

informação vertida no reporte financeiro periódico a que a sociedade esteja obrigada

19 DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, ob. cit., esclarece também que “... terceiros envolvidos nas relações de financiamento através da

contratação de swaps ou outras modalidades de cobertura de risco do financiador direto – constituem cada vez mais repositórios de

informação não pública e muito detalha sobre a situação financeira da sociedade, que não está ao alcance dos acionistas com esse nível de

detalhe e profundidade...”.

19

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a prestar enquanto sociedade aberta (nos termos do CVM) ou tão só enquanto

sociedade comercial sob forma anónima (nos termos, neste caso, do CSC).

− Na dimensão de reacção e intervenção: perante factos ou situações com impacto na

condição financeira da sociedade e na respectivas capacidade de cumprimento do

crédito, na medida em que o financiamento seja contratado com cláusulas de

atribuição aos financiadores de direitos ou faculdades que lhes permitam intervir, de

modo mais ou menos decisivo a montante de certas decisões sobre o governo e

gestão da sociedade (veja-se com maior detalhe infra em 2.2.)

Assim sendo, pode-se então concluir que a forte capacidade de intervenção dos credores

na vida das sociedades financiadas é susceptível de introduzir algumas distorções no

(clássico) equilíbrio entre os interesses dos accionistas e os interesses da administração, e

com respeito àqueles, entre os interesses dos accionistas maioritários e minoritários.

Além disso, o quadro normativo das sociedades anónimas, não contempla este tipo de

influência – como melhor veremos infra em 3.1. – não tendo pois sido desenhadas soluções

específicas para dirimir a influência (e até governo) dos credores perante as sociedades por

si financiadas, especialmente num cenário actual de enorme dependência das sociedades de

escassas fontes de financiamento.

1.4.4. A monotorização como forma de mitigação de problemas de corporate

finance

A problemática do (des)alinhamento de interesses entre os diversos sujeitos que

circundam a vida societária não constitui “apanágio” pertencente à disciplina da corporate

governance, sendo tratada igualmente pela área de corporate finance, assim nos é

esclarecido por Ana Perestrelo de Oliveira (2015)20. Enquanto no primeiro caso, estão em

confronto (essencialmente) os interesses dos equity holders e os interesses dos

administradores; no segundo caso estão em confronto os interesses de insiders e os

interesses de outsiders.

Existe, uma relação "principal-agente” (tradução da terminologia inglesa “principal‐

agent”) – que já mencionámos supra – entre outsiders (financiadores, investidores) e

20 Cf. OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, pp. 19 e ss.

20

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insiders (empresários, gerentes), caracterizada por assimetrias informativas e originadoras

de conflitos de interesses21. Os insiders tendencialmente detêm informação privada na

altura da contratação (a já supra mencionada selecção adversa), assim como a têm

posteriormente (hidden knowledge).

Muitas das vezes a informação que chega ao mercado (para eventuais potenciais

investidores) não se trata sequer de “informação de qualidade”22, já que nem sequer foi

produzida com qualidade no interior da própria sociedade, A transferência de informação de

órgão em órgão e de departamento para departamento, numa cultura da

desresponsabilização para salvaguarda de interesses pessoais dos cargos, é apta a por vezes

a ocultar dados determinantes para quem contrata com a empresa.

Ora, os insiders não agem tendencialmente no melhor interesse dos financiadores, em

virtude do conflito já referido. Este risco moral (decorrente da adopção de comportamentos

arriscados e prejudiciais para o credor) pode surgir sob diversas formas. Vejamos:

− Esforço insuficiente: os administradores muitas vezes não se empenham

satisfatoriamente na redução de custos (por exemplo, procurando fornecedores

menos dispendiosos, reafectando trabalhadores, tomando posições mais firmes nas

negociações salariais, etc.). Além de que não raras vezes os administradores estão

envolvidos em múltiplas actividades, que não “permitem” que se dediquem às tarefas

para as quais foram designados;

21 Tal como é mencionado por ALBUQUERQUE, CARLOS A. TORROAES, Gestão de ativos – Assimetria de informação e perspetivas dos

diversos tipos de entidades, p. 28: “...Os conflitos de interesses acontecem um pouco por todas as entidades, em menor ou maior escala, …

o Comittee of European Securities Regulators (CESR) identifica a existência de conflitos de interesse … a partir daquele document,

poderíamos referir que existe um potencial de conflitos de interesses quando, no mínimo, a entidade, os seus colaboradores ou os seus

agentes vinculados:

− é provável que possam efetuar um ganho financeiro ou evitar um prejuízo financeiro, a expensas do principal; · tem

um interesse no resultado de um serviço prestado ao principal (ou numa determinada transação efetuada em nome do

principal) que não é coincidente com o interesse do principal;

− têm um interesse financeiro ou outro tipo de incentivos no interesse de outro cliente (ou grupo de clientes) que não o

principal e atuam em desfavor do interesse deste;

− exercem o mesmo tipo de atividade do principal; ou

− recebem recompensas em relação ao servico prestado ao principal, sob a forma de dinheiro, bens ou serviços, diferentes das

comissões ou remuneracões que são práticas de mercado relativamente a esses serviços.”. 22 Para aprofundar o tema, vide GOMES, JOSÉ FERREIRA, Da Administração à Fiscalização de Sociedades: A obrigação de vigilância dos

órgãos da sociedade anónima, Dissertação de Doutoramento, Almedina, 2015.

21

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− Investimentos excessivos, em detrimento dos accionistas;

− Estratégias de perpetuação no cargo (entrenchment): os administradores recorrem

por vezes a esquemas diversos com o objectivo de manterem os cargos. Tais

esquemas incluem p. ex., a manipulação de resultados, a utilização de contabilidade

"criativa", a assunção de riscos excessivos para procurar a recuperação da empresa a

todo o custo, a resistência a tomadas de controlo que poderiam ser benéficas;

− Procura de benefícios privados (private benefits), i.e., de vantagens que não são

partilhadas pelos accionistas, o que se traduz, no fundo, no desvio indirecto de bens

societários em favor dos administradores, e seus interesses meramente pessoais.

Uma das formas possíveis para lidar com os efeitos do risco moral consiste na

monitorização por parte dos credores. Distingue-se, a monitorização activa, que implica a

interferência na gestão para aumentar o valor da empresa, e a monitorização especulativa

(speculative monitoring), a qual surge em termos retrospectivos e, em vez de procurar

aumentar o valor da empresa, visa "tirar uma fotografia" da posição da empresa num dado

momento, obtendo informação que permite decidir o aumento, manutenção ou redução do

investimento. Os custos de monotorização serão cada vez maiores quanto mais distressed se

afigurar o financiamento23, o que chamará o oportunismo de alguns financiadores mediante

a imposição de covenants e anseio pelo incumprimento dos mesmos (como melhor veremos

infra em 2.2.).

Aqueles outsiders clássicos, que não interferem na gestão da sociedade e assumem um

papel passivo, limitam-se a verificar se os contratos asseguram o retorno do respectivo

investimento. Mas este padrão clássico não tem em conta o novo papel que os financiadores

outsiders podem desempenhar na sociedade, podendo interferir na gestão corrente,

determinando mudanças nos órgãos de gestão, alterações na estratégica de investimento,

entre diversas outras medidas que serão mencionadas infra.

23 Para WHITEHEAD, CHARLES K., Creditors and Debt Governance, p. 13, “Loans purchased by those investors are often distressed,

with the discount in purchase price (and potential for substantial return) offsetting the greater cost of monitoring. (Hotchkiss & Mooradian

1997). Investors use the borrower’s breach of its covenants to force change in its policies or a change in control – providing another pair of

eyes over distressed borrowers, where the potential for management opportunism can be the greatest. (Harner 2008).”.

22

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2. O financiamento como instrumento de controlo das sociedades

Já constámos que havia tradicionalmente uma separação (clara) entre o papel dos sócios

no financiamento da sociedade (através de capitais próprios) e o papel dos financiadores

externos. No entanto, o paradigma actual de financiamento societário é bem diverso e a

distinção entre financiamento externo e financiamento interno acabou por se dissipar, em

resultado das amplas possibilidades de influência que o credor adquire sobre a sociedade,

devido às inúmeras formas de financiamento que foram criativamente criadas ao longo dos

tempos.

Veremos adiante que a influência pode ser tão intrusiva que se chega mesmo a situação

de um governo dos credores frente às sociedades que se submetem aos seus

financiamentos.

2.1. A leveraged finance

A leveraged finance24 (financiamento alavancado) consiste no financiamento de uma

sociedade com fundos superiores aos que seriam considerados normais para a sociedade, ou

tendo esta mais dívidas do que seria considerado normal para essa mesma sociedade ou

sector de actividade. Tal implica que o financiamento apresente mais riscos e, portanto, seja

mais caro do que um mútuo dito normal. Como efeito, a leveraged finance é comummente

utilizada para atingir objectivos específicos, muitas vezes temporários, como aquisições,

buyouts25, distribuição de lucros, recompra de acções, etc.

Embora para diferentes entidades significam coisas diferentes, mormente de banco para

banco, quando se fala em leveraged finance, geralmente esta inclui os dois produtos

seguintes: os empréstimos alavancados (leveraged loans) os quais têm elevadas taxas de

24 Para uma abordagem aprofundada na doutrina nacional, vide OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, pp. 24

e ss.; e “Os credores e o governo societário: dever de lealdade para os credores controladores?”, pp. 98 e ss. 25 WHITEHEAD, CHARLES K., “The Evolution of Debt: Covenants, the Credit Market, and Corporate Governance”, p. 16, considera os

mencionados buyouts como a origem do crescimento dos syndicated loans: “The leveraged buyout wave of the mid-1980s prompted the

growth of syndicated loans as a lower cost means to raise debt capital, as well as the creation of a secondary market for the trading of

loans. In a syndicated loan, one or more “lead banks” negotiate the terms of the loan with the borrower and sell portions to others at the

time of origination.”.

23

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juro, e reflectem o risco mais elevado; e as obrigações de alto rendimento / risco (high‐

yeld/junk bonds), cujo respectivo rating é inferior ao investment grade26.

É destacado pela doutrina27 um instrumento alternativo que é também utilizado a nível

de leveraged finance, e em particular nas leveraged buyouts, a que se dá o nome de dívida

mezzanine ou dívida in between. Trata-se de uma forma de financiamento subordinado

ocorrendo a sua restituição após o reembolso de todas as tranches da dívida senior

(empréstimo clássico) com um prazo alargado. Os instrumentos que estipulam a dívida

mezzanine contêm cláusulas que permitem que o capital (também os juros, eventualmente)

seja restituído apenas depois do cumprimento de algumas ou de todas as outras dívidas da

sociedade financiada, contendo taxas de juro superiores àquelas que seriam cobradas num

mútuo standard (não subordinado), como forma de compensação do credor pela

subordinação conferida ao devedor.

A expressão dívida in between prende-se com o facto de ser uma forma de financiamento

de “quase capitais próprios”, situando-se entre o financiamento por capitais próprios e o

financiamento por capitais alheios. Assim o é porque, para aumentar a atractividade do

investimento, são convencionadas opções de compra28 de acções (call options) e direitos de

conversão (conversion rights), que conferem a possibilidade ao credor em participar em

aumentos de capital da sociedade por si financiada.

Existe ainda um incentivo adicional ao financiador, para além do juro, a que se dá o nome

de kicker. Este pode surgir de diversas formas: através de um direito de subscrição ou opção

(warrant) de obrigações, seja através de uma opção "virtual" que defina uma as‐if‐

participation, designada virtual equity kicker ou phantom warrant ou ainda através de um

direito de conversão da dívida em capital (debt‐equity swap) designado equity kicker,

podendo ainda convencionar-se o pagamento de um prémio no vencimento.

26 Significa “grau de investimento”, o qual se traduz numa recomendação de investimento, facultado por agências de rating, e que

é respectivamente atribuído às entidades emissoras que possuam uma classificação da sua notação de rating em valor igual ou superior a

um grau médio-baixo. Por exemplo: “Bond rating firms, such as Standard & Poor's, use different designations consisting of upper- and

lower-case letters 'A' and 'B' to identify a bond's credit quality rating. 'AAA' and 'AA' (high credit quality) and 'A' and 'BBB' (medium credit

quality) are considered investment grade...” in http://www.investopedia.com/terms/i/investmentgrade.asp#ixzz3g4dVR6Sc. Ratings com

designações 'BB', 'B', 'CCC', etc., são considerados ao invés non‐investment grade, comummente apelidados de junk bonds. 27 Vide novamente OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, obs. cit. 28 São instrumentos financeiros derivados por na Bo se tratarem de valores mobiliários per se, mas serem antes “derivados” de

outro(s) valor(es), i.e., do activo subjacente. “...A opção representa um direito, mas não uma obrigação, em adquirir ou dispor de um bem

ou a celebrar um contrato em data futura.”, ensina-nos CÂMARA, PAULO, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, p. 191.

24

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A possibilidade dos credores governarem as sociedades por si financiadas é igualmente

patente nas aquisições de dívida de alto risco (distressed debt), que mais não é do que um

empréstimo feito directamente a uma sociedade que apresente elevados risco de

incumprimento. Estes mútuos têm elevadas taxas de juros – por forma a atrair as injecções

externas de capital – e cláusulas contratuais que, em caso de incumprimento dos

empréstimos, atribuem poderes de controlo da sociedade financiada ao credor. Geralmente

estas aquisições de distressed debt é feita por uma valor inferior ao respectivo valor

nominal, com descontos que podem chegar até aos 80%, e têm estratégias de curto prazo

que implicam, em princípio, a revenda da dívida, assim como estratégias de longo prazo, que

podem obrigar o credor a aguardar o vencimento da dívida ou ainda traduzir-se no exercício

do poder de influência do credor para obter a aquisição de capital em troca de dívida (debt‐

for‐equity exchange).

A aquisição de distressed debt possibilita assim enormes oportunidades de controlo

efectivo dos credores (tendencialmente mais sofisticados) das sociedades financiadas,

remetendo para segundo plano o (tendencialmente esperado) domínio societário dos equity

holders.

Nas insignes palavras Ana Perestrelo de Oliveira (2015): “...a verdade é que se torna

necessário encontrar mecanismos de responsabilização dos credores controladores. A

influência que estes podem levar a efeito sobre a administração (e eventualmente sobre os

próprios accionistas) (...) de tal maneira (...) que seria incompressível que não se procurasse

regular a forma e os limites da sua ingerência na sociedade controlada nos termos paralelos

aos que regem a actuação do sócio (...) na necessidade de construir uma “corporate

governance externa” – a que certo autores chamam de “governo da dívida” ou debt

governance29 – i.e., de definir regras de governo das sociedades que se reportem também a

estes outsiders que se convertem, afinal, em insiders.”.

2.2. Os covenants

Como já foi sucintamente referido supra, nos contratos de financiamento das empresas

surgem muitas das vezes cláusulas que, não respeitando especificamente os montantes dos

29 Como o faz DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance): o terceiro poder”, p. 380.

25

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capitais mutuados, os juros aplicáveis, ou os prazos de vencimento dos empréstimos, vêm

erigir às partes obrigações secundarias/acessórias – onerando em especial as empresas

financiadas, sendo impostas principalmente pelos financiadores mais

sofisticados/especializados (p. ex.: bancos de investimento)30 –, que se relacionam com os

empréstimos contraídos, sim, mas que impõem deveres de conduta muitas das vezes tão

significativos, para quem está obrigado a respeitá-los, que a sua dimensão

secundária/acessória quase se desvanece perante a importância que assumem no

quotidiano da gestão da dívida da empresa financiada.

Estas cláusulas, denominadas de covenants31, permitem aos financiadores externos

salvaguardarem as suas posições enquanto credores perante as sociedades por si

financiadas uma vez que impõem a condução dos assuntos societários das sociedades

financiadas por aqueles32, e das mais variadas e criativas formas33.

Assim, a probabilidade destes financiadores externos verem seus empréstimos pagos

pelas sociedades financiadas – atempadamente e na íntegra –, é progressivamente maior

quanto mais forem os deveres de conduta a que as sociedades financiadas estejam adstritas,

e quanto mais apertados esses deveres forem, mormente, possibilitando a o controlo das

mesmas por parte de quem as financia.

30 Cfr. OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, pp. 128 e ss.; e “Os credores e o governo societário: dever de

lealdade para os credores controladores?”, pp. 98 e ss. 31 Para uma análise feita sob o prisma da estipulação de covenants como salvaguarda dos interesses de credores obrigacionistas

em contraposição dos acionistas da sociedade financiada, assim como do conflitos de interesses consequentes entre aqueles, vide CÂMARA,

PAULO, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, pp. 154 e ss.

Os covenants são muitas vezes inseridos em contratos de investimento cujas transações têm como cenários operações de

fusões / aquisições de empresas. Conjeturando alguns exemplos de covenants aplicados naquelas operações, vide também CÂMARA, PAULO

(Coord.) et al., Aquisição de Empresas, pp. 47-48. 32 Cfr. YADAV, YESHA, The New Market In Debt Governance, p. 22 e ss., “...Lenders enjoy extraordinary access to information on

corporate borrowers, often, scholars note, at levels equivalent to that of directors. In a literal and notional sense, lenders have a seat at the

boardroom table. Loan covenants are tightly drafted: unsurprisingly, failure to comply is common, even expected, irrespective of how

creditworthy a borrower may be. Mostly, such legal trip-wires offer an opportunity for borrowers and lenders to renegotiate loan terms,

allowing lenders to make suggestions regarding the borrower’s management, governance and capital allocation arrangements. Scholars

report that violations of financial covenants are often followed by sharp falls in capital expenditures, acquisitions, sell-offs of plant and

property, shareholder payouts and changes in company management. Sometimes, negotiation can prompt a relaxation in loan terms…”. 33 Cfr. YADAV, YESHA, ob. cit, p. 23, “...Private debt can carry tougher covenants, negotiated between a smaller group of investors

and an issuer. Such covenants are usually designed as negative clauses to limit the ability of a borrower in the scope of its activities. For

example, such restrictions include those on the ability of a company to borrow more money, undertake asset sales, acquire new businesses

or declare dividends that divert wealth from bondholders…”.

26

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Em particular, quer em empréstimos individuais, quer em empréstimos sindicados, os

disseminados covenants, com origem no espaço anglo-americano, permitem aos credores

determinar contratualmente a condução dos assuntos sociais dos respectivos devedores,

atribuindo-lhes por seu lado, nas situações de incumprimento, espaço para renegociarem

um controlo ainda mais intenso dos devedores confrontados com dificuldades financeiras.

Nesta última hipótese, os credores controladores ocupam a posição central no governo

societário.

Os covenants – que são geralmente tipificados como positivos ou negativos, consoante

envolvam imposições ou proibições para o devedor – podem incluir:

− limitações aos níveis de endividamento da sociedade;

− restrições ao pagamento de dividendos;

− cláusulas negative pledge34;

− limitações à faculdade da sociedade dispor dos seus activos ou de efectuar mudanças

significativas na natureza dos seus negócios;

− proibição de fusões, restrições ao investimento, às transacções com filiais, etc35.

Sistematizadamente, a doutrina36 distingue como cláusulas típicas as seguintes:

i. cláusulas relativas ao fornecimento de informação (reporting covenants), que

exigem ao devedor a entrega de cópias dos documentos de prestação de contas e

34 Nas palavras de VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, pp. 647 e ss., “O devedor obriga-se a não onerar os

bens que constituem o seu património, sem o consentimento do beneficiário da cláusula. Não poderá desta forma constituir outras

garantias reais (ou pessoais) a favor de terceiros credores. Não poderá igualmente recorrer aos outros mecanismos de reforço qualitativo,

em vez das garantias reais, como a alienação em garantia ou o reporte. Podem as partes, porém, acordar excepções, permitindo em certos

termos a constituição de garantias. O incumprimento terá as consequências contratualmente previstas, em particular o vencimento

imediato da obrigação do devedor face a esse credor. O que se visa é evitar que através da concessão de outras garantias o credor veja o

património do devedor onerado, o que tem relevo, em especial se a sua garantia for insuficiente. Em segundo lugar, como a concessão de

crédito se faz contra garantias, e estas só podem ser contraídas com o sentimento do beneficiário da cláusula, este consegue de alguma

forma ir controlando a evolução da situação patrimonial da outra parte. Esta figura não tem qualquer efeito de tutela do credor no caso de

insolvência do devedor e, mesmo sem ser nesta fase, o seu significado como reforço da posição do titular do crédito é muito reduzido. Tem

meramente um efeito compulsório sobre o devedor, dadas as consequências do incumprimento da obrigação, em especial se estiver

articulada com uma cláusula cross default.” De forma a aprofundar, vide DIAS, JOANA PEREIRA, “Contributo para o estudo dos atuais

paradigmas das cláusulas de garantia elou segurança: a pari passu, a negative pledge e a cross default”, pp. 879-1029. 35 Esclarece-nos OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, p. 129, que “Estas cláusulas são tendencialmente mais

restritivas nos contratos de empréstimo do que na emissãoo de obrigações, já que, nestes casos, seria mais difícil obter o consentimento

de um número elevado e disperso de grupos de investidores para a renogiação das cláusulas...”. 36 Remete-se para OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, ob. cit., cujo esforço de enunciação dos vários tipos de cláusulas é integralmente

seu.

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outros documentos necessários para a monitorização da actividade da sociedade,

bem como a comunicação de eventos relevantes (p. ex., modificações na

estrutura accionista; factos que possam por em risco a satisfação do crédito:

material adverse change‐clause);

ii. cláusulas tendentes a garantira solvência da sociedade (financial covenants),

nomeadamente assegurando que esta é capaz de pagar imediatamente a dívida

(cash‐flow solvency), o que implica que os bens excedam, razoavelmente, as

responsabilidades (working capital covenant) e que exista solvência também em

sentido contabilístico (tangible networth covenant);

iii. cláusulas proibindo a disposição de bens sociais, (disposal of assets covenant),

incluindo reafectações intragrupo (p. ex., transferência de bens da sociedade-

mãe devedora para outras sociedades do grupo);

iv. cláusulas que visam preservar a identidade da sociedade devedora durante a

vigência do empréstimo (change of business covenant).

v. cláusulas que proíbem a alteração da estrutura de propriedade da empresa

(ownership clause) e, bem assim, no caso de recuperação informal da empresa,

que determinam modificações ao nível do órgão de gestão;

vi. cláusulas que impedem a constituição de novas garantias (as já supra referidas

negative pledge covenant);

vii. cláusulas que prevêem o vencimento da obrigação em caso de incumprimento

(events of default), incluindo o não pagamento da dívida ou a violação de outra

obrigação contratualmente estabelecida com o credor, valorando-se

frequentemente também comportamentos das filiais, no caso de a sociedade

devedora ser uma holding; por vezes atribui-se relevância a situações de

"incumprimento cruzado", surgindo, assim, hipóteses em que o incumprimento

de outras obrigações financeiras da sociedade (perante terceiros) permite

considerar que houve incumprimento do covenant (cross‐default)37. Regra geral,

37 Novamente nas palavras de VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, ob. cit., pp. 647 e ss., “Nos termos desta cláusula, verificando-se

um event of default previsto num outro contrato (geralmente, o incumprimento da prestação principal; mas não só), que permita ao credor

exigir de imediato a prestação ("acelerando" pois o referido contrato), o credor que beneficie dela (que a tenha incluído no seu contrato)

pode também provocar de imediato o vencimento imediato da obrigação emergente do seu contrato com o devedor. Portanto, o

incumprimento de um contrato (ou melhor, a verificação de um event of default) tem efeitos imediatos, por força da cláusula cross default,

28

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a antecipação do vencimento do empréstimo não surge como consequência

automática e não é, na prática, feita actuar pelo credor (que concede um waiver),

que, utiliza antes o incumprimento para renegociar o covenant em termos que

mais intensamente favorecem o respectivo controlo da sociedade.

É inequívoca a importância da análise do tema no âmbito de investigação incidente sobre

o controlo interempresarial e os problemas que resultam da empresa controladora e os da

empresa controlada, como a teoria da agência aplicada aos covenants. A doutrina38 justifica

com a teoria de agência o facto de estas cláusulas estarem espacialmente inseridas nos

empréstimos obrigacionistas, explicando que, com o conflito de interesses axiologicamente

existente entre equity holders e os bond holders – e com a premissa de que a administração

tende a agir no interesse dos equity holders, nomeadamente através da distribuição de

lucros – vêm as mesmas colmatar os riscos de comportamentos lesivos aos interesses

obrigacionistas, com o convénio de constrangimentos à administração da sociedade.

A influência sobre a administração pode tornar-se ainda mais proeminente quando existe

a violação dos acordos de financiamento e dos respectivos covenants, o que acontece nos

denominados debt‐equity swaps.

No que concerne à licitude dos covenants que directa ou indirectamente atribuem o

controlo de uma sociedade a uma entidade outsider, atendendo às normas e princípios

em outro ou outros contratos com outros (ou com o mesmo) credores. Provoca assim um "efeito dominó" sobre todas as relações

contratuais entre esses sujeitos. Pode ainda dar lugar ao funcionamento de cross default não só o incumprimento do devedor, mas

também de sociedades por ele detidas. Esta cláusula traduz um reforço da posição do credor pelo seu carácter compulsório. Efetivamente,

o incumprimento do devedor pode provocar - uma vez que o credor que beneficie desta cláusula poderá, ou não, exigir o cumprimento

imediato da obrigação (podendo mesmo utilizar este direito para renegociar, a sua favor, esse contrato) –, vencimento da generalidade (ou

de grande parte) das obrigações do devedor. O que significa que este se incumprir fica numa posição de grande debilidade. A pressão para

não o fazer é muito grande e esse é o cerne da tutela do credor. Acresce que o incumprimento de uma obrigação quando possa dar lugar,

em virtude da inserção deste tipo cláusulas, ao vencimento de outras ou da generalidade das obrigações do devedor constitui certamente

um "sinal de alarme" para os credores que delas beneficiem, em particular de uma eventual situação de insolvência ou quase insolvência

desse devedor. Mas, como é óbvio, ela é particularmente perigosa para o devedor (sendo esse perigo maior ou menor de acordo com a

definição negocial dos events of default) se articulada com outras cláusulas de cross default noutros contratos com ele celebrados, uma vez

que um único incumprimento, ou outro event of default, pode conduzir ao seu colapso, se todos os seus outros credores, que beneficiem

desta cláusula, "acelerarem" os seus contratos. Uma última nota para sublinhar que estas cláusulas são frequentemente usadas pelos

bancos. Ora estes, em regra, servem-se de cláusulas contratuais gerais. Quando assim for, esta cláusula com o específico conteúdo (em

particular nas suas versões mais abrangentes) que lhe for conferido precisa de passar pelo crivo do Dec. Lei n.º 446/85.”. Para mais

aprofundar, vide novamente DIAS, JOANA PEREIRA, ob. cit., pp. 879-1029. 38 Vide, OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate Finance, p. 131 e ss., invocando Ferran, Eilís. Para uma abordagem

aprofundada no que toca aos problemas de agência resultantes da gestão de vários tipos de activos, vide ALBUQUERQUE, CARLOS A. TORROAES,

Gestão de ativos – Assimetria de informação e perspetivas dos diversos tipos de entidades.

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jurídico-societárias vigentes, é desde logo importante referir que o CSC não é especialmente

permeável a permitir a deslocação do poder de direcção dos assuntos sociais das

sociedades. Aliás, nas sociedades anónimas o princípio da independência é tão forte que

nem os accionistas podem dar instruções à administração, assim como nos acordos

parassociais39 existem restrições relevantes no que toca à possibilidade de constranger a

conduta dos membros dos órgãos de administração (cf. Artigo 17., n.º 2, do CSC).

Todavia, apesar do que foi imediatamente dito atrás, o nosso ordenamento jurídico

considera-os lícitos desde que não extravasando os limites da autonomia privada. Mas,

como eloquentemente refere Ana Perestrelo de Oliveira (2015), a licitude deste tipo de

covenants não significa que deva ser esquecida a necessidade da efetuar a “...descoberta de

meios que limitarem o poder de credores controladores e que eventualmente os

responsabilizem. A influência que estes podem levar a efeito sobre a administração o e

eventualmente sobre os próprios acionistas) faz com que a sua posição se aproxime de tal

maneira da do acionista controlador que seria incompressível que não se procurasse regular

a forma e os limites da sua ingerência na sociedade controlada em termos paralelos aos que

regem a atuação do sócio.”.

Veja-se por exemplo as situações em que o financiador é credor de várias sociedades

simultaneamente e exerce influência em sentido desfavorável a uma sociedade, e

favoravelmente a outra sociedade financiada, ou pense-se em casos que a sociedade

financia uma sociedade sua fornecedora e utiliza o poder de influência para impor preços de

transferência.

Os deveres de informação do sócios e de determinados stakeholders, a eventual

necessidade de consentimento daqueles para a celebração de covenants – em particular

quando a sociedade devedora se integre num grupo – ou a responsabilidade do credor

perante a sociedade, os sócios e credores, interpretado sob a matriz dos deveres de

lealdade, são potenciais respostas ao problema em apreço.

Toda esta problemática tem sido já equacionada, ao longo dos anos, pelos autores anglo-

saxónicos, os quais têm levantado a questão do grau de controlo exigível para a colocação

39 Para uma análise detalhada e atualizada sobre as restrições e proibições respeitantes à regulação da atuação dos órgãos da

administração por meio de acordos parassociais, vide MORAIS, HELENA CATARINA SILVA, Acordos Parassociais – Restrições em matéria de

administração das sociedades, pp. 33 e ss.

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dos credores controladores numa posição equivalente à dos accionistas. Para esses autores,

embora os deveres provenham, habitualmente, da titularidade de participação social

controladora, podem igualmente derivar do poder económico do mutuante sobre o devedor

incumpridor. Mas alertam que não é suficiente que o credor pressione o devedor para

melhorar as condições contratuais a seu favor utilizando a ameaça de recusar futuros

empréstimos; etc. Isto porque a “a capacidade [do devedor] para determinar a obediência

do devedor à sua política [deve ser] de tal maneira que exista, em alguma medida, uma

fusão de identidades”40.

Em síntese, e como temos vindo a dizer até aqui, os contratos de financiamento

possibilitam – no panorama actual do financiamento societário –, uma influência notável por

parte das entidades financiadoras na administração das sociedades, que a influência dos

financiadores pode chegar a ser tal, que em alguns casos, como doutamente refere Ana

Perestrelo de Oliveira (2015), chegam mesmo a ser “…administradores de facto da

sociedade devedora…”.

2.3. Os derivados de crédito (credit default swaps – CDS)

Ainda que já tenhamos falado supra – dentro da temática da leveraged finance –, nos

denominados debt‐equity swaps (os quais são igualmente derivados), falaremos em especial

aqui nos CDS dado seu especial interesse para o tema em apreço.

Estes instrumentos financeiros (os CDS41) visam a transferência do risco de crédito: o

«comprador de protecção» transfere para o «vendedor de protecção» o risco de

incumprimento de determinado crédito, mediante o pagamento de um prémio. Ocorrendo

um evento de crédito, dá-se a liquidação, normalmente por pagamento de soma pecuniária

(liquidação financeira) ou através da entrega do activo subjacente (liquidação física)42.

Já vimos que as sociedades podem sofrer uma influência directa pelos seus financiadores,

mas pode ocorrer igualmente uma influência intrusiva por parte de terceiros que, não sendo

40 BUDNITZ/CHAITMAN, The law lender liablity, 7‐18, cit. indiretamente por OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Manual de Corporate

Finance, p. 139. 41 “...São típicos contratos e balcão (OTC), ou seja, são derivados negociados fora de mercado... O ativo subjacente deste tipo de

derivado que é crédito pode ser, entre outros, um empréstimo, títulos representativos de dívida, leasings financeiros, ou mesmo, outros

derivados de crédito...”, Cf. anotação ao artigo 2.º, n.º 1, al. c) do CVM, por MORAIS, JORGE ALVES e LIMA, JOANA MATOS, CVM Anotado, p. 58. 42

Vide OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, Ob. Cit., p. 185.

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financiadores da directos da sociedade posicionam-se de tal forma nessa relação creditícia,

que faz com que adquiram um poder reflexo muito importante sobre a sociedade

financiada, por via, igualmente, do poder detido sobre o financiador. Assim acontece

quando os financiadores contratam instrumentos de protecção do crédito concedido à

sociedade com terceiros (os CDS). A compra pelo financiador de uma sociedade de um

derivado de crédito a um terceiro tem um efeito principal de transferência do risco de

crédito para o vendedor do instrumento de protecção do crédito (hedger). Este, sendo

juridicamente alheio à relação principal de crédito, adquire, por força da venda daquela

protecção, uma posição económica e jurídica permeável a vicissitudes da sociedade

financiada e da relação de crédito por ela estabelecidas com o seu financiador, por sua vez

contraparte do terceiro na relação de cobertura, na medida em que qualquer evento de

crédito se repercute, por força do CDS, na sua esfera. Assim, o originador do CDS adquire,

com a sua venda, um incentivo ao envolvimento activo na gestão da sociedade financiada

pela sua contraparte no contrato de derivado de crédito. Estamos perante uma novidade na

gestão do risco de crédito, na medida em que se separa o risco económico de um

empréstimo – que é assumido pelo vendedor do CDS, e não pelo financiador directo – dos

riscos jurídicos do incumprimento.

Esta dissociação induz um forte incentivo à negociação informal, entre o financiador e a

sua contraparte no derivado de crédito, da repartição entre eles dos direitos e da influência

que resultam do contrato de crédito subjacente, já que a parte que vende a protecção tem

todo o interesse em adquirir para si uma parte do poder de controlo sobre o crédito, de

modo a melhor gerir o seu risco.

A transferência para esta contraparte, através de negociações informais de uma parte do

poder de influência sobre o crédito e sobre a gestão, o governo e a estratégia da sociedade

devedora permite por sua vez ao financiador obter a protecção através de um derivado de

crédito por um preço reduzido, incentivando-o nessa medida a transferir para a contraparte,

para além do risco de crédito, algum desse poder de influência sobre a sociedade devedora.

A contratação de derivados de crédito, com a transferência do risco para a contraparte do

financiador, pode conduzir a fenómenos de empty creditor, i.e., como o credor transfere

para terceiro o risco de incumprimento, deixa de ter interesse no exercício dos seus direitos

de controlo (credor vazio); o titular oculto do crédito (titular material mas não formal), que

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efectivamente corre o risco de incumprimento, não dispõe dos poderes de controlo, o que

levanta problemas de governo da dívida (debt governance).

Ora, este fenómeno de grande risco pode levar a contraparte do credor a negociar com

este último alguns mecanismos informais de influência na gestão do contrato de crédito

subjacente ou da própria sociedade devedora. Esta partilha da influência com a contraparte

atribui vantagens ao credor, que com ela obtém habitualmente uma redução no preço do

CDS ou uma ampliação dos termos da protecção, mas interessa na mesma ou em maior

medida à sua contraparte, que com ela obtém uma capacidade real de interferência

estratégica na gestão da sociedade devedora (p. ex., instruindo o credor sobre a forma de

influenciar as decisões sobre distribuição de dividendos, atribuição de activos da sociedade

em garantia de dívidas assumidas pela mesma, etc.), que lhe permite uma melhor gestão da

sua exposição ao risco de crédito (Gabriela Figueiredo Dias (2014)).

A standardização de cláusulas (aliada à transparência das mesmas) podem ser benéficas

na celebração destes instrumentos. Para tanto que a International Swaps and Derivatives

Association, Inc. (ISDA) concebeu um MASTER CREDIT DERIVATIVES CONFIRMATION

AGREEMENT, por forma a facilitar a utilização de derivados de crédito em todo o mundo

(vide Anexo A).

2.4. Os contratos de garantia financeira (CGF)

O quadro normativo actual dos CGF 43 traçou, aquando do início da sua vigência,

objectivos de limitação dos riscos sistémicos e de criação de condições para o aumento da

liquidez nos mercados financeiros.

O regime jurídico prevê a possibilidade do credor (beneficiário) poder dispor da coisa

dada em garantia pelo devedor – até mesmo instrumentos financeiros44 –, desde que assim

43 DL n.º 105/2004, de 8 de Maio (o qual transpôs a Directiva n.º 2002/47/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de

Junho), alterado que foi pelo DL n.º 85/2011, de 29 de Junho (o qual transpôs a Diretiva n.º 2009/44/CE do Parlamento e do Conselho de 6

de Maio). Para um leitura aprofundada do regime, vide TEIXEIRA, FLÁVIA DANIELA VAZ, Penhor de direitos em garantia de créditos

bancários. 44 Os quais poderão ser valores mobilia �rios, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos relativos a

quaisquer dos instrumentos financeiros referidos (cf. artigo 5.º, n.º 1, alínea b) do DL n.º 105/2004, de 8 de Maio.

33

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seja convencionado pelas partes45. Isso significa que o credor da relação obrigacional

subjacente ao CGF poderá alienar ou onerar a coisa prestada em garantia pelo devedor, nos

termos do contrato, como se fosse proprietário, dando a possibilidade ao credor de alienar,

utilizar ou até emprestar a coisa prestada em garantia.

Até aqui é já patente que este regime oferece aos financiadores condições singulares para

se verem garantidos (e até mesmo custeados) pelos créditos que tenham concedido a

sociedades. Mas existem outros aspectos que aprofundam mais ainda as condições

privilegiadas de garantia dos credores, em detrimento (quiçá) de outros stakeholders – em

especial, outros credores não tão sofisticados – da sociedade financiada (contraparte do

CGF).

Assim o dizemos uma vez que, em matéria de liquidação e saneamento, e � estatuído um

regime excepcional que afasta o regime geral do CIRE46. Os CGF’s têm uma validade

bastante “blindada” perante impugnações de outros eventuais credores da sociedade

devedora, porque é desde logo afastada a possibilidade de resolução desses contratos, em

benefício da massa, com fundamento apenas na sua celebração num determinado lapso

temporal anterior à data do início do processo de insolvência da sociedade devedora (o que

tem carácter excepcional ao estatuído no artigo 121.º, n.º 1, alíneas c) e e) do CIRE).

Mais, em de caso de incumprimento, e mesmo que a coisa dada em garantia faça já parte

da massa insolvente – na eventualidade de insolvência da sociedade devedora –, o

credor pode executar a garantia isoladamente, devendo o administrador da

insolvência entregar o valor em dívida ao credor. Note-se que cabe ao credor a

liquidação do bem que fora dado em garantia, e naBo ao administrador de insolvência.

Além disso, nos termos do artigo 20.º do DL n.º 105/2004, de 8 de Maio, o vencimento

antecipado e a compensação naBo são prejudicados:

i. pela abertura ou prossecução de um processo de liquidação relativamente ao

prestador ou ao beneficiário da garantia;

45 Pelo menos uma das partes deverá ser uma entidade pública, um banco central ou outro organismo financeiro

internacional, instituicões sujeitas a supervisão prudencial, uma contraparte central, um agente de liquidação ou uma camara de

compensação, sendo que a outra parte do contrato deverá ser uma pessoa colectiva. 46 Vem aliás previsto no n.º 2, do artigo 16.º do CIRE que “o disposto no presente Código não prejudica o regime

constante de legislação especial relativa a contratos de garantia financeira”.

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ii. pela adopção de medidas de saneamento relativamente ao prestador e ou

beneficiário da garantia;

iii. iii) pela cessão, apreensão judicial ou actos de outra natureza nem por qualquer

alienação de direitos respeitante ao beneficiário ou ao prestador da garantia.

O presente regime não está concebido para credores menos sofisticados – a intervenção

de entidades como p. ex. instituições de crédito é aliás exigida pela lei – mas com a

simplificação e concessão de uma matriz ainda mais garantística aos credores,

consequentemente haverá ainda maior possibilidade de influência relevante e directa na

governance da sociedade devedora (contraparte do CGF), a qual poderá mesmo resultar

num efectivo domínio externo por parte do credor se estiverem, p. ex., contemplados

covenants disciplinadores na relação creditícia que serviu originariamente de base à

celebração do próprio CGF.

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3. O governo dos credores perante o sistema jurídico-societário vigente

3.1. As lacunas patentes

A aptidão dos covenants em possibilitarem o domínio dos credores (externos) sobre a

administração das sociedades por si financiadas, e até mesmo sobre os seus equity holders,

levanta necessidades de regulamentação das formas e dos limites em que esse

domínio/controlo – tão equiparável ao equity holder controlador (por vezes até maior, como

já se viu) – é exercido.

Todavia, o legislador nacional imiscuiu-se de o fazer até à data. Como é evidenciado por

Ana Perestrelo de Oliveira (2009): “Simplesmente, o controlo de tipo económico não é

reconhecido como fonte de relação de domínio à luz do Código das Sociedades Comerciais e,

ainda que se integrasse no artigo 486.º [do CSC]47, ficaria por resolver o problema da

protecção da sociedade controlada, dos seus accionistas e dos restantes credores da

sociedade, dado o carácter lacunar que o sistema português de grupos de sociedades

apresenta, em resultado da estratégia da regulação seguida.”.

O sistema normativo português de grupos de sociedades, aquando da abordagem da

Autora em 2009, ressalvava apenas os deveres de publicitação e de comunicação e a

proibição de aquisição de participações (artigos 486.º, n.º 3; 487.º; 325.º-A e 325.º-B,

respectivamente, todos do CSC), e não associava um regime jurídico específico à situação de

domínio, havendo assim lacunas patentes.

47 “Artigo 486.º (Sociedades em relação de domínio)

1 - Considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, dita dominante, pode exercer,

directamente ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, sobre a outra, dita dependente,

uma influência dominante.

2 - Presume-se que uma sociedade é dependente de uma outra se esta, directa ou indirectamente:

a) Detém uma participação maioritária no capital;

b) Dispõe de mais de metade dos votos;

c) Tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização.”.

3 - Sempre que a lei imponha a publicação ou declaração de participações, deve ser mencionado, tanto pela sociedade

presumivelmente dominante, como pela sociedade presumivelmente dependente, se se verifica alguma das situações referidas nas alíneas

do n.º 2 deste artigo.”.

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O controlo que resulta da detenção de participações sociais ou de contrato de domínio

permitindo dirigir a administração e as operações de diversas sociedades – pode ser atingido

de outras formas igualmente eficientes (p. ex., contratos de franquia; contratos de licença;

etc.), também capazes de criar situações de subserviência.

Mas os contratos de financiamento são instrumentos especialmente idóneos à atribuição

de um controlo fáctico por parte dos financiadores, sobre as sociedades financiadas,

semelhante ao que acontece nos grupos de facto (de sociedades), aos quais o direito

societário português é inaplicável.

Bem salienta Ana Perestrelo de Oliveira (2009)48, com o que não conseguimos discordar,

que é necessário “... procurar mecanismos de tutela da sociedade e, bem assim, dos seus

sócios, credores e outros stakeholders alternativos ao Direito legislado.”.

3.2. Os potenciais mecanismos de tutela

Como já foi dito, não existem mecanismos específicos de protecção dos interesses

afectados pelo controlo exercido pelos credores, à luz do sistema jurídico-societário positivo

vigente.

Resta apelar aos princípios gerais do Direito das Sociedades e do Direito Civil, partindo da

proximidade / equivalência entre a posição do credor e a do sócio/accionista, devendo além

disso, segundo Ana Perestrelo de Oliveira (2009)49, “...ficar sujeito a deveres acrescidos em

relação àqueles que resultam do mandamento genérico do neminem laedere. A posição dos

credores controladores em face da sociedade ultrapassa com clareza, na realidade, a

intensidade própria do contacto anónimo e ocasional que caracteriza a área delitual. A

intensidade do poder de influência de que dispõem os credores nas constelações em estudo

torna premente a ponderação da susceptibilidade de afirmar a sua vinculação a deveres de

lealdade tipicamente societários, entendidos estes – importa notar – como decorrência do

princípio geral da boa fé.”.

Para a mesma Autora não há razão para não fazer derivar os deveres de lealdade

societários dos deveres de boa fé, sendo irrelevante para o efeito, se o controlador é

48 Descortinado o problema, e com sugestões de soluções à luz das normas positivas, por OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, “Os credores

e o governo societário: dever de lealdade para os credores controladores?”, pp. 111 e ss. 49 Remete-se novamente para OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, ob. cit., pp. 119 e ss.

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simultaneamente sócio ou não. Assim o é porque existe uma ligação especial entre credor

controlador e sociedade controlada (empresa devedora), equivalente (em termos

quantitativos e qualitativos) àquela que liga accionista controlador e sociedade controlada,

fundamentando deveres de lealdade paralelos. Não é o simples facto do financiamento mas

o poder de influência adquirido que justifica a imposição de deveres de lealdade aos

credores sociais.

Adianta também a Autora que para “tanto não é suficiente, todavia, que o credor

pressione o devedor no sentido de melhorar as condições contratuais a seu favor utilizando

a ameaça de recusar futuros empréstimos; também não basta qualquer «medida de

controlo dirigida a proteger as garantias do crédito»... A capacidade do credor para

determinar a obediência do devedor à sua política deve ser de tal maneira arrebatadora que

tenha existido, em alguma medida, uma fusão de identidades» ”.

Por estas razões, o princípio da boa fé surge como mecanismo de tutela perante o poder

de domínio de que dispõe o credor, determinando a vinculação do mesmo a deveres de

lealdade tipicamente societários, nomeadamente ao nível (preventivo) da limitação do seu

poder fáctico de instrução da sociedade controlada e ao nível (ressarcitório) da sua

responsabilização perante a sociedade e restantes credores sociais.

Dada a manifesta possibilidade de governo que os credores podem assumir, equacionar a

possibilidade de configurá-los como “administradores de facto” das sociedades suas

devedoras em determinados casos (quando a intensidade de controlo assim o exija), não

parece de forma alguma desajustado. E ainda que na maior parte dos casos não se possa

seguir esta via, não deixa de ser necessário encontrar-se mecanismos de responsabilização

dos credores controladores, como o que já acontece nos EUA com o instituto da lender

control liability50.

50 Cf. OLIVEIRA, ANA PERESTRELO DE, ob. cit., p. 96.

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4. O governo dos credores perante o sistema de Corporate Governance actual

4.1. As lacunas patentes

Em decorrência de tudo o supra exposto, é manifesto que a corporate governance actual,

seus mecanismos e até modelos, não são suficientemente aptos a responder aos desafios

erigidos pela crescente influência, e até mesmo domínio, dos credores e das suas

contrapartes em, p. ex., contratos de derivados de crédito ou outros com idêntica função

económica.

Com o aumento da dependência das empresas perante os escassos fluxos de

financiamento disponíveis, e com a crescente sofisticação dos acordos e das relações de

financiamento, é bastante certo que os credores passarão a ter uma influência cada vez mais

decisiva na vida da sociedade — repetimos, mais decisiva até do que a influência dos seus

proprietários (equity holders).

Adverte por isso Gabriela Figueiredo Dias (2014) que é desde logo necessário conceber os

instrumentos de governance adequados, designadamente de transparência – para que as

vantagens assinaladas que podem decorrer, para os accionistas e para a sociedade, da

situação de privilégio ou poder em que os financiadores se colocam perante as sociedades

financiadas –, possam ser efectivamente utilizadas em benefício dos sócios/accionistas e da

sociedade, e não possam antes servir contra eles.

Devem ser ponderados mecanismos de protecção dos equity holders em relação ao poder

dos credores, ou pelo menos de mitigação da sua capacidade de interferir na estratégia e na

gestão da sociedade financiada. Basta, p. ex., pensar na actual inexistência de instrumentos

para gerir efeitos e obrigações de stand still, de tag along e de drag along que afectam a

livre transmissibilidade das acções em termos censurados aos accionistas mas consideradas

normais ou livres quando impostas a alguns accionistas pelos contratos de financiamento da

sociedade e sem que os accionistas tenham conhecimento das mesmas.

Os mecanismos tradicionais de exit ou voice funcionam de modo diferente para os

accionistas e para os financiadores da sociedade: a possibilidade de usar o mecanismo de

saída (exit) como concretização do desacordo ou desconfiança dos accionistas em relação ao

modo de gestão ou do governo da sociedade é, para os credores e em especial para os

39

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titulares de instrumentos de dívida emitidos pela sociedade, muito reduzida, por força da

fraca liquidez do mercado secundário de dívida corporativa (Gabriela Figueiredo Dias

(2014)).

E já anteviam Triantis e Daniels (1995) uma questão interessante: “...Embora o exercício

do mecanismo de exit seja uma opção interessante para os stakeholders cuja saída implique

custos baixos, nem todas vão optar, ou ser capazes, de sair. A saída de alguns dos

stakeholders pode induzir aos restantes stakeholders, ou a novos potenciais stakeholders, o

desejo de exercer ao invés o mecanismo de voice ... Esses stakeholders podem fornecer o

apoio financeiro para a continuação da empresa e o exit do credor pode ser o catalisador

para a intervenção daqueles [novamente ou ex‐novo] na gestão da empresa.” (a tradução é

nossa)51.

4.2. Os potenciais mecanismos de tutela

Esta necessidade de uma reconstrução do paradigma clássico da corporate governance,

que está bifurcado entre os accionistas e os órgãos de administração da sociedade apenas,

por forma a que passe a contemplar também as relações de financiamento com credores

outsiders e o poder de influência (domínio até) que este podem exercer sobre as sociedades,

tem sido preocupação dos autores estrangeiros e nacionais.

Na exposição de possíveis respostas à problemática em apreço, destaca-se entre a

doutrina nacional, Gabriela Figueiredo Dias, que, ao propor várias respostas, parte de três

abordagens52 (defensiva; proactiva; e colaborativa).

51 Cf. TRIANTIS, GEORGE G. e DANIELS, RONALD J., The Role of Debt in Interactive Corporate Governance, p. 14. 52 Cf. DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, “Financiamento e Governo das Sociedades (Debt Governance): o terceiro poder” p. 380, onde se

pode ler:

− Abordagem defensiva: “tem em conta a necessidade de proteção dos acionistas e da sociedade contra a eventual

influência excessiva, não transparente e interessada dos financiadores, apontando para o desenvolvimento de mecanismos de hard law ou

de soft law destinados a conferir maior transparência ao conteúdo das relações e acordos de financiamento, abrangendo ainda os acordos

laterais com partes terceiras, designadamente credores do credor ou suas contra-partes em contratos de derivados de crédito”;

− Abordagem proactiva: “deverá partir do reconhecimento da importância do financiamento das empresas e de

incentivo à criação e dinamização de fontes alternativas de financiamento, instituindo mecanismos jurídicos e de governance que

assegurem um equilíbrio entre riscos e os poderes dos diversos sujeitos envolvidos numa relação de crédito e que promovam, por esta via,

o mercado de crédito”; e a

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4.2.1. Respostas possíveis de debt governance para protecção dos accionistas

Vejamos algumas linhas possíveis de reconstrução dos princípios de corporate

governance por forma a abranger os novos desafios lançados pelas intrusões (e até governo)

dos credores perante as sociedades por si financiadas.

4.2.1.1. Reforço da transparência sobre contratos de financiamento e acordos

laterais com entidades financiadoras ou titulares de instrumento de dívida da

sociedade.

Especialmente o reforço da informação sobre os termos do financiamento e do respectivo

reembolso, os termos e os pressupostos da intervenção dos financiadores na gestão ou no

governo das sociedades, um acréscimo significativo da informação contínua aos accionistas

sobre o cumprimento do crédito e o accionamento de cláusulas contratuais por parte dos

credores e maior transparência sobre a eventual existência de terceiros, contrapartes do

credor (hedgers) ou outros e da respectiva habilitação, formal ou informal, para intervir na

gestão do crédito ou da própria sociedade (Gabriela Figueiredo Dias (2014)).

4.2.1.2. Mecanismos de mitigação dos efeitos de restrições contratuais à livre

transmissibilidade das acções

Gabriela Figueiredo Dias (2014) alerta que “...será porventura mais perversa a introdução

de restrições ... no âmbito de acordos parassociais ou outros instrumentos idênticos”. Invoca

antes a Autora um regime de transparência muito rigoroso.

− Abordagem colaborativa: “parte do reconhecimento dos aspetos positivos que decorrem da fiscalização societária

informalmente exercida pelos seus credores, que pode ser de importância decisiva para identificação precoce de problemas de liquidez ou

de solvência e que pode e deve ser articulada com a fiscalização institucional interna a que a sociedade está sujeita pelos órgãos

apropriados.”. Vide igualmente ZOLLINGER, PETER, Stakeholder Engagement and the Board: Integrating Best Governance Practices, pp. 26 e

ss.

41

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4.2.1.3. Recomendações sobre o conteúdo dos contratos de financiamento

Haverá uma eventual vantagem na emissão de recomendações pelo regulador sobre o

conteúdo dos contratos de financiamento e em particular, sobre certo tipo de cláusulas

muito comuns nos contratos de financiamento que podem introduzir algumas distorções no

governo da sociedade ou cujo conhecimento pode e dever ser assegurado (cláusulas de

change of control, step in rights, direitos especiais de informação conferidos ao financiador,

etc).

A Autora alerta que tais recomendações devem no entanto assegurar um mínimo de

informação e equilíbrio relativamente ao conteúdo dos contratos – não protegendo apenas

os financiados – , por forma a não desincentivar o financiamento das empresas na altura de

decisão de concessão de crédito pelos financiadores (Gabriela Figueiredo Dias (2014)).

4.2.1.4. Sancionamento de conflitos de interesse, fenómenos de empty creditor e

de indução de ma� fé (pelos credores) de situações de insolvência em benefício

próprio

Gabriela Figueiredo Dias (2014)53 sugere que sejam “...equacionados novos mecanismos

de sancionamento de situações de abuso de poder, conflito de interesse e atuação

desproporcionada dos credores em benefício próprio, como aquelas que resultam do

recurso à insolvência em benefício próprio ou a imposição de políticas de destruição de

valor da sociedade com vista à respetiva liquidação, vg para obtenção antecipada do

resultado da liquidação de ativos, desmantelamento do património imobiliário ou mesmo

eliminação de concorrente.” .

As transferências do risco de crédito para uma contraparte, em contratos de derivados de

crédito, que originem situações de empty creditor, são situações cujo sancionamento deve

igualmente ser equacionado54.

53 Remete-se novamente para DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, ob. cit. 54 Yadav, Yesha, The New Market In Debt Governance, p. 32, chama a atenção para um problema visível nas situações de empty

creditor: “...Empty creditors with limited motivation to see a company succeed can face headwinds in the form of high transaction costs in

their attempt to push a company into extinction. These include the costs of negotiating or litigating with other creditors and can comprise

reputational damage where empty creditors delay resolution of a company’s distress or seek to push that company into bankruptcy.”

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4.2.2. Respostas possíveis de debt governance para reforço da posição dos

financiadores

A transparência e institucionalização do regime de intervenção dos financiadores nas

respectivas decisões fundamentais das sociedades suas financiadas são igualmente

necessárias. Aquela Autora55 invoca a necessidade de “...concepção de regras claras sobre

conflitos de interesse na designação e exercício da função de representante comum dos

obrigacionistas, instituídas que estão algumas prática de escolha de entidades ou pessoas

com um potencial de conflitos de interesse muito relevante sem que existam mecanismos

adequados para mitigar esses efeitos ou pura e simplesmente, como defendemos, afastar do

exercício dessas funções quaisquer pessoas ou entidades em relação às quais esse conflito

se possa verificar.”.

55 Novamente DIAS, GABRIELA FIGUEIREDO, ob. cit.

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5. Considerações finais

A crise de liquidez e o consequente aumento exponencial da necessidade de

financiamento das empresas (as suas restrições, etc.), assim como o paradigma da

preferência das empresas em contrair dívida (tax shield e custos de agência), criaram um

cenário de excessiva alavancagem nos últimos anos. Existem custos e benefícios em

enveredar pela dívida em vez de equity, como já foi visto, mas somos da opinião que

contornar da tendência de detrimento de um tipo de financiamento pelo outro teria que

advir essencialmente da política-legislativa (com eventuais reduções de cargas dos impostos

pessoais sobre os rendimentos obtidos com distribuição de dividendos).

Financiadores (tendencialmente mais institucionalizados e sofisticados) com acesso a

informações privilegiadas dos seus financiados, concederam através de instrumentos

complexos (vejam-se os covenants) capazes de gerir os riscos de cumprimentos de crédito. A

influência dos credores mediante tais instrumentos pode ser tal que até suplanta por vezes

os poderes da própria administração e dos próprios equity holders.

A corporate goverance (clássica) tem-se concentrado essencialmente na eliminação, ou

pelo menos mitigação, de assimetrias informativas existentes entre administradores e equity

holders (principalmente os minoritários), com regras que não se mostram suficientes para

responder aos desafios que são erigidos perante o crescente domínio dos credores (e até

das suas contrapartes em contratos de derivados de crédito). Torna-se por isso cada vez

mais urgente regular a forma e os limites das ingerências dos credores nas sociedades por si

financiadas e (efectivamente) controladas. É o que a doutrina chamam de “governo da

dívida” (debt governance) ou de “corporate governance externa”, que mais não é do que

princípios e regras de governo das sociedades que se reportem também a estes credores

controladores. Aliás, tem-se visto que as regras de corporate goverance têm-se revelado

difíceis de aplicar, especialmente atendendo à sua dimensão de soft law, levando mesmo

alguns autores a chamarem-na de too soft56.

Convém referir que o presente escrito não é “inimigo”, de forma alguma, do papel que a

dívida pode ter, e tem, como instrumento disciplinador das finanças das empresas ao

56 Vide MARTINS, ALEXANDRE DE SOVERAL, Soft? Not soft enough? Too soft? Leitura crítica de algumas soluções contidas

nos Códigos de Governo das Sociedades em Portugal”, pp. 345-357.

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encarrilar o cumprimento das obrigações assumidas por estas. Preocupa-nos tão-somente o

desequilíbrio, o qual pode gerar, como se tem visto, maiores danos às empresas e aos

mercados do que mais-valias ao invés. Se houver equilíbrio, transparência e regulamentação

(prática, não excessiva), a dívida e a sua abertura aos canais de governo societário podem

melhorar a vida empresarial através de sua capacidade em controlar os agency costs, bem

como resultar numa utilização eficaz do capital disponível para os agentes económicos, e

evitar por outro lado especulações excessivas e contágios sistémicos (todos ganham!).

Já vimos que têm sido avançadas pelos Autores especializados, propostas de mecanismos

de tutela que visam dirimir os conflitos e problemas levantados por este tema. Relembremos

sucintamente, para reforço da posição dos equity holders:

− O reforço da informação dada aos equity holders sobre o conteúdo dos contratos de

financiamento, onde se destacam os termos e pressupostos de intervenção (e

governo) concreta dos financiadores;

− A transparência sobre a identidade e direitos de terceiros (hedgers) e os termos dos

contratos celebrados entre estes e os credores directos das sociedades financiadas;

− A mitigação dos efeitos de restrições a= livre transmissibilidade das acções

introduzida por meio de cláusulas incluídas em contratos de financiamento.

Para reforço da posição dos financiadores:

− Melhores regras sobre a intervenção dos obrigacionistas e financiadores nas decisões

fundamentais da empresa, com uma eventual revisão do regime e situações de

obrigatoriedade de assembleias obrigacionistas;

− Reconhecimento pelas normas jus-societárias positivas da posição especial do credor

com step in rights e o exercício dos direitos inerentes pelos credores, mais além do

que a tutela conferida pelos deveres de lealdade e boa fé já erigidos pela doutrina.

Por tudo o exposto, é mais que notório que a construção e desenvolvimento de uma Debt

Governance afigura-se importante para todos os stakeholders que rondam a vida das

empresas, assim como para o sistema financeiro no geral.

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