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1 O LUGAR DO SENTIMENTO NA ANÁLISE DO COMPORTAMENTO: UMA FORMA DE COMPREENSÃO Sílvia Cristina Alves Andretta Psicóloga Clínica Analista do Comportamento CRP 06/54539 INTRODUÇÃO A proposta de realizar um estudo sobre o lugar dos sentimentos na análise do comportamento surgiu da observação feita durante os atendimentos realizados no aprimoramento em Psicologia Hospitalar do Hospital do Servidor Público Estadual. Durante as sessões foram feitas intervenções onde, a comunicação dos sentimentos trouxe a tona contingências e histórias antecedentes ao fato que estava sendo analisado. Ainda não pode ser descartada outra questão bastante relevante na clínica do comportamentalista: a idéia de que o sentimento não faz parte de suas vidas, que não sentem, não analisam e não falam de sentimentos. Essa idéia é bastante difundida, pois, em sua prática, procura dar ênfase as questões mais objetivas, no entanto não deixa de lado o que chama de comportamento encoberto 1 . O que é o sentimento se não um comportamento que atua dentro do organismo? Sim, essa é uma questão que só pode ser respondida baseada em fatos colhidos da prática diária do terapeuta comportamentalista. Fatos esses que só serão obtidos na medida em que o sujeito é capaz de verbalizar seu encoberto, de lhe atribuir um significado, discriminá-lo e lhe dar um nome; o que se chamaria sentimento. O terapeuta comportamental não descarta a existência de sentimentos, apenas não os vê como causa de comportamentos, e sim como função da interação do organismo com o ambiente externo. Como descreve Tourinho (in 1 É o comportamento que ocorre dentro da pele e que só é conhecido quando verbalizado pelo sujeito

o Lugar Dos Sentimentos Na Anlise Do Comportamento

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O LUGAR DO SENTIMENTO NA ANÁLISE DO COMPORTAMENTO: UMA

FORMA DE COMPREENSÃO

Sílvia Cristina Alves Andretta

Psicóloga Clínica

Analista do Comportamento

CRP 06/54539

INTRODUÇÃO

A proposta de realizar um estudo sobre o lugar dos sentimentos na

análise do comportamento surgiu da observação feita durante os atendimentos

realizados no aprimoramento em Psicologia Hospitalar do Hospital do Servidor

Público Estadual.

Durante as sessões foram feitas intervenções onde, a comunicação dos

sentimentos trouxe a tona contingências e histórias antecedentes ao fato que

estava sendo analisado.

Ainda não pode ser descartada outra questão bastante relevante na

clínica do comportamentalista: a idéia de que o sentimento não faz parte de

suas vidas, que não sentem, não analisam e não falam de sentimentos.

Essa idéia é bastante difundida, pois, em sua prática, procura dar ênfase

as questões mais objetivas, no entanto não deixa de lado o que chama de

comportamento encoberto1.

O que é o sentimento se não um comportamento que atua dentro do

organismo? Sim, essa é uma questão que só pode ser respondida baseada em

fatos colhidos da prática diária do terapeuta comportamentalista. Fatos esses

que só serão obtidos na medida em que o sujeito é capaz de verbalizar seu

encoberto, de lhe atribuir um significado, discriminá-lo e lhe dar um nome; o

que se chamaria sentimento.

O terapeuta comportamental não descarta a existência de sentimentos,

apenas não os vê como causa de comportamentos, e sim como função da

interação do organismo com o ambiente externo. Como descreve Tourinho (in

1 É o comportamento que ocorre dentro da pele e que só é conhecido quando verbalizado pelo sujeito

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2

Banaco, 1997): “Os sentimentos também são interpretados, em algumas

circunstâncias, em termos de estímulos privados, porém Skinner adverte que

não se trata de estímulos determinantes do comportamento, mas sim

subprodutos das contingências de reforçamento”. (pág. 177)

Para que seja possível a compreensão dessa questão precisa-se

entender de que forma o sentimento está inserido dentro da teoria

comportamentalista.

EVENTO PRIVADO

Como já citado anteriormente, para o comportamentalista sentimento é

um comportamento encoberto, por tanto é um evento privado. Segundo Baum

(1999), eventos privados são aqueles que nunca podem ser relatados por mais

de uma pessoa, mesmo que outras estejam presentes.

Esse mesmo autor diz ainda que os eventos privados são eventos

naturais e por isso podem ser estudados pela análise do comportamento pois,

a ciência requer que os eventos sejam naturais.

A esse respeito, em seu livro “Questões Recentes na Análise

Comportamental” (1990), Skinner fala sobre a existência de um mundo interno

de sentimentos e estados da mente que estão fora do alcance de uma segunda

pessoa, mas, esse fato não impediria de se incluir dentro da ciência. “Como as

pessoas se sentem é freqüentemente tão importante quanto o que elas

fazem”. (pág.13)

No mesmo livro coloca que, sensorialmente sabemos o que estamos

sentindo, pois, existem contradições corporais ocorrendo. Sendo o sentimento

um estado corporal e um evento privado, Skinner diz que não se pode ensinar

uma criança a nomear um sentimento assim como se faz com um objeto;

dessa forma o que ocorre é uma inferência através de uma circunstância

concomitante pública.

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3

Diante desses fatos coloca ainda que não há necessidade de se usar os

nomes dos sentimentos2, que eles podem ser expressos diretamente por

eventos públicos ou pela descrição de uma condição sentida.

Ainda no mesmo livro fala que uma pessoa sente através da empatia ou

da simpatia, colocando esse aprendizado como produto da imitação, mas que a

imitação por si só não explicaria o que a pessoa sente, pois, o sentimento está

inserido no contexto onde o comportamento ocorre.

Em Ciência e Comportamento Humano(1976), Skinner coloca que a

imitação é um resultado de reforços discriminativos que exibem a mesma

contingência tríplice3 e o comportamento que é imitado não é reforçado pelo

outro indivíduo que se comporta e sim pelo meio natural; sendo assim o

comportamento de sentir também ocorre da mesma forma, é reforçado a partir

do contexto onde ocorre. Além disso, a semelhança que existe entre o estímulo

e a sua resposta imitativa não significa que ambos tenham a mesma função

para os dois organismos, tomando assim significados específicos em diferentes

contextos.

Tourinho (in Banaco, 1997) descreve evento privado como um fenômeno

que só é acessível no interior do indivíduo que ele ocorre, portanto, eventos

privados são individuais e ocorrem de forma diferente em cada circunstância,

dependendo da contingência de reforçamento.

Como comportamento, os sentimentos estão sujeitos a

condicionamentos, classificados como condicionamento operante e

respondente.

PROCESSO DE APRENDIZAGEM DAS EMOÇÕES

Para falarmos sobre o processo de aprendizado das emoções é preciso

falar sobre os processos de condicionamento aos quais os sentimentos estão

submetidos. Também não deve ser esquecido que além de condicionados os

sentimentos são funcionais a cada circunstância dentro de uma determinada

2 Eventos privados 3 Sd-R-Sr – Estímulo discriminativo, resposta, estímulo reforçador

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4

contingência; o que torna o sentimento diferente em cada situação para cada

pessoa.

Segundo Whaley e Malott (1980), condicionamento operante é “o

procedimento no qual um estímulo vem imediatamente após uma resposta,

sendo reforçador definido como um evento ou objeto que aumenta a

freqüência de uma resposta à qual se seguiu”.(pág. 34)

Já como respondente descrevem como o condicionamento que ocorre

quando na presença de um estímulo se elicia uma dada resposta.

Se observarmos a comunidade verbal, como já dito anteriormente,

veremos que os sentimentos são aprendidos através da inferência que se é

feita na presença de um estímulo em um determinado contexto. Se virmos

uma criança chorando quando a mãe a deixa na creche dizemos que ela está

triste por ter que ficar longe da mãe ou porque pensa que a mãe não voltará.

Muitas vezes é permitido que a criança fique mais tempo com a mãe antes

dessa ir embora. Essa resposta da comunidade verbal levará a criança a um

condicionamento operante, pois, aumentará a probabilidade de que o

comportamento ficar triste apareça novamente em circunstâncias semelhantes.

Dessa forma a criança aprende o que é tristeza. Outro exemplo é quando a

comunidade verbal pune, restringe o comportamento de um indivíduo gerando

raiva, frustração; ou quando ela reforça, sinaliza acerto, valoriza gerando um

sentimento de satisfação, alegria, auto-confiança.

Na ocorrência de um estímulo que sinalize a probabilidade de perda ou

de separação de um ente querido, ou até mesmo de situações, o sentimento

tristeza é automaticamente eliciado por condicionamento respondente. O que

ocorre é que diante do estímulo separação foi emparelhada a emoção tristeza,

assim o sujeito responde ao estímulo com choro.

O que se encontra nas obras de Skinner é que os sentimentos se

mostram através de um conjunto de ações de onde parte a nomeação por

parte da comunidade verbal. É esse conjunto de ações que está sobre o efeito

de condicionamento. Como descrito acima, o choro foi condicionado à tristeza.

Mas o choro e a tristeza que ocorrem em uma dada circunstância não são o

mesmo que ocorre mediante outras circunstâncias, mesmo que as situações

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5

sejam semelhantes. Sendo assim, a tristeza é despertada por estímulos da

mesma categoria, mas, representa significados e funções diferentes de acordo

com o contexto onde corre4.

Para poder definir um comportamento encoberto, um sentimento, uma

emoção, Skinner coloca que a comunidade verbal recorre a acontecimentos

públicos, então se um indivíduo está agitado a comunidade diz que ele está

“inquieto”, se ele está agitado, batendo nas pessoas, quebrando objetos, diz-

se que ele está “com raiva”, “agressivo”; esses comportamentos públicos

tornam-se operantes discriminativos.

Se estamos falando de condicionamento não podemos descartar que sua

ocorrência pode se apresentar de quatro formas:

• Reforçamento Positivo

• Reforçamento Negativo

• Extinção

• Punição

Reforçamento positivo é aquele que apresentado mediante uma resposta

aumenta a freqüência de sua ocorrência. Reforçamento negativo é quando da

retirada de uma situação aversiva aumenta a freqüência de ocorrência de uma

resposta. Extinção é a supressão de reforço diminuindo a probabilidade de

ocorrência da resposta. Punição é aquela que mediante a sua apresentação

diminui a probabilidade de ocorrência da resposta5.

Existem também outras formas de condicionamento, mas para o assunto

em questão procurei me ater apenas a essas quatro.

Falando de aprendizagem de sentimentos, quando uma criança chora

por que tem algum desconforto recebe um reforçamento positivo ao chegar um

adulto e aconchegá-la, aumentando assim o comportamento de choro quando

aparece algum desconforto; se o desconforto for fome, ao ser alimentada o

estímulo aversivo foi retirado ocorrendo assim um reforço negativo.

4 Circunstâncias semelhantes eliciam o mesmo estímulo discriminativo gerando a mesma resposta (tristeza-choro). 5 Skinner (1976), Wolpe (1980)

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6

Quando uma criança expõe seus sentimentos e não encontra

reforçadores na comunidade ocorre a extinção; quando uma criança, de

alguma forma é punida, diminui a apresentação da resposta.

Em Ciência e Comportamento Humano(1976) Skinner diz que: “Fortes

predisposições6 emocionais são também vividas pelos primeiros passos de um

comportamento severamente punido. São o principal ingrediente daquilo que

chamamos de culpa, vergonha, ou sentimento de pecado.”(pág. 111)

Apesar de ter uma representação grande no processo de aprendizagem

dos sentimentos, a punição não é o meio mais adequado, nem mais eficaz para

que isso aconteça.

No entanto, no decorrer de nossas vidas, passamos por situações que

são naturalmente punidas, ou sofremos extinção. Esse fato quer dizer que, se

o comportamento de expressar sentimentos perde seus reforçadores naturais,

tende a se extinguir. Quando, na apresentação desse comportamento, associa-

se a punição7, o que ocorre é uma diminuição na resposta expressar

sentimentos. Segundo Miranda e Miranda (1986), é na história de repressão8 e

punição que existe um julgamento dos sentimentos.

Esse fato não faz com que a emoção desapareça, mas leva a um

desconforto inexplicável. O sujeito pode muitas fezes ficar incomodado com o

meio exterior sem mesmo saber o porquê; outras vezes é através do corpo

que são mostrados alguns sinais, aparecendo dores e doenças inexplicáveis,

insônia, entre outras.

Na cultura encontramos frases como “homem não chora”, “homem não

sente dor”, “mulher agüenta tudo calada”, “macho que é macho não tem

sentimento”, “mulher sempre sofre”, essas e outras colocações da comunidade

verbal apresentam-se como condicionantes no aprendizado dos sentimentos,

muitas vezes tornam-se regras com funções definitivas para as escolhas que o

sujeito fará em sua vida, ele se comportará mediante um aprendizado que lhe

6 Itálico do original 7 Punição: quando se aplica um estímulo que seja aversivo para determinado sujeito em determinada situação. 8 Aqui se entende por extinção.

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7

fornecerá um Sd9 que encadeará uma série de respostas já aprendidas

anteriormente.

Miranda e Miranda (1986) citam Ellis no que diz respeito à comunicação

de sentimentos. Colocam que o mesmo fato causa sentimentos diferentes em

pessoas diferentes, em circunstâncias de vida de cada uma, ou, o mesmo fato,

produzem, numa mesma pessoa, sentimentos diferentes em momentos

distintos em sua vida. Ainda falam sobre as interpretações racionais e

irracionais, que vão de encontro à formação de regras citadas anteriormente.

“As primeiras seriam interpretações lógicas a respeito dos eventos e poderiam

levar a sentimentos moderados de frustração, tristeza etc. As segundas seriam

interpretações irracionais a respeito dos eventos, levando a fortes

conseqüências emocionais, freqüentemente desagradáveis e desgastantes para

quem as experimenta” (Miranda e Miranda, 1986, págs. 106 e 107).

A forma com que o sujeito aprende a conhecer os sentimentos

influenciará diretamente em como ele os comunicará.

A COMINUCAÇÃO DOS SENTIMENTOS

Sendo um comportamento, o sentimento só é comunicado em sua

interação com o meio. Pensando nisso, o que ocorre para que uma pessoa

expresse seu sentimento naturalmente e outra como se fosse um problema? O

que ocorre para que uma mesma pessoa comunique suas emoções de forma

diferente em diversas situações?

Tourinho (in Kerbauy e Wielenska, 1999), coloca que “as emoções

enquanto problemas ‘psicológicos’ dizem respeito às relações sociais – relações

do organismo inteiro com o meio social”(pág.23).

Essa questão foi bastante discutida a cima quando se falava do processo

de aprendizagem dos sentimentos. Devido a esse fato é que a aprendizagem

também é feita na comunicação. Existem pessoas que possuem uma história

de reforçamento eficaz para que sejam assertivas quanto à comunicação de

seus sentimento, no entanto, existem outras que se comunicam através de

9 Estímulo discriminativo.

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comportamentos diversos como birra, agressividade, doenças etc, tornando

necessário que se realize a intervenção de uma compreensão funcional dos

comportamentos públicos; o que faz com que os sentimentos sejam

indicadores de história de reforçamento e contingências que ajudarão na

construção da análise funcional.

Delitti e Meyer (in Rangé, 1995), apontam para o fato de que, “sentir e

descrever o que os sentimentos são certamente comportamentos universais,

ocorrendo em todas as culturas através dos tempos. Esta seria uma indicação

de que devem ter um valor de sobrevivência para a espécie e cultura

humanas”(pág.270).

Relatam também que o sentimento se torna uma pista para a realização

da análise funcional, indicando condições que o afetaram, comportamento

presente e às condições que o

afetarão no futuro.

A maior parte das pessoas se expressa de maneira indireta, através de

seus relatos verbais ou através de seu corpo. Skinner (1995), diz que “as

formas de comportamento mais freqüentemente associadas com sentimentos

não são fáceis de serem colocadas sob controle verbal”. Esse fato faz pensar

que se torna mais fácil comunicar os sentimentos através de atitudes ou

reflexos corporais10; fato esse que reflete uma história de condicionamento

sem assertividade.

Em busca de comunicar seus sentimentos, o sujeito necessita de um

repertório comportamental eficaz. Na falta desse, as emoções são comunicadas

através do comportamento público (agressões, mimos, desentendimentos nas

relações interpessoais, dificuldade de comunicação etc).

É nesse ponto que o papel da análise comportamental toma a sua

importância. O sentimento que é apresentado de forma não assertiva, dá

indícios de que existe algo a ser investigado naquela relação (organismo-

ambiente). Traz a tona a história de reforçamento e as contingências que

levam o terapeuta comportamental a estabelecer sua análise funcional.

10 Reflexos corporais são comportamentos de dor, doenças, enfim tudo o que se refere a estados de mudanças fisiológicas.

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9

Estarei exemplificando melhor através dos exemplos a seguir.

APRESENTAÇÃO DE CASOS CLÍNICOS

Segundo Miranda e Miranda (1986), na área da saúde, os médicos

tendem a pesquisar e cuidar a parte física da pessoa, “o órgão doente”, a

atenção limita-se apenas ao sintoma físico. Não se leva em consideração que

por trás deste existe um aspecto emocional; “...ele se esquece de que, atrás

do sintoma, existe uma pessoa sentindo alguma coisa a nível emocional....Um

sintoma físico que não provoque preocupação, medo ou ansiedade não é o

suficiente para levar o paciente a pedir ajuda” (pág. 111). O sintoma desperta

sentimentos e é devido a eles que o paciente vai em busca do médico. Muitas

vezes os sintomas, na realidade, nem existem, servem apenas para pretexto.

“O paciente começa a se queixar desse sintoma, mas, se encontrar um

médico capaz de escutá-lo e de perceber seus sentimentos, vai passar

rapidamente ao problema que o preocupa e que é a verdadeira razão que o

levou a buscar ajuda. Caso contrário, vai embora insatisfeito, continuando a

procurar, de porta em porta, um profissional que, enfim, seja capaz de

compreendê-lo”(Miranda e Miranda, 1986, pág. 112).

Levando em consideração a prática clínica do terapeuta

comportamentalista, para que o fato acima ocorra, é preciso que o terapeuta

seja uma audiência não punitiva.

Skinner (1995) descreve que para que a análise funcione, tem que se

extinguir os efeitos da punição. Quando um paciente está sobre o controle de

audiências punitivas devido a comportamentos socialmente ou culturalmente

recriminados, o terapeuta emerge como uma audiência não punitiva. O

comportamento que até então era “reprimido” pelas punições começa a

aparecer.

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10

Com relação a este fato lembro-me do paciente José11, que foi internado

na clínica da Cirurgia Geral com um quadro de neoplasia12 de reto. Teria que

ser submetido à cirurgia correndo o risco de realizar amputação de reto e usar

bolsa de colostomia13 definitiva. A equipe médica solicitou a interconsulta por

acreditar que o paciente estava deprimido e por correr o risco do uso definitivo

da bolsa.

Nos primeiros contatos José apresentava-se distante, restringiu-se a

relatar como foi a sua busca aos médicos e como descobriu seu diagnóstico.

Andava no corredor sem parar e não parava para conversar, queria continuar

andando e falando.

Estarei descrevendo parte do diálogo para melhor compreensão:

José: Eu sou diretor de uma escola em minha cidade, vim para uma

reunião que estava sendo feita aqui em São Paulo. Já havia algum

tempo que eu sentia um desconforto, mas não entendia de onde

vinha. Disse para minha esposa que ao sair da reunião passaria

aqui no hospital para fazer uma consulta. Foi assim, vim para a

consulta e já fiquei internado, agora não sei mais o que está

acontecendo.

Este foi um discurso onde ficou claro de que o incomodo não se

restringia apenas ao desconforto físico, que havia por trás um campo muito

maior a ser investigado. Diante disso foram realizadas intervenções no sentido

de levar o paciente a sentir na terapeuta uma audiência não punitiva e que

seus sentimentos pudessem ser eliciados. Assim segue-se14 :

Terapeuta: Sim José, o que ocorreu com você deixou-lhe bastante

confuso. Seu quadro clínico é muito complicado, mas estive

pensando, que teoria você faz sobre o que lhe ocorreu?

11 Nome fictício. 12 "Neoplasia é uma proliferação anormal do tecido, que foge parcial ou totalmente ao controle do organismo e tende à autonomia e à perpetuação, com efeitos agressivos sobre o hospedeiro" (Pérez-Tamayo, 1987; Robbins, 1984). Conhecida como “tumores”. 13 “É um procedimento cirugico onde se faz uma abertura do abdome (estoma) para a drenagem fecal (fezes) provenientes do intestino grosso (cólon). É feito geralmente após a ressecção intestinal e pode ser temporária ou permanente.” (descrito em http://adam.sertaoggi.com.br/encyclopedia/ency/article/002942.htm,) 14 Discurso ocorrido um dia antes da cirurgia

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11

José: Não sei muito bem, penso em várias coisas...não sei direito...será

que é isso?...não sei, mas acho que é. (silêncio)

Terapeuta: O que está ocorrendo nesse momento com você?

José: Culpa. Me sinto culpado. O que está acontecendo comigo é porque

mereço. O que fiz não foi certo, não queria estar sentindo

isto agora.

Terapeuta: Você gostaria de estar falando sobre essa culpa, sobre o que

está sentindo?

José: Não só gostaria, mas preciso muito. Não sei como lhe dizer, é tão

vergonhoso que eu não sei nem como, me sinto muito mal

por isso.

Terapeuta: É parece estar difícil ainda falar sobre isso, me parece que é

algo não muito aceito pela sociedade, por outras pessoas.

José: É, é isso mesmo. Mas preciso lhe contar se não vou explodir, já

não agüento mais.

Terapeuta: Como lhe disse no começo, não estou aqui para julgar, achar

certo ou errado o que tenha lhe ocorrido, apenas vou ouvir e

lhe ajudar.

Nesse momento a terapeuta sinalizou a neutralidade, comportamento

que neste caso foi um Sd de uma audiência não punitiva, levando a extinção

do comportamento de não verbalizar o encoberto.

José: É, eu fiz, não, não cheguei a fazer nada, mas...eu me apaixonei

pela pessoa errada. Por quê...por que tinha que ser

justamente essa pessoa. Nunca me apaixonei por ninguém

dessa forma, nem pela minha esposa. O pior é que não

tenho como fugir, não tenho como deixar de vê-la. Poxa,

tanta menininha na escola e eu me apaixono justamente por

quem não deveria. Você acredita que eu me apaixonei pela

minha nora. Não é certo. Ela é esposa de meu filho, mãe de

meus netos...tanta menina na escola, por quê? É não

entendo.

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12

Terapeuta: É José, que confusão que está ocorrendo com você, que

desconforto enorme que você se encontra.

José: Sim, estou bastante confuso. E o pior é que ela vai sempre em

casa. Meu filho não pode nem sonhar com isso, imagine só

como ele ficaria...não quero nem pensar.

Terapeuta: Como foi que você percebeu que estava apaixonado?

José: Sabe, eu sempre achei ela bonita, mas nunca me ocorreu nada.

Quando meu filho precisou reformar a casa dele, eles foram

morar lá em casa, aí começou minha desgraça; ela andava

pra baixo e pra cima com shorts super curto, toda hora

passava na minha frente daquele jeito, eu fui ficando louco.

Cheguei até sonhar diversas vezes com ela. Quando estava

com minha esposa pensava nela, não é justo, não é possível.

Terapeuta: E o que você fez com todos esses sentimentos?

José: Eu já não agüentava mais; daí um dia eu contei para ela. Contei

tudo o que estava ocorrendo, como contei aqui para você.

Ela se propôs a me ajudar, disse que não andaria mais de

shorts em casa e que iria procurar ficar mais distante. Além

disso, logo a casa do meu filho ficou pronta e agora ela só

vai em casa aos domingos para almoçar. Meu filho foi

transferido de local no serviço e agora eles terão que mudar,

vai ser melhor ainda, vão para outra cidade.

Terapeuta: Bem José, me parece que o que ouve foi bastante sério e

que mudou sua vida...

José: E como, até deixei de me relacionar com os meus amigos, só

queria resolver esse problema, mas não sabia como.

Terapeuta: Realmente, é complicado, ainda mais que se trata da esposa

de seu filho; como você disse, se fosse outra menina da

escola não seria tão difícil assim. Mas a questão é que não foi

e você está repleto de sentimentos que não consegue

compreender nem resolver, o que será que aconteceu?

Page 13: o Lugar Dos Sentimentos Na Anlise Do Comportamento

13

José: É...virou doença. Acho que não tinha para onde sair e criou esse

tumor. Eu não podia falar para ninguém, ninguém iria me

entender. Não havia como, eu tinha que engolir e sofrer

sozinho, não podia falar. Agora olha só, tudo isso se

transformou em um tumor.

Terapeuta: É, esta é a sua teoria. O que você pretende fazer agora?

José: Não quero mais me sentir assim, foi bom poder contar para você e

não guardar tudo isso para mim, eu estava sufocado, você

tirou um peso muito grande de minhas costas.

Terapeuta: Que peso?

José: A culpa. Você me compreendeu. Tinha medo de falar e ser

recriminado, mas você me compreendeu, me ouviu. Acho

que não agüentaria segurar mais, iria explodir, ainda bem

que você apareceu. Agora quero fazer a cirurgia e levar

minha vida para frente.

Terapeuta: Sentimentos são sentimentos e só quem sente é que é capaz

de saber como conhecê-los, e conhecendo-os existe como

mudar. Acho que é isso que você quer me dizer, que você

não quer mais guardar, porque sentir não dá para não

acontecer.

José: É, é isso mesmo.

A terapeuta se despede desejando boa sorte na cirurgia e diz que irá até

a UTI para vê-lo após a cirurgia.

O que ocorreu nesse caso é que o paciente estava sobre um controle

aversivo de que se contasse um fato que socialmente e culturalmente é

recriminado seria punido. Houve ai uma aprendizagem por regra do

comportamento de sentir-se atraído pela nora, no entanto, na presença de um

estímulo não punitivo pode haver a verbalização do sentimento culpa que

permeava o desconforto do paciente. Sendo verbalizado trouxe consigo

antecedentes de sua história de reforçamento, contingências as quais

ocorreram o comportamento e previsões para comportamentos futuros.

Page 14: o Lugar Dos Sentimentos Na Anlise Do Comportamento

14

No seguimento, fui visitá-lo na UTI. Ele estava com receio de dormir e

não acordar. A terapeuta disse: José, não fique preocupado, ocorreu tudo bem

em sua cirurgia, você venceu! Não fique com medo de fechar os olhos, faz

parte de sua recuperação, você está tomando medicamentos que o fazem

dormir, logo você acordará e verá que está bem. Pode fechar os olhos e

dormir. Veremos-nos na segunda feira.

Na segunda feira ele já se encontrava no quarto. Nesse dia relatou a

terapeuta que sua visita à UTI foi muito importante, pois, ele estava com

muito medo. Relata também que estava feliz porque os médicos falaram que

ele teria que ficar 3 dias na UTI e ele havia ficado apenas 1 dia; disseram

ainda que não foi preciso colocar a bolsa e que a recuperação dele estava

ótima e que teria alta provavelmente na terça feira, sendo que o tempo

previsto era de aproximadamente duas semanas após a cirurgia. Coloca que a

situação dele poderia ter sido diferente se não tivesse “desabafado”(sic)

comigo. O paciente saiu de alta hospitalar no dia previsto e se propôs a

continuar atendimento psicoterápico na cidade onde mora.

Outro exemplo é de uma senhora, também internada na cirurgia geral,

para realizar uma cirurgia de retirada de cisto no pâncreas. Vou chamá-la de

Dirce. É uma paciente obesa, casada. Apresenta discurso infantilizado. Sua

forma de comunicar os sentimentos é através da atuação. Não apresenta

assertividade.

Nesse caso o que ocorria era um grande desconforto com relação a

indefinição de seu quadro clínico e a dificuldade em realizar a cirurgia devido a

seu peso elevado.

Dirce se comunicava através da agressividade, xingava os médicos;

depreciava o trabalho da enfermagem; se recusava a conversar com a

terapeuta (quando não estava com vontade), mas logo depois pedia desculpas

por ter sido agressiva, sempre tentava justificar seu comportamento.

Esse caso me leva a pensar que em sua história de reforçamento a

paciente aprendeu que para conseguir aquilo que deseja necessita ser

agressiva.

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Além desse fato, a sua ansiedade, seu medo em relação à cirurgia eram

verbalizados com o comportamento público agressividade, gerando um grande

desconforto à ela, pois ninguém a entendia; e a equipe, que fugia das suas

súplicas realizando o que ela queria para que ficasse quieta.

Acredito que esses dois casos explicam bem de que forma o sentimento

tem importância dentro da análise funcional e da terapia comportamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração o que foi exposto acima, penso que o

lugar do sentimento na análise do comportamento é de extrema importância.

Atrás de um comportamento público está o encoberto, está a emoção. É a sua

percepção que leva o sujeito ao autoconhecimento. Conhecendo meus

sentimentos eu posso mudá-los. Como o sujeito se sente interfere

consideravelmente em como ele se comporta, afetando assim seu repertório

comportamental.

Sentir não é agir, a ação é resultado de uma escolha. Sentir é a

interação do organismo – sujeito com o ambiente. Para que se compreenda

essa interação existe uma palavra chave: a comunicação.

O sentimento só se torna passível de análise funcional se ele é, de

alguma forma, comunicado, caso contrário não há como acessá-lo.

Segundo Tourinho (1999), colocar o sentimento como elemento

importante na ciência do comportamento não significa que o

comportamentalista adote o mentalismo, nem tão pouco reduz fenômenos

comportamentais a fenômenos fisiológicos. A análise continua sendo feita

através da relação do organismo com as variáveis externas.

Acredito que ainda existe muito a ser pesquisado nessa área e

que o meu pensar abriu caminho a novos questionamentos e possibilidades de

entendimentos futuros.

Gostaria de encerrar essas considerações com uma citação de

John Powell descrita em Miranda e Miranda(1986, pág. 120):

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“Meus sentimentos são como minha impressão digital, como a cor

dos meus olhos e o tom de minha voz: únicos e irrepetíveis. Para

você me conhecer, é preciso que conheça meus sentimentos.

Minhas emoções são a chave para a minha pessoa. Quando lhe dou

essa chave, você pode entrar e compartilhar comigo o que tenho

de mais precioso para lhe oferecer: eu mesmo”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Skinner, B.F. (1976). Ciência e Comportamento Humano. 3ª ed.. Edart. São

Paulo.

Whaley, D.L. e Malott, R.W. (1980). Princípios Elementares do

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