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 O mercado de almas selvagens  Jesus ressuscitou. Saiu do sepulcro e apareceu primeiro para Maria Madalena. Em seguida, ela anunciou aos que haviam estado com ele. Manifestou-se a dois que iam para o campo, e depois a outros. Finalmente, de acordo com o Evangelho segundo Marcos, capítulo 16, Jesus apareceu aos 11 assentados à mesa “e lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado”. Disparou então, segundo o livro sagrado dos cristãos, a mensagem determinante da “missão”, em versículos 15 e 16: “E disse-lhes: ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.” “Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.” No versículo 17, ainda segundo Marcos, Jesus vai mais longe: “E estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome expulsarão os demônios, falarão novas línguas”. Condenadas à danação de um pecado original estão as criaturas não batizadas, portanto, todas as culturas não cristãs. Aos crentes, foi dada a obrigação, na forma de uma missão, da evangelização universal: eles deveriam traduzir a Bíblia para todas as línguas. Tarefa arriscada nos “confins da Terra”, que viria a ser complementada, pelo versículo 18, com a proteção divina: “Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão”. Outubro de 2011, Caldas Novas, interior de Goiás: em um hotel de águas termais, tendas estão dispostas como uma conferência comercial, ou como uma feira de negócios na qual empresas utilizam estandes para vender seus pacotes e produtos. “Judeus por Jesus”; “Curso de Evangelização de Árabes”; “Missão Novas Tribos do Brasil”; “Adote um Povo”. Índios, ciganos, quilombolas, pobres do sertão nordestino: no VI Congresso Brasileiro de Missões, todas as criaturas desprovidas possuem representantes que negociam suas almas. Minha alma, ateia, é a única condenada que circula pelo local. “Experimenta uma vez”, diz um senhor, com sorriso maroto no rosto. “Sou careta”, brinco. Ele quer que eu experimente a religião dele, como se fosse uma cápsula de felicidade a ser engolida. “Experimenta, você não vai se arrepender. Você vai ser feliz.” Desconverso, contando histórias de aventuras na Amazônia. “Já sei”, diz o pastor Thomas Gregory. “Precisamos de gente com coragem.” Ele me oferece um exemplar

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O mercado de almas selvagens

 Jesus ressuscitou. Saiu do sepulcro e apareceu primeiro para Maria Madalena. Emseguida, ela anunciou aos que haviam estado com ele. Manifestou-se a dois que iampara o campo, e depois a outros. Finalmente, de acordo com o Evangelho segundoMarcos, capítulo 16, Jesus apareceu aos 11 assentados à mesa “e lançou-lhes em rosto

a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinhamvisto já ressuscitado”. Disparou então, segundo o livro sagrado dos cristãos, amensagem determinante da “missão”, em versículos 15 e 16:

“E disse-lhes: ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.”

“Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.”

No versículo 17, ainda segundo Marcos, Jesus vai mais longe: “E estes sinais seguirãoaos que crerem: em meu nome expulsarão os demônios, falarão novas línguas”.

Condenadas à danação de um pecado original estão as criaturas não batizadas,portanto, todas as culturas não cristãs. Aos crentes, foi dada a obrigação, na forma deuma missão, da evangelização universal: eles deveriam traduzir a Bíblia para todas aslínguas. Tarefa arriscada nos “confins da Terra”, que viria a ser complementada, peloversículo 18, com a proteção divina: “Pegarão nas serpentes; e, se beberem algumacoisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e oscurarão”.

Outubro de 2011, Caldas Novas, interior de Goiás: em um hotel de águas termais,tendas estão dispostas como uma conferência comercial, ou como uma feira denegócios na qual empresas utilizam estandes para vender seus pacotes e produtos.“Judeus por Jesus”; “Curso de Evangelização de Árabes”; “Missão Novas Tribos do

Brasil”; “Adote um Povo”. Índios, ciganos, quilombolas, pobres do sertão nordestino:no VI Congresso Brasileiro de Missões, todas as criaturas desprovidas possuemrepresentantes que negociam suas almas.

Minha alma, ateia, é a única condenada que circula pelo local. “Experimenta umavez”, diz um senhor, com sorriso maroto no rosto. “Sou careta”, brinco. Ele quer queeu experimente a religião dele, como se fosse uma cápsula de felicidade a serengolida. “Experimenta, você não vai se arrepender. Você vai ser feliz.”

Desconverso, contando histórias de aventuras na Amazônia. “Já sei”, diz o pastorThomas Gregory. “Precisamos de gente com coragem.” Ele me oferece um exemplar

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do livro O Contrabandista de Deus , com a seguinte dedicatória: “Por Jesus vale a penagastar nossas vidas! Experimente!” Em seguida, me apresenta a um jovem destemidoda missão “Portas Abertas: Servindo Cristãos Perseguidos”. “Estamos indo traficarBíblias para a China em dezembro. Ano que vem, vamos levar até a Coreia do Norte”,o rapaz me relata, determinado, consciente dos riscos de antecipar o que acredita sero “julgamento final” e negando qualquer tipo de medo. “Não. Jesus está comigo”,

diz.

No encontro organizado pela Associação de Missões Transculturais Brasileiras(AMTB), os índios são apenas uma parte de um universo pagão de almascondenadas. Parte pequena, porém cobiçada: de acordo com levantamento da própriaAMTB, os índios são compreendidos como 616 mil indivíduos de 340 etnias (para aFunai são 220) e que falam 181 línguas. Ainda segundo os mesmos cálculos, no Brasilhá 69 línguas sem a Bíblia  traduzida, 182 etnias contam com presença missionária

evangélica e 257 programas de evangelização estão em curso, coordenados por cercade 15 agências missionárias de diferentes denominações evangélicas históricas, masem sua maioria batista, associadas à AMTB.

De todas as almas selvagens existentes, as consideradas mais valiosas são as dosíndios ditos “isolados”: elas representam o universo a ser conquistado e cuja almaadquire maior valor, econômico e moral, no mercado espiritual. O levantamento daAMTB indica que 147 etnias não possuem a presença missionária evangélica, e que 27povos seriam considerados “isolados”. O principal desafio que consta no relatório“Indígenas do Brasil” são as “etnias remotas (com pouco ou nenhum contatoexterno)”, que somam 42 povos. A lista mais recente da Funai, a ser divulgada,aponta 84 referências onde podem existir povos indígenas sem contato. Nesses locais,geralmente áreas de difícil acesso, é proibida a entrada de qualquer indivíduo sem aautorização da Funai.

Os “índios isolados” são as comunidades indígenas que vivem de forma autônomana floresta, evitam a aproximação com o universo ocidental e esse contato, se ocorrer,é eventual e conflituoso. A ocupação recente da Amazônia ocasionou os primeirosencontros com diversos povos, como os zo’é e suruwahá, que a Funai considera de“recente contato”. Eles recebem proteção especial em razão da vulnerabilidade físicada população, suscetível a epidemias.

O principal objetivo dessas agências evangelizadoras é “alcançar” outras culturas

com a leitura de sua forma de crença, daí o aspecto “trans” do tema “cultural” dasreligiões. “Precisamos de mais 500 novos missionários para pregar o Evangelho atodos os povos indígenas no Brasil”, conclama no microfone Ronaldo Lidório, um

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dos principais líderes desse movimento. Traduzindo: o objetivo é convencer osíndios, assim como todas as pessoas do mundo, a se tornarem crentes – salvar asalmas condenadas pelo pecado original.

Henrique terena é alto, tem cabelos longos e usa um charmoso cocar de penas azuisde arara. Falando com desenvoltura e retórica apurada, ele anda sempre próximo a

Eli Tikuna, líder indígena que vem da margem do rio Solimões, já quase na fronteiracom a Colômbia. Juntos, aguardam o chamado para pregar no salão lotado de brancos, curiosos para ouvir os tais “índios crentes”.

Grandes astros da conferência, os índios pastores formam o que os missionáriosevangélicos consideram ser a “terceira onda evangelizadora”. Primeiro, eram osestrangeiros que aportaram no Brasil com a Bíblia debaixo do braço (no século 19 e nopós-guerra); a segunda onda ocorreu por meio dos missionários brasileiros, com a

institucionalização das missões estrangeiras no Brasil, ao longo da segunda metadedo século passado; e hoje os próprios índios agem como missionários.

As almas indígenas são o objeto do alcance proselitista de um determinado grupo deevangélicos, principalmente os de denominação batista (conhecidos como“históricos”). O sistema de evangelização ocorre segundo regras capitalistas, comagências, igrejas e crentes financiadores. Por trás de tudo, há diversos interesses quese aliam com a conveniência exigida para a alma condenada ser alcançada –

garimpeiros no Amapá, madeireiros e fazendeiros no Pará, seringueiros no Acre, oexército no Amazonas. Nessas alianças, domesticar os selvagens para servirem demão de obra é o objetivo dos laicos. Já o alcance e a salvação das almas é a verdadeiramissão religiosa.

Em 1991, a Fundação Nacional do Índio determinou a expulsão de todas as missõesdas áreas indígenas e rompeu os contratos que tinha com os missionários deprestação de saúde e educação para os índios. Por parte do governo, não havia oconhecimento exato do número de aldeias com presença missionária. Mas o entãopresidente da Funai, o sertanista Sidney Possuelo, conhecia de perto a atuação daNew Tribes Mission (hoje, Missão Novas Tribos do Brasil) junto do povo zo’é, cujoprimeiro contato ocorreu em 1986. Na época, a expedição contava com a presença deEdward Luz, que atualmente é o presidente da Novas Tribos do Brasil. Antropólogosafirmaram então que cerca de 30% da população índia pereceu devido a doençaslevadas pelos missionários. Possuelo, que trabalhou junto aos zo’é, determinou a

retirada dos missionários assim que assumiu a Funai. Na visão de Luz, que até hojetenta retomar contato com os zo’é, a Funai “persegue” os missionários.

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“Nós, como instituição, só temos a agradecer a essa perseguição. Porque quanto maisa perseguição vem, mais nós crescemos”, afirma Luz. “O Cristianismo sempre foipautado por isso. O sangue dos mártires regava a semente daqueles que haviam denascer. E no governo brasileiro isso foi a mesma coisa.”

Conheci Edward Luz no V Congresso Brasileiro de Missões, em 2008, em Águas de

Lindoia (SP). Naquele momento, o drama da tribo dos índios suruwahá estava à tona:a Funai havia expulsado dali o grupo “Jovens com uma Missão” (Youth with aMission, no original). Os missionários acusavam os índios de serem violentosassassinos de crianças e praticarem o infanticídio – era preciso a evangelização parasalvá-los. A Funai culpa os missionários por uma leva de suicídios que chegou aatingir 10% da população local. Marcia Suzuki foi a missionária que se colocou comoporta-voz do drama. “No Parque do Xingu também praticam o infanticídio, e dizemque não”, ela declarou na época. O tema do infanticídio foi levantado na mídia em

torno de um filme de ficção, mas tratado como um “docudrama”, realizado pelo filhodo fundador da Youth with a Mission, o cineasta David L. Cunningham. Em Hakani:

A Survivor’s Story , índios suruwahá aparecem enterrando uma menina viva. Odepartamento da Funai que protege os suruwahá afirmou que os índios ficaramrevoltados ao saber da história. Hakani, a tal criança índia, foi retirada da aldeia porSuzuki e hoje a acompanha em igrejas, na busca de recursos para a missão Atini. Odrama de Hakani também serviu para divulgar um projeto de lei chamado Muwaji,

que incriminaria funcionários públicos em caso de infanticídio e que legitimaria apresença de evangélicos em aldeias.

A bancada evangélica no Congresso Nacional, formada por cerca de 50 deputados,pouco se mobilizou. A maioria, pentecostal, é distante das denominações históricas,como os batistas. “Há evangélicos contra a evangelização dos índios, como osecumênicos”, afirma Geter Borges, assessor parlamentar presente no CongressoBrasileiro de Missões. As divergências internas praticamente impediriam, diz ele, que

a bancada mostrasse uma união sobre projetos – “não votam juntos, e não têm o pesoe a força, por exemplo, dos ruralistas”, diz. Sobre a evangelização, Borgescontextualiza: “Esse grupo da AMTB é que tem essa proposta de evangelizar osíndios, que é proselitista. É a visão que se tem do Espírito Santo. Eu sou batista, mascreio que podemos ser salvos sem o batismo”.

A estratégia de utilizar os próprios índios como missionários foi definida no VICongresso de Missões. E, para facilitar a realização do trabalho, eles farão uso de umdogma retórico: “O Estado não pode impedir um índio de encontrar um outro índio”,explica Luz. O objetivo das agências atualmente é capitalizar a maior quantidade deindígenas possível para se tornarem pastores. Para provocar uma reação pública,

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decidiram que irão solicitar, através dos índios kanamari, o ingresso na terra indígenaVale do Javari, onde está localizada a maior população de índios isoladosremanescente do mundo. Caso a Funai negue a presença missionária, a estratégiaprometida será acionar o Poder Judiciário contra o governo. “Metade dos povosindígenas não são aldeados. Um grande número frequenta as universidades. E amaioria fala: vou voltar para o meu povo e vou levar o evangelho pra eles. E contra

essa força não há resistência”, conclama Luz.

O presidente da Novas Tribos insiste que o impedimento da entrada dos missionáriosnas aldeias tem cunho “ideológico”. “A Constituição não dá amparo para esse tipo deperseguição”, afirma Luz. “Nós temos o direito de pregar o evangelho para todomundo. E toda pessoa tem o direito a aderir ou não. Vamos levar essa discussão àsraias do Supremo.” Argumento-chave nesse debate é o que Luz chama de “direito dacomunidade indígena de decidir o seu presente e seu futuro” – ou seja, de escolher

sua religião. É o mesmo ponto levantado por alguns raros antropólogos que não seopõem aos missionários. “Os índios podem escolher seu destino”, declarou umaantropóloga evangélica que não quis ser identificada. “Agora, nem sempre osmissionários são honestos nas opções que oferecem.”

“A motivação deles é ideológica: eles querem expandir a ideologia religiosa delespara todos os seres humanos do planeta”, rebate Márcio Meira, presidente da Funai,

que alega que a Constituição Federal protege a liberdade de crença, assegurando aproteção aos locais de culto. Nesse caso, a Funai tem poder de vetar a entrada nasáreas habitadas por índios “isolados”, assim como dos povos de pouco contato:“Cabe ao Estado laico exercer o poder de proteção e impedir qualquer contato demissionários com índios isolados”.

“Alguns povos, como os zo’é, os yanomami, os suruwahá, possuem contato, mas nãopossuem elementos de conhecimento das outras religiões para tomar uma decisão.

Temos que garantir seus espaços de liturgia”, prossegue Meira, afirmando ainda quea Fundação não intervém nos casos de povos com contato antigo com a sociedadeenvolvente. “A Funai tem a obrigação legal de respeitar a vontade dos índios depermanecerem isolados”, diz.

“Em 2 mil anos, a bíblia  foi traduzida apenas para 500 línguas”, prega o pastorRonaldo Lidório no grande salão do VI Congresso Brasileiro de Missões, com certotom de indignação frente às ovelhas de seu rebanho. É a hora de provocar “um

tsunami espiritual”, conforme reforça o pastor indígena Henrique Terena no mesmosalão principal. Todos parecem chocados com mais um dado “oficial” divulgado pelaAMTB: “147 povos indígenas no Brasil não conhecem o Evangelho”.

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O encontro das sociedades europeias com os índios na América aflorou entre oscrentes a missão determinada pelo “ide” de Marcos. Pelo lado católico, a catequizaçãofoi praticada inicialmente na aliança da Companhia de Jesus, pelos jesuítas, com osestados colonizadores espanhol e português (rompida no século 18). As tentativas deconquista de holandeses e franceses foram acompanhadas de religiosos protestantes.Enquanto a famosa “Primeira Missa” católica foi celebrada em 26 de abril de 1500

pelo frade Henrique de Coimbra, o primeiro culto evangélico em terras brasileirasocorreu mais de 50 anos depois, em 10 de março de 1557, no Rio de Janeiro, peloshuguenotes franceses. Poucos anos depois, Jacques Balleur foi enforcado por pregar areligião da Reforma junto aos índios tamoios.

Hoje, os católicos atendem sob a organização do Conselho Indigenista Missionário(Cimi), que prega, de forma oficial, o respeito às religiões indígenas. De acordo comessa leitura, o papel do Espírito Santo salvaria as almas, independentemente do

 batismo. “É a tese de São Tomás de Aquino. Mas alguns ainda praticam oproselitismo”, assume Paulo Suess, um dos principais teólogos do Cimi. “Nuncaoficialmente. Nunca vão dizer isso abertamente em uma assembléia do Cimi. Mas naaldeia eles podem agir assim.” A última missão jesuíta em atividade no Brasil foi aUtiariti, no Mato Grosso, completamente destruída pelos índios nos anos 70. Algunslíderes indígenas, jovens na época, guardam más lembranças das atuações dospadres. “Forçavam o casamento interétnico”, recorda o índio pareci Daniel Cabixi. “A

gente sofria muito.”

Com as revoluções sociais do pós-guerra, sobretudo por causa do Concílio VaticanoII, e a teologia da libertação que se desenvolveu em seguida, os católicos na Américapassaram a optar pelo princípio da “encarnação”, segundo manifesto escrito emGoiânia, em 1975: “Seguindo os passos de Cristo, optar seriamente, como pessoas ecomo igreja, por uma encarnação realista e comprometida com a vida dos povosindígenas, convivendo com eles, investigando, descobrindo e valorizando, adotando

sua cultura e assumindo sua causa, com todas as consequências; superando as formasde etnocentrismo e colonialismo até o ponto de ser aceito como um deles”.

Em 1912, ocorreu a evangelização dos índios terenas, no atual Mato Grosso do Sul.Esse é o marco, entre os evangélicos, da primeira evangelização indígena no Brasil. Efoi também entre os terenas que foi “plantada” a primeira igreja. Em julho de 2012, oConselho Nacional dos Pastores e Líderes Indígenas (Conplei) prepara acomemoração do centenário desse primeiro batismo. “Vai ser um grande encontro”,promete o pastor Henrique Terena, que diz contar com a presença de indígenasevangélicos do Paraguai e da Bolívia. “Vamos receber cinco mil indígenas. E vamoscriar o Conselho Mundial dos Pastores e Líderes Indígenas.” As inscrições para o

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evento custam de R$ 80 (índios) a R$ 200 (não índios).

Nesse verdadeiro mercado de almas que é o Congresso Brasileiro de Missões, até épossível “adotar” um povo. Em um dos estandes, a missionária explica: “Vocêassume esse povo, e deve orar por eles”. Além da oração, é sugerido também quesejam doados recursos para financiar o trabalho missionário. Valores não são

mencionados, mas estima-se ser necessário cinco igrejas para sustentar o trabalho emum único povo. No palco, Eli Tikuna conta sobre o dia de glória que teve ao visitaruma igreja batista na Grande São Paulo: “Consegui R$ 10 mil em doações. Glória aoPai!”

Na quinta edição do Congresso, em 2008, um empresário de São José dos Camposdoou um avião modelo Caravan para a missão Asas do Socorro, que presta serviçosde transporte aéreo para as agências missionárias e, segundo o comandante Rocindes

Correa, conta já com 11 aeronaves. “Pregamos o evangelho integral, que cuida daalma, mas também da vida da comunidade”, diz Correa. Nesse intuito, a Asas doSocorro oferece também o transporte de médicos e dentistas evangélicos.

Segundo dados divulgados pela própria AMTB, a edição 2011 do CongressoBrasileiro de Missões custou por volta de US$ 40 mil e recebeu aproximadamente 500pessoas (291 responderam a um questionário), sendo 40% batistas e mais da metadeoriunda da região Sudeste. Um terço era de pastores, lideranças religiosas, e 98% dos

presentes consideraram a programação “boa ou excelente”. A próxima edição, aliás, já tem data marcada: acontece em 2014.

E se jesus realmente retornar e for parar no meio dos índios? Dizem os crentes que acomunidade deverá estar preparada para recebê-lo – diferentemente do queaconteceu da primeira vez, quando ele nasceu em berço judaico durante a dominaçãoromana e foi morto ainda jovem. Essa é a explicação sugerida pelo antropólogo Darcy

Ribeiro, que morreu em 1997, sobre o principal motivo que leva os missionários a“gastarem sua vida” em nome da evangelização dos índios na Amazônia.

Foi Ribeiro quem trouxe os missionários do Summer Institut of Linguistics (SIL) parao Brasil, na década de 50. Preocupado com o desaparecimento das línguas indígenas,o antropólogo imaginaria que, ao custo da tradução da Bíblia , ao menos as línguasseriam documentadas, em caso de desaparecimento de um povo. Escreveu ele nolivro Confissões: “Serviço maior meu foi mandar uma linguista do Instituto

Linguístico de Verão, com doutorado, conviver com eles e dedicar-se por quase umano ao estudo do idioma ofaié. Assim, ao menos sua língua se salvou pelo registroescrito e sonoro para futuros estudiosos das falas humanas”.

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Quando se dedicou a salvar as línguas indígenas, Ribeiro desconhecia as ligações doSIL com a poderosa família norte-americana Rockfeller, que procurava novas jazidasde petróleo, e com a direita norte-americana e agências de informações dos EstadosUnidos, fatos mostrados no livro Thy Will Be Done , de Gerard Coilby e CharlotteDennet. No Brasil, onde persiste o fantasma da “internacionalização da Amazônia”,essas ligações suspeitas fizeram crescer os temores de ações escusas dos missionários.

Se externamente há fantasmas da internacionalização, nas aldeias, os índiosreclamam da interferência em suas culturas. Os missionários Manfred e BarbaraKern, da New Tribes, divulgaram que um dos líderes indígenas da tribo uru-eu-wau-wau, de Rondônia, teria cometido adultério. “Pelo que entendemos, ele é reincidentee já foi repreendido pelos outros líderes”, escreveram eles, em uma carta públicadivulgada em 28 de junho. “Reze para o Senhor fazer um grande trabalho derestauração na sua vida e da sua esposa.” Os uru-eu formam um povo tupi e não são

tradicionalmente monogâmicos, mas, de acordo com os missionários, estão“aprendendo a ser”.

A abordagem em relação ao adultério foi justamente o que chamou a atenção do líderindígena Davi Kopenawa Yanomami sobre a conduta suspeita de missionários. Eleafirma ter conhecido o Evangelho através da ação de membros da Novas Tribos, queestiveram presentes na aldeia yanomami Toototobi, e fez sua opção: “O missionárionão é como garimpeiro. É outro político. Eles não invadiam a terra, mas a nossacultura, a nossa tradição, o nosso conhecimento. Eles são outro pensamento para tiraro nosso conhecimento e depois colocar o conhecimento deles, a sabedoria deles, areligião deles. Isso é diferente. Eu, Davi, já fui crente. Junto com eles. Mas depoisqueria conhecer Jesus Cristo. E não deu certo. Um missionário não índio namorouuma yanomami. Daí não deu certo. Descobri que não é verdade. Aí eu não acrediteimais. São crentes falsos. E não acreditei mais”.

De fato, não é incomum as alianças estratégicas para a evangelização assumiremfeições mais mundanas, muitas vezes contrárias aos direitos indígenas. Em um casoemblemático ocorrido em 1986, a Novas Tribos teria se unido a seringueiros queescravizavam índios no Acre, conforme relata o cacique yawanawa Biraci “Bira”Brasil.

Ainda jovem, Bira foi morar em Rio Branco (AC), onde percebeu que “nosso povoestava não apenas perdendo a língua, mas perdendo o nosso espírito. Nossa conexão

espiritual com nós mesmos, com a natureza, com o nosso mundo, com os nossosancestrais”. Decidiu, então, unir os jovens e expulsar os missionários, instalados natribo por três décadas. “Convenceram todo mundo a ser crente. Botaram uma ameaça

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no nosso coração, dizendo que sem essa religião todo mundo iria para o inferno, quenós não teríamos salvação, não seríamos capaz de ser um povo feliz. Que nósvivíamos com o demônio. Que nossos rituais e nossas crenças eram coisas dodemônio.”

“Eram racistas”, o cacique prossegue. “Não gostavam da gente, pareciam que tinham

nojo de índio. Não deixavam índio andar no mesmo barco com eles. Não deixavamcomer junto. Nos tratavam mal. Sem respeito. Principalmente os americanos. Erammuito arrogantes. A gente sofria muito. A gente tinha vergonha de ser a gente. Amissão estava dizendo que a nossa cultura era coisa do demônio. Nossa ayahuasca,nossas cerimônias. Nós éramos proibidos, através da intimidação, de realizar nossosrituais. Do lado da missão estavam os seringalistas, seringueiros. Se aliavam comtodo mundo. E a igreja fazia a gente aceitar ser dominado. Além da evangelização,dessa descaracterização cultural do nosso povo, ainda mantinham a presença dos não

indígenas dentro da terra. Faziam a gente aceitar nossa condição de escravo.”

A expulsão dos missionários e dos seringueiros ocorreu em uma noite de 1986. Emcarta publicada em 28 de fevereiro desse ano, os missionários Stephen e Corinerelatam que na época os índios queriam “roubar seus pertences e queimar suascasas”. A Polícia Federal foi convocada, e Bira foi perseguido e acusado de ter seengajado com uma “organização de esquerda”.

Atualmente, Bira é referência espiritual na aldeia e há uma década organiza um dosmaiores festivais indígenas do Brasil, o Yawa, quando recebe povos de outras etnias evisitantes ocidentais para celebrar a cultura e a espiritualidade yawanawa, com muitorapé e ayahuasca. Ele também viaja pelo mundo realizando rituais xamânicostradicionais de seu povo. Aprendeu com os pajés Yawa e Tatá, que nunca deixaramde praticar os ritos, ainda que escondidos, durante a dominação da Missão NovasTribos.

No que depender das agências evangelizadoras, porém, a luta está apenascomeçando. “A perseguição nos dá força. O sangue dos mártires regava as sementesdaqueles que haviam de nascer”, reforça o missionário Edward Luz, prometendo jamais desistir de evangelizar o povo zo’é, de onde foi expulso pela Funai. “Nósvamos voltar para os zo’é. Não sei como. Mas vamos voltar. Nosso Deus é soberano.O homem pode espernear, mas no final vai ter um encontro com Deus. E, se nãoestiver preparado, vai sofrer.”

Luz prevê que, se o Estado tentar impedir a pregação da Bíblia  nas aldeias, o fatopoderia unir todas as denominações evangélicas, que são rivais entre si. “Se [o

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 governo] proíbe pregar o evangelho, está proibindo a liberdade da adoração; proíbe oautor do evangelho, o senhor Jesus; e proibiu a Bíblia , proibiu o Deus criador”, diz. Edesafia: “E nós partimos para um confronto”