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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO O PANORAMA ATUAL DAS PERÍCIAS EM TRABALHO-SAÚDE NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DAS PERÍCIAS EM SAÚDE DO TRABALHADOR CAMPINAS 2018

O PANORAMA ATUAL DAS PERÍCIAS EM TRABALHO-SAÚDE … · 2018-08-03 · Leonardo Vieira Wandelli ... À CAPES por permitir o desenvolvimento de grande parte deste trabalho e à

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO

    BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

    O PANORAMA ATUAL DAS PERCIAS EM

    TRABALHO-SADE NO BRASIL: A

    CONSTRUO DAS PERCIAS EM SADE DO

    TRABALHADOR

    CAMPINAS

    2018

  • BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

    O PANORAMA ATUAL DAS PERCIAS EM

    TRABALHO-SADE NO BRASIL: A

    CONSTRUO DAS PERCIAS EM SADE DO

    TRABALHADOR

    Tese de Doutorado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Educao da Faculdade de Educao

    da Universidade Estadual de

    Campinas para obteno do ttulo de

    Doutor em Educao, na rea de

    concentrao de Educao.

    Supervisor/Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Montes Heloani (UNICAMP)

    O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE VERSO

    FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO

    , E

    ORIENTADA PELO PROF. DR.

    CAMPINAS

    2018

  • Agncia(s) de fomento e n(s) de processo(s): CAPES, 88881.131832/2016-01

    Ficha catalogrfica

    Universidade Estadual de Campinas

    Biblioteca da Faculdade de Educao

    Rosemary Passos - CRB 8/5751

    Ribeiro, Bruno Chapadeiro, 1986-

    R354p RibO panorama atual das percias em trabalho-sade no Brasil : a construo

    das percias em sade do trabalhador / Bruno Chapadeiro Ribeiro. Campinas,

    SP : [s.n.], 2018.

    RibOrientador: Jos Roberto Montes Heloani.

    RibTese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

    Educao.

    Rib1. Sade e trabalho. 2. Pericia medica. 3. Medicina do trabalho. 4. Doenas

    profissionais. 5. Psicologia do trabalho. I. Heloani, Jos Roberto Montes, 1956-.

    II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

    Informaes para Biblioteca Digital

    Ttulo em outro idioma: The current panorama of expertise in health-work in Brazil : the

    construction of the expertises in the Worker's Health field

    Palavras-chave em ingls:

    Occupational Health

    Medical expertise

    Occupational medicine

    Occupational diseases

    Organizational Psychology (Work Environment)

    rea de concentrao: Educao

    Titulao: Doutor em Educao

    Banca examinadora:

    Jos Roberto Montes Heloani [Orientador]

    Ren Mendes

    Leonardo Vieira Wandelli

    Maria Elizabeth Antunes Lima

    Joo Silvestre da Silva Jnior

    Data de defesa: 20-02-2018

    Programa de Ps-Graduao: Educao

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO

    TESE DE DOUTORADO

    O PANORAMA ATUAL DAS PERCIAS EM

    TRABALHO-SADE NO BRASIL: A

    CONSTRUO DAS PERCIAS EM SADE DO

    TRABALHADOR

    Autor : Bruno Chapadeiro Ribeiro

    COMISSO JULGADORA:

    Jos Roberto Montes Heloani (orientador)

    Ren Mendes

    Leonardo Vieira Wandelli

    Maria Elizabeth Antunes Lima

    Joo Silvestre da Silva Jnior

    A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comisso Examinadora, consta no processo de vida acadmica do aluno.

    2018

  • Carolina,

    que em seus olhos fundos, guarda tanto amor.

    O amor de todo esse mundo.

    e Edmundo Chapadeiro [in memoriam].

  • Agradecimentos

    Agradeo primeiramente a Deus pelo dom da vida e da busca pela cincia, verdade

    e justia que me deu. Foi atravs de seu Filho que Ele nos ensinou que nunca devemos

    nos acomodar com o que incomoda.

    CAPES por permitir o desenvolvimento de grande parte deste trabalho e

    Universidade Estadual de Campinas por estes quatro anos em que passei em suas

    dependncias e que me proporcionaram esclarecimento crtico, conscincia social de

    classe e a certeza de que uma universidade pblica de qualidade, laica, e acessvel a todos

    ainda um dos mais importantes baluartes desse pas.

    Aos meus pais, Paulo e Eliana, que com muito esforo estiveram sempre moral,

    fisicamente, economicamente e psicologicamente comigo em todos os passos que trilhei

    na vida. No me deixando nunca faltar nada para que eu chegasse at aqui. Fosse no

    ambiente acadmico ou fora dele. E que me ensinaram todos os valores de honestidade e

    justia social. Valores estes os quais carrego em mim e que espero multiplica-los to

    sabiamente quanto me foram transmitidos. Ao meu irmo Lucas, que sempre fora um

    norte em minha vida, algum a quem nunca deixo de consultar a cada passo que dou em

    minha vida. Exemplo de garra e de se batalhar muito por tudo o que se almeja, mesmo

    que haja pedras no caminho, sempre com sua fiel parceira de igual carter, minha cunhada

    Daniela. E a Hanna, Vida, Pablito e Winnie por trazerem imensas alegrias essa famlia.

    Carolina, que adjetiva de forma superlativa o significado da palavra

    companheira, e por traduzir em convivncia e persistncia, o verdadeiro significado de

    lealdade e amor ao se fazer corpo disposto, porto seguro de minhas angstias e aflies

    em momentos de desertos, energia cintica quando me encontrava esttico e eco

    reverberante de qual fosse a frequncia transmitida por minhas vitrias e conquistas.

    Aos meus avs paternos Maria e Alar Ribeiro pela imensa falta que fazem em

    minha vida, porm que sou capaz de sentir em minha alma o orgulho que devem estar

    sentindo do neto nesse momento. Onde quer que estejam.

    Aos meus avs maternos Lucy e Edmundo Chapadeiro, onde, de uma herdei o

    amor pela arte e do outro o gosto pela cincia. Esferas to distintas e ao mesmo tempo to

    prximas que visei um perfeito casamento entre ambas. Tal como a unio dos dois.

    Janir, Snia, Tatiana e Helquias pelas oraes e por agora serem minha segunda

    famlia. E minha tia Cibele por sempre me apoiar querendo-me passar o basto da

    psicologia acadmica da famlia.

    s minhas afilhadas, Alice e Marina, a quem espero contribuir para lhes legar um

    mundo minimamente justo.

    Aos meus amigos(as)-irmos(s) Ricardo, Edgard, Denis, Gustavo, Bruna, Joana

    e Caio e meus primos Henrique e Thaty, e Guilherme e Juliana, por sua amizade

    duradoura, infinita e alm. Cada um me fez um pouco do que hoje sou. So meus nimus

    e nimas que me moldam e me completam.

    Lilian, Dbora, Julhia, Mariana, Maiara, Pedrinho e Poti por todo afeto e

    acolhimento emocional e estrutural recebido na cidade de Campinas. Uma pesquisa se

    faz tambm pelas condies que temos de faz-la e estas me deram slidas bases para tal.

    Materiais e afetivas.

    Rafael, Diego, Luiz Arthur e Ruben, meus Ministros-Layas, e Paula, Nadayca,

    Juliana, Larissa, Ana Paula, Caio, Genaro, Ana Carolina, Ana Maria, Kimie, Patrick e

    Emmanuel, companheiros(as) de doutorado-sanduche em Paris que singularizaram tal

    experincia, tornando-a nica, e, no mnimo, inesquecvel.

    Vanessa e sua linda famlia, que to bem me acolheram na Frana sempre que

    precisei, bem como os casais Fabi e Henrique, Viviane e Fbio e Monyk e Victor.

  • To the Dream Team: Akhil, Hassan, Catteya, Monica, Ali, Ins, Fouad, Julia,

    Nana, Seray, Emma, Lacina, Anna, Xudong and Martin by the common feeling of

    strangers far from home that united us beyond linguistic and cultural barriers.

    Ao Ivan, pela beno mais especial que j recebi em toda minha vida.

    Agradeo especialmente ao meu orientador, o professor Roberto Heloani por

    acreditar e abraar meu objetivo de pesquisa, conferindo-me total confiana e liberdade

    na conduo e execuo da mesma, sendo sempre um farol-guia pronto a me iluminar

    intelectualmente quando no enxergava horizontes.

    Aos professores Ren Mendes, Leonardo Vieira Wandelli, Maria Elizabeth

    Antunes Lima e Joo Silvestre da Silva Jnior por se disporem a sair de seus lares e tomar

    a estrada para rumarem comigo em minha banca de defesa deste doutorado.

    Giovanni Alves, Vera Navarro, Ricardo Antunes, Maria Maeno, Edith

    Seligmann-Silva, Eliana Pintor, Renata Paparelli, Margarida Barreto, Marisol Watanabe,

    Edvnia Loureno, Liliana Lima, Maria Helena Frem, Francisco Lacaz, Antnio

    Rebouas, Grijalbo Coutinho, Cludia Nogueira, Marcia Bernardo Hespanhol, Lusa

    Bustillo, Marcos Sabino, Erika Nakagawa dentre tantos(as) outros(as) que, alm de serem

    fonte de inspirao cientfica, foram sempre grandes colegas nessa jornada abrindo-me

    portas para que esta pesquisa se realizasse.

    Ao prof. Michael Lwy por gentilmente receber-me na Frana para que pudesse

    realizar o doutorado-sanduche, bem como o prof. Christian Herv. E principalmente

    Ana Maria Peanha, que, alm de presentear-me com sua amizade, fizeste de minha

    trajetria cientfica em terras francesas as mais proveitosas e frutferas possveis.

    Aos colegas de NETSS aqui representados nas figuras dos mestres Evaldo Piolli

    e Selma Venco pelas frequentes discusses e apoios a cerca de minha pesquisa.

    Fundacentro, CERESTs Araraquara, Diadema, Piracicaba, Campinas, So

    Bernardo do Campo, So Paulo (Central, Leste e Moca), USP, Unesp, Unifesp, INSS,

    Justia do Trabalho, Sindicatos e todas as demais instituies brasileiras e francesas, em

    especial a EHESS, Paris V e CGT, que incorporam os entrevistados e colaboradores dessa

    pesquisa que, de relato em relato, auxiliaram-me a construir e solidificar estre trabalho.

    Aos demais pesquisadores das reas do trabalho, da sade e da educao que se

    fizeram presentes em minha caminhada, bem como a todos os trabalhadores que pude

    acompanhar de perto seus processos contnuos de sade-doena no trabalho e a forma

    com que resistem.

  • Um homem se humilha se castram seu sonho. Seu sonho sua vida, e vida

    trabalho. E sem o seu trabalho, o homem no tem honra. E sem a sua honra,

    se morre, se mata. No d pra ser feliz, no d pra ser feliz

    (Um homem tambm chora Gonzaguinha)

    As cabeas levantadas, mquinas paradas, dia de pescar. Pois quem toca o

    trem pra frente, tambm de repente pode o trem parar [...] gente que conhece

    e prensa a brasa da fornalha, o guincho do esmeril. Gente que carrega a

    tralha, ai, essa tralha imensa chamada Brasil!

    (Linha de Montagem Chico Buarque)

    [...] de pronto o Doutor falou pro meu pai: Meus parabns Seo Joo, parece

    que seu filho agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto. Pintou um

    clima de urubu com mandioca entre ns. O doutor pisou no rabo, eu pensei.

    Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Est quarando na beira do rio

    entre as capivaras, o pai respondeu. O doutor se levantou da mesa e saiu

    com seu andar de vespa magoada.

    (Um doutor - Manoel de Barros)

    [...] porque doente o trabalho e ele quem deve ser curado para que as

    doenas dos trabalhadores sejam evitadas

    (Luigi Devoto, mdico italiano, considerado um dos fundadores da moderna

    Medicina do Trabalho).

    No culpa de nossos doutores se os servios mdicos da comunidade,

    como so prestados atualmente, constituem-se em absurdos homicidas.

    Que qualquer nao s e equilibrada, tendo observado

    que se pode assegurar o po desenvolvendo nos padeiros

    um interesse pecunirio em oferece-lo,

    possa prosseguir oferecendo aos cirurgies um interesse pecunirio no

    cortar a algum uma perna,

    o suficiente para que se considere desesperante a humanidade poltica.

    Mas exatamente isso que temos feito.

    Quanto mais espantosa a mutilao, mais o mutilador ganha.

    Quem cuida de uma unha do p encravada,

    recebe poucos xelins: quem corta seu estmago

    recebe centenas de guinus,

    menos quando opera um pobre para adquirir prtica.

    Vozes escandalizadas murmuram que as operaes so necessrias.

    Pode ser. Pode tambm ser necessrio enforcar um homem ou demolir uma casa.

    Mas ns evitamos ser o carrasco ou o demolidor, juzes nessa questo.

    Se o fizssemos, nenhum pescoo estaria mais seguro,

    nenhuma casa seria mais estvel

    (The Doctors Dilemma George Bernard Shaw)

    Eu, Daniel Blake, sou um cidado, nada mais, nada menos.

    (Daniel Blake, personagem do filme I, Daniel Blake de Ken Loach)

    O mdico no aprende a ser perito na faculdade, mas sim depois, na

    prtica. Nas percias do INSS a gente deixa de ser aliado do paciente e

    torna-se uma barreira para ele.

    (Perito do INSS aposentado)

  • RESUMO

    O presente estudo sobre as percias em trabalho-sade, visou conjugar uma anlise

    diacrnica, de forma que nos preocupamos com a gnese e o desenvolvimento deste

    campo no bojo das prxis em trabalho-sade no Brasil; com uma anlise sincrnica,

    pensando sua estrutura e funo dentro do que cunhamos, sistema jurdico-sanitrio, na

    contribuio da organizao da esfera da superestrutura na sociabilidade do capital.

    Assim, ancoramo-nos a todo tempo no mtodo dialtico para conhecermos a realidade

    concreta desse sistema pericial em trabalho-sade em seu dinamismo e nas inter-relaes.

    Por pesquisarmos um objeto vivo, mutvel e em constante transformao que jaz merc

    das transformaes poltico-econmicas do pas, no se configura sobremaneira

    porquanto empreitada simplificada. Inclusive, o prprio percurso da pesquisa, bem como

    a formao enquanto intelectual do pesquisador alteraram-se bastante no decorrer da

    mesma. A princpio, pensou-se em estudar somente os laudos psicolgicos produzidos

    pelos peritos na esfera da Justia do Trabalho. Entretanto, ao refletirmos que um

    instrumento, ou o produto de um trabalho no fala por si, mas sim que este a sntese de

    uma gama de determinaes e contradies sistmicas, optamos por ampliar o escopo

    com vistas compreenso do funcionamento deste mundo das percias em trabalho-

    sade, ampliando inclusive o universo dos laudos para os que tratassem das demais

    doenas no descartando que em todas h tambm o sofrimento psquico de quem as

    experiencia. Assim, foram analisados no somente os laudos periciais, como tambm

    demais documentos e leis que abarcam o universo das percias em trabalho-sade, bem

    como o trabalho desse profissional com suas potencialidades e limites, e do

    funcionamento orgnico deste sistema a partir da imerso nas esferas institucionais

    ligadas a esse fazer e da aproximao a pessoas que nelas transitam. Trazemos tambm

    dados que pudemos colher a partir de estgio doutoral no exterior, no caso, a Frana, para,

    numa breve comparao com um pas de economia dita mais avanada, como tambm

    com vasta produo de estudos cientficos sobre a temtica em questo, empreendermos

    uma breve anlise comparativa entre as formas pericias encontradas nos dois pases, sem

    perder de vista as diferentes formaes sociais e econmicas que separam ambos. Os

    resultados encontrados sugerem que o sistema pericial tal como o encontramos no mundo

    real e concreto no Brasil no funciona ou ao menos no se presta a quem deveria, no caso,

    os trabalhadores brasileiros(as) que prosseguem em suas duras jornadas pela sade no

    trabalho.

    Palavras-chave: Trabalho; sade; adoecimento; percias; nexo causal

  • ABSTRACT

    The present study on expertises in work-health aims at combining a diachronic analysis,

    so that we are concerned with the genesis and development of this field inside of work-

    health practices in Brazil; with a synchronic analysis, thinking its structure and function

    within what we called, legal-sanitary system, in the contribution of the organization of

    the sphere of superstructure in the sociability of capital. Thus, we are anchored at all times

    in the dialectical method to know the concrete reality of this expert system in work-health

    in its dynamism and interrelations. By researching a living and mutable object, in ever-

    changing, that lies at the mercy of the country's political-economic transformations, it is

    not a simplified task. In fact, the research course itself, as well as the researcher's

    intellectual forming, have changed considerably during the course of the research. At

    first, it was thought to study only the psychological reports produced by experts in the

    field of Labor Justice. However, when we reflect that an instrument, or the product of a

    work does not speak for itself, but rather that this is the synthesis of a range of

    determinations and systemic contradictions, we chose to broaden the scope with a view

    to understanding the functioning of this "world" of expertises in work-health, extending

    including the universe of reports to those who deal with other diseases, not ruling out that

    in all there is also the psychic suffering of those experiences. Thus, we analyzed not only

    the expert reports, but also other documents and laws that cover the universe of expertises

    in work-health, as well as the work of this professional with its potentialities and limits,

    and the organic functioning of this system from immersion in the institutional spheres

    connected with this work, and the approximation of the people who pass through them.

    We also bring data that we could collect from a doctoral internship abroad, in this case,

    the France, in a brief comparison with a country with a so-called more advanced

    economy, as well as with a vast scientific studies on the subject in question, making one

    comparative analysis between the different forms in expertises in work-health found in

    the two countries, without losing sight of the different social and economic formations

    that separate the two. The results suggest that the system of expertises in work-health as

    we find it in the real and concrete world in Brazil does not work or at least does not lend

    itself to who should, in this case, Brazilian workers who continue in their hard journey

    searching for the health at work.

    Keywords: Work; health; disease; expertises; causal nexus

  • RESUM

    La prsente tude sur les expertises en travail-sant vise combiner une analyse

    diachronique, de sorte que nous nous intressons la gense et au dveloppement de ce

    domaine dans les pratiques de sant au travail au Brsil ; et une analyse synchronique, en

    pensant sa structure et sa fonction au sein de ce que nous avons appel systme

    juridique-sanitaire en la contribution de l'organisation de la sphre de la superstructure

    dans la sociabilit du capital. Ainsi, nous sommes ancrs dans la mthode dialectique

    pour connatre la ralit concrte de ce systme d'expertises en travail-sant dans son

    dynamisme et ses interrelations. En mne une recherche consacre un objet vivant et

    mouvant, en constant transformation, soumis des transformations politico-conomiques

    du pays, ce qui n'est pas une tche simplifie. En fait, tout au long de la recherche, la

    formation intellectuelle du chercheur a ont considrablement chang. Au dbut, on

    pensait tudier uniquement les rapports psychologiques produits par des experts dans le

    domaine de la justice du travail. Cependant, quand nous rflchissons qu'un instrument,

    ou le produit d'un travail, ne parle pas par lui-mme, mais plutt que c'est la synthse

    d'une gamme de dterminations et de contradictions systmiques, nous avons choisi

    d'largir le champ pour comprendre le fonctionnement de ce monde d'expertises en

    travail-sant, amplifie mme la dimension des rapports diverses qui s'occupent d'autres

    maladies, sans nier que dans ces maladies il y ait aussi souffrance psychique dans ces

    expriences. Ainsi, nous avons analys non seulement les rapports d'expertises, mais aussi

    d'autres documents et lois qui englobent l'univers d'expertises en travail-sant, ainsi que

    le travail de ce professionnel avec ses potentialits et ses limites. Et le fonctionnement

    organique de ce systme partir d'immersion dans les sphres institutionnelles lies ce

    travail, et nous rapprochement des personnes qui les traversent. Nous apportons

    galement des donnes qui ont t collecter lors d'un stage doctoral en France, pour

    raliser une brve comparaison avec un pays conomiquement plus dvelopp o il y

    a des vastes tudes scientifiques sur le sujet en question, en faisant une analyse

    comparative entre les diffrentes formes d'expertises en travail-sant trouves dans les

    deux pays, sans perdre de vue les diffrentes formations sociales et conomiques qui les

    sparent. Les rsultats suggrent que le systme d'expertise en travail-sant que nous

    trouvons dans le monde rel et concret au Brsil ne fonctionne pas ou du moins ne se

    prte pas ce quil devrait. Dans ce cas, les travailleurs brsiliens continuent leur difficile

    voyage la recherche de la sant au travail.

    Mots-cls : Travail; sant; maladies; expertises; lien de causalit

  • SUMRIO

    APRESENTAO ....................................................................................................... 13

    INTRODUO.............................................................................................................11

    CAPTULO 1. SOBRE O SISTEMA JURDICO-SANITRIO

    SUPERESTRUTURAL ................................................................................................ 29

    CAPTULO 2. RESGASTE HISTRICO DO CAMPO PERICIAL NO BRASIL

    ........................................................................................................................................ 37 2.1 Surgimento e institucionalizao do campo pericial no Brasil: Do Imprio Primeira Repblica

    ..................................................................................................................................................................... 38

    2.2 A experincia estatal jurdico-legislativa do servio sanitrio paulista em trabalho-sade ........ 41

    2.3 A consolidao do campo pericial pela Medicina Legal .................................................................. 47

    2.4 "Entre Cila & Carbdis": o taylorismo-fordismo caboclo e o campo pericial do comeo do sculo

    XX ............................................................................................................................................................... 53

    2.5 O campo da Sade do Trabalhador influencia a prtica pericial .................................................. 63

    2.6 A aurora da acumulao flexvel tupiniquim e a consolidao do poder pericial mdico ........... 68

    2.7 A Caixa de Pandora est aberta. E agora? ....................................................................................... 80

    CAPTULO 3. FORMAS PERICIAIS EM TRABALHO-SADE ......................... 85

    3.1. Os diferentes corpus: afinal, de que percias estamos falando? ........................ 85

    3.2 Percias Administrativas: objetos e processos prprios ...................................... 90

    3.3 Percias Securitrias: da Medicina do Seguro s Previdncias Privadas .......... 96

    3.4 Percias Previdencirias: preceitos, objetos e finalidades ................................. 103 3.4.1 O primado da tcnica e o arbtrio livre: o modelo peritocntrico ............................................. 124

    3.4.2 Mdico Perito ou Sherlock Holmes? ............................................................................................ 132

    3.4.3 O SABI e a autonomia do(a) perito(a) mdico(a) ....................................................................... 142

    3.4.4 Subjetividade Inautntica e alienao do outro: fraudes, simulaes e corrupes ................ 145

    3.4.5 O binmio capacidade/incapacidade e o dano laboral: Baremos x CIF ................................... 152

    3.4.6 O NTEP e as Diretrizes de Apoio Deciso Mdico Pericial em Transtornos Mentais ......... 168

    3.4.7 A judicializao previdenciria e a (famigerada) reforma da Previdncia .............................. 180

    3.5 Percias Judiciais: conceitos, campos e atuao ................................................. 190 3.5.1 O Perito Judicial: habilitao, requisitos para a nomeao, deveres, atribuies e a tica

    profissional............................................................................................................................................... 203

    3.5.2 O Perito Judicial e a prova tcnica ............................................................................................... 219

    3.5.3 Remunerao do trabalho pericial ............................................................................................... 231

    3.5.4 O laudo pericial judicial: conceitos, metodologias, requisitos formais e de contedo ............. 238

    3.5.5 A figura dos assistentes tcnicos e do contraditrio na prova pericial ..................................... 246

    3.5.6 Perito Mdico ou Perito Tcnico: quem ento pode ser Perito Judicial? ................................. 256

    3.5.7 Percias Judiciais em Sade Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) .................................. 262

    3.6 Percias no Ministrio Pblico do Trabalho: aes coletivas, prevenes e a

    vigilncia fiscalizadora ............................................................................................... 275

    CAPTULO 4. VASCULHANDO A CAIXA-PRETA DAS PERCIAS ............... 281 4.1 A problemtica do nexo causal ........................................................................................................ 281

    4.2 Percia: produto e processo de trabalho ......................................................................................... 298

    4.3 O perito e a organizao da cultura ................................................................................................ 317

    4.4 Medicina do Trabalho ou do Capital? ............................................................................................ 331

    4.5 Ser ou no ser perito? Eis a questo................................................................................................ 334

    CONCLUSES ........................................................................................................... 344

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 359

    GLOSSRIO...............................................................................................................389

  • 13

    APRESENTAO

    No existe uma estrada real para a cincia, e somente aqueles que no temem

    a fadiga de galgar suas trilhas escarpadas tm chance de atingir seus cumes

    luminosos (MARX, 2013, p. 186).

    Defender uma tese de doutoramento em uma Faculdade de Educao quando sua

    formao inicial se d na Psicologia somado a um Mestrado em Cincias Sociais e

    dedicando-se ao exame e anlise de processos pertinentes ao campo da Medicina e do

    Direito, no das tarefas mais fceis.

    Contudo, a ideia e vontade de pesquisar as percias em trabalho-sade se deu

    justamente por observar uma profcua atuao interdisciplinar quando ns, ainda no

    mestrado, tivemos o privilgio de fazer parte de uma reunio cientfica na sede da

    FUNDACENTRO em So Paulo-SP no dia 30 de maio de 2011 que contou com

    profissionais da psicologia, da sociologia, da medicina, do direito, da educao e da

    terapia ocupacional, todos esses vinculados de alguma forma academia, a servios

    pblicos de sade e, a rgos representativos de classe de trabalhadores. Nela, foi

    discutido a questo das percias em trabalho-sade e a problemtica em se evidenciar o

    nexo causal dos adoecimentos relacionados ao trabalho. Desta reunio, emerge como

    proposta, infelizmente nunca concretizada, a organizao de um livro que contra

    argumentasse a produo existente a cerca das simulaes nas percias mdicas em

    trabalho-sade.

    Mesmo voltado a outro objeto de pesquisa poca do mestrado, viemos flertando

    desde ento com esse tema que tanto nos chama a ateno e que nos pareceu deveras

    preocupante aos olhos de nossas referncias bibliogrficas agora, providas de corpos e

    rostos para ns a partir da reunio descrita acima. Porque esse tema tanto os afligia? O

    que haveria nesse mundo das percias em trabalho-sade que incomodaria tanto queles

    que, assim como ns, pensam o campo da sade do trabalhador como um espao de lutas

    e resistncias rumo uma emancipao possvel pela via jurdico-sanitria? E acima de

    tudo: se fosse possvel a ns conhecermos, compreendermos e interpretarmos esse

    mundo de perto, poderamos tambm sermos capazes de transform-lo?

    Presunes parte, eis que aps tanto elucubrar sobre o tema em questo,

    ingressamos no doutorado na Faculdade de Educao da UNICAMP em 2014 sob

    orientao do professor (e agora amigo) Dr. Roberto Heloani a fim de nos debruarmos

    e imergirmos no referido mundo das percias em trabalho-sade. As inquietudes iniciais

  • 14

    partiram de tentarmos entender: De quais percias em trabalho-sade estamos falando?

    Em que esferas institucionais as encontramos? Quais suas potencialidades e limites em

    cada uma? Como se apresentam no concreto real? Como funcionam? Cumprem a que se

    prezam? E a quem servem? Convm a quem servem? Poderiam ser de outra forma?

    Eis que ento o presente trabalho justifica-se por vislumbrar, partilhando da viso

    em comum da fatdica reunio do dia 30 de maio de 2011, a existncia de dificuldades

    enfrentadas pelos trabalhadores brasileiros na obteno do nexo causal entre seus

    problemas de sade e suas condies de trabalho mediante subsuno a processos

    periciais em trabalho-sade. O fardo de se entrar em terrenos profissionais os quais sua

    formao inicial lhe impe abismos epistemolgicos e terico-prticos justamente

    manter o foco de uma pesquisa acadmica preocupada com a transformao social:

    preocupar-nos com os porqus enquanto ainda buscamos compreender os o qu e

    como de forma retardatria.

    Demoramos a compreender que finalmente o lugar do qual falamos: (1) parte do

    olhar da Psicologia, principalmente da Psicologia Social do Trabalho, ou seja, de nossa

    formao inicial, em que temos intrnseca uma herana de exerccio constante da escuta

    apurada e analtica voltada para a compreenso do desgaste no trabalho; (2) abrange uma

    concepo sociolgica oriunda eminentemente da Sociologia do Trabalho que considera

    a historicidade dos processos sociais e dos conceitos, as condies socioeconmicas de

    produo dos fenmenos e as contradies sociais inerentes sociabilidade do capital;

    (3) compreende sade e doena enquanto um processo dinmico e contraditrio

    resultante da confluncia (com ou sem coerncia) das polticas econmicas e sociais, das

    transformaes do meio ambiente e ambiente de trabalho que tem nos pressupostos da

    Medicina Social Latino Americana um modelo de investigao que afirma sua

    historicidade e busca compreender a multiplicidade de suas determinaes; (4) visa

    tutela jurdica da sade dos trabalhadores porquanto direito inalienvel prprio da viso

    do Direito do Trabalho crtico e; (5) entende Educao enquanto processo social com

    vistas emancipao do trabalho estranhado inerente forma social do capital.

    Todavia, nos pretendemos a todo tempo partir da aparncia visando alcanar a

    essncia. Ou seja, tivemos no horizonte, a essncia das percias em trabalho-sade,

    capturando sua estrutura e dinmica por meio de procedimentos analticos e, operando a

    sua sntese, pudemos reproduzi-las no plano do pensamento. Ao pesquisa-las atravs dos

    mtodos adotados, tambm pudemos reproduzi-las, no plano ideal, a essncia do que

    investigamos.

  • 15

    Compreendemos ento, que nosso papel de sujeito-pesquisador essencialmente

    ativo apreender no a aparncia ou a forma dada desse mundo das percias em trabalho-

    sade, mas a sua essncia, a sua estrutura e a sua dinmica, mais exatamente para

    entende-lo enquanto um processo. Desse modo, tivemos que ser capazes de apreendermos

    um mximo de conhecimentos oriundos das cincias que atravessam tal mundo, critic-

    los, revis-los e ainda por cima sermos dotados de imaginao e criatividade sociolgica.

    Como dissemos, um papel fundamental, porm uma tarefa igualmente herclea.

    Por isso, o estudo aqui presente sobre as percias em trabalho-sade, visou

    conjugar uma anlise diacrnica, de forma que nos preocupamos com a gnese e o

    desenvolvimento deste campo no bojo das prxis em trabalho-sade no Brasil, com uma

    anlise sincrnica, pensando sua estrutura e funo no que cunhamos, sistema jurdico-

    sanitrio, na contribuio da organizao da esfera da superestrutura na sociabilidade do

    capital.

    Assim, ancoramo-nos a todo tempo no mtodo dialtico para conhecermos a

    realidade concreta desse sistema pericial em trabalho-sade em seu dinamismo e nas

    inter-relaes. Novamente, enfatizamos que, pesquisar um objeto vivo, mutvel e em

    constante transformao que jaz merc das transformaes politicas do pas no se

    configura sobremaneira porquanto empreitada simplificada. At o fechamento das

    ltimas linhas textuais deste trabalho estvamos ainda descobrindo fatos novos que de

    hora para outra, alteravam os entremeios do mesmo.

    Inclusive, o prprio percurso da pesquisa, bem como a formao enquanto

    intelectual do pesquisador alteraram-se bastante no decorrer da mesma. A princpio,

    pensvamos em estudar somente os laudos psicolgicos produzidos pelos peritos na

    esfera da Justia do Trabalho. Entretanto, ao refletirmos que um instrumento, ou o

    produto de um trabalho no fala por si, mas sim que este a sntese de uma gama de

    determinaes e contradies sistmicas, optamos por ampliar o escopo com vistas

    compreenso do funcionamento deste mundo das percias em trabalho-sade.

    Pretensiosamente chegamos a pensar em desenvolver um instrumento tal como os da

    epidemiologia que auxiliasse na verificao do nexo causal entre adoecimentos-trabalho.

    Projeto este que se dar a posteriori num ps-doutorado ou em nossa vida acadmica.

    Contudo, esperamos com esse trabalho que este no se limite estante do

    orientador, mas sim, que tal como foi idealizado, cumpra seu papel social, que seja, no

    mnimo, trazer tona a discusso sobre as percias em trabalho-sade por uma perspectiva

    crtica.

  • 16

    INTRODUO

    A anatomia do ser humano uma chave para a anatomia do macaco. Por

    outro lado, os indcios de formas superiores nas espcies animais inferiores

    s podem ser compreendidos quando a prpria forma superior j conhecida

    (MARX, 2011a, p. 84).

    Nesta nossa pesquisa de doutoramento buscamos investigar as mltiplas

    determinaes que tangem o campo das percias em trabalho-sade. A estrutura e a

    dinmica deste objeto de pesquisa, ou seja, seu processo, fizeram com que adotssemos

    uma perspectiva de no operarmos com definies, mas sim, quanto mais avanamos com

    a pesquisa, mais descobrimos determinaes, as mais simples, porm carregadas das

    relaes e das dimenses que objetivamente possuem e devem adquirir para reproduzir

    as mltiplas determinaes1 que constituem o concreto real. Esse concreto no

    pensamento, que se refere ao conhecimento propriamente dito, constitui um todo novo

    que resulta do processo da inter-relao entre o objeto a ser pesquisado em construo e

    o sujeito-pesquisador igualmente em construo.

    Tais determinaes esto postas no nvel da universalidade. Na imediaticidade do

    real, elas mostram-se como singularidades mas o conhecimento deste concreto real

    opera-se envolvendo universalidade, singularidade e particularidade. Ora, quando Marx

    (2011a, p. 84) nos diz que a anatomia do ser humano uma chave para a anatomia do

    macaco elucida didaticamente todo o mtodo investigativo presente nesse trabalho de

    forma que precisamente parte do pressuposto que, somente quando uma forma mais

    complexa se desenvolve e conhecida, que se pode compreender inteiramente o menos

    complexo.

    Pautados ento no mtodo dialtico, este trabalho caminhou da fase mais

    desenvolvida de cada forma pericial em trabalho-sade investigada no sentido de ento

    analisar sua gnese e, depois da anlise dessa gnese, retornar ao ponto de partida, isto ,

    fase mais evoluda, agora compreendida de forma ainda mais concreta, iluminada pela

    1 Quando falamos de sntese de mltiplas determinaes, nos referimos ao entendimento de Snchez

    Gamboa (2012, p. 152-153) quanto construo do objeto determinado pelos contextos, quer dizer, pelas

    condies materiais e histricas que permitem sua existncia e sua manifestao como fenmeno. Na

    realizao desse processo, caminhamos do emprico concreto (todo sincrtico) ao abstrato (categorias

    diversas de anlises) e deste concreto ao pensamento [...] a dialtica inclui a dinmica do caminho de volta,

    do todo s partes e das partes ao todo. D-se ao contexto uma nfase fundamental, pois os fenmenos

    dependem dos contextos de produo, que determinam sua existncia, e dos contextos de interpretao, que

    determinam seu conhecimento.

  • 17

    anlise histrica, criticizada e pela funo social do pesquisador. Inclusive, temos em

    nosso horizonte que tal anlise, apoiada na dialtica entre o lgico e o histrico, s se

    realizar de forma verdadeiramente esclarecedora do objeto investigado se for apoiada

    numa perspectiva crtica, isto , se for realizada a crtica daquilo que esteja sendo tomado

    como a forma mais desenvolvida.

    Assim, coube-nos aqui nas prximas linhas apresentar as diferentes formas

    pericias em trabalho-sade2 tal como dissemos, no movimento do concreto real. Nosso

    recorte metodolgico focou nas formas que julgamos "mais avanadas" ou mais

    desenvolvidas do fazer pericial em trabalho-sade - e que de certa forma perpassam as

    demais -, quais sejam, as percias de cunho previdencirios e as da esfera jurdica

    trabalhista. A partir ento destes modelos superiores e complexos que estruturam todo um

    campo especfico em seus mbitos, depreendemos numa anlise na qual visou-se a

    obteno da chave da compreenso dos demais modelos periciais em trabalho-sade aqui

    tambm ilustrados. Bem como de suas funes, processos e determinaes.

    Nesse intenso movimento dialtico de efetiva anlise diacrnica e sincrnica

    destes campos periciais em trabalho-sade especificados, tambm buscamos absorver de

    que forma eles, bem como os demais, aproximam-se e distanciam-se dos pressupostos do

    campo da Sade do Trabalhador3 e, portanto, de qual viso e em que conceito ideolgico

    de sade ancoram sua prxis durante os atos periciais sistmicos em si, baseando assim,

    suas convices, fazeres e consequentes influncias no desenvolvimento perene do

    campo tal como o encontramos no universo do real. E que cumprem funo determinada

    material e historicamente na organizao do trabalho na sociedade do capital.

    Ou seja, partindo de uma anlise histrica crtica, sempre contrapondo o ideal e o

    material, o prescrito e o real, o que encontramos na literatura e o que nos dizem os atores

    sociais envolvidos, a anlise documental empreendida, bem como nossa imerso prtico-

    vivencial nos campos destacados, objetivou a elucidao da estrutura e dinmica e,

    portanto, do processo, do campo pericial trabalho-sade4 em nosso pas de modo a

    2 Enunciamos como formas pericias em trabalho-sade por se tratar de mtodos de se efetuar as percias

    que no necessariamente ancoram-se nos postulados terico-metodolgicos do campo da sade do

    trabalhador, mesmo sendo realizadas processualmente no interior deste. 3 Em nosso Glossrio no incio deste trabalho expomos nosso entendimento sobre os pressupostos que

    embasam o campo da Sade do Trabalhador. Compreendemos a Sade do Trabalhador tanto como campo

    epistemo-metodolgico com seus conceitos prprios sobre o processo sade-doena relacionado ao

    trabalho, como tambm enquanto rea, ou seja, espao poltico-social em que as definies do campo so

    efetivadas ou deturpadas imprimindo a marca do trabalho real na atividade prtica cotidiana. 4 Tambm nos ateremos ao longo do texto, mais aos adoecimentos relacionados ao trabalho e menos aos

    acidentes de trabalho tpicos, por considerarmos o primeiro de maior dificuldade quanto a identificao do

    nexo de causalidade com o trabalho.

  • 18

    compreendermos sua gnese e desenvolvimento durante todo um processo social e

    histrico, para da especificarmos seus limites e enxergarmos suas possibilidades de

    transformao.

    Nota-se que muitos pesquisadores em nossa rea de estudos anunciam a

    importncia do mtodo dialtico e manifestam sua inteno em utiliz-lo, mas, no trajeto

    da investigao, desenvolvem anlises que em nada diferem dos modelos positivistas ou

    funcionalistas de se fazer pesquisa. Talvez em muitos momentos tenhamos feito o mesmo,

    pois como dito anteriormente, o trajeto da pesquisa tambm o de maturao do

    pesquisador.

    De toda forma, buscou-se na maior parte do tempo e com o maior rigor possvel,

    durante esta nossa longa imerso no campo pericial em trabalho-sade, disseminar nos

    escritos a seguir toda a trajetria, formas e mtodos de pesquisa utilizados nesse trabalho.

    Ou seja, o exerccio foi o de nos distanciarmos dos formatos positivistas de tese

    acadmica em que primeiramente todo um arcabouo terico apresentado para somente

    ao final ser apresentada a anlise do objeto que se pesquisa. Assim, nosso levantamento

    bibliogrfico sobre o tema, observao participante nos ambientes onde estas ocorrem,

    anlise de documentos pertinentes ao sistema pericial em trabalho-sade, bem como as

    falas dos(as) entrevistados(as) e nossa experincia pesquisando o tema a partir de estgio

    doutoral no exterior, estaro pulverizadas e sintetizadas dialeticamente nas linhas que

    se seguem deste estudo buscando apontar para um panorama da finalidade e das etapas

    do sistema pericial em trabalho-sade e se, no horizonte, estas vem efetivando o nexo

    causal trabalho-adoecimento compreendendo os determinantes sociais do processo sade-

    doena.

    Desse modo, o presente trabalho visou s seguintes etapas metodolgicas para a

    sua execuo:

    A) Anlise bibliogrfica

    Nesse quesito, nossos principais objetivos foram:

    a) analisar o estado da arte da literatura que est sendo utilizada em trabalhos

    que abrangem o campo das percias em trabalho-sade a inclusos teses e dissertaes,

    trabalhos apresentados e publicados em anais de congressos e outros encontros

    cientficos, artigos publicados em revistas ou peridicos e livros da rea da Medicina do

    Trabalho; do Direito do Trabalho; da Psicologia Social do Trabalho; da Sociologia do

  • 19

    Trabalho; da Sade do Trabalhador; da Medicina Preventiva e Social; da Psiquiatria

    Ocupacional e da Psiquiatria Social; da Economia Poltica Crtica; da Sade Pblica e da

    Sade Coletiva; da Ergonomia; da Epidemiologia Social e, claro; das Percias Mdicas e

    Medicina Legal;

    b) delimitar o perodo de tempo em que estas obras foram publicadas. Para a

    anlise histrica, buscou-se obras que datam da gnese do campo pericial no Brasil. J

    para a compreenso do desenvolvimento, da estrutura e dinmica dos modelos atuais,

    demos preferncia s publicaes dos dias presentes, posteriores a determinados marcos

    histricos que alteram as diretrizes do fazer pericial em trabalho-sade, tais como: (1) a

    Lei n 13.467/2017 da reforma trabalhista e a Lei n 13.429/2017 que amplia a

    terceirizao; (2) a Lei n 13.341/2016 em que o Ministrio do Trabalho e Previdncia

    Social (MTPS) extinto, de forma que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

    passa a vincular-se ao Ministrio do Desenvolvimento Social e Agrrio (MDAS)5 e a

    Previdncia Social se torna uma Secretaria do Ministrio da Fazenda; (3) o PL n

    257/2016 que precariza o servio pblico nos estados; (4) a PEC n 241/2016 que limita

    os gastos pblicos em 20 anos; (5) a Portaria n 152/2016 e a Instruo Normativa

    INSS/PRES n 90/2017 que consolidam a chamada alta programada, pela qual o perito

    estima uma provvel data de recuperao do trabalhador e, assim, fixa o prazo de

    trmino do benefcio previdencirio, dispensando a realizao de nova percia e cabendo

    ao trabalhador, que no se sinta apto a retornar ao trabalho, o agendamento de um novo

    exame pericial; (6) a deciso do Conselho Nacional de Previdncia Social de 17 de

    novembro de 2016 pela qual o INSS dispensa as empresas de comunicar os acidentes de

    trajeto e os acidentes de trabalho que no impliquem afastamento superior a 15 dias67; (6)

    a reviso dos benefcios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), previsto

    pela Medida Provisria n 739/2016 que convoca desde agosto de 2016, mais de 730 mil

    trabalhadores que recebiam o auxlio-doena para a reviso do benefcio como medida de

    se passar um pente-fino nos benefcios concedidos aos segurados pelo Instituto; (7) a PEC

    287/2016 sobre a Reforma da Previdncia; (8) os Decretos n 8.691/16 e 8.725/16 que

    5 Atualmente renomeado para Ministrio do Desenvolvimento Social (MDS) a partir da Lei n 13.502, de

    1 de novembro de 2017. 6 CNPS: Conselho aprova alteraes no clculo do Fator Acidentrio de Preveno. Disponvel em:

    http://www.previdencia.gov.br/2016/11/cnps-conselho-aprova-alteracoes-no-calculo-do-fator-acidentario-

    de-prevencao/. Acesso em 9 dez. 2016. 7 A medida tem impacto direto sobre o clculo do Fator Acidentrio Previdencirio (FAP) pois, diminuindo

    o nmero de notificaes de acidentes, reduz-se tambm a contribuio empresarial ao FAP que hoje

    representa 1% a 3% da folha de pagamento (VARGAS, 2017)

    http://www.previdencia.gov.br/2016/11/cnps-conselho-aprova-alteracoes-no-calculo-do-fator-acidentario-de-prevencao/http://www.previdencia.gov.br/2016/11/cnps-conselho-aprova-alteracoes-no-calculo-do-fator-acidentario-de-prevencao/

  • 20

    abarcam as percias previdencirias; (9) a MP n 808/17, a Resoluo n 233/16 e o

    CPC/15 que envolvem as percias judiciais; (10) a aprovao da Lei do Ato Mdico n

    12.842/13; (11) o Projeto de Lei 7.200/2010 que prope a ampliao da participao de

    outros profissionais da sade na percia do INSS; (12) a incluso do NTEP a partir da

    Instruo Normativa n 31 INSS/PRES de 10 de setembro de 2008; (13) a criao da

    Diretoria de Sade do Trabalhador (DIRSAT) da Previdncia Social em 2007; (14) a

    instituio da carreira de perito mdico no INSS enquanto cargo pblico a partir da Lei

    n. 10.876/2004; (15) a implementao do SABI em 2003 no sistema informacional do

    INSS; (16) 0 lanamento do Manual Tcnico de Percia Mdica em 2002 pelo INSS;

    (17) a publicao do Anexo II a partir do Decreto n 3.048/99 que insere a Lista das

    Doenas Relacionadas ao Trabalho no mbito da Previdncia Social; (18) a Lei Orgnica

    da Seguridade Social de n 8.212/91; (19) a Lei Orgnica da Sade n 8.080/90 e, por fim;

    (20) a promulgao da Constituio Federal de 1988 (que projeta uma nova abordagem

    de sade pblica sob tutela estatal), at os dias atuais.

    c) verificar a frequncia na citao de autor(es), livro(s), revista(s), editora(s),

    encontro(s) cientfico(s), o que dar uma indicao de fontes de informao de prestgio

    onde pode-se pesquisar trabalhos e publicar artigos.

    d) ser um referencial bibliogrfico para o meio acadmico e pessoas interessadas

    nestes assuntos.

    B) Anlise documental

    a) Reunio, organizao e anlise de leis, emendas constitucionais, portarias,

    decretos, normativas, medidas provisrias, regulamentos, peties, smulas, orientaes

    jurisprudenciais, acrdos e documentos outros que abordem a regulamentao e

    diretrizes do sistema pericial em trabalho-sade utilizando dos critrios do item b) da

    Anlise Bibliogrfica.

    b) Utilizao, verificao e anlise de laudos periciais e seus devidos quesitos,

    bem como do contexto de seus referidos processos, sentenas judiciais e votos oriundos

    de recursos ordinrios em 2 instncia, produzidos em decorrncia das esferas

    previdencirias e judicirias reunidos por geolocalidade.

  • 21

    Em posse dos documentos necessrios para a pesquisa, na etapa subsequente,

    procedemos na leitura, anlise e formulao das categorias que foram formuladas a

    posteriori e no a priori. Foram analisados:

    - 10 (dez) laudos periciais previdencirios oriundos de agncia do INSS de

    Curitiba-PR datados de 2008 a 2014 e 3 (trs) de agncia do INSS em Diadema-SP de

    mesmo segurado compreendendo as respectivas datas de exames periciais: 21/11/2016,

    10/03/2017 e 04/05/2017;

    - 2 (dois) laudos periciais trabalhistas advindos da 2 Vara Trabalhista de

    Dourados-MS sendo um de setembro e outro de dezembro de 2014; 1 (um) proveniente

    da 6 Vara do Trabalho de Belo Horizonte-MG confeccionado em abril de 2015; 10 (dez)

    procedentes da 77 Vara do Trabalho de So Paulo-SP produzidos entre outubro de 2013

    fevereiro de 2014, e; 7 (sete) oriundos da 2, 4 e 17 Varas do Trabalho de Curitiba-PR,

    da 6 Vara Federal da Seo Judiciria do Paran, da 1 e 2 Vara do Trabalho de So Jos

    dos Pinhais-PR e da 2 Vara do Trabalho de Araucria-PR compreendendo os anos de

    2003 a 2010 e totalizando, assim, 20 (vinte) laudos periciais trabalhistas;

    - 5 (cinco) relatrios de assistentes tcnicos, todos da parte do trabalhador, ligados

    a um escritrio de advocacia de Curitiba-PR contestando algumas das percias

    encontradas na mesma regio e analisadas por ns conforme descrito acima;

    - 2 (dois) laudos periciais derivados de Aes Civis Pblicas (ACPs) do Ministrio

    Pblico do Trabalho (MPT), um executado pela 12 Vara do Trabalho de Manaus-AM

    em fevereiro de 2014 e outro na 2 Vara do Trabalho de Toledo-PR em abril de 2014;

    - 57 (cinquenta e sete) votos de Desembargadores, compreendendo os anos de

    2012 a 2015, sobre processos alvo de recursos em 2 instncia no Tribunal Regional do

    Trabalho da 15 regio em que as percias em trabalho-sade constam sintetizadas no

    corpo do texto;

    - 2 (dois) PPRAs e 3 (trs) PCMSOs da mesma empresa do ramo de construo

    civil, datados de 2006 a 2009 e que integravam processo referente a um dos laudos

    encontrados na regio de Curitiba-PR e;

    - 1 (um) Inqurito Civil encaminhado pela Procuradoria Regional do Trabalho da

    15 Regio no qual o Cerest-Araraquara realizou percia das condies de trabalho-sade

    de um hospital pblico estadual de sua jurisdio em que acompanhamos de 20 de

    fevereiro de 2015 ao arquivamento do mesmo em 16 de fevereiro de 2016.

  • 22

    C) Entrevistas Abertas (no estruturadas)

    Procedemos com o formato de entrevistas em que o pesquisador tem o mnimo de

    participao. Foram formuladas questes disparadoras procedendo da escuta do que o

    entrevistado teria a narrar. Nossa interveno sempre que possvel foi mnima. Os

    entrevistados quem conduziam sua narrativa e apenas os interrompamos para esclarecer

    ou aprofundar algum aspecto que considerssemos fundamental para saneamento da

    questo.

    Realizamos 18 entrevistas com mdicos peritos previdencirios, 13 com peritos

    judiciais, 25 com interlocutores qualificados, 2 peritos do MPT e com 7 trabalhadores

    para que os mesmos pudessem nos dar, atravs de suas experincias prticas, o panorama

    atual do nosso campo de estudos e quais vem sendo as formas de se identificar e vincular

    determinados adoecimentos como derivados do trabalho. As entrevistas foram realizadas

    entre maro de 2016 a dezembro de 2017. A todos foi apresentado o Termo de

    Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participao da pesquisa.

    Os critrios de incluso dos entrevistados pautaram-se: no caso dos peritos, tanto

    previdencirios quanto judicirios, na prpria natureza do trabalho dos mesmos em se

    tratando do exame de casos ligados ao binmio trabalho-adoecimento e de suas

    vinculaes institucionais com o INSS e/ou Justia do Trabalho; em se tratando dos

    interlocutores qualificados, foram entrevistados pesquisadores, docentes, ou

    trabalhadores do servio pblico de sade com reconhecido savoir-faire no campo da

    Sade do Trabalhador e que tangenciam e vivenciam de alguma forma a questo das

    percias em trabalho-sade; quanto aos trabalhadores foram selecionados aqueles que

    vivenciaram situaes periciais (nas esferas previdencirias e/ou judicirias) em algum

    momento de suas jornadas laborais. Todos os nossos entrevistados foram encaminhados

    a ns por indicao de pessoas ligadas de alguma forma questo das percias em

    trabalho-sade, conquanto os prprios entrevistados indicavam outros em igual situao

    e/ou que se encaixassem em nossos critrios de incluso.

    Os critrios de excluso dos participantes de nossa pesquisa relacionam-se queles

    peritos que, ou no realizassem percias em trabalho-sade, mas sim mdico-legais,

    contbeis, cveis, criminais, qumicas e ambientais ou; dentro da esfera das percias em

    trabalho-sade, lidassem apenas com percias administrativas estatais, securitrias

    privadas, de periculosidade e insalubridade. Quanto aos interlocutores qualificados,

    foram excludos da pesquisa aqueles que to somente lidassem com o tema trabalho ou

  • 23

    com o campo da sade ou com a esfera do Direito que no o trabalhista, e no com a

    interconexo destes. Sobre os trabalhadores, foram excludos os que, pudessem estar

    ligados a liames trabalhistas, porm que no foram necessrias percias em trabalho-

    sade, ou ento os que somente tenham passado por percias administrativas estatais e/ou

    securitrias privadas em se tratando de trabalho-sade.

    As entrevistas com os peritos previdencirios se deram ou em seus postos de

    trabalho (seja no INSS e/ou outros), ou consultrios particulares ou ainda por Skype para

    os que se encontravam fora do Estado de So Paulo. Com os peritos judicirios, as

    entrevistas foram realizadas em seus escritrios particulares, em rgos pblicos (como

    universidades e servios de sade), espaos aleatrios (como cafs e restaurantes) ou

    tambm por Skype para aqueles que no se encontravam no Estado de So Paulo. Os

    interlocutores qualificados foram todos entrevistados em seus espaos de trabalho, seja

    na esfera pblica e/ou privada presencial ou virtualmente (nos casos dos que se

    encontravam nos demais estados brasileiros que no SP). J os trabalhadores foram todos

    entrevistados no mbito dos servios pblicos de sade a exceo de um, em que a mesma

    foi realizada em consultrio particular do pesquisador.

    D) Grupos Focais

    Nos utilizamos da tcnica de pesquisa qualitativa denominada Grupo Focal de

    forma a organizarmos e conduzirmos uma discusso com grupos de trabalhadores, sobre

    questes ligadas s percias em trabalho-sade. A partir da interao entre os participantes

    que possuam em comum, j terem, ao menos uma vez em sua vida laboral, experienciado

    uma situao de percia em trabalho-sade seja no mbito do INSS quanto da Justia

    Trabalhista, tivemos como objetivo compreender o que essas pessoas pensam e como se

    sentem a respeito do nosso tema de pesquisa, bem como, de criarmos um espao de

    confiana mtua para que os mesmos pudessem relatar e elaborar suas experincias de

    vivncia em situaes periciais.

    Foram realizados 2 (dois) grupos focais nas dependncias do Cerest-Diadema no

    ms de dezembro de 2017 com 5 (cinco) trabalhadores num grupo e 4 (quatro)

    trabalhadores noutro. Os ramos de atividade compreendiam operadores de mquinas de

    diferentes setores, trabalhadores da construo civil, da indstria qumica, auxiliares de

    servios gerais, do setor de frigorficos e do ramo da metalurgia e siderurgia.

  • 24

    Os critrios de incluso para participao nos grupos focais se deram pela

    permanncia de atendimento dos trabalhadores no servio de ateno sade do

    trabalhador do Cerest-Diadema ao passo que os critrios de excluso basearam-se ou nos

    trabalhadores com afastamentos inferiores a 15 dias e, portanto, em que rgo

    previdencirio no foi acionado nenhuma vez em sua trajetria laboral ou ento naqueles

    em que no se situassem imbricados em lides trabalhistas que envolvessem casos de

    adoecimentos relacionados ao trabalho.

    E) Observao Participante

    Em se tratando de estabelecer uma adequada participao nossa dentro dos grupos

    observados, fomos levados a compartilhar os papis e os hbitos dos peritos para estarmos

    em condio de observar fatos, situaes e comportamentos que no ocorreriam ou que

    seriam alterados na presena de estranhos. A ideia foi uma imerso completa no cotidiano

    da cultura e do sistema pericial em trabalho-sade de modo que pudssemos compreend-

    la de perto. Desse modo, buscamos conviver de perto com os peritos, os interlocutores

    qualificados e trabalhadores de forma que o processo de observao participante foi

    realizado nas agncias do INSS, instncias jurdicas, acompanhamento de percias (tanto

    previdencirias quanto trabalhistas), atendimentos trabalhadores adoecidos em servios

    pblicos de sade e etc. Nossa experincia direta com o modo de caminhar a vida

    cotidiana de nossos sujeitos de pesquisa, sejam eles indivduos ou grupos, foi capaz de

    nos revelar na sua significao mais profunda, aes, sentimentos, atitudes, episdios, e,

    principalmente, modus operandi.

    F) Anlise Comparativa

    A partir de nossa aprovao no Edital n19/2016 do Programa de Doutorado

    Sanduche no Exterior em que nos foi concedida uma bolsa de estudos por 4 (quatro)

    meses8 pudemos realizar breve imerso no sistema pericial em trabalho-sade francs no

    8 O plano original previa 12 (doze) meses de estgio doutoral no exterior e foi tentado desde nosso ingresso

    no Doutorado em 2014. Aps sucessivos cortes no oramento federal da Educao e consequentes

  • 25

    perodo de maro a junho de 2017. Nosso estgio doutoral na cole des Hautes tudes

    em Science Sociales (EHESS/CNRS) em Paris sob orientao do prof. Michael Lwy nos

    possibilitou tambm intercmbio com: (a) o Laboratrio de tica Mdica e Medicina

    Legal (EA 4569) vinculado Universit Paris V Ren-Descartes; (b) com a

    Confdration Gnrale du Travail (CGT), principal central sindical francesa e a; (c)

    Association pour la Prise em Charge des Maladies Eliminables (APCME) um servio

    pblico de ateno e cuidado Sade do Trabalhador em Port-de-Bouc, prximo a

    Marseille.

    Alm da observao participante em nos locais descritos, foram feitas revises

    sistemticas sobre publicaes pertinentes a nosso tema de pesquisa que nos alargaram o

    conhecimento da realidade francesa de investigao e as teorias desenvolvidas ou

    aprimoradas pelos pesquisadores do pas. A partir de tais revises sistemticas visamos

    buscar uma maior aproximao com o contexto dos trabalhadores bem como polticas

    pblicas e tutelas jurdicas no mbito trabalho-sade por l existentes. Tal feito se deu

    tanto atravs da literatura especializada na rea, quanto na participao em eventos,

    expedies de campo como tambm devido a anlise documental de cdigos, leis,

    jurisdies, laudos periciais, sentenas, recursos e documentos outros ligados a nosso

    objeto de pesquisa.

    Tambm foram realizadas entrevistas abertas (no estruturadas) com sujeitos

    igualmente ligados ao objeto desta pesquisa, a saber, as percias em trabalho-sade.

    Assim, pudemos entrevistar: (1) dois docentes universitrios franceses, sendo o primeiro

    socilogo da cole des Hautes tudes em Science Sociales (EHESS/CNRS), e o segundo,

    um mdico presidente da Sociedade Francesa e Francfona de tica Mdica (SFFEM) e

    da Academia Internacional tica, Medicina e Polticas Pblicas (IAMEPH); (2) um

    sindicalista francs e coordenador em trabalho-sade da Confdration Gnrale du

    Travail (CGT); (3) um economista francs, idealizador do SIC (Systme d'Information

    Concret) e diretor da Association pour la Prise em Charge des Maladies Eliminables

    (APCME) um servio pblico de ateno e cuidado sade do trabalhador em Port-de-

    Bouc, na regio de Bouches-du-Rhne, prximo Marseille; (4) um mdico do trabalho

    francs perito em instncias relativas seguridade social e tambm judiciais; (5) uma

    advogada francesa, mestranda em tica Mdica e Medicina Legal na Paris V Ren

    Descartes; (6) um psiclogo francs perito judicial; (7) uma psicloga italiana

    anulaes e suspenses de editais de doutorado-sanduche de rgos tais como Capes (PDSE suspenso de

    maio/2015 a julho/2016), CNPq (SWE Edital 209567/2015-5) e acordo Capes/Cofecube (Edital n 16/2015)

  • 26

    ergonomista e professora universitria aposentada da Universit Degli Studi di Torino, e

    uma das idealizadoras do Movimento Operrio Italiano (MOI); (8) um mdico do trabalho

    italiano de um hospital pblico de Milo (ITA); (9) um mdico italiano ergonomista da

    Clnica Del Lavoro Luigi Devoto da Universit Degli Studi di Milano (ITA) e; (10) um

    coordenador e motorista de transportes privados, responsvel por procedimentos

    administrativos quanto a trabalhadores acidentados e adoecidos na empresa em que atua.

    Os critrios de incluso/excluso utilizados nessa etapa da pesquisa, seguiu os

    mesmos parmetros estabelecidos para as entrevistas com sujeitos brasileiros.

    Por meio dos relatos ouvidos, revises bibliogrficas, documentos analisados e

    experincias vividas em nosso estgio doutoral, decorremos num breve estudo

    comparativo da realidade francesa com a brasileira que melhor ser descrito nas

    concluses deste trabalho.

    Enfim, o empreendimento potencial desta pesquisa visou, como dissemos, numa

    anlise do sistema pericial brasileiro em trabalho-sade focando em seu processo, gnese,

    estrutura e em suas formas consideradas por ns mais desenvolvidas, quais sejam, as

    percias previdencirias e judiciais. Para tal, a confeccionamos da seguinte forma:

    No captulo 1 empreendemos numa anlise macroeconmica, social, histrica e

    poltica em se compreender de que forma o ethos jurdico e o ethos mdico-sanitrio,

    clivados pelo campo da cincia, esto subsumidos ao capital na gerao de valor. Ou seja,

    como as bases materiais e condies existenciais de nossa sociedade, regidas pelo modo

    de produo capitalista, determinam os preceitos jurdico-sanitrios normativos inerentes

    a uma sociabilidade de tipo burguesa. Em outras palavras, visamos enunciar de que modo

    as percias em trabalho-sade, uma vez institucionalizadas e mediadas pelo Estado,

    cumprem um importante papel no processo sade-doena no seio da sociedade, de

    manuteno da ordem hegemnica vigente que assegura os interesses da classe

    dominante.

    No captulo 2 depreendemos num esforo minucioso e ao mesmo tempo

    cuidadoso de anlise bibliogrfica e documental para se esboar uma gnese e

    desenvolvimento do campo pericial em trabalho-sade no Brasil. Buscou-se no

    andamento deste exame detalhado, compreender as metamorfoses do referido campo que

    o faz apresentar-se no formato em que se conjuga em nosso pas nos tempos atuais.

    Separamos tal genealogia em contextos de momentos sociais e histricos importantes do

    desenrolar processual do capitalismo brasileiro e as lutas econmico-polticas e jurdico-

  • 27

    legislativas travadas no mago do desenvolvimento e consolidao do campo da sade

    do trabalhador.

    Tendo feita nossa contextualizao terica e histrica, no extenso e denso captulo

    3 objetivamos delinear, no apenas descrevendo a realidade nua e crua, mas sim

    empreendendo numa anlise sociolgica desta realidade das diferentes formas periciais

    em trabalho-sade encontradas no contexto brasileiro. Cada qual com suas formas de ser

    particularistas a partir da conjuntura em que se inserem, resguardam cognaes entre si

    seja pelas finalidades a serem atingidas, seja pela forma metodolgica e processual que

    se do, seja, principalmente, pelos modos transversais como se atravessam. Contudo,

    nossa anlise mais obsequiosa e detalhada neste captulo se debruou nos modelos

    periciais em trabalho-sade que consideramos as formas mais desenvolvidas neste

    campo, quais sejam, as percias previdencirias e judiciais.

    No decorrer do captulo 4, vasculhamos a j aberta caixa-preta das percias. A lida

    nesse ponto foi a de, - tal qual Marx parte da anlise da Mercadoria para dela se

    compreender todo o sistema do Capital sintetizado nesse objeto fetichizado que em sua

    essncia materializa o trabalho abstrato e obscurece as contradies prprias da lei

    econmica do movimento da sociedade moderna ao assumir a forma do valor e de uma

    relao entre coisas -, partir do produto final de um processo pericial em trabalho-sade,

    a saber, o laudo pericial e em seu cerne, um confinamento de compreenses a cerca do

    nexo causal entre adoecimento-trabalho, bem como, de um entendimento sobre o

    processo sade-doena como um todo. Ento, a partir da mercadoria, o laudo pericial,

    produzido em decorrncia do processo de trabalho perito9 tenta-se levantar o papel e

    identidade deste profissional e de seu fazer na organizao da cultura e manuteno

    hegemnica da esfera jurdico-sanitria inserida no domnio da superestrutura no seio da

    sociabilidade do capital.

    Por fim, nas concluses objetiva-se levantar hipteses a possveis trabalhos

    futuros sobre a temtica em questo, porm exigindo de ns pesquisadores, imaginao

    sociolgica para se criarem conceitos e categorias que contribuam com a discusso de

    superao dos atuais modelos periciais em trabalho-sade de forma que, estas possam vir

    a ser processadas a partir de um olhar que abarque a experincia da classe trabalhadora

    no que concerne o processo sade-doena e seus determinantes sociais, como elemento

    central na preveno, promoo e assistncia de sua sade. Nas linhas finais deste estudo

    9 Sem entrarmos a fundo no mrito da questo se este um trabalho produtivo ou improdutivo na discusso

    marxista (1978), contudo, sem tambm ignorar por completo a mesma.

  • 28

    busca-se a superao das afirmaes e negaes intrnsecas a temtica pesquisada, no

    ensaio de se prevalecer uma sntese de nosso entendimento sobre o universo da mesma,

    tomando como substncia, os aportes terico-epistmicos e os materiais e mtodos

    empricos levantados, - e devidamente apresentados e aprovisionados nos captulos

    antecedentes -, no transcurso do trabalho. Somente tendo no horizonte, o ponto de vista

    da totalidade, que nos permitido enxergar, por intercesso da dialtica, alm da

    aparncia das coisas, ou seja, os processos e inter-relaes de que se compem a

    realidade concreta do objeto examinado.

    Por tratar-se de um trabalho com escassa literatura especializada que parta de uma

    viso crtica e dialtica sobre o objeto analisado, como tambm, no universo da

    bibliografia existente sobre o tema pouco se encontra de materiais que ensejem uma

    linguagem que permita a apropriao multidisciplinar que o tema carece, que tivemos

    tambm a preocupao de inserir um glossrio nos prembulos desse estudo para que o

    mesmo possa ser, sempre que possvel, compreendido e criticado com vistas a atravessar

    os muitos sujeitos que alcanar. Sejam eles vinculados academia, a servios de sade

    ou provenientes de organizaes coletivas de trabalhadores e trabalhadoras e seus

    mltiplos saberes tcitos e/ou cientficos. Ele abarca compreenses das reas do saber

    pertinentes a esse estudo com a Psicologia, a Medicina, o Direito, as Cincias Sociais, a

    Educao dentre outras cincias sociais e humanas.

    Desse modo, o glossrio foi elaborado tanto a partir de definies oficiais sobre

    os termos, siglas, conceitos, teorias e abreviaes institucionais consubstanciados no

    corpo deste trabalho, quanto abrange nosso entendimento terico-poltico sobre os

    mesmos. Assim, todas as vezes em que o leitor se deparar ao longo do texto com os termos

    dispostos e aventados previamente no glossrio, podero ter uma compreenso da

    acepo que denotamos a estes no presente estudo. A menos que, no contexto em que fora

    empregado, referencie-se a significados outros que se ape de forma a serem devidamente

    elucidados.

  • 29

    CAPTULO 1. SOBRE O SISTEMA JURDICO-SANITRIO

    SUPERESTRUTURAL

    "Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre as condies sociais da

    existncia, se eleva toda uma superestrutura de sentimentos, iluses, modos de

    pensar e vises da vida distintos e configurados de modo peculiar. Toda a

    classe os cria e molda a partir do seu fundamento material e a partir das

    relaes sociais correspondentes." (MARX, 2011b, p. 60).

    Na produo social da prpria existncia, os homens entram em relaes

    determinadas, necessrias, independentes de sua vontade; essas relaes de produo

    correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas foras produtivas

    materiais. A totalidade dessas relaes de produo constitui a estrutura econmica da

    sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual

    correspondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo de produo da vida

    material condiciona o processo de vida social, poltica e intelectual10 (MARX, 2008, p.

    47).

    Logo, a superestrutura no autnoma, no aparece por gerao espontnea no

    seio de uma sociedade, mas sim, tem fundamento nas relaes sociais de produo de

    determinado momento histrico11. precisamente porque uma superestrutura se faz

    necessria ordem do capital para organizar e estabilizar a sociedade que a estrutura

    econmica conforma as instituies que a ela melhor se adequam, dentre elas, objetos de

    nossa ateno, o ethos jurdico e o ethos mdico, saberes prticos que em determinado

    momento histrico so clivados pelo campo da cincia: a justia (Direito) e a sade

    (Medicina). Ambos igualmente atravessados pela materialidade histrica.

    Ento, temos que a propriedade privada e a diviso social do trabalho, por

    exemplo, so a forma jurdica de controle econmico das relaes de produo dentro da

    10"Se a prpria produo material no for concebida em sua forma histrica especfica, impossvel

    compreender o que especfico produo espiritual que a ela corresponde e a influncia recproca de uma

    sobre a outra." (MARX, 2013, p. 305). 11 "(...) necessrio voltar a estudar toda a histria, devem examinar-se em todos os detalhes as condies

    de existncia das diversas formaes sociais antes de procurar deduzir delas as ideias polticas, jurdicas,

    estticas, filosficas, religiosas, etc. que lhe correspondem (MARX & ENGELS, 2010, p. 107).

  • 30

    sociedade do capital12 e, enquanto ideologia, tm papel ativo na sociedade13. Da mesma

    forma, a "cincia dos corpos", a sade, que tambm cumpre uma funo na sociedade do

    capital calcada no discurso baseado na invocao da biopoltica como meio de validao

    da verdade por meio de um pragmatismo tecnicista que visa classificar o que "normal"

    e o que "patolgico" regulando assim as trocas mercantis e garantindo

    governamentalidade.

    Canguilhem (1998, p. 13) admite que sade no um mero conceito cientfico,

    mas sim vulgar (no significando trivial, mas sim algo comum a todos os homens) e

    filosfico, quer dizer que o corpo vivo a sade singular existente que expressa a

    qualidade da energia que constituem como deve-se viver sob imposio de direitos, por

    isso, a ausncia de escolha a certa exposio em relao a um determinado ambiente faz

    de sua sade tanto um estado quanto uma ordem.

    Ou seja, para o autor (1998, p. 23-24), o corpo um produto desde a sua atividade

    de insero em um ambiente social e historicamente determinado, quanto um estilo de

    vida escolhido ou imposto, que o auxilia a moldar seu fentipo, isto , mudando sua

    estrutura morfolgica e comeando a singularizar suas capacidades. neste terreno frtil

    que algum discurso oportuno e obtm justificao. Como por exemplo o da higiene,

    disciplina mdica tradicional que, traveste-se de uma ambio scio-poltico sanitarista

    de regulao da vida dos indivduos atravs da determinao de uma norma para ento,

    aplicar-se a reger uma populao.

    Esta norma de acordo com Canguilhem (2000, p. 218) justamente aquilo que

    fixa o dito "normal" a partir de uma deciso normativa que uma classe, detentora dos

    meios de produo e definidora dos modos de reproduo social institui como sendo a

    funo das normas sociais com o uso que ela prpria faz das normas cujo contedo

    determina. A noo de normalidade ento no deixa, como o prprio nome indica, de

    remeter normas concebidas e formuladas previamente. Por exemplo, a definio de

    normas higinicas supe o interesse que se d - do ponto de vista poltico - sade das

    populaes considerada estatisticamente, salubridade das condies de vida, extenso

    uniforme dos tratamentos preventivos e curativos elaborados pela Medicina.

    12 As formas jurdicas em que essas transaes econmicas aparecem como atos de vontade dos

    participantes, como expresses de sua vontade comum e como contratos cuja execuo pode ser imposta

    parte individual por meio do Estado no podem, como simples formas, determinar esse contedo. Elas

    apenas o expressam. Esse contedo justo contanto que corresponda ao modo de produo, que lhe seja

    adequado (MARX, 1985, p. 256). 13 Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente podemos identificar pela sua ao social, por suas

    funes na sociedade (LUKCS, 1981, p. 20).

  • 31

    Ou seja, a ideia de sade pblica para o autor (1998, p. 27) questionvel. Para

    ele, salubridade seria um termo mais adequado pois o que vem a ser pblico, publicado,

    muitas vezes a doena. O doente quem pede ajuda, chama a ateno; dependente. O

    homem e a mulher saudveis que silenciosamente se adaptam s suas tarefas, que vivem

    suas verdades de existncia em relativa liberdade de suas escolhas, esto presentes numa

    sociedade que os ignora. Sade no , portanto apenas a vida no silncio dos rgos, mas

    tambm a vida na discrio das relaes sociais.

    Foucault (2011, p. 305) vai contestar a norma hegemnica de sade ao salientar

    que uma medicina operria por exemplo, no a medicina burguesa, to claro como a

    medicina das crianas no deve ser a dos adultos. Para o autor, a Medicina tambm define

    no somente o que normal e o que patolgico, mas, por fim, o que lcito ou ilcito,

    criminal ou no criminal, o que abuso ou no; e que, a utilizao das expertises mdicas

    na justia por exemplo tambm uma das funes dessa cincia legitimada como um

    sistema de saber com equilbrio e coerncia prprios e tambm dispostos em grau de

    universalidade que aparentam ser inquestionveis (FOUCAULT, 2011, p. 306).

    O Direito por sua vez, no atua somente quando esta "normalidade" ameaada

    pois o prprio entendimento de "normal" desta sociedade s se configura como tal

    tambm pela legitimao jurdica. Logo, a "normalidade", pode ser problematizada, j

    que decorre no de uma ordem supramundana, mas da prxis concreta dos prprio

    homens; nada tem ela, pois, em comum com a neutralidade, nada tem, tambm, de natural,

    transcendente.

    Nesse exame das relaes intrnsecas (e esprias) entra as dogmticas sanitrias

    (a Medicina) e as dogmticas jurdicas (o Direito) v-se que h doutrinas e hermenuticas

    que so elementos importantes de cada ethos profissional. Contudo, observa-se que em

    determinado momento histrico por desenvolverem-se no seio da economia de uma

    determinada sociedade, de forma que a inteno normativa guarda relaes com os

    interesses desta economia, passam a consistir na escolha e na determinao da matria,

    da forma e das dimenses de um objeto cujas caractersticas sejam, a por diante,

    obrigaes de fabricao de uma norma conforme. Em outras palavras, criam o

    entendimento hegemnico que se tem do processo sade-doena nas esferas da produo

    e da reproduo social14.

    14 fcil compreender como, por meio de sua ligao com a economia, a atividade tcnica e sua

    normalizao, estabelecem relao com a ordem jurdica. (CANGUILHEM, 2000, p. 220)

  • 32

    Entendermos o desenvolvimento das foras produtivas em virtude do sistema de

    antagonismo de classes nos d a clara noo de que esta forma que as cincias jurdicas e

    sanitrias adquirem na sociedade burguesa no tpica de todas as formas de sociedade.

    Nesse sentido, o contedo de classe de ambos deve ser desvelado como um processo e

    no como determinao universal e a-histrica. Ou seja, na sociedade do capital que

    encontramos, em essncia, um Direito e uma Medicina de classe, da classe dominante15.

    E justamente para dominar, a classe dominante no pode jamais apresentar a sua

    ideologia como sendo a sua ideologia, mas ela deve lutar para que esta ideologia seja

    sempre entendida como a verdade, de forma a disfarar que a norma seja artifcio,

    manipulao e interpretao para de fato transmitir tal verdade ideolgica travestida de

    realidade. Nesse sentido que a esfera jurdico-sanitria na superestrutura nos parece

    possuir uma autonomia relativa, uma "vida prpria", visto que as relaes de produo

    existentes so representadas e legitimadas de uma forma abstrata e codificada, que, por

    sua vez, estimula a iluso ideolgica de que so totalmente autnomas estrutura

    econmica e dissociados das particularidades conflitivas da sociedade burguesa.

    Ento, para serem socialmente "aceitas", as cincias jurdicas e da sade tornam-

    se os instrumentos fetichizados necessrios capazes de subsumir o trabalhador16, - dotado

    de valores individuais -, ao capital, numa categoria geral e niveladora no sentido de

    adequao da conduta/comportamento deste aos imperativos normativos. Trata-se da

    relao indissocivel entre a manipulao e a imposio do cotidiano alienado que visa

    to somente assegurar a reproduo das normas da sociedade do capital e garantir que a

    "normalidade" (a norma do capital) tenha um padro e se mantenha.

    De acordo com Wandelli (2016), a natureza deste poder manipulatrio na

    sociedade do capital essencialmente biopoltica. O conflito de subsuno do trabalho

    vivo fora de trabalho pelo capital, muito alm de uma mera troca de fora de trabalho

    por salrio, se desenvolve como uma guerra sobre os corpos. Essa necessidade de

    disciplinar os corpos e normatizar as populaes segundo as vontades do capital no s

    atende as necessidades da produo, mas tambm de governamentalidade.

    15 Por mais diferenciados que sejam os contedos jurdicos na sua gnese e na sua vida concreta, a forma

    jurdica [e sanitria] adquire homogeneidade prpria somente no curso da histria; quanto mais a vida social

    se faz social, tanto mais ntida se torna tal homogeneidade (LUKCS, 1981, p. 94). 16 As lutas pela sade se desenvolvem parcial e incialmente no terreno imposto pela legislao, ou seja, o

    da segurana e higiene do trabalho (LAURELL & NORIEGA, 1989, p. 120).

  • 33

    Dessa forma, o aparato jurdico-sanitrio superestrutural se apresenta desta forma

    fetichizada e com vistas a dominar todos os campos da vida social. Se perdermos a

    dimenso ontolgica que nos auxilia na desmistificao do significado das cincias da

    sade e jurdicas em nossa sociedade, tenderemos a reduzir o processo de

    desenvolvimento do ser social a um complexo jurdico e biomdico com fins em si

    mesmo. Ou seja, de recair numa anlise reducionista da questo. Esquecemo-nos que sob

    a abrangncia do Direito e da Medicina, permanece a estrutura econmica sobre a qual

    ergue-se o complexo social total e que mediado pela forma na qual os indivduos de

    uma classe dominante fazem valer seus interesses econmicos e ideolgicos e que resume

    toda a sociedade burguesa: O Estado.

    Conforme salientam Marx e Engels (2002, p. 74), na medida em que "todas as

    instituies comuns passam pela mediao do Estado e recebem uma forma poltica", ou

    seja, ao mesmo tempo em que apontam indissociabilidade das relaes de produo e da

    reproduo da sociedade, enfatizam que esta forma se pretende autnoma por sua prpria

    configurao dependente e que ganha vida prpria, tal como uma forma-mercadoria

    fetichizada. Eis o carter dialtico do papel do Estado na sociedade burguesa. Deve-se ao

    Estado, portanto, a regulamentao e mediao necessria para que o aparato jurdico-

    sanitrio permanea em sua suposta e, aparentemente evidente neutralidade, como se a

    imposio de uma forma normal de andamento da sociedade correspondesse um

    benefcio universalista de toda ela.

    Precisamente ento a crtica materialista viso jurdico-sanitria nos revela a

    natureza especificamente burguesa das cincias da sade e jurdicas, como formas sociais

    relacionadas intrinsicamente com o processo de trocas mercantis e o processo de

    valorizao do capital17. Uma vez que, as cincias da sade e jurdicas aparecem como

    algo natural, como reguladores da vida comum na sociedade burguesa tornando-se partes

    essenciais do instrumental do Estado para dirigir a vida cotidiana dos homens e mulheres

    com base na manipulao capitalista, eles atuam sobre formas estranhadas de se viver a

    vida corroborando-as. Assim, no s se relacionam com o modo de produo capitalista

    17 Tal compreenso nos faz inclusive pensar a categoria de sujeito de direito, que exprime homens e

    mulheres que circulam no mercado como mercadorias, ou melhor, como proprietrios to somente de sua

    fora de trabalho e que se oferecem a si mesmo no mercado. Desse modo, o Direito e a Medicina pem

    homens e mulheres em termos de propriedade que se alienam de si prprios dispondo-se de si justamente

    porque inculca-se a ideia de liberdade e igualdade. Ora, se no fossem livres, e a liberdade essa disposio

    de si como mercadoria nas leis do capital, no fariam jus essa categoria de sujeito de direito com papis

    j desenhados na ordem do capital.

  • 34

    e sua forma abstrata de sociabilidade pautada no fetiche das mercadorias, mas tambm se

    configuram por meio desta manipulao como dimenses autnomas, evidentes e naturais

    e, portanto, alienadas, quando justamente desenvolvem-se no bojo da esfera da

    reproduo social.

    Se Lukcs (1988) assim define a pessoa humana - o animal tornado homem

    atravs do trabalho - como um ser que d respostas, pois ento, para responder, deve ser

    antes indagado. Deste modo temos que a sociabilidade humana por meio do trabalho

    provoca o homem e s o faz justamente por este estar inserido num meio ambiente social

    de trabalho prprio do momento social e histrico eivado de contradies. Ou seja, se a

    norma vem pr-concebida de maneira unilateral, do "mundo exterior" de forma alienada,

    mediada por um ente essencial (o Estado) que arbitra os vrios resultados da prxis

    humana estabelecendo o que "normal" e o que "patolgico", cabe pessoa humana

    responder a ela, mesmo que tambm de forma estranhada, pois tanto as perguntas quanto

    as respostas j so previamente estabelecidas nesse contexto no tendo sido formuladas

    por si. Cabe ento, dar respostas radicais no sentido de ir alm da coisa que o provoca,

    revelando seu carter real.

    Mutatis mutandi, quanto mais esta concepo burguesa jurdico-sanitria ento se

    pretende exata e precisa, colocando-se como reflexo neutro, universal e a-histrico da

    sociedade, mais sua autonomia relativa, que dialeticamente se manifesta no fato de se

    conceber como autnoma, se torna contraditria e fetichista. Advoga de um carter

    sistemtico e fechado, porm atuando sobre relaes sociais concretas e em constante

    transformao. por isso que a classe trabalhadora em sua luta contra a classe burguesa

    permanece dando respostas e formulando suas reivindicaes de igualdade dentro de um

    campo pr-estabelecido de justia e de sade numa apenas aparente recusa deste campo

    jurdico-sanitarista que se faz poltico. A rigor, a classe trabalhadora ainda exprime os

    seus interesses dentro do enquadramento jurdico-sanitrio de tipo burgus por meio

    apenas da busca de uma alterao na ordem vigente com reivindicaes de igualdade

    imersas numa forma social rgida e desigual em sua essncia.

    Tal legalizao da luta de classes significa que as formas de luta da classe

    trabalhadora s so legalmente reconhecidas, seja no campo jurdico18 ou sanitrio, se

    observam os limites que a ideologia poltico-econmica estabelece. Num claro exemplo

    de suposta garantia de igualdade de direitos sem se alterar a lgica econmica de

    18 E o direito como campo na construo de legalidades.

  • 35

    produo/reproduo social de uma sociedade de classes, uma greve s se transforma em

    direito de greve se os trabalhadores aceitam os termos que a ela emprestam licitude: a

    greve no pode desorganizar a produo colocando em risco o processo do capital,

    questionando, portanto, a dominao burguesa dos meios de produo19.

    Do mesmo modo, a Constituio Federal brasileira de 1988 traz em seu artigo 196

    que A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais

    e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso

    universal e igualitrio s aes e servios para a promoo, proteo e recuperao.

    Ou seja, o estabelecimento do que e como um dado ser considerado "sade" no

    reproduz o conhecimento objetivo do ser-em-si do processo social, mas, ao contrrio, a

    vontade do Estado acerca do que, como, e sob qual contexto e condies deve ou no

    ocorrer. O entendimento de sade limita-se ao impacto do meio ambiente de trabalho

    sobre os trabalhadores pela tica biopsquica, ou seja, de forma individualizada,

    fragmentada, e desconexa da compreenso enquanto um processo social historicamente

    determinado onde, de fato, doena alienao e sade emancipao20.

    Entretanto, tal sistema jurdico-sanitrio no ir desaparecer quando as classes

    desaparecerem, pois, o mesmo comporta tambm alguns aspectos cuja natureza

    independe