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O Principe Com Orelhas de Burro Jose Regio

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  • O PRNCIPE COM ORELHAS DE BURRO

    JOS RGIO

    Esta obra respeita as regras

    do Novo Acordo Ortogrfico

  • A presente obra encontra-se sob domnio pblico ao abrigo do art. 31 do

    Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do

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  • CAPTULO 1

    DE ALGUMAS CIRCUNSTNCIAS QUE PRECEDERAM O NASCIMENTO DO

    PRNCIPE LEONEL, PRESUMVEL HERI DESTA VERDICA HISTRIA

    Era uma vez, no reino de Traslndia, um casal que no tinha filhos. Grande

    mgoa, suponho, deve ser no ter filhos um casal que se entende bem e assim

    era com esse casal. O marido comeara precocemente a envelhecer,

    entretendo o cio a aprender jogos chineses, a colecionar pssaros e armas

    brancas, a estudar dialetos ou outras futilidades idnticas e a mulher

    tornara-se rabugenta, caprichosa, avarenta, fantica, (tendo sido noutra poca

    a prpria imagem da alegria!) como se no tivesse casado e antes do devido

    tempo, comeara a envelhecera de inutilidade e amargor.

    Esse casal que antes se adorava comeava agora at a no poder tolerar-se

    como quase todos os infelizes ligados a uma desgraa comum e odiada

    em que cada um via no outro o espelho do seu infortnio. Acrescentemos

    que, no presente caso, cada um tendia a ver no outro o prprio causador

    desse infortnio. Este mtuo ressentimento ia a ponto de j nem poder o

    triste casal escond-lo da corte.

    Ora, dito isto, ia-me esquecendo um pormenor importante: Ele era o

    prprio rei, ela a prpria rainha de Traslndia e a ausncia de filhos nesse

  • matrimnio representava uma desgraa pblica. Assim a mgoa dos dois

    mseros esposos acrescentava-se com a inquietao dos reinantes.

    A cupidez dos povos vizinhos tambm espreitava o seu trono sem

    herdeiros. Tanto mais sendo alguns desses povos governados por parentes

    seus que, embora vagos, reivindicavam direitos ao trono. Mas no era s

    parentes. Muito havia que forjavam teorias, invocavam necessidades,

    aventavam doutrinas, alegavam convenincias, chegavam a idear questes de

    ordem metafsica ou religiosa que lhes permitissem, depois de mortos os

    pobres reis estreis, cair sobre o reino sem leme. Quem no sabe como

    sempre se arrearam de razes a ambio e a violncia?

    Por essas razes os pobres reis estreis sentiam-se responsveis, perante o

    seu povo, tanto do temvel choque de interesses entre quais seria um dia

    baldeado, como da escravido final a que o povo poderia ser reduzido. E

    parecia-lhes a esterilidade uma grande injustia para com eles prprios, uma

    praga dos deuses, se no mesmo dos demnios. Uma anomalia, essa, de no

    dar fruto um casal que fora belo, jovem, e possura-se, primeiro com

    apaixonado e total abandono, depois com esperana e violncia, mais tarde

    com cincia ou clculo, por fim com desesperada insistncia e um misto de

    compaixo e raiva na infelicidade comum...

    intil dizer que tudo mais se tentara para arredar tal maldio das pobres

    cabeas rgias: os conselhos dos mdicos e as malas-artes das bruxas; os

  • palpites pessoais e os segredinhos das comadres; as influies da hora ou da

    estao; as preces pblicas e a prpria interferncia, aos ps de Deus e do

    Santo Papa. S um conselho chegara a ser insinuado, que o bom rei Rodrigo

    repelira com indignao: o repdio da esposa infecunda. Chegara-se a aventar-

    se que o rei tomasse outra mulher legtima. A primeira resignar-se-ia a um

    convento com todas as honras da sua condio, e todo o azedume do seu

    destino, caso fosse mais bem sucedido o segundo ensaio matrimonial da sua

    Majestade. Mas nem to alta razo de estado conseguira demover El-Rei! To-

    pouco demovera a rainha, se que aos ouvidos da infeliz rainha viera ter este

    alvitre que a punha de lado como uma rvore seca...

    Se viera ter?... Mas viera! Algum tivera a crueldade ou o herosmo de lhe

    dizer (como, no sei) que o povo ameaado acusava de egosta esse amor que

    no cumpria o seu dever. Pois o amor dos reis tem deveres a cumprir... e a

    rainha sabia-o! A rainha sabia qual o seu dever, se fosse provada a sua

    esterilidade. Mas sabendo-o, escasseavam-lhe foras para o cumprir e por isso

    tornara-se rabugenta e caprichosa, avarenta e fantica, histrica e at invejosa...

    Invejosa, em especial, da vulgar felicidade que Deus dava a tantas, para lha

    recusar a ela. A pobre mulher j no podia ver um batizado! Nem nenhuma

    que andasse de esperanas ousaria apresentar-se aos seus olhos o ventre

    abenoado por Deus.

    Certa manh, a rainha ergueu-se muito cedo e meteu-se a caminho em

    direo ao imenso bosque para l do parque do palcio. Apesar de a guarda a

  • ter querido acompanhar, desistiram perante as ameaas de um desses ataques

    em que a espuma lhe borbulhava na boca, os olhos lhe pasmavam em branco,

    as palavras e os gestos se descompunham, e ela jazia depois, aniquilada, como

    uma coisa inerte, durante vrios dias. Para alm disso, Sua Majestade El-rei

    partira ao lusco-fusco de madrugada, para caar na tapada de um dos seus

    mais nobres vassalos. S pela tarde voltaria. Quem se atreveria a contrariar a

    vontade da rainha sem o rei presente? O perigo de algum encontro com um

    caador furtivo, qualquer bandido, algum mendigo perverso ou guarda

    florestal rebelde (pois j dentro dos prprios domnios reais existiam

    rebeldes), nem de raspo tocara o seu nimo decidido. De igual modo a

    deixara impvida a lenda de monstros e fantasmas que habitavam essas matas

    virgens, ou a certeza de as povoarem bestas e feras. Dir-se-ia que um Arcanjo

    lhe aparecera, em sonhos, a mand-la ir, prometendo-lhe guard-la, portanto

    foi.

    L, andou toda a manh, toda a tarde, todo o dia, embrenhando-se por

    cavernas de verdura e sombra, passando curvada sob rendilhados tetos

    oscilantes de trepadeiras, deslizando entre penhascos e velhos troncos

    gigantes, mais grossos que pilares dos antigos templos lendrios... Os homens

    que, da torre maior do palcio, ainda pretenderam segui-la com os seus culos

    de grande alcance, rapidamente desistiram. Mais tarde se veio a saber, por

    conversa das mulheres dos guardas florestais, que ela entrara nas suas

    modestas choupanas, sentara-se nos seus bancos, beijara os louros cabelos

  • sujos ou as caras lambuzadas, bochechudas, dos seus filhos, e quisera saber

    das suas vidas com to insinuante insistncia, tanta simplicidade nos modos e

    palavras que as pobres mulheres, por momento esquecidas da imensa

    distncia das suas condies, tinham chegado, talvez, a falar de mais...

    At onde entrara na parte verdadeiramente selvtica da floresta, nunca

    ningum soube. Um ou outro guarda que a vira voltar, j pelo arrefecer da

    tarde, e, atrapalhado, se perfilara mal fiado nos seus prprios olhos, tambm

    disse depois que ela vinha a trejeitar e a falar alto, com os olhos postos nos

    galhos extremos das rvores, como se tivesse a conversar elevadamente com

    elas e os pssaros; talvez com os anglicos espritos que nenhum guarda via,

    mas que por certo a guiaram nesse passeio inspirado, sugeriu mais tarde

    um poeta palaciano.

    O facto que j se espraiava o luar quando a rainha voltou. J do palcio

    alvoroado se preparavam para sair em sua busca bandos de guardas com

    lampies e archotes e j El-Rei, seu marido e senhor, a esperava, dando

    grandes passadas frenticas no salo dos lustres, com o sobrolho carregado e

    as mos torcidas atrs das costas, como nos dias de muitssimo mau humor. A

    rainha vinha cheia de p, rotos os seus sapatinhos verdes e amarrotada toda a

    seda da saia. At trazia rubis de sangue na cara. No seu sorriso e nos seus

    olhos, porm, raiava um claro que poucos viram porque a grande maioria dos

    homens so cegos porm, depois, todos asseguraram t-lo visto. Viu-o, de

  • verdade, El-Rei, que no era cego de todo e as palavras de exprobrao que se

    iam soltar dos seus lbios, gelaram-se num misterioso respeito.

    A rainha arrastou o seu marido para a cmara rgia e aninhando-se aos seus

    ps, disse-lhe:

    Pensei muito durante este passeio... No mo censureis, porque decidiu a

    nossa vida. Estou resolvida a afastar-me para que outra vos d o filho que eu

    vos no posso dar...

    Nunca! interrompeu o rei com violncia.

    Ainda no acabei, meu senhor. Tambm eu vos quero muito, apesar da

    nossa desgraa quase nos ter tornado inimigos!... Estou resolvida a afastar-me,

    e nem vs me podereis deter, se, dentro de meses, no se cumprir o nosso

    grande desejo...

    Quantas vezes j temos esperado em vo, querida! O melhor ser

    conformarmo-nos com a determinao de Deus.

    Nunca tive tanta f, meu senhor. Por amor de vs, ousei consultar o

    Esprito da Floresta. Ir at onde me no julgara capaz...

    Sois louca! disse ele passando-lhe amorosamente os braos por cima

    dos ombros.

    Para dizer a verdade, ele estava em crer, nesse momento, que ela fantasiava,

    e no deu importncia de maior s suas palavras.

  • Meu querido!... murmurou ela descaindo a cabea para lhe encontrar

    a boca.

    O perfume das flores do jardim subia at janela escancarada. Atravs das

    cortinas, o luar fazia caprichosos rendilhados no leito real. O ar estava quente.

    Meu querido!... suspirava ainda a rainha pela noite adiante. E,

    sentindo-se desejado, solicitado com vibrante sinceridade, ele afogava em

    beijos ardentes, como os das suas primeiras noites de amor, essa meiga

    apelao que j se ia desacostumando de ouvir...

    Alguns meses passaram. Se os homens no fossem cegos, veriam que nos

    olhos da rainha, como no seu sorriso, um claro continuava a anunciar

    grandes coisas. Nem o seu marido, porm, voltou a reparar nesse indcio que

    uma tarde lhe gelara nos lbios palavras de exprobrao e clera. Os homens

    so cegos! Apesar do que, aquilo a que chamam de Mistrio, lhes enviar as

    suas mensagens. Mas o que todos achavam pois isso fora impossvel no

    ver que a bondade da rainha se manifestava agora com manifestada

    radiao. Digamos, at com uma radiao inquietante, pois inquietantes so a

    grande bondade, a grande beleza e o grande entendimento. Quem no sente

    que marcam os humanos como um resplandecente estigma que os furta vida

    do mundo?

    De rabugenta, caprichosa, avarenta, fantica, histrica, defeitos que

    ultimamente empanavam a grande bondade natural da pobre esposa estril

  • dia a dia progredia a rainha em humildade e pacincia, igualdade de nimo,

    generosidade ardente, largueza de compreenso, bom senso luminoso...

    Chegava a ser inquietante, sim! Dir-se-ia que a rainha se preparava para

    morrer.

    Ora uma tarde, indo a sentar-se mesa na grande sala de jantar, fez-se,

    subitamente, muito branca. Levou a mo trmula testa, expediu um suspiro

    que todavia se acompanhava de uma aura de sorriso... e teria cado

    desamparada, se o marido no corresse a apanh-la nos braos. Quando, da a

    nada, voltou a si e circunvagou o olhar ainda bao pela sala cintilante de

    cristais e pratas, aquela aura de sorriso abriu-se como uma aurola.

    Este calor de Agosto... murmurou com os olhos enlanguescidos do

    delquio.

    O seu rei ainda a tinha nos braos. Ela aconchegou-se-lhe mais ao peito e

    disse:

    Talvez seja tambm outra coisa... que vos tenho querido ocultar... com

    receio de me enganar...

    Ele no compreendia; ou tinha medo de uma deceo terrvel. Afastando-a

    um pouco de si, fixava nela os olhos ansiosos e graves, quase duros, como

    para a forar confirmao. O seu rosto pusera-se plido e

    extraordinariamente srio. Acenando que sim sua muda interrogao, ela

    respondeu:

  • Uma grande surpresa... mas no para mim...

    E fazia-se ainda mais pequena contra o seu peito largo. Ento, esse peito

    ergueu-se, arquejou como se fora estalar e, por um movimento impulsivo de

    ajoelhar diante dela, o pobre marido arrastou-a consigo. Ficaram abraados e

    ajoelhados um diante do outro, soluando. A muita gente pareceria cmica ou

    ridcula esta cena.

    Querida!... gaguejou ele quando pde falar. Quebrada de emoo, a

    sua voz era meiga como a de uma criana. Pois ser verdade?... Ento,

    naquela noite...

    Pensava no claro que lhe vira nos olhos, no sorriso, certa noite em que ela

    voltara tarde, cheia de p, de um misterioso passeio para l do parque do

    palcio... Pensava no calor dos beijos que essa noite tinham trocado. Nem por

    sombras duvidava dela, mas compreendia que havia um mistrio na gestao

    do seu filho.

    Naquela noite... repetia, querendo penetrar nesse mistrio.

    Naquela noite, sim! disse a rainha O Esprito da Floresta

    prometera-me...

    Sois louca!... disse ele, como dissera da outra vez. (No o que se

    costuma dizer quando algum afirma presenciar qualquer realidade

  • sobrenatural?) Por esse altura, no obstante o seu dom de ver o que outros

    no viam, muito atrasado estava ainda o rei na leitura dos livros obscuros.

    No... disse a rainha o Esprito da Floresta existe. Procurei-o e

    encontrei-o. Consultei-o sobre o nosso caso. O Esprito da Floresta

    prometeu-me que teramos um filho. Mas o nosso filho...

    Repentinamente, fez-se outra vez muito branca. Os seus olhos olhavam

    espantados, fixos, para qualquer coisa ao longe. O mistrio erguera-se face a

    face, um dedo nos lbios a impor silncio, sob a figurao do Esprito da

    Floresta que s ela via.

    Este calor de Agosto... murmurou, dorida e forando-se a sorrir.

    Como a sentisse voltar a desfalecer, o rei levantou-a amorosamente nos

    braos fortes, poisou os lbios, com delicadeza e respeito, nos seus olhos que

    se fechavam e atravessando, com ela nos braos, os amplos sales

    resplandecentes e frios, quis lev-la para o leito real. Ao longo dos amplos

    sales resplandecentes e frios, a comprida cauda do seu vestido glauco, atrs

    dos passos graves do rei, ia fugindo como um ribeirinho que ao mesmo tempo

    fosse correndo e secando. E, habituados a nada ver, nada ouvir, os lacaios

    eretos como esttuas, vestidos de seda e ouro como bonecos, nem

    pestanejaram e nada compreenderam do que se passava.

  • CAPTULO 2

    DE ALGUMAS CIRCUNSTNCIAS QUE ACOMPANHARAM O NASCIMENTO

    DO PRNCIPE

    Evo! Voara por todo o reino a grande novidade!

    E comeara uma festa pegada. As msicas ouviam-se por toda a parte:

    ching-chong, "ai-" e "-ai", as cantigas esfuziavam contnuamente no ar, os

    foguetes estralejavam ou estoiravam que era um pavor, o cho andava coberto

    de espadanas e funcho, os sinos repicavam sem cessar dling-dlong!, dling-

    dlong!, no ar lacre... E, vira que vira, o povo danava nos terreiros, nas eiras,

    nas ruas, nas praas, toca ora toca, esgotavam-se os enormes canjires

    vidrados, olar que se arrebanhavam ranchos por toda a parte, concertavam-se

    os instrumentos, improvisavam-se festas e tunas..., bailar! cantar! viver!

    uma onda de alegria irresistvel subia, irrompia de tudo e por tudo se

    espraiava, s porque uma nova pequenina vida ia chegar ao mundo... Deus a

    trouxesse a salvamento! Deus a resguardasse e protegesse! E que fosse um

    menino! Que fosse um rapaz! Que fosse um homem! O reino precisava de um

    senhor para o futuro.

    Mais do que nunca gastavam as beatas os seus dias nos templos, babujando

    as ljeas ou alando as mos lvidas, frementes de splicas, s imagens

    cobertas de flores. Nos intervalos, juntavam-se em grupos que grasnavam e

  • saltitavam na sombra fresca dos adros. Depois recomeavam as ladainhas, as

    punhadas no peito, os sculos no empedrado, sob as abbadas incendiadas de

    luzes, esfumadas em nuvens de incenso. E nunca tinham sido to felizes!

    Nunca tinham podido satisfazer por tal forma a sua beatice! que nunca, nas

    igrejas, se haviam assim enfiado as novenas e os trduos, as preces e as

    cerimnias. De igual modo contentavam os glutes a sua gula, celebravam os

    bbados o seu culto por Baco, evo!, evo! improvisavam os eloquentes

    as suas tiradas, os danarinos matraqueavam toda a sorte de ritmos, e quanto

    aos namorados..., ai!, que melhor fariam os namorados do que aproveitarem-

    se da embriaguez coletiva? Esquecidos por pais severos e velhas tias zeladoras,

    os namorados metiam-se em azinhagas floridas de madressilva, desapareciam

    sob as ervas mais altas dos campos, entranhavam-se nos mais folhados ramos

    das rvores... E, eram beijos e abraos, juras e risos, risos magoados

    misturados de voluptuosos gemidos, a juventude breve, mas poderosa

    enquanto dura! dentro de alguns meses, quantas pobres virgens loucas se

    achariam iguais condies s da rainha! S as suas cabeas no seriam cobertas

    de flores, como a da rainha uma vez que sassem rua...

    Ah! Nunca se fora to feliz no reino de Traslndia! Em particular, na sua

    capital. A vida era uma festa pegada; e uma prece contnua: Que viesse a salvo

    e fosse um menino! As saias so muito boas, sim! E que seria o mundo sem o

    delicioso farfalhar das saias? Mas um trono requer uns cales. Que viesse a

    salvo e fosse rapaz!

  • E veio a salvo. E era um rapaz. A noite de dores da rainha correu toda em

    preces pblicas. Os templos ardiam de velas e regurgitavam de fiis. Diante do

    palcio um mar de povo aguardava. E como, por certo, incomodaria a

    padecente o marulho desse mar, toda aquela multido esperava num silncio

    impressionante e dramtico. Sob a promessa de tal silncio, gravemente feita

    por alguns dos mais populares homens-bons da capital, desistira a guarda de

    dispersar a multido. E a multido cumpria a promessa dos seus

    representantes. Informada do que se passava, a rainha chorara de ternura.

    Mandara, depois, dizer ao povo que se mostraria valente como qualquer uma

    das suas mulheres; e que estivessem descansados: dar-lhe-ia um homem!

    Ora pela antemanh, ( preciso meter aqui este parntesis) ora pela

    antemanh, um pouco antes dos ltimos esforos da rainha, trs velhas muito

    velhas saram, ao mesmo tempo, de dentro desse mar de gente. Como se para

    elas no houvesse distncia, quase imediatamente se juntaram numa clareira

    remota, l onde acabava o parque do palcio e comeava a floresta

    inexplorada. Em verdade se diria que um sinal s delas percebido as reunira.

    Hiptese, afinal, no to inverosmil como primeira vista se pudesse julgar,

    pois essas trs velhas mais no eram que trs bruxas. Vestiam largos capotes

    negros, de capuz levantado talvez por via do fresco da madrugada. Mas do

    fundo do capuz, os olhos da primeira reluziam como topzios; os da segunda,

    como safiras; os da terceira, como esmeraldas. Lindos olhos em caras to

    cheias de rugas, to cor de pergaminho!... A bem dizer, porm, aquelas trs

  • bruxas eram trs bruxas, mas sim trs boas fadas, que poderiam tomar

    quaisquer outros disfarces. Tinham tomado aqueles disfarces apenas para que

    a sua beleza as no denunciasse. E tambm elas tinham vindo, e ali se tinham

    reunido, por amor ao herdeiro esperado.

    A prenda que lhe dou comeou a primeira, sorrindo com as falsas

    rugas da cara que tenha todas as qualidades que fazem um homem

    respeitado por outros homens: Ser inteligente, valente, leal...

    A prenda que lhe dou interveio a segunda, entremostrando um colar

    de prolas entre os lbios murchos que tenha todas as qualidades que

    tornam um homem desejado das mulheres: Ser belo, forte, msculo...

    A prenda que lhe dou declarou a terceira, acendendo ao fundo do

    capuz os dois pequeninos faris dos olhos que tenha todas as qualidades

    que tornam um prncipe querido do seu povo: Ser justo, generoso, enrgico...

    Parvas! bradou uma voz que se diria vir de muito alm, e j estava

    perto. Em volta, os ramos das rvores foram agitados como por um vento

    misterioso. As folhas secas levantaram-se do cho, rodopiaram um momento

    no ar. Uma onda de gua, ao longe, parecia aproximar-se... As trs boas

    bruxas compreenderam que estavam na presena do Esprito da Floresta, o

    qual rarissimamente costumava tomar forma visvel. Para dizer falar verdade,

    s perante os vulgares humanos: Como o veriam estes de outra forma?

  • Parvas! disse a voz profunda e sarcstica Estragareis o meu

    prncipe como fteis mulheres que sois! Estrag-lo-eis de mimos! Pois a

    prenda que eu lhe dei que tenha um defeito hediondo, capaz de corrigir

    todas as vossas prendas: Ser um prncipe perfeito com orelhas de burro!

    Palavras no eram ditas e uma violenta revoada de folhas levantou-se

    furiosamente no ar. Os braos mais baixos das rvores aoitaram o cho;

    fugindo, repetidas vezes o vento zuniu lamentoso de tronco em tronco e o

    fundo som da gua, ao longe, ecoou mais cavo, rotundo... Ao mesmo tempo,

    de vrios pontos entre a cerrao verde-negra da folhagem, corresponderam-

    se no ar uivos e gritos, ululos e bramidos, pios plangentes e cacarejos

    estralejando como risos sarcsticos e tristes. Era o Esprito da Floresta que se

    afastava de pouco bom humor, alvoroando animais e vegetais.

    E eis que um velho imponente, de olhos volveis e com reflexos como os

    de lagos em que ora d sol, ora sombra, poderia, mesma hora, ser visto

    diante do palcio real. (Poderia realmente ser visto?... pergunto eu). Era a

    hora em que repicavam todos os sinos dos templos, vibravam todos os clarins

    e trombetas do pao, e El-Rei se aproximava enorme varanda de mrmore

    para mostrar ao seu povo o filho recm-nascido. Uma aclamao reboou at

    aos cus como uma exploso gigantesca e prolongada...

    Entretanto, o velho atravessara a multido, passou entre os guardas, subiu

    escadarias, deslizou ao longo de corredores e sales. (No o veriam os

  • guardas, os lacaios, os cortesos, as camareiras?) Grande era ele, e bem de se

    ver, com os seus braos e pernas iguais a troncos, a sua barba que

    torrencialmente lhe inundava o peito e o ventre, a sua basta cabeleira

    revolvida como uma densa moita em que se encafurnam os ventos, as feies

    cortadas em angulosidades de rocha viva... E, apesar disso, era a sua figura

    invisvel, pelo menos aos olhos comuns? Ou seria, antes, que o modo

    extraordinrio de ser dessa figura tolhesse as palavras e os movimentos de

    todos? Eis o que, por uma deplorvel ausncia de informaes seguras, torna-

    se-nos impossvel explanar muito sobre o caso.

    Uma pessoa, porm, viu-o nessa travessia at cmara da rainha, isso

    pode ser afirmado. E essa pessoa foi, nem mais nem menos, que Rolo

    Rebolo, monstro sem pernas que s andava como o seu nome indica

    rebolando e que exercia no palcio, simultaneamente, os cargos, se tal se

    lhes pode chamar, de bobo e poeta librrimo. Coisa, alis, no para estranhar,

    j que sempre tanto h de palhao num poeta librrimo, como de poeta

    librrimo num palhao.

    Claro que ningum, ao tempo, acreditou no Rolo Rebolo. Patranhar,

    fantasiar, fingir, no fazia parte dos seus ofcios? Mas nem por isso deixou

    Rolo Rebolo de jurar ter tido to estranho encontro, como de o identificar,

    no obstante vrias diferenas aparentes, com quem depois veio a ser o aio do

    dito prncipe, o que, evidentemente, pareceu o cmulo da fantasia. Mais

    tarde, vrios acontecimentos e circunstncias concederam foros de

  • autenticidade s declaraes de Rolo Rebolo. At alguns cronistas deram

    conta de tal viso nas suas narrativas, que por isso mesmo foram consideradas

    suspeitas pelos mais conspcuos membros da Academia de Histria. Pois no

    chegaram tais cronistas (e a despeito dos mais autorizados juzos dos crticos

    consagrados) ao excesso de afirmarem ser Rolo Rebolo um poeta estupendo

    e um vidente?

    Ora estava Rolo Rebolo a improvisar no corredor um sibilino poema

    inspirado na sua viso, quando as camareiras que rodeavam o leito da rainha a

    viram tornar-se ainda mais plida, escancarar uns olhos imensos, fit-los na

    porta e, febrilmente, espetar os dedos nas roupas, forando-se por se erguer-

    se. Todos os olhos das nobres criadas se voltaram igualmente para a porta. E

    nenhuma delas viu nada, nem ningum... Aos seus olhos furtava-se a

    extraordinria presena que se revelara ao bobo sem pernas. O parecer

    daquelas pobres nobres criadas era que ningum abrira a pesada porta da

    cmara... Todavia, estavam todas arrepiadas. que o rosto da rainha era

    sobrenatural. A palidez que lhe ficara da grande prova mudara-se para uma

    brancura de linho, de aucena, de mrmore, que j no parecia ser uma

    criatura deste mundo. Os seus olhos continuavam imensos, como se tudo

    pudesse caber nuns olhos que, por maiores que sejam, so coisa to

    pequenina! Os seus lbios tinham sorrisos longnquos, ora parados como os

    das esttuas, ora fugidios como reflexos; e mexiam, parecia, a medo, mexiam

    enquanto as suas mos espalhavam sobre os lenis esboos de gestos muito

  • delicados, acompanhando as palavras mudas da boca. Parecia que a rainha via

    algum que ningum mais via. Conversava com quem mais ningum ouvia.

    Por fim, pediu em voz muito clara, natural, que lhe fossem buscar o marido

    e o filho e s camareiras que ficaram mandou que lhe trouxessem para cima da

    cama todo o enxovalzinho do recm-nascido. Assim esteve como afogada,

    sorridente, sob um monto de peazinhas enternecedoras, ridculas,

    preciosssimas pela riqueza do tecido, dos bordados e das rendas.

    Quando o marido chegou com o pequenino nos braos, acompanhado

    tanto do Fsico assistente como de uma boa ama, escrupulosamente escolhida

    para cuidar do herdeiro do trono, pediu na mesma voz clara e natural que a

    deixassem s com os seus dois homens. As camaristas sorriram

    embevecidamente desta graa da sua soberana. O Fsico recomendou que Sua

    Majestade no se cansasse muito. A ama atirou um beijo ao seu nobre

    menino. Todos se retiraram.

    S com o marido, a pobre me tentou reclinar-se na cama, puxou o filho a

    si, tirou-lhe a touca de rendas.

    Reparai... disse ela poisando os dedos trmulos nas diminutas orelhas

    do pequenino.

    Diminutas? O caso que as orelhas do principezinho no eram diminutas!

    Eram, at, de tamanho pouco natural para um recm-nascido. Alm de que

  • no tinham bem o formato normal. Pois antes as diramos pontiagudas, e com

    tendncia a dobrarem nas extremidades...

    Mas como dizer o pior? O pior que as revestia um pelozinho escuro,

    quase basto, extravagante em orelhas de qualquer ser humano, e

    absolutamente incompatvel com o arrepio de penugem fina, loura, que

    dourava a cabecinha mimosa.

    O msero pai no podia crer no que via! Como que ainda no reparara?

    Como que ainda ningum reparara?... Mas no teria, ainda, reparado

    ningum? Verdade seja dita, o principezinho fora logo todo enfardado em

    cambraias e rendas... O msero pai no podia crer no que via! Quase com

    brutalidade as suas mos convulsas arrancaram as rendas e as cambraias. O

    terror viera-lhe do medo de que o filho apresentasse ainda qualquer outra

    monstruosidade que ningum tivesse notado. Mas no! Deus seja louvado,

    no! O menino era todo perfeitinho e robusto. Nada lhe faltava; nada tinha a

    mais. S aquelas orelhas de bicho... Porque nisso no havia que duvidar: Com

    efeito eram umas orelhas de bicho, uma espcie de miniatura das orelhas de

    um pobre bicho muito conhecido, muito simblico, as orelhas do

    principezinho perfeito...

    Quando, aps um agoniado silncio, ousou o rei levantar os olhos para a

    mulher, viu que tambm ela mal ousava levantar os olhos para ele. E as

  • lgrimas corriam-lhe em fio pelas faces alvas, indo perder-se-lhe nas rendas da

    camisa no mais alva.

    Querida... rouquejou ele numa espcie de soluo que, de sbito, lhe

    tomou a garganta como a presso de uma garra. E, no podendo dizer mais,

    baloiou o busto e bateu com os punhos cerrados no peito.

    Continuava a no compreender o que se passava. Outro longo silncio caiu,

    durante o qual s se percebia afastarem-se, longnquas e agora melanclicas,

    de uma terrvel ironia aos ouvidos dos mseros pais, as aclamaes l fora. O

    bom povo retirava-se para deixar descansar a sua rainha. Mas no se retirava

    para dormir, no! A noite era de jubilosa viglia! At dia claro, haveria festas e

    bailes. S os pobres pais aclamados estavam ali, um diante do outro, sem

    ousarem olhar-se, mudos e angustiosamente constrangidos pela sua

    descoberta. No!, no havia o que duvidar: o seu menino tinha orelhas que

    no eram de gente!

    Que maldio pesava, afinal, sobre o seu amor que, depois de tanto tempo

    o ter condenado esterilidade, o condenava agora a esse belo fruto gafado, a

    esse produto superior mas tocado de monstruosidade?...

    Quando, porm, ergueu novamente os olhos, o pai encontrou os da mulher

    que j lhe no fugiram. As lgrimas continuavam a correr-lhe nas faces

    brancas mas nos seus olhos agora firmes, cravados nos dele como se

    comunicassem essa mesma firmeza melanclica e luminosa, que havia certo

  • resplendor j dele conhecido. Para alm disso, reaparecera nos seus lbios uma

    rstia de sorriso sobrenatural!...

    J sabia disse ela que o nosso filho seria marcado pelo destino. S

    um sacrifcio dele e um meu permitiriam o seu nascimento. Aceitei o dele

    porque me foi prometido que o seu destino seria grande... e sei que ser

    grande... apesar de tudo! O meu, embora penoso agora, que poderia ser eu to

    feliz, aceito-o gostosamente. S me di ter de vos deixar sozinhos, a ambos,

    sem ainda saberdes o que j eu sei...

    Estendeu as mos e apanhou nelas, apertando-a com paixo, a mo trmula

    do marido.

    Querida... disse ele soluando, porque, embora no compreendendo

    aquele novo mistrio, sentia que ela lhe fugia.

    De facto, a rainha estava morta. Morta com os mesmos olhos

    resplandecentes e calmos fitos nele, e a mesma rstia de sorriso sobrenatural

    na boca entreaberta.

    Como a tiveram sempre coberta de flores enquanto foi velada, no era de

    admirar que cheirasse to bem nas proximidades da sua cmara ardente. Sabe,

    porm, toda a gente que Rolo Rebolo no atribuiu s flores, mas sim ao

    prprio cadver, esse aroma de violetas e lrios. A elegia em que nos diz isso

    anda hoje em todos os compndios poticos.

  • CAPTULO 3

    COMO FOI SENTIDA A MORTE DA RAINHA, E DAS EXTRAORDINRIAS

    APTIDES QUE COMEAVA A REVELAR O PRNCIPE LEONEL

    As suas exquias foram magnficas. Todo o reino chorou a rainha que

    morrera para dar um herdeiro ao trono. Toda a gente deitou luto por ela

    como por uma pessoa de famlia. Mas a dor de toda a gente junta, no

    igualaria a do rei. Nos primeiros dias, ele ainda andou como no tomando

    verdadeira conscincia da catstrofe. No fosse o seu ar estranho, entre

    desorientado, espantado e emparvecido, dir-se-ia at que a viuvez o deixara

    relativamente frio... Ao cabo de alguns dias, sentiu que dificilmente poderia

    suportar a vida. Ento, chegou a atentar contra ela.

    Rodearam-no de cuidados e vigilncias. Bem afortunado s, leitor, desta

    crnica, se ainda ignoras o que seja a saudade intoleravelmente minaz, o

    angustioso pasmo perante a realidade inaceitvel, a impresso de solido,

    vazio, injustia, que, ao fim de alguns dias, nos causa a morte de um ser bem

    amado. Ah, v-lo s mais uma vez, ouvi-lo uma ltima vez, tocar-lhe uma vez

    mais, dizer-lhe tudo o que nunca se lhe disse, remediar todo o mal que se lhe

    fez!... Bem afortunado s, leitor, se, ao evocar um fantasma querido, to

    presente e j vago, to senhor da tua alma e, todavia, j esfumando-se nos

    pormenores fsicos, no sentiste ainda o incompreensvel, o cavo, o pavoroso,

  • o gelado desta expresso: nunca mais!... E o tempo que tudo lima, at sobre o

    ardor destas chagas espalha a sua cinza. No lugar da carne viva, s fica um

    ponto mais sensvel e uma cicatriz.

    Como toda a gente mais ou menos simpatizava com o desespero do vivo,

    (e no digo mais ou menos seno porque no reino de Traslndia, como em

    qualquer outro, gente havia de maior ou menor sensibilidade, faculdades

    melhores ou piores) toda a gente procurava consol-lo, assistir-lhe, socorr-lo;

    cada um sua maneira (at os hipcritas, os secos, os aduladores, os

    espetaculosos....). Mas por mais maneiras que tinham as vrias gentes de lhe

    mostrarem simpatia na dolorosa ocorrncia, a que recebeu melhor agrado, a

    que teve provas de maior eficincia, foi a de Rolo Rebolo! Pois nem por isso

    Rolo Rebolo se despendia em subtilezas de engenho para distrair o seu rei,

    ou excelncias de retrica dialtica para o confortar. O que fazia, afinal, Rolo

    Rebolo era deitar-se, como um co, aos ps do monarca; e chorar quando ele

    chorava. A sua presena acabara por se tornar to necessria ao pobre vivo

    que, em no estando ele, El-Rei se mostrava mais inquieto, mais desesperado

    ou mais amargo; e com ele presente, sentia-se, ao mesmo tempo, to -

    vontade como sozinho, e to acompanhado como efetivamente estava. O

    segredo disto era simples: Quem no sabia, na corte, que o monstro Rolo

    Rebolo, em geral to sardnico e spero com todos, concebera pela rainha

    Elsa uma profunda paixo sem cimes nem desejos... um desses rarssimos

    amores que a si prprios se bastam, e mais no pedem que a simples

  • existncia da pessoa amada? S a dor de Rolo Rebolo poderia, pois,

    acompanhar e suavizar a de El-Rei. Algumas vezes os surpreenderam, at,

    falando o mais familiarmente possvel da morta querida, como se um no

    fosse rei e outro um poeta maluco e aleijado, reduzido condio de bobo.

    Depois da companhia de Rolo Rebolo, a que mais aprazia ao rei era a do

    bom pajem Leonardo, afilhado que fora e protegido da rainha. Como seu

    afilhado protegido, Leonardo recebera uma educao que muito valorizava as

    suas aptides naturais. Alm de cantar com boa voz, bom gosto, justa

    expresso, Leonardo sabia ferir as cordas de uma harpa como se fizesse vibrar

    as prprias fibras de um corao apaixonado e melanclico, extremamente

    delicado. Muitas vezes, a meio das suas tenebrosas noites de insnias,

    mandava-o chamar El-Rei para que tangesse e cantasse. Leonardo tangia as

    cordas e cantava no silncio da noite. Ouvindo-o, podia o rei sonhar com

    outros mundos em que certamente o esperava a rainha ausente. As suas

    lgrimas tornavam-se menos salgadas ou menos amargas.

    E meses e anos rolaram sobre os acessos de desespero do nosso rei

    Rodrigo, sobre os seus abismos de abatimento. Dessa dor, como do tempo

    que sobre ela passara, havia agora mais rugas no seu rosto; mais cinza na sua

    cabea; mais tristeza e doura no seu olhar, no seu sorriso; mais caridade e

    cansao no seu corao... Mas o vivo j no pensava em matar-se. Aguardava

    serenamente a hora de se ir juntar companheira desaparecida. Entretanto,

    vivia pacfico, tinha muitos dias felizes, ou quase, e dedicava-se ao filho.

  • Dedicava-se fervorosamente ao filho, tanto mais que o principezinho

    plenamente satisfazia o seu amor e orgulho de pai.

    Sim, aos nove anos de idade j o prncipe Leonel tinha um

    desenvolvimento mental e fsico absolutamente extraordinrio. Maravilhavam-

    se os primeiros mestres da precocidade e viveza da sua inteligncia, no

    cessando de profetizar nele um homem cujo nome ecoaria, um dia, em todo o

    mundo, para alm de aclama-lo como um soberano que faria qualquer reino

    da terra invejar o seu pequeno mas encantador estado. Bem certo, como toda

    a gente sabe, que a grande maioria dos mestres de qualquer prncipe no

    pecam por serem demasiado parcos, junto dos monarcas pais, em to

    lisonjeiras profecias. Ora se a qualquer corao paternal so essas aceites,

    como as no julgaro devidas os grandes da terra aos seus preciosos rebentos?

    Independentemente, porm, de quaisquer intuitos de adulao, eram tais

    profecias justificadssimas no caso presente. Era impossvel no admirar a

    agudeza, o senso, a intuio, a clareza, o vo j revelados em quaisquer

    sentenas e respostas daquela criana! E o mais admirvel era que no s para

    as belas-letras, belas-artes e cincias manifestava o pequeno disposies

    excecionalssimas. Tambm em todos os jogos, brincadeiras ou trabalhos

    fsicos, desenvolvia uma agilidade inultrapassvel, um -vontade estupendo. Se

    h tantas pessoas sem vocao para nada, (o que muito compreensivelmente

    as acaba por levar ao tdio da vida) vocao para tudo era a vocao do nosso

    jovem prncipe. Assim o seu corpo medrava em graa, robustez, beleza, na

  • medida em que prematuramente desabrochava o seu esprito em penetrao,

    riqueza e curiosidade. Que menos dizer do jovem prncipe seno que parecia

    vir a ser perfeito? Ou que a sua perfeio se tornava inquietante?

    Precisamente: inquietante! Certas velhas pessoas que a dureza da vida tornara

    azedas, desconfiadas, irremissivelmente pessimistas, retorciam um pouco os

    lbios hostis, ou abanavam agoirentamente a soturna cabea em vendo a

    beleza do prncipe e ouvindo citar (quando, por qualquer modo, no era

    admitido a elas prprias a verific-la) a sua anormal inteligncia.

    Tal menino no deste mundo! queriam dizer os trejeitos de boca e

    meneios de cabea das melhores; (porque se pode ser azedo, desconfiado e

    pessimista, no obstante, e ser fundamentalmente bom). Porm as ms

    remoam consigo: Aqui h mistrio! Neste garoto anda coisa!... Mas o qu?!

  • CAPTULO 4

    ONDE SE TRATA DA ESCOLHA DE UM AIO PARA O JOVEM PRNCIPE; EM

    VIRTUDE DO QUE O LEITOR CONVIDADO A ACOMPANHAR O BOM REI

    RODRIGO, MAIS O SEU PAJEM LEONARDO, NUMA ESTRANHA EXPEDIO

    PARA L DO PARQUE

    Inicialmente s duas pessoas vivas conheciam o grotesco defeito de tal

    conjunto de perfeies: o pai e a ama. Confiado, como foi ao leitor, o mistrio

    do nosso principezinho, bem poder o leitor aventar que nos abatimentos,

    melancolias e meditaes de El-Rei Rodrigo, aps a morte da rainha Elsa, no

    houvesse s a profunda saudade desta, mas tambm uma angustiosa

    inquietao e perplexa amargura perante a monstruosidade do filho. Com a

    ajuda, porm, da boa dona que o aleitara e depois ficara sempre ao seu lado,

    bem conseguira, at ento, o pobre pai, que o prprio principezinho ignorasse

    a sua ignomnia. Dada a estranha precocidade, a viva curiosidade e a aguda

    inteligncia de Leonel, tal no fora fcil.

    Talvez nem seja isso explicvel seno por nova interferncia do

    sobrenatural. Mas o que acontecia, porm, era de o prncipe estar com a ama

    sempre ao seu lado enquanto crescia, que lhe vigiava os passos e que lhe

    coordenava as aes, mesmo as da sua perptua intimidade. No entanto,

    como foi dito, o prncipe revelara-se em tudo muito precoce e no tardou

    nada at que o seu gentil corpo de infante se tornasse num robusto e perfeito

  • corpo de homem. Acrescia que, se a presena da ama podia continuar a convir

    para dar ao rfo a ternura maternal que lhe faltara, a presena de um

    preceptor no seria menos conveniente. E no urgia prepar-lo para vir a ser

    homem e rei?

    Eis como foi preciso introduzir uma terceira pessoa no triste segredo: o aio

    de Leonel. De onde viera to extico vulto ou quem realmente fosse, ningum

    o sabia. Mas os novelistas e cronistas averiguam muito do que antes deles se

    desconhecia. Alguma coisa ficar o leitor a saber, ou a entrever, desse

    misterioso personagem, em se dando ao trabalho de continuar a ler esta

    honesta crnica.

    Uma tarde, andava o triste pai perguntando-se quem apresentaria o

    composto de virtudes necessrio a um bom aio do prncipe, quando teve o

    seguinte sonho: Sonhou que estava sentado no jardim, (como em verdade

    estava ao adormecer), pensando no que dia e noite o preocupava agora: a

    escolha do aio. Percorria, em esprito, os nomes de todas as individualidades

    mais em destaque na corte. Mas nenhum nome o contentava. Um era

    demasiado ambicioso, outro um intriguista, aquele um hipcrita, estoutro um

    amoral, essoutro um ftil, aqueloutro um avaro... No sem razo conclua o

    rei que nem sempre o valor moral acompanha um certo brilhantismo

    intelectual ou mundano e que so, precisamente, os mais destitudos daquele

    valor, embora revestidos deste brilho, os mais pressurosos em torno dos reis,

    dos chefes, dos poderosos, das autoridades, do Estado... Para ascender ao

  • poder, no vendera um a mulher ou a filha, no atraioara outro os camaradas,

    no renegara outro todas as suas amizades e convices, no haviam

    lambuzado quaisquer uns as mos e os sapatos dos mais altos?

    Corja!(*) pensava o rei no seu lcido sonho. Porque, se a maioria dos

    sonhos se caracterizam pelo revolver, sim, de coisas profundas, mas atravs

    das mais inesperadas e caticas imagens, este sonho do rei foi to luminoso,

    decorreu to bem ordenado apesar da interveno do mistrio, que, mais

    tarde, chegou o rei a pr em dvida que tivesse, na verdade, sido um sonho,

    confundindo-o, na memria j cansada, com a realidade do dia seguinte.

    [(*) Corja: calo para bando de bandidos, malfeitores ou criminosos]

    Corja! pensava, pois, o rei no seu lcido sonho. E a verdade que nunca,

    desperto, vira to claramente como via agora, sonhando, serem a ambio e a

    vaidade os principais motivos de ao dos seus ministros, conselheiros,

    governantes, delegados, secretrios; apesar de encobrirem todos a ambio, o

    egosmo e a vaidade sob esplndidas capas de ideais eternos. Como entregar a

    tais homens o filho amado? Como confiar deles a desgraa do principezinho

    perfeito?... Qual deles no especularia com ela? Decerto os grandes ideais

    eternos com que tais palhaceiros mascaravam os seus apetites e trampolinices,

    existiam, realmente, na aspirao de certos espritos e coraes. Homens

  • haveria ao fundo de uma cela, de um casebre, de um gabinete, de uma aldeia

    perdida, talvez de um crcere, para quem a Justia e o Amor, a Caridade e o

    Bem Comum, eram mais do que ornamentos de discursos ou disfarces da

    cobia. Mas como ir encontr-los? Como poder reconhec-los um pobre rei

    ao mesmo tempo to impado de poder e tolhido de movimentos?

    Ora estava o pobre rei assim a refletir atravs do seu lcido sonho, quando,

    de sbito, se sentiu envolvido por um luar que baixara. S ento reparou que

    anoitecera. Mas anoitecera enquanto estivera a meditar. Ergueu os olhos para

    ver de que lua descera inopinadamente aquela fria claridade... E, sem querer,

    levantou-se com um grito estrangulado, porque a rainha morta estava diante

    dele. Morta!? Na verdade, no podia ele agora crer que alguma vez ela tivesse

    estado morta!, morta a valer. Antes lhe parecia que voltava de uma longa

    viagem; ou, ento, decidira mostrar-se, depois de ao seu lado ter vivido

    invisvel.

    Como um impulso de amor o quis atirar logo para ela, o fantasma recuou

    com os olhos astrais fitos nele e um dedo hirto nos lbios. E o rei reconheceu

    tratar-se de um fantasma, porque, recuando, ela atravessara o tronco da

    magnlia que passava atravs dela como de fumo. Nem por isso deixava de a

    ver como se tivesse corpo material. Ento ela, estendeu-lhe a mo, acenou-lhe

    que avanasse; e ele meteu-se a caminho, levado por essa mo cujo contacto

    no sentia nos dedos.

  • Para a sua guia, era o caminho fcil. Mas ele tinha de avanar com grande

    prudncia, tateando o ar com a outra mo, pois a cada passo se lhe eriavam

    frente ora escarpas de rochas agressivas, ora troncos gigantes mais largos que

    os seus braos abertos, e cujas copas tapavam as estrelas. Sem saber como,

    achava-se j muito para l do parque do palcio. A ilumina-lo, no havia seno

    o alvor azulado que o fantasma ia esparzindo numa rea de alguns passos.

    Intil prudncia aquela sua! Bem adivinhava que tantas cautelas

    impacientavam a companheira. E, tendo ele prprio grande pressa de chegar,

    no sabendo embora aonde, fechou os olhos. Comeou a correr, sempre

    levado pela mo espectral que parecia ir voando. E o caso que ou se

    desviavam dele, agora, as arestas dos penedos e os monstruosos caules das

    rvores, ou tambm j ele os varava, como se tambm o seu corpo tivesse

    deixado de ser matria. Para alm disso, j nem se sentia trilhar ou roar o

    cho. Era como se fosse a correr, pairando no ar, acima do solo.

    Morri! pensou. Mas nem terror nem espanto lhe causou a ideia de ter

    morrido. Deixava-se voar, abandonado quela impresso de inefvel

    facilidade. De vez em quando, entreabria as plpebras. E mais adivinhava do

    que via desfilarem confusamente, a seu lado, labirintos de rvores e arbustos,

    massas de rochedos, emaranhados liames de trepadeiras seculares. Sabia que

    estava muito longe do palcio, l onde se prolongam terrenos inexplorados e

    florestas virgens mas que, como tanta vez sucede em sonhos, essas terras eram

    simultaneamente elas prprias e outras. De vez em quando, agora, clareiras

  • nuas desabrochavam naquele tenebroso ddalo de troncos, galhos, rochas,

    trepadeiras... Ento, sentindo atravs das plpebras que ia atravessando

    regies mais claras, abria os olhos. Via as estrelas a tremer no fosco azul-negro

    das imensas alturas. Tornava a deixar cair as plpebras com voluptuoso

    abandono. E j nem tinha pressa de chegar, quando, sem querer, estacou

    sbitamente. Olhou em volta como quem desperta, voltando-se para onde

    julgava estar a sua guia. Ela apontava-lhe qualquer coisa ao fundo da clareira,

    porque estavam numa clareira aonde j chegava muito bem o frio e o bao

    alvor da madrugada. Ao fundo, vagamente, descortinava-se um muro

    pedregoso com uma porta, um buraco, um telhado talvez de troncos e galhos

    secos. Tudo parecia mergulhado num silncio, num sossego, uma eternidade

    de outro mundo. Sem que ele propriamente soubesse o que perguntava, ou ao

    que ela respondia, os olhos dele interrogaram Elsa. Ela acenou-lhe que sim

    com a cabea. Depois, ergueu o dedo hirto aos lbios, outra vez, com os olhos

    resplandecentes postos nele, e comeou a adelgaar-se, a rarear, subtilizando-

    se como um fumo que se perde, acabou por desaparecer de todo.

    Elsa! gritou ele a chorar. Mas, nesse mesmo momento em que sentia

    mais agudo o sofrimento de segunda vez a perder, (mesmo que soubesse

    agora que nunca, em absoluto, a perdera ou a perderia, pois ela vivia em

    qualquer parte simultaneamente longe e perto dele), sentiu tambm uma

    espcie de inquietao, de pressentimento, de suspeita sobre a realidade

    material do que lhe estava a acontecer... No iria despertar?

  • De sbito, compreendeu quase claramente que toda essa noite no passava

    de um sonho. Tudo um sonho de que ia acordar da a pouco, de que at j

    estava a acordar... Antes, porm, desvendaria o mistrio daquela apario,

    daquela jornada atravs do negrume, daquele muro com aquela porta e aquele

    buraco. Desatou, ento, a correr em direo ao casebre, que, de repente,

    aumentava e corria tambm para ele... Mas a penumbra enrodilhou-se-lhe nas

    pernas. A noite que ainda havia no corao da floresta parecia ter invadido a

    clareira para o impedir de chegar. "Elsa!" gritou ele esbracejando com as

    trevas. E acordou.

    Acordou. Continuava, claro, no jardim, deitado na sua comprida cadeira de

    sesta. No devia ter dormido mais que meia hora. Tudo, em redor, pairava

    numa tranquilidade que lhe pareceu anormal. Os braos da magnlia

    abrigavam-no do sol e, por estar na sombra, ainda lhe pareceu mais estranho,

    depois do seu sonho, aquele sol que tornava transparente, dourada e levssima

    a folhagem dos arbustos volta do lago. Um cisne deslizava lentamente, como

    num devaneio, sobre o cristal da gua imvel. Um zumbido de insetos passou

    no ar; depois, o silncio recaiu mais profundo. Mas se as impresses deste

    momento se incrustaram assim na memria do rei, que, posto havendo tido,

    desde o dia em que empreendera a rainha Elsa o seu enigmtico passeio para

    l do Parque, iniludveis rebates do sobrenatural, nunca tivera, antes, uma to

    completa sensao do mistrio que nos cerca. Os seus olhos procuraram

    ento as primeiras rvores do Parque. Eram tlias cuja folhagem tambm o sol

  • tornava agora transparente e dourada, a pontos de menos parecer folhagem

    que uma delicadssima chuva de ptalas, imobilizada ao cair. Para alm dessas

    tlias, esguios eucaliptos havia de tronco cinzento claro, pincelado de farripas

    de casca. Depois, espraiados e majestosos pltanos de folha esbicada. Depois,

    cedros verde-negros de pases longnquos, pinheiros mansos de copa bela... E,

    depois, um cada vez mais cerrado emaranhamento de rvores e arbustos de

    toda a casta. E depois? E depois do depois? E para l disso?...

    O rei no podia esquecer que adormecera a pensar em quem seria o aio do

    prncipe; e que todo o seu sonho embora no soubesse explicar como

    se relacionava com essa preocupao. Veio a noite, e toda a longa noite velou,

    preso s mesmas preocupaes. Ergueu-se ao dealbar da madrugada. Vestiu-se

    como quando ia caa; escolheu para o acompanhar o pajem Leonardo e,

    avisando que se no alarmassem com a sua demora, pois sabia que voltaria so

    e salvo, l se embrenhou no Parque, tal como um dia se embrenhara a rainha

    Elsa.

    Claro que os ministros, os familiares e os cortesos, ficaram a murmurar

    esse capricho do rei. Todos suspeitavam que o rei seguisse para l do Parque.

    E teria Sua Majestade o direito de arriscar uma vida que lhe no pertencia,

    aventurando-se quela regio sinistra, que verdadeiramente ningum conhecia,

    mas todos imaginavam estar povoada de feras, monstros, espritos malvolos,

    criminosos fugidos justia, evadidos das masmorras... sabe-se l? Porm o

    que em verdade provocava tais murmuraes no era temerem os cortesos

  • pela vida do rei ou pelo bem da ptria. Rarissimamente, como toda a gente

    sabe, esse o motivo ntimo das censuras dos cortesos. O que os enraivecia

    era desconhecerem os intuitos ou razes de El-Rei em to singular passeio. E

    no s isso os enraivecia como vagamente os atemorizava, no pela cara rgia

    pessoa, mas pela sua carssima prpria. Quem muito esconde dos seus

    verdadeiros actos e intenes, a propsito de tudo e nada se teme de haver

    sido descoberto.

    Ora tambm toda a gente sabe (ou, pelo menos, o compreender com

    facilidade extrema) que todos os cortesos tm muito a mascarar dos seus

    verdadeiros actos e intenes; especialmente, perante o senhor cortejado. Eis

    que os mais coscuvilheiros ou receosos chegaram, pois, a subir Torre,

    aproveitando a sesta do sapiente astrnomo-astrlogo Futurus, para, de l de

    cima, tentarem seguir, por meio de culos e binculos de grande alcance, a

    jornada de El-Rei atravs do parque e da floresta. A essa hora, porm, onde

    estariam o rei Rodrigo e o seu pajem Leonardo? Nem culos nem binculos

    do melhor alcance lograram mostrar qualquer indcio da sua passagem. Nisto,

    acordou o sapiente astrnomo-astrlogo Futurus. E como no tinha papas na

    lngua, era temido por o tomarem como um verdadeiro mago e dispunha

    ainda de valentes msculos no obstante as barbaas cinzentas, no esteve

    com grandes meias medidas para fazer passar aos andares de baixo os

    invasores do seu antro de estudos.

  • Precisamente a essa hora, para l do Parque, ia El-Rei chegando a um stio

    de quase medonha beleza selvagem: todo era como um eriado de catos

    monstruosos, speras colunas de rochas truncadas e arbustos que, ao mais

    leve respirar do vento, brandiam os espinhos agudos e em riste como

    floretes.(*)

    [(*) Espada cuja lmina fina. Atualmente usada no desporto de esgrima.]

    Senhor... suspirou o pajem parando.

    O rei voltou-se e ainda o viu estender as mos como para agarrar qualquer

    coisa, depois oscilar sobre os joelhos que dobraram e lhe deram com todo o

    corpo no cho. Havia ali perto uma fonte que espirrava gua das pedras. O

    bom rei Rodrigo apanhou uma pouca de gua na concha das mos

    sobrepostas, e com ela borrifou o rosto sem cor do pajem.

    Quando recuperou os sentidos, o pajem Leonardo, que era extremamente

    sensvel, recomeou a tremer.

    Senhor... disse ele em voz sumida, sempre branco como um sudrio

    (*) Tenho que vos dizer que vi um fantasma atravessar as rochas...

  • [(*) Um Sudrio um pano de linho que antigamente se usava para limpar o suor. Tambm serviam

    como mortalha em tempos antigos. O mais clebre o Sudrio de Turim uma relquia crist que

    supostamente teria envolvido o corpo de Jesus Cristo, sepultado aps a sua crucificao, e que teria ficada a

    a sua representao nessa altura.]

    Mais merece a pena ter medo dos vivos que dos fantasmas disse o rei

    tranquilamente. No te julgava to medroso!

    Mas sabia que, embora extremamente sensvel, o seu Leonardo era corajoso

    como todos os que so simples, bons e jovens.

    Senhor, tenho que vos dizer que esse fantasma se parecia... tinha muito

    ar de...

    Profundos e abertos, os olhos de El-Rei Rodrigo estavam cravados nele

    com uma fixidez autoritria.

    E devagar, sempre sem desviar os olhos fascinantes e fitos, o rei ergueu um

    dedo hirto aos lbios.

    Em virtude desse olhar, desse gesto, nunca o pajem Leonardo disse a

    ningum ter visto um fantasma na floresta. Quem esse fantasma lhe parecera,

    nem a si prprio o ousava confessar.

    Vamos almoar disse o rei passados uns minutos. Esqueci-me de

    que h muitas horas no comemos! E estamos sem foras.

  • Depois acrescentou como se escarnecesse, embora carinhosamente:

    Quando se est sem foras, faclimo ver fantasmas...

    Sabia agora que secreta e extraordinria afinidade sempre o ligara quele

    rapaz: O raro dom de ver espritos no pode deixar de profundamente

    irmanar os que o possuam. Simplesmente, h ntimas e quase temveis relaes

    sobre quais doce, alm de conveniente, baixar um entendimento silencioso.

    Leonardo trouxera um esplndido farnel para ambos, alm de uma lanterna

    para o caso de lhes anoitecer o dia no caminho. Assim o determinara El-Rei.

    Comeram e beberam de gosto. Sentiam-se to companheiros (embora

    respeitosos) e to -vontade um com outro, como se El-Rei no fosse rei e o

    pajem um seu servo. Para alm disso, era -vontade que vinha de h anos.

    Realmente, j h vrias horas que marchavam. H muito que haviam

    deixado os geomtricos trilhos e bem tratadas rvores do Parque,

    embrenhando-se em labirnticos becos onde escassamente chegava um ou

    outro raio de sol. Esse mesmo, s escorregando ao longo dos troncos, por

    entre confusos festes de galhos, verdura, cachos de flores selvticas; ou a

    custo peneirando a sua luz dourada na rede dos filamentos e folhagens midas

    das trepadeiras. Aps estes lugares agrestes, mas quase amenos, atravessaram

    outros muito diferentes. Normalmente quando era preciso seguir veredas que

    caprichosamente coleavam sob o sol a pino, desenhadas pela simples natureza

    em terrenos de lodo espapaado, movedio, para logo adiante se afundarem,

  • em guas noturnas e subterrneas, sob altas moles de rochedos desabando uns

    contra os outros.

    Como toda a gente, ouvira Leonardo falar no passeio da rainha Elsa para l

    do Parque. Teria ela ousado, de verdade, arriscar-se nestas regies

    temerosas?, pensava ele agora. E de cada vez que evocara essa lendria

    jornada da rainha morta, sentira Leonardo um prolongado arrepio mais

    interior que da carne, acompanhado de uma espcie de inquietao no sabia

    porqu, de pressentimento, ou suspeita, no sabia de qu... Felizmente, El-Rei

    parecia conhecer muito bem tais paragens! Rompia sem a mnima hesitao

    por semelhantes caminhos, como seguindo um guia invisvel; o que,

    simultaneamente, assombrava o pajem Leonardo a ponto de lhe provocar um

    acrscimo de terror (pois como os puderia conhecer El-Rei...?) e lhe dava a

    confiana de quem segue um piloto experimentado. A par do seu senhor,

    agora, e depois da sua viso, depois daquela misteriosa imposio de silncio

    do rei, nem sabia o pajem Leonardo que pensar! Mas pensava, ou sonhava,

    muitas coisas em que pressentia uma verdade esquiva mas real, mais real que

    todas as verdades palpveis... Assim o seu senhor e ele estavam lado a lado,

    familiares mas graves, tendo comido com satisfao porque os seus corpos

    requeriam foras, mas vivendo uma vida que transcendia a dos corpos.

    Vamos! disse o rei ao cabo de um longo silncio. Antes de

    recomear, porm, ajoelhou e concentrou-se uns momentos. Entendendo que

    o seu senhor agradecia Divina Providncia quer terem chegado at ali sos e

  • salvos, quer por terem restabelecido foras, Leonardo fez o sinal da cruz e

    fingiu que tambm orava. Fingiu... o termo certo, porque nem com palavras

    nem mentalmente poderia Leonardo coordenar qualquer orao. O seu

    simples estado de esprito que era, ao mesmo tempo, um apelo e uma ao

    de graas.

    Posto isto, recomearam a andar. Ladearam as rochas, esquivaram os

    acleos dos arbustos mais agressivos, passaram, quase de rastos, sob moitas de

    catos que mais semelhavam inquietantes simbioses de flores e faunas

    desconhecidas. Acharam-se, ento, perante uma densa floresta de rvores que

    no saberiam classificar, mas lhes lembravam gigantescos pinheiros, em cuja

    rama o vento desferia uma contnua toada saudosa e perturbadora, prolongada

    para l at onde o ouvido podia ir.

    Senhor... disse o pajem Leonardo recomeando a tremer. J antes,

    atravs das selvas deixadas atrs, lhe parecera ouvir lamentosos uivos de feras.

    L conseguira animar-se, esforando-se por os supor alucinao; (embora

    as lendas que envolviam aquelas paragens o no deixassem repousar tranquilo

    em tal hiptese). Agora, no tinha dvida: lamentosos uivos de lobos e

    sarcsticos e arrepiantes pios de aves cortavam, de tempos a tempos, o

    silncio no menos pavoroso daquela cerrao de troncos. Dela vinha, ainda,

    um sopro que no parecia vento, mas antes um bafo tumular, gelado, que

  • batia na cara de Leonardo como se ele estivesse no limiar de outros mundos,

    onde se respirasse outro ar...

    El-Rei, que marchava um pouco frente, voltou-se para o pajem.

    Canta! disse-lhe Cantar espanta o medo. E no tenhas medo,

    porque h quem nos proteja.

    Bem sei... respondeu muito no fundo de si o pajem Leonardo. E,

    tremendo ao atravessar aquela floresta onde fazia eterna sombra, ergueu a voz

    para evocar as suas praias cheias de sol. O pajem Leonardo passara a primeira

    infncia em terras beira-mar. Nas suas cantigas chorava a nostalgia dos areais

    rasados de estendais de espuma, fazendo faiscar ao sol imensas superfcies que

    a gua, ao retirar-se, lamina. E o rtmico vaivm das ondas e a sua merencria

    e adormecedora cantilena tambm ecoavam nos versos do pajem Leonardo.

    Era por elas que El-Rei mandava-o chamar em noites de insnias, e o fazia

    cantar; embora no soubesse bem que era por isso.

    Tremendo atravs daquela floresta onde fazia eterna sombra, o pajem

    Leonardo ergueu a voz fina e trmula, nostlgica... voz que, de repente, se lhe

    enrodilhou na garganta, porque uns dedos de ferro o pareciam afogar; e o

    pobre pajem ansiava e soluava, pedindo a Deus que o deixasse acordar

    daquele sonho ora demasiado belo ora demasiado terrvel, superior s suas

    foras. Do tenebroso corao da floresta, em frente, vinha agora um

    espantoso sonido como de grandes quedas de gua distantes, ou montanhas

  • de vagas que avanassem, rolando, para subverter o mundo. Talvez mais no

    fosse que o som do vento a repercutir, de copa em copa, no cimo das rvores.

    Mas a imaginao de Leonardo estava sobre-excitada, e ele a ponto de no

    respirar, no sentir, no palpar seno o mistrio sua volta. Na verdade,

    apesar de uivos e pios, ainda no vira feras nem aves sinistras. E de bandidos

    fugidos justia, evadidos das masmorras, etc..., nem sinais. Talvez essas no

    fossem, porm, seno materializaes grosseiras do espanto, do terror, do

    mistrio, que sempre a intuio popular pressentira pairar nestes lugares

    incgnitos...

    Estamos a chegar! disse o rei voltando-se. Mas viu que o seu pajem

    parara de novo, com os olhos espantados; de novo ia desfalecer. Agarrou-o

    pela cinta, encostando-o ao seu ombro e, arrebatando-o consigo, correram

    juntos. Leonardo entrecerrara as plpebras, deixava-se levar. Assim vrias

    vezes torceu por atalhos que nem via, admirado com a facilidade, a confiana

    e ligeireza que o contacto do seu senhor lhe comunicara. De sbito, sentiu-se

    parar, travado pelo companheiro. Abriu os olhos. Uma vasta clareira

    espraiava-se diante deles, toda aberta ao sol que ainda brilhava muito acima

    dos arvoredos. Como era possvel tanto sol?! Dir-se-ia terem transposto lguas

    em muito pouco tempo, (para alm de que, pensava Leonardo, outros

    quaisquer gastariam vrios dias nas distncias que, sem saber como, eles

    faziam em horas ou minutos) pois de outra maneira no teria explicao um

    sol ainda to alto. S era um sol demasiado claro, e, embora intenso, frio

  • como o luar, ou o sol de certos entardeceres de Inverno. Mais parecia uma

    iluminao artificial ou sonhada do que a mera luz natural do dia. Talvez,

    porm, s resultasse tal impresso quer da imaginao de Leonardo, quer de

    ser o cho todo de areia fina, muito limpa, que parecia reverberar. No havia

    nenhuma pegada nessa areia; nenhum sinal de j ter sido pisada.

    Os espritos no devem ter peso... pensou Leonardo.

    Ao fundo da clareira, contra um renque de rvores que, possivelmente,

    iniciariam novos e sempre mais fechados bosques, uma choupana debuxava-se

    com o telhado de palhas e galhos, os muros de toscas pedras sobrepostas, e

    um postigo e uma porta meio abertos.

    Espera-me aqui disse o rei ao companheiro. Canta se tiveres

    medo...

    Nem uivos de feras nem zoadas de guas longnquas interrompiam agora o

    silncio sobrenatural. O rei adiantou-se, devagar, sob a areia fina e fofa.

    Com um sobressalto ntimo, o pajem Leonardo reparou que tambm, sob

    os passos do rei, nenhuma pegada ficava no cho, como se tambm El-Rei

    seu amo se reduzira j a puro esprito. Ento, fina e trmula, a voz do pajem

    Leonardo ergueu-se a chorar no silncio solene. que, para alm do mais,

    vira novamente o fantasma da rainha Elsa pairando frente de El-Rei, por

    isso ps-se a cantar para afugentar o pavor (um religioso pavor) para dissipar

    tais alucinaes, se o eram. Bem sabia que no eram. Pensava, com ternura e

  • respeito: Minha madrinha! Minha madrinha...!. Mas a sua receosa cantiga

    perdeu-se, estrangulada no ar, como se aquele ar a repelisse. O pajem desistiu

    de cantar e, rezando, olhava. Como explicar o que se dera? Posto nenhum

    som de palavras houvesse a vibrar no ar, Leonardo ouvira perfeitamente o

    fantasma da sua madrinha, a rainha Elsa, dizer-lhe de longe: Por que tens

    medo, afilhado?.

    porta da choupana, o espectro desvaneceu-se. O rei chegou, e entrou.

    Um gigantesco vulto de homem estava sentado num banco, com um grande

    cartapcio (*) aberto sobre as mos ambas. Sentado, as barbas brancas

    revoltas inundavam-lhe os joelhos como a espuma do mar inunda as rochas.

    [(*) Grande livro antigo e em mau estado; calhamao]

    Devagar, levantou a cabea do livro e os seus olhos, de um azul quase

    branco, poisando e demorando nos do rei, impediram-no de dizer qualquer

    palavra. Como se fosse da mais elementar pragmtica, nem esboara um gesto

    para se erguer entrada da trmula Majestade; em vez disso parecia ser a

    trmula Majestade que se mostrava tentada a dobrar o joelho.

  • Sei ao que vens disse o gigantesco velho em voz grave e tom quase

    sarcstico. O principezinho perfeito com orelhas de burro precisa de um

    preceptor em condies...

    Do mais que se passou entre o bom rei Rodrigo e o Homem da Floresta,

    bem como o seu regresso ao palcio com o bom pajem Leonardo, pouco

    poderia um cronista dizer. Bem certo que muita coisa sabem (ou adivinham)

    os novelistas e cronistas privilgio que, por vezes, os torna perigosamente

    indiscretos. No esquecer, porm, que s Deus sabe tudo. E o certo que, a

    despeito de todos os seus esforos para se recordarem, o prprio rei e o

    prprio pajem esqueceram-se depois de vrias passagens, talvez muito

    importantes, da sua singular expedio.

  • CAPTULO 5

    ONDE SE AFLORA UM PROBLEMA CAPITAL QUE POSTO DE PARTE E

    COMO FOI RECEBIDO O AIO DO PRNCIPE

    Ora no teria sido tudo um simples sonho do rei? No teria ele sonhado

    que despertara, realizando e completando, desperto, o que sonhara

    inicialmente? E no teriam sido ambas as coisas duas partes do mesmo

    sonho?

    Impossvel! No pode quem sonha ficar a ser o prprio e entrar, ao mesmo

    tempo, na alma e pele dos personagens com quem lida. Ora ainda h pouco

    estivemos no ntimo do bom pajem Leonardo.

    Teria sido, ento, um simples sonho de Leonardo? Menos possvel ainda, e

    por idnticas razes. Porque no admitirmos, ento, que o bom rei Rodrigo e

    o seu pajem Leonardo tivessem sonhado um com o outro, na mesma noite,

    sobre o mesmo motivo, conjugando-se os dois sonhos no sonho atrs

    narrado?

    Embora extravagante, a hiptese fora plausvel. Mas quem teria, ento,

    sonhado esse duplo sonho, na realidade da sua conjugao? Alm de que

    vrios factos bem reais se deram depois estes perfeitamente autenticados

    que no teriam explicao sem os arcanos da jornada do rei. Quanto a essa

    jornada, (pelo menos, partida e chegada) no fora ela testemunhada por

  • tantos senhores da corte? Teriam sonhado todos? Oh, impossvel penetrar

    no que s Deus sabe! Na realidade, que sabemos do mistrio em que nos

    movemos? Quantas vezes no julgamos ter sonhado e acordado, quando,

    afinal, vivemos? Quantas vezes no julgamos estar a viver quando, afinal, s

    estamos a atravessar um sonho de que nos no sentiremos acordar? E quem

    sabe se toda a prpria vida no um simples sonho? Um sonho de que

    despertaremos no que chamamos de morte?

    O mais sensato acabar com conjeturas que insensivelmente nos atrairiam

    s regies confinantes da loucura lcida a mais terrvel. Limitemo-nos,

    pois, nossa histria, segundo a pde esmiuar o cronista nos verdicos

    documentos consultados.

    No dia seguinte um homem apresentou-se no palcio a oferecer-se para aio

    do prncipe. Grande arrojo, no verdade? Tanto mais que ningum sabia

    quem era. To pouco de onde vinha. (Ningum?...) Pois o caso ter sido

    aceite aps uma curta conferncia secreta com o soberano. Como era de

    esperar, houve ansiosa curiosidade! E um grande escndalo na corte! Cada um

    dos ministros mais vlidos, dos conselheiros mais egrgios, dos cortesos mais

    em destaque, se julgara, nos refolhos das suas conscincias, destinado honra

    de preceptor do prncipe. Como no conviria mostrar o despeito prprio,

    cada um deles se manifestava, agora, surpreso, diga-se at indignado, por no

    haver recado a escolha de El-Rei sobre o sbio Fulano ou o ilustre Sicrano.

  • Assim desafogava o despeito prprio, conta de um louvvel despeito

    altrusta pelas ofendidas virtudes de outrem.

    Eis como, reconhecendo, embora, ser ele prprio, Froilo, quem de toda

    justia estava indicado para aio do rei futuro, se inflamava o ilustre Froilo

    sustentando que, a existir na corte um sbio como Filinto, inexplicvel era ter

    El-Rei preferido um annimo que viera ningum sabia de onde, ningum

    sabia com que habilitaes... S entre os mais ntimos se permitia Froilo

    insinuar que no basta a cincia para fazer um bom aio. De si para si, pensava

    que toda a sabedoria de Filinto era estril, falsa, e Filinto um jarreta. Por

    sua vez no se poupava Filinto a publicamente reconhecer os evidentssimos

    direitos de Froilo, ousando at falar em leviandade a propsito da

    estranhssima escolha de El-Rei. S os mais chegados poderiam ter ouvido

    Filinto sugerir que nem sempre a celebridade de um homem pblico se

    justifica por autnticos mritos. Pois o que Filinto pensava com os seus

    botes que no passava Froilo de um cabotino, de um devasso, de um

    trampolineiro, a essas imoralidades bem aproveitadas devendo o seu triunfo.

    Entre o notvel Rolando e o discreto Maral ou o proficiente Rosendo, se

    dava exatamente o mesmo jogo; como entre vrios dos mais distintos nomes

    do reino. E nas mesas das bodegas, nos mictrios, na cal dos muros,

    apareceram vivos e sujos epigramas que envolviam ou sugeriam os nomes do

    ilustre Froilo, do sbio Filinto, do notvel Rolando, do discreto Maral, do

    proficiente Rosendo... O povo que mais ou menos os conhecia a todos pois

  • muitas vezes fora a sua gasta passadeira. Por isso regalava-se com os ver

    preteridos, e murmurava: Qualquer um ser melhor do que estes! Quem

    sabe? Pode ser que o rei tenha acertado...

    Ao cabo de uns meses, reconheceram os nobres senhores que de nada lhes

    serviria maldizer a escolha de El-Rei. A verdade que nenhum indcio

    apontava no rei arrependimento da sua escolha, muito pelo contrrio. Sua

    Majestade no perdia ocasio de testemunhar ao Aio do filho a mais larga

    confiana e subida estima, prestando-lhe honras verdadeiramente inslitas (ou

    verdadeiramente escandalosas, no secreto ou j s cochichado parecer de tais

    nobres senhores). To pouco parecia o Aio temer, sequer um momento, a

    hostilidade fosse de quem fosse! Bem assente, e sempre crescente, a sua

    extraordinria influncia quer sobre o pupilo quer sobre o soberano, vivia

    aquele estupendo homem no palcio com o inteiro -vontade de cada um nos

    seus aposentos mais ntimos. Notara-se, ou suspeitara-se, a invejosa

    reprovao dos que muito antes dele a viviam; dado que, resolveram os

    murmuradores mudar de ttica: Em comum acordo, (posto logo

    compreendesse cada um o jogo dos outros com um raivoso sentimento de

    estar a ser burlado ou plagiado) todos empreenderam adul-lo. Ora nessa arte,

    eram eles mestres! Desde a impdica e brutal bajulao mais refinada, subtil,

    delicada subservincia, qual deles no conhecia a fundo todos os botes dessa

    arma to vulgar como poderosa, como perigosa? Qual deles no se exercitara,

    em primor, em atingir esse calcanhar de Aquiles de todos os homens: a

  • vaidade ou o orgulho? Dir-se-ia, porm, ser o estranho homem exceo nica:

    No tinha o calcanhar! A adulao resvalava pela sua indiferena como

    resvalara a maledicncia, a inveja, a inimizade... E o caso que todos se

    assarapantavam os seus inimigos e aduladores quando o diablico

    desconhecido os fitava com os olhos quase brancos ntidos e redondos

    olhos que pareciam j nada olhar da superfcie por tudo verem do fundo. Tais

    olhos bastariam para infundir desconfiana e respeito, distncia e pavor, mas o

    sortilgio de tal figura relacionava-se ainda com a sua estatura gigantesca, as

    suas barbas que lhe chegavam ao baixo-ventre, e a justeza infalvel,

    insuportvel, das suas alis bem raras palavras.

    Justeza? As maioria das vezes, sim. As restantes das vezes tinham as suas

    respostas uma nitidez, uma lgica e uma exatido que imediatamente

    impediam a discordncia, decepando, como um gume fulgurante, qualquer

    rplica. O interlocutor era irremissivelmente recambiado sua mediocridade.

    E que remdio se no achatar sob um silncio de raiva, de despeito, de

    admirao, de impotncia! Compreende o leitor perfeitamente que no h

    nada mais humilhante, nada mais intolervel e desumano, do que a existncia

    de um homem assim! A sua vida torna-se uma tcita e permanente acusao; a

    sua presena um injurioso abuso.

    De modo contrrio, outras vezes eram as suas alis bem raras palavras

    destitudas de toda a inteligibilidade ou preciso. E ento a, era pior! O

    interlocutor que se atrevia a confrontar a sua incoerncia (e era to tentador

  • poder considerar confusas, ou controvertveis, as palavras de tal homem!) bem

    depressa experimentava uma agitao inexplicvel, um intenso mal-estar como

    de quem se sentira culpado e descoberto, esmiuado e exibido... Dir-se-ia que

    as extravagantes imagens e duplas palavras do Aio vertiginosamente atingiam

    a mais recndita complexidade de cada um; e tona de cada um faziam vir as

    algas do fundo, os tesouros enterrados por serem indesejveis, a flora e a

    fauna das regies sem lua... Ento, j no eram s as palavras do confrontador

    que emperravam! Eram os seus gestos que perdiam a naturalidade; os seus

    olhares que se tornavam falsos e tmidos; era toda a sua atitude que

    denunciava uma obscura e profunda inquietao.

    Terceira maneira tinha ainda o aio de vencer o adversrio: perturbando-o

    at ao fundo do seu ser. Isto consistia em fazer simultaneamente as

    afirmaes na aparncia mais inconciliveis, sustentando o mais friamente

    possvel, o mais impudente e serenamente possvel, verdades opostas; que

    pareciam simples aspetos da mesma verdade. Quem no seria tentado a

    desnudar a incompatibilidade de umas e outras? (sobretudo vindo de to

    irritante personalidade!). Em breve trecho, porm, era o mais sagaz orador

    colhido nas suas prprias redes, e embaraava-se e perdia, incapaz de qualquer

    clareza ou at mera lealdade de raciocnio, no inextricvel labirinto dos pontos

    de vista inesperados, e por igual justos embora adversos, do satnico

    sofista.(*)

  • [(*) Os sofistas eram um grupo de estudiosos da antiga Grcia que se dedicavam arte da oratria e da

    erudio de modo a seduzir, convencer ou a defender ideias, por meio do discurso. Era comum os sofistas

    discursarem sobre determinado assunto, sobretudo poltico, nas goras (praas principais) da cidade, muitos

    dos quais eram pagos para isso. Outros havia que eram pagos para defenderem ou acusarem algum em

    julgamento. Scrates foi um fervoroso opositor dos sofistas, acusando-os de distorcer a verdade a seu favor, de

    seduzir com enganos, mentiras e falcias e perverterem a natureza do saber e da cincia que devia primar na

    busca pela verdade. Os sofistas, so no fundo, os antepassados dos advogados e polticos e quando se fala em

    usar-se "sofismos" quer-se dizer recorrer ao uso de falcias ou de discursos enganosos.]

    Quem diz a que ama a verdade, neste mundo?

    Cega a verdade como um sol demasiado vivo,

    Esmaga como um peso,

    Aterra e atrai como um abismo.

    A verdade perfeita mas um monstro!

    Quem poder com ela, de entre ns?

    Tem mil caras distintas e visveis,

    E uma s verdadeira,

    Que no vemos...

    etc., etc.

  • Isto e muito mais dizia por esse tempo Rolo Rebolo, num poema que

    ento passara despercebido. Se no passasse despercebido, ainda mais

    incompreendido seria! Todavia, hoje considerado uma obra-prima. Pelo que

    jaz sob um entulho de notas, comentrios, interpretaes e erudio, de que

    preciso desenterr-lo para lhe gostar o sabor, a subtileza e o ritmo.

    A que propsito, porm, ter Rolo Rebolo ou o seu poema a ver com

    isto? No se falava do Aio do prncipe?

    A verdade que, de todos os cortesos, s Rolo Rebolo no odiava o

    intruso. Poeta e bobo, sempre tivera ele o privilgio de tudo dizer a pequenos

    e grandes. Nunca os poupara; sobretudo aos grandes. Mas ainda nenhuma

    palavra ou nenhuma das suas fbulas satricas, direta ou indiretamente, visara

    ainda o desconhecido, por quem parecia professar um respeito inesperado em

    to irreverente criatura; e, seguramente, professava uma ardente e vibrante

    curiosidade. O certo sempre ter dito e redito, Rolo Rebolo, pelas mais

    variadas imagens e palavras, que a humanidade atravessa ainda uma fase

    primitiva da sua evoluo; que, mau grado as conquistas do conhecimento ou

    os progressos da tcnica, o homem continua ignorando, ou mal consciente,

    das suas muitas espantosas possibilidades; que os atuais limites da nossa

    inteligncia, da nossa imaginao, dos nossos sentidos, limites que

    parecemos querer manter contra as arrojadas tentativas de alguns loucos de

    gnio maravilhosamente se ampliaro no homem do futuro; que, neste, se

    conciliaro muitas das coisas que a nossa atual indolncia ou curteza de

  • esprito prefere supor como inconciliveis; como nele se desencadearo

    poderes perante os quais hoje fechamos os olhos, cegos obstinados e tmidos;

    etc.

    Estas e outras utopias desta laia, que no convenciam ningum com juzo,

    dizia e redizia Rolo Rebolo nos seus poemas excntricos, pelas mais

    variadas imagens e palavras. Dado que no seria muito difcil crer que, na

    singular figura do Aio, visse Rolo Rebolo uma antecipao, um smbolo,

    qualquer coisa assim, do seu homem do futuro. Tudo era lcito esperar de

    Rolo Rebolo!

    Verdade se diga, tambm o extico preceptor lhe dispensava particulares

    atenes, pois no s o no cumprimentara ainda com nenhum contacto do

    bico do p, (modo muito comum que os cortesos tinham de cumprimentar o

    poeta-bobo e de lhe fazerem sentir a sua deformidade e a impertinncia do

    seu talento satrico) como at parecia permitir, com o agrado de quem se

    acompanha de um co amigo, que o monstro o seguisse a rebolar. Mas no!

    no com o agrado de quem se acompanha de um co..., por mais amigo que

    seja! Antes com a satisfao de quem, em ptria alheia, reconhece um

    indivduo da sua raa. E at havia quem afirmasse t-los apanhado em amena

    conversa! Disto logo se aproveitaram os intriguistas, os descontentes, os

    invejosos, desesperados de algo conseguirem junto do rei pelo seus esforos

    de descrdito do Aio, ou junto do Aio pelo seus esforos de lisonja e

    captao. Para a opinio pblica apelara o raivoso despeito dos cortesos: No

  • viria a constituir um perigo pblico (insinuavam, ou claramente diziam eles)

    aquela influncia de to insondvel personalidade nos nimos da sua

    Majestade e a sua Alteza? Quem poderia saber de onde viera, qual a sua

    nacionalidade, que fins verdadeiramente se propunha, que entendimentos no

    teria com os povos vizinhos, ou a que deformao no conseguiria arrastar o

    jovem esprito, alis maravilhosamente dotado, que com tamanha leviandade

    lhe fora entregue? No seria indcio de perigosa extravagncia aquela sua

    predileo por um semilouco mal tolerado na corte? Isto, a par da sua

    manifesta desconsiderao por todos os grandes nomes do reino; todos os

    bons servidores da ptria e a sua Majestade; todos os homens de boa vontade,

    bom juzo, boa cepa histrica...? A no ser gravssima singularidade, no

    preceptor de um prncipe-herdeiro, tal disposio de esprito, que seria seno

    prova de cavilosas intenes e maquinaes secretas?

    Os corteses dirigiam tal propaganda a duas classes: o povo, que tem o

    valor do nmero e constitui a massa; aos intelectuais, que tem o valor da

    qualidade e se arvora em dirigente das massas. E a tal chamada no deixavam

    de acorrer os intelectuais sfregos de lisonja e destaque; nomeadamente os

    semi-inteletuais, cujas migalhas de talento os faz superiores a quem no tem

    talento nenhum. Em folhas volantes comearam ento a aparecer panfletos e

    manifestos (s vezes at poemetos) nos quais melhor ou pior se manejavam

    listas de vocbulos to inflamados como ocos. Faziam admoestaes a El-Rei

  • e sabujices ao povo; bradava-se o alerta e, a pretexto de salvar a nao,

    semeava-se a anarquia e a desconfiana.

    Tais folhas volantes no eram assinadas, ou ento tinham uns capciosos

    anagramas. Ora, exagerando grandemente os riscos a que se expunham

    incorrendo no desagrado tanto da sua Majestade como do poderoso Aio, no

    descuravam tais autores o de fazerem correr de boca em boca, por tabernas e

    reunies, a decifrao dos seus engenhosos anagramas. O que cada um mais

    sonhava era ser considerado o mais ardente defensor da causa pblica, o mais

    vigilante zelador do bem da nao, etc.

    Com estes e outros rtulos semelhantes, muito habilmente e modestamente

    esforava-se cada autor por os colar ao seu nome literrio. Assim se habilitava

    a ser bem recompensado em se extinguindo o reinado do estrangeiro; pois o

    Aio do prncipe era chamado de "o estrangeiro" (e nesta designao se punha

    tanto dio quanto ela, s vezes, comporta) e s suas funes na corte

    chamavam "reinado".

    Porm o povo..., ai!, o certo era no mostrar-se o pobre povo to alarmado

    como convinha! Naturalmente, de entre a prpria arraia mida se haviam

    alado pregadores, salvadores, iluminados. Ainda um pouco toscos, sim, mas

    to prometedores, to suscetveis de lima, to visivelmente capazes de bem

    arremedarem, se no excederem, os melhores e mais altos modelos no gnero!

    Todos gritavam frequentemente: camaradas!, irmos!, correligionrios!; todos

  • invocavam gloriosamente o seu orgulho de filhos do povo, (posto quase

    soubessem mostrar-se quase discretos, quase tmidos, quase finos decerto

    por melhor representarem e honrarem a classe quando acaso chamados a

    um meio superior); e todos, nas arengas, espalmavam perante a dzia e meia

    de ouvintes as mos encouradas de calos reais ou fantsticos, introduzindo um

    palavreado como s vem nos livros. Chamavam quilo as medalhas do

    trabalho, as insgnias do pobre, a herana dos deserdados... Mas, entre a

    dzia e meia dos ingnuos ouvintes, dois ou trs velhacos havia to ingratos,

    digamos j to civilizados, que mais ou menos os suspeitavam de no

    pensarem nos camaradas, nos irmos, nos correligionrios, seno por os

    fazerem degraus da sua ambio.

    E assim no parecia o autntico bom povo perder o apetite ou o sono com

    o perigo que ameaava a nao. Que lhe fazia, a ele, a influncia que lograsse o

    Aio? E que lucraria com passar ela s mos de outro? Quem tem de se

    preocupar com o po de cada dia, no sobra tempo, nem cabea, nem humor,

    para magicar em politiquices de que nada entende; e quem j viu subir ao

    poder vrios que diziam desprezar o poder e viu ao que se limitava o seu

    apregoado amor pela grei, j no vai muito em discursos frvidos...

    Como lhe davam festas e faziam-no atravessar uma quadra de relativa

    fartura, o povo confiava no seu rei e nos escolhidos do seu rei. Atrs de mim

    vir quem de mim bom far! diziam; e logo concluam: O melhor deixar

    estar quem est... Dos agitadores, salvadores, despertadores, oradores,

  • pensavam: Quem vos no conhecer que vos compre! A que nvel desceu

    esta canalha! pensavam raivosamente, do povo ingrato, os seus mais

    inflamados amigos.

  • CAPTULO 6

    COMO FOI PASSANDO O TEMPO E O NOSSO PRNCIPE LEONEL CHEGOU

    IDADE DE DEZOITO ANOS IGNORANDO O SEU DEFEITO.

    E o tempo foi passando. S o bom pajem Leonardo e o bobo-poeta

    disforme Rolo Rebolo sabiam, ou suspeitavam, a origem extraordinria da

    influncia do Aio. Nunca Leonardo pudera esquecer o seu passeio com o rei

    para l do Parque; embora, depois, vrios pormenores e acidentes dele se lhe

    tivessem embrulhado na memria com fragmentos de sonhos em que o

    revivera. Nunca dissera nada acerca de tal passeio, embora repetidssimas

    vezes o tivessem palpado sobre o assunto... o mais habilmente possvel.

    Agora, anos volvidos, j essa digresso chegava a parecer-lhe o estranho

    delrio de uma noite de trovoada. A trovoada era coisa que muito agitava o

    sensvel pajem Leonardo, sobre-excitando aos confins do desvario a sua

    imaginao poderosa, eternamente fresca. Um facto, porm, convencia-o da

    realidade da aventura: a afetuosa e particular intimidade que desde ento no

    cessara de lhe conceder El-Rei. Decerto, nem palavra se trocara tambm entre

    eles sobre a sua jornada comum.

    Delicadssimas cumplicidades h em que intil, ou at chocante, falar, no

    verdade? Um simples olhar mais denso basta a evoc-las e confirm-las. Para

    o ter mais perto de si, fizera El-Rei de Leonardo seu criado particular de

  • cmara. E muitas vezes conversavam os dois, familiarmente, de coisas

    familiares e banais; digamos, at, infantis, porque o rei envelhecia; e quanto a

    Leonardo, sempre fora infantil. Muitas vezes, tarde, mandava o rei que

    Leonardo lhe puxasse para a varanda o cadeiro de couro bordado. Depois

    mandava-lhe que tambm se sentasse. Leonardo ajoelhava-se aos seus ps,

    numa grande almofada de velho brocado. E quando, por intervalos, se

    calavam, os olhos alongavam-se-lhe sobre os canteiros sempre em flor e o

    Parque sem fim, que a alta varanda dominava. Bastava que os olhos de ambos

    depois se encontrassem, se entendessem num momento de intimidade

    fulgurante, para Leonardo saber que o seu passeio no fora sonhado; ou fora,

    simultaneamente, sonhado por ambos, e no se sabe quem mais.

    Quanto a Rolo Rebolo..., ai!, no podiam saber os que o t