O PROCESSAMENTO COGNITIVO DE COMPREENSÃO DA … · A transferência de significado na compreensão da linguagem tem sido com frequência explorada no interior da semântica de simulação

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

    GIEZI ALVES DE OLIVEIRA

    PROCESSOS COGNITIVOS QUE OPERAM NA CONFIGURAO DE

    NARRATIVAS:

    uma pesquisa exploratria dos fenmenos que subjazem a compreenso de textos

    Natal

    2012

  • GIEZI ALVES DE OLIVEIRA

    PROCESSOS COGNITIVOS QUE OPERAM NA CONFIGURAO DE NARRATIVAS:

    uma pesquisa exploratria dos fenmenos que subjazem compreenso de textos

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Estudos da Linguagem, Centro

    de Cincias Humanas Letras e Artes,

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

    rea de concentrao Estudos Lingusticos,

    como requisito obteno do ttulo de Mestre

    em Lingustica Aplicada. Orientador:

    Prof. Dr. Paulo Henrique Duque.

    Natal

    2012

  • Giezi Alves de Oliveira

    PROCESSOS COGNITIVOS QUE OPERAM NA CONFIGURAO DE

    NARRATIVAS:

    uma pesquisa exploratria dos fenmenos que subjazem compreenso de textos

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-

    Graduao em Estudos da Linguagem, como

    requisito parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Lingustica Aplicada e aprovada

    pela seguinte banca examinadora:

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Henrique Duque (Orientador)

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcos Antonio Costa

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Ana Cristina Pelosi

    Universidade Federal do Cear

    Natal

    30/11/2012

  • Dedico este trabalho ao meu pai que, mesmo

    no estando mais aqui conosco, continua a ser

    uma fonte inspiradora de chefe de famlia e

    batalhador (eternas saudades).

  • AGRADECIMENTOS

    A minha esposa Elisangela, companheira de luta e sacrifcios.

    Aos meus filhos Gieldson e Jefferson, meus melhores projetos de vida.

    A minha me Raimunda Maria de Oliveira que me ensinou o valor da persistncia e da

    humildade.

    Aos meus irmos mais velhos Joaci e Guido Jr.

    Aos meus demais familiares, tios, tias, primos e sobrinhos.

    Ao meu amigo Ricardo Yamashita, companheiro de discusses acadmicas e extra-

    acadmicas, alm de um grande incentivador do meu trabalho.

    Ao meu amigo Vanilto, companheiro de jornada acadmica.

    Ao meu orientador, professor Dr. Paulo Henrique Duque, pela amizade e o profissionalismo

    com que trata a pesquisa e o ensino no Brasil.

    Ao professor Dr. Marcos Antonio Costa, minha primeira referncia acadmica.

    Aos colegas do grupo de pesquisa Cognio e Prticas discursivas.

    Aos meus chefes e amigos militares pelo apoio nesta misso.

  • Estou, no entanto, convencido de que

    certamente existem noes comuns a todas as

    culturas, e que todas elas referem-se s

    posies de nosso corpo no espao.

    UMBERTO ECO

    what we call mind and what we call body are

    not two things, but rather aspects of one

    organic process, so that our meaning, thought,

    and language emerge from the aesthetic

    dimensions of this embody activity.

    MARK JOHNSON

    Tudo que posso lhes dizer que imagens

    surgem na minha cabea e eu escrevo histrias

    sobre elas.

    C. S. LEWIS

    A coisa mais importante de todas que o

    corpo o apoio para a mente. No seria

    possvel haver uma estrutura mental se no

    houvesse uma estrutura corporal.

    ANTNIO DAMSIO

  • RESUMO

    Este trabalho investiga os processos cognitivos que operam na compreenso de narrativas, a

    partir do romance Macunama, de Mrio de Andrade. Insere-se no campo da Lingustica

    Cognitiva de base Corporificada e, devido sua natureza interdisciplinar, dialoga com alguns

    referenciais tericos e metodolgicos da Psicolingustica, da Psicologia Cognitiva e das

    Neurocincias. Nesse sentido, adotamos a pesquisa do tipo exploratria, realizando testes do

    tipo recall e cloze, adaptados, com estudantes de nvel superior, todos falantes nativos. A

    escolha do romance Macunama como motivao inicial da proposta deu-se por se tratar de

    uma narrativa fantstica, cuja principal caracterstica est no fato de o romance apresentar

    eventos, circunstncias e personagens que, de forma ntida, se distanciam dos tipos

    experienciados no cotidiano, o que constitui dados adequados a uma anlise que pretende

    investigar a configurao do sentido, num modelo baseado-em-compreenso. Buscamos,

    assim, responder a questes que ainda so, de maneira geral, pouco exploradas no campo da

    Lingustica Cognitiva, tais como: em que medida o acionamento de modelos mentais

    (Esquemas e Frames) est relacionado ao processo de compreenso de narrativas? Como

    construmos o sentido, mesmo diante de termos ou expresses que no integram o nosso

    repertrio lingustico? Por que nos envolvemos emocionalmente durante a leitura de um

    determinado texto, mesmo sabendo que se trata de obra de fico? Para respond-las,

    partimos do pressuposto terico de que o significado no est no texto, ele construdo por

    meio da linguagem, concebida como resultado da integrao entre o aparato biolgico (que

    resulta na criao de Esquemas Imagticos abstratos) e sociocultural (resultando na criao de

    frames). Nesse sentido, a percepo, o processamento cognitivo, a recepo e a retransmisso

    das informaes descritas esto diretamente relacionadas ao modo como ocorre a

    compreenso da linguagem. Acreditamos que os resultados encontrados em nossa pesquisa

    possam contribuir para os estudos cognitivos da linguagem e para o desenvolvimento de

    metodologia de ensino-aprendizagem de lnguas.

    PALAVRAS-CHAVE: Lingustica Cognitiva, Modelos de Situao, Simulao Mental,

    Frames e Esquemas.

  • ABSTRACT

    This paper investigates the cognitive processes that operate in understanding narratives in this

    case, the novel Macunama, by Mrio de Andrade. Our work belongs to the field of

    Embodied-based Cognitive Linguistics and, due to its interdisciplinary nature, it dialogues

    with theoretical and methodological frameworks of Psycholinguistics, Cognitive Psychology

    and Neurosciences. Therefore, we adopt an exploratory research design, recall and cloze tests,

    adapted, with postgraduation students, all native speakers of Brazilian Portuguese. The choice

    of Macunama as the novel and initial motivation for this proposal is due to the fact it is a

    fantastic narrative, which consists of events, circumstances and characters that are clearly

    distant types from what is experienced in everyday life. Thus, the novel provides adequate

    data to investigate the configuration of meaning, within an understanding-based model. We,

    therefore, seek, to answer questions that are still, generally, scarcely explored in the field of

    Cognitive Linguistics, such as to what extent is the activation of mental models (schemas and

    frames) related to the process of understanding narratives? How are we able to build sense

    even when words or phrases are not part of our linguistic repertoire? Why do we get

    emotionally involved when reading a text, even though it is fiction? To answer them, we

    assume the theoretical stance that meaning is not in the text, it is constructed through

    language, conceived as a result of the integration between the biological (which results in

    creating abstract imagery schemes) and the sociocultural (resulting in creating frames)

    apparatus. In this sense, perception, cognitive processing, reception and transmission of the

    information described are directly related to how language comprehension occurs. We believe

    that the results found in our study may contribute to the cognitive studies of language and to

    the development of language learning and teaching methodologies.

    KEYWORDS: Cognitive Linguistics, Situation Models, Mental Simulation, Frames and

    Schemes.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Esquema do tipo semelhana de famlia segundo Kleiber ........................................ 26

    Figura 2: representao grfica e ilustrao do Esquema-I OCM ............................................ 29

    Figura 3: representao grfica e ilustrao do Esquema-I CONTINER .............................. 30

    Figura 4: representao grfica e ilustrao do Esquema-I CENTRO/PERIFERIA................ 30

    Figura 5: representao grfica e ilustrao do Esquema-I LIGAO ................................... 30

    Figura 6: representao grfica e ilustrao do Esquema-I PARTE/TODO ............................ 31

    Figura 7: papis do Esquema-I CONTINER ......................................................................... 32

    Figura 8: papis do Esquema-I OCM ....................................................................................... 32

    Figura 9: reas onde as diversas atividades cerebrais so desenvolvidas................................. 65

    Figura 10: representao do funcionamento de um sistema simblico perceptual. ................ 66

    Figura 11: ilustraes utilizadas nos testes ............................................................................... 79

    Figura 12: ilustraes representativas dos Esquemas-I utilizadas no teste .............................. 80

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: percentuais de ocorrncias na compreenso das questes do teste 1 ....................... 82

    Tabela 2: sntese dos percentuais obtidos no teste 1 ................................................................ 82

    Tabela 3: percentuais divergentes apresentados na compreenso do teste 1 ........................... 83

    Tabela 4: acionamento de frames durante o processo de compreenso de sentenas .............. 93

    Tabela 5: resultado da tarefa 1 do Teste cloze ....................................................................... 103

    Tabela 6: resultado para a questo 1 da tarefa 2 do Teste cloze ............................................. 105

    Tabela 7: resultado para a questo 2 da tarefa 2 do Teste cloze ............................................. 107

    Tabela 8: resultado para a questo 3 da tarefa 2 do Teste cloze ............................................. 108

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1: Esquemas-I assinalados na questo 1 ...................................................................... 84

    Grfico 2: Esquemas-I assinalados na questo 2 ...................................................................... 84

    Grfico 3: Esquemas-I assinalados na questo 3 ...................................................................... 85

    Grfico 4: Esquemas-I assinalados na questo 4 ...................................................................... 85

    Grfico 5: Esquemas-I assinalados na questo 5 ...................................................................... 86

    Grfico 6: Esquemas-I assinalados na questo 6 ...................................................................... 86

    Grfico 7: frames assinalados na questo 1 .............................................................................. 94

    Grfico 8: frames assinalados na questo 2 .............................................................................. 94

    Grfico 9: frames assinalados na questo 3 .............................................................................. 95

    Grfico 10: frames acionados na questo 4 .............................................................................. 95

    Grfico 11: frames acionados na questo 5 .............................................................................. 96

    Grfico 12: frames acionados na questo 6 .............................................................................. 96

    Grfico 13: frames acionados na questo 7 .............................................................................. 97

    Grfico 14: frames acionados na questo 8 .............................................................................. 97

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................ 14

    1. DA TEORIA COGNITIVA TEORIA NEURAL DA LINGUAGEM ............. 19

    1.1. Linguagem e cognio ......................................................................................... 19

    1.2. A categorizao e os estudos da linguagem ........................................................ 23

    1.3. Esquemas Imagticos e a ideia de corporalidade da mente. ................................ 29

    1.4. Frames ................................................................................................................. 35

    1.5. Frame Discursivo e a formao da narrativa....................................................... 40

    1.6. A Teoria Neural da Linguagem ........................................................................... 44

    2. A SIMULAO MENTAL E A COMPREENSO ............................................. 49

    2.1 Modelos de Situao ............................................................................................. 52

    2.2. Simulao Mental na compreenso da linguagem .............................................. 59

    2.2.1. Sistemas Perceptuais Simblicos.................................................................. 63

    2.2.2. Simulao perceptual na compreenso ......................................................... 66

    2.2.3. Simulao motora na compreenso .............................................................. 68

    3. METODOLOGIA ..................................................................................................... 70

    3.1. Pressupostos Metodolgicos ............................................................................... 70

    3.2. Recursos Empregados e informantes ................................................................... 74

    3.3. Descrio de instrumentos, estmulos e aparatos. ............................................... 75

    4. O ACIONAMENTO DE ESQUEMAS E FRAMES NO PROCESO DE

    COMPREENSO DE NARRATIVAS. ..................................................................... 77

    4.1. Teste I .................................................................................................................. 78

    4.1.1 Participantes .................................................................................................. 78

    4.1.2. Material utilizado (Apndice A) ................................................................... 78

    4.1.3. Procedimentos: ............................................................................................. 78

    4.1.4. Predies ....................................................................................................... 79

  • 4.1.5. Resultados ..................................................................................................... 82

    4.1.6. Discusso ......................................................................................................... 88

    4.2. Teste II ................................................................................................................. 90

    4.2.1. Participantes ................................................................................................. 90

    4.2.2. Material utilizado (Apndice B) ................................................................... 90

    4.2.3. Procedimentos: ............................................................................................. 91

    4.2.4. Predies ....................................................................................................... 91

    4.2.6. Discusso ...................................................................................................... 98

    4.3. Teste III (teste cloze) ......................................................................................... 100

    4.3.1. Participantes ............................................................................................... 100

    4.3.2. Material utilizado (Apndice C). ................................................................ 100

    4.3.3. Procedimentos: ........................................................................................... 101

    4.3.4. Predies ..................................................................................................... 101

    4.3.5. Resultados ................................................................................................... 102

    4.3.6. Discusso .................................................................................................... 110

    5. DISCUSSO GERAL: A COMPREENSO DO TEXTO NARRATIVO ....... 113

    6. GUISA DE UMA CONCLUSO ...................................................................... 116

    REFERNCIAS ......................................................................................................... 121

    APNDICES ............................................................................................................... 130

  • INTRODUO

    simplesmente surpreendente que possamos

    entender tudo o que lemos, dados os vrios

    nveis de linguagem e discurso que devem ser

    dominados. (GRASSER e MILLIS, p. 02,

    2007)1

    Como compreendemos narrativas? Como desenvolvemos linguagem? Por que

    ao nos depararmos com uma construo lingustica, escrita ou falada, entendemo-na

    sem grandes dificuldades? Como fazemos para significar textos predominantemente

    narrativos, mesmo quando encontramos termos ou palavras desconhecidas do nosso

    repertrio lingustico? Questes como essas ainda so pouco exploradas no interior do

    campo da psicolingustica e da lingustica cognitiva. Este estudo visa contribuir para o

    debate acerca desses temas, mais especificamente sobre a compreenso de narrativas

    ficcionais.

    A transferncia de significado na compreenso da linguagem tem sido com

    frequncia explorada no interior da semntica de simulao em lingustica cognitiva.

    Alguns autores acreditam que durante a compreenso de uma sentena acionamos em

    nossa mente imagens. Essas imagens, via de regra, so concebidas pela nossa

    capacidade perceptivo-motora de simular aes, episdios e cenas descritas em textos.

    Tais pesquisas objetivam verificar a nossa capacidade de compreenso via estudos

    comportamentais. As concluses desses estudos so suportadas por imagens neurais e

    demonstram que simplesmente imaginar movimentos especficos do corpo, tais como

    aes relacionadas s mos, ps e boca, recrutam, sistematicamente, a mesma seo do

    crebro, como se realmente estivssemos executando esses mesmos movimentos. Esses

    estudos buscam entender como o crebro reage a determinados estmulos e em qual

    regio, ou regies do crebro, so formadas as simulaes mentais.

    A Simulao Mental inspirou, enormemente, os pesquisadores da era da

    Inteligncia Artificial (IA). Esses estudiosos acreditavam que entendendo o

    funcionamento do crebro poderiam desenvolver um modelo de inteligncia artificial

    1 It is simply astonishing that we can understand anything that we read given the many levels of language

    and discourse that must be mastered. (Traduo nossa)

  • que simulasse o comportamento humano. Contudo, o complexo mundo mental e o

    aparato sensrio-perceptual humano revelaram limitaes importantes para um projeto

    to ambicioso. Isso porque, para uma mquina desenvolver a inteligncia humana teria

    que pensar e agir como se humano fosse, de maneira tal a projetar intenes, causas e

    consequncias durante o processamento de informaes e discursos.

    Estudos recentes em neurocincias revelam que o desenvolvimento da

    linguagem envolve a integrao entre corpo, mente e crebro. Portanto, desenvolver

    uma mquina que reproduza o comportamento humano requer modelos de compreenso

    que integrem linguagem, cognio e corporalidade. Nesse sentido, conceber uma

    inteligncia artificial humanizada parece estar distante da realidade enquanto questes

    como as citadas anteriormente estiverem sendo estudadas de maneira isolada ou

    estiverem fundamentadas em um modelo de mente conexionista ou serial.

    O modelo conexionista, em linhas gerais, estuda a mente a partir de um modelo

    computacional e compreende um conjunto de tarefas seguidas uma aps a outra, ou seja,

    em paralelo. Esse modelo favoreceu, nas dcadas de 1940 e 1950, do sculo XX, o

    desenvolvimento da ciberntica e, consequentemente, os primeiros modelos de

    computador. A mais nova tecnologia fez surgir uma corrida tecnolgica por um modelo

    mais eficiente do processamento da linguagem computacional. Assim, o modelo

    conexionista foi aos poucos sendo substitudo pelo modelo serial. Este apresentava uma

    descrio lgica do processamento cognitivo humano, a partir da dcada de 1950, tendo

    por base um conjunto de regras executadas em srie sobre uma memria de trabalho

    (KOCH e CUNHA-LIMA, 2007, pp. 265-266). O modelo serial favoreceu o

    aparecimento do computador domstico, na dcada de 1980, alm de ser o modelo

    adotado pelas cincias cognitivas, entre elas a lingustica, a partir da dcada de 1950.

    Os modelos de compreenso da linguagem existentes, ainda hoje, esto

    ancorados em representaes simblicas e focados em uma representao da linguagem

    em si mesma, ou seja, na estrutura lingustica e semntica. A compreenso de textos

    geralmente envolve diversos fatores, dentre eles o acionamento de sentidos por meio de

    inferncias, analogias, referncias e representaes mentais, evocados por pistas

    lingusticas presentes na formao de constructos mais ou menos convencionalizados.

    Essa convencionalidade parece ser fruto da capacidade cognitiva do ser

    humano de criar padres discursivos e lingusticos que nos ajudam, enquanto

  • compreendedores2, a significar textos, entre eles as narrativas, sejam elas ficcionais ou

    no. Segundo Duque e Costa (2012), a existncia de uma estrutura interna em um

    padro lingustico integrada por constituintes que instanciam forma e significado.

    Alguns autores acreditam, ainda, que o processo de compreenso de textos leva o

    compreendedor a criar representaes mentais no momento em que as coisas so

    descritas.

    No incio dos anos 80, psiclogos cognitivistas viam o texto como uma

    construo e recuperao mental do texto em si, em detrimento da situao descrita.

    Segundo Garnham e Oakhill (1996), pesquisas sobre compreenso de textos tm

    falhado em suas anlises sobre o que poderia estar por trs do significado na

    compreenso de textos. Trabalhos como os de Johnson-Laird (1983), sobre modelos

    mentais e Van Dijk & Kintsch (1983), sobre Modelos de Situao, redefiniram o modo

    de pensar a linguagem. Contudo, esses autores no mudaram a noo de representao

    mental do texto em si, mas assumiram que leitores constroem uma representao mental

    das situaes descritas ou narradas. Assim, a linguagem deixou de ser concebida a partir

    do vis exclusivo da sintaxe e da semntica e ganhou o status de construo mental da

    representao de situaes descritas. Sabemos, contudo, que at chegar a essas

    representaes mentais, outros elementos podem estar envolvidos no processo de

    compreenso.

    Assim, adotamos, neste trabalho, o modelo de representao mental de base

    corporificada da linguagem. Essa modelo rejeita a ideia de representao como espelho

    de um mundo externo pr-dado (LIMA e MACEDO, 2010) e defende que o modo como

    percebemos a realidade o resultado da ao de nossos corpos no mundo. Nesse

    sentido, o conhecimento emerge a partir da integrao entre corpo, mente e crebro, ou

    seja, h uma simbiose entre o aparato biolgico, sociocultural e o mundo.

    Buscamos ento, repostas para os seguintes questionamentos: como ocorre a

    compreenso de textos narrativos de natureza ficcional? Quais processos cognitivos

    esto envolvidos na compreenso desse tipo de texto? Se compreender um texto criar

    uma representao mental das coisas descritas, por que as representaes formadas

    diferem de leitor para leitor? Como essas representaes so formadas?

    2 Estamos chamando de compreendedores pessoas (e mquinas) que constroem simulaes durante o

    processo de compreenso de textos escritos ou falados.

  • Segundo Fauconnier (1994), quando construmos qualquer interpretao,

    mobilizamos conhecimentos prvios frutos de nossa capacidade cognitiva de criar

    esquemas que nos auxiliam na emergncia de sentidos. A estrutura lingustica apenas

    serve de ancoragem. Tal fato ocorre porque somos seres probabilsticos, ou seja,

    criamos probabilidades para eventos que acontecero, com base em experincias

    anteriores (Cf.: GOPNICK, 2010; GOLDBERG, 2006).

    O objetivo deste trabalho compreender os processos envolvidos na

    compreenso da narrativa em textos ficcionais. Para isso, realizamos um conjunto de

    testes a partir do texto Macunama, de Mrio de Andrade (2007). A obra

    frequentemente categorizada como um romance de temtica pica, cuja trama gira em

    torno de um plano mtico, revelando as marcas da cultura regional, com suas lendas,

    folclores, mitos, rituais e fbulas. O texto realiza, de maneira geral, uma representao

    da cultura brasileira, fazendo com que o enredo oscile entre a realidade e a fantasia.

    Percebemos, inicialmente, que a narrativa, assim como qualquer outra, concebida com

    base em Esquemas Imagticos e Esquemas de execuo, que trataremos ao longo deste

    trabalho.

    A escolha desse texto se deu porque acreditamos que ele atende as

    expectativas quanto ao modelo de um texto ficcional, uma vez que apresenta

    caractersticas peculiares quanto narrativa ficcional, as aes das personagens, os

    objetivos e os eventos fantsticos descritos.

    Apesar de o processamento da compreenso ser mais lento quando o leitor se

    depara com palavras desconhecidas do seu repertrio lingustico, esse fato no parece

    ser empecilho para a compreenso do texto, pois tudo indica que os leitores construam

    uma representao mental dos eventos narrados (Cf.: ZWANN, 1999).

    Uma das nossas predies que a compreenso da narrativa ficcional feita

    por meio de representaes mentais. Na base dessas representaes, esto envolvidos

    elementos como, por exemplo, Esquemas Imagticos, Frames, Modelos de Situao e

    Simulao Mental. Esse aparato cognitivo fruto da integrao entre linguagem e corpo

    (LAKOFF, 1987; JOHNSON, 1987; LAKOFF & JOHNSON, 1999), mente e crebro

    (DAMSIO, 1996) do compreendedor. Nesse quadro, a compreenso ocorrer

    conforme a percepo, recepo, processamento e transmisso das informaes

    descritas no texto, de acordo com as nossas experincias no mundo e com o mundo que

  • ns mesmos categorizamos. Portanto, o foco deste trabalho o significado: como ele

    construdo e acionado pelo compreendedor. Para atingir esse objetivo seguiremos as

    seguintes etapas:

    No captulo I, faremos uma breve retrospectiva sobre a Lingustica Cognitiva,

    seus pressupostos tericos e concepes sobre a linguagem, desde o rompimento com a

    Lingustica Gerativa, de natureza modular, assumindo uma perspectiva de base

    experiencial, ou seja, corporificada e sensrio-motora, ao estudo neural da linguagem;

    No captulo II, verificaremos o envolvimento da Simulao Mental no processo

    de compreenso de textos, os sistemas perceptuais, o processamento conceptual e

    sensrio-motor durante a compreenso de sentenas.

    No captulo III, apresentaremos a metodologia aplicada nossa pesquisa.

    No captulo IV, passaremos a descrever os testes desenvolvidos e realizados,

    cuja investigao est relacionada ao acionamento de Esquemas e Frames envolvidos

    no processo de compreenso de narrativas, os procedimentos, a anlise dos dados e os

    resultados alcanados, seguido de uma discusso geral. Por fim, sintetizaremos nas

    consideraes finais o que nossas descobertas empricas sugerem sobre a compreenso

    de narrativas.

  • 1. DA TEORIA COGNITIVA TEORIA NEURAL DA LINGUAGEM

    1.1. Linguagem e cognio

    A Lingustica Cognitiva (LC) teve sua origem, como paradigma cientfico, na

    dcada de 1980 com os trabalhos dos norte-americanos Lakoff e Johnson (1980;

    LAKOFF 1987), Ronald Langacker (1987, 1990, 1991) e Leonard Talmy (1983, 1988).

    De imediato, a LC assumiu que a linguagem seria formada pela interao entre

    o aparato biolgico humano e a interao do sujeito em sociedade. Nesse sentido, no

    haveria dicotomia entre mente e corpo (Cf.: LAKOFF, 1987; LANGACKER, 1999;

    DUQUE e COSTA, 2012). Alm disso, a insatisfao com os resultados do programa

    em semntica gerativa, no qual G. Lakoff fez parte como lder, serviu de motivao para

    o surgimento da LC. Outro fator que teve papel crucial foram as pesquisas conduzidas

    pela psicloga Eleanor Rosch (1976) acerca do papel dos prottipos no processo de

    categorizao.

    nesse contexto que a LC se desenvolve, da interao com outras abordagens

    cognitivas como a psicologia, antropologia, filosofia da cincia, biologia, neurocincia e

    outras disciplinas afins, contudo, sem perder de vista suas especificidades dentro dos

    estudos da linguagem, conforme Geeraerts (1995) e Peeters (2001, apud SILVA, 2004,

    p 13).

    Ao assumir que a interao com o mundo mediada por estruturas

    informativas na mente, tais como a linguagem, a LC cognitiva no mesmo sentido em

    que so as outras cincias cognitivas. Inicialmente, o foco da LC foi a realizao de

    anlises mentalistas, retomando assim o modelo gerativista de Chomsky no modo de

    pensar a linguagem. Chomsky (1968), por meio de sua base terica sobre a noo de

    gramaticalidade, tratava de aquisio, processamento e desenvolvimento da linguagem

    humana numa perspectiva inatista, ou seja, a nossa capacidade de desenvolver

    linguagem seria inata. Para o gerativismo, a gramtica de uma lngua apresenta um

    conjunto finito de regras internalizadas na mente de um falante ideal, a partir do qual

    seria possvel a construo de um nmero infinito de frases. Assim sendo, os seguidores

    dessa hiptese acreditam que a nossa mente surge de um mdulo lingustico presente no

    crebro, dissociado de qualquer aspecto sociocultural da linguagem.

  • Estudos sobre a corporalidade da mente humana, categorizao e configurao

    de sentido (Cf.: LANGACKER, 1991; JOHNSON, 2007; LAKOFF, 1987; LAKOFF e

    JOHNSON, 1999) revelam que a mente trabalha por meio de esquemas criados com e

    nas nossas experincias adquiridas no decorrer de nossas vidas. Para os cognitivistas

    contemporneos, a cognio humana no um fenmeno meramente racional e/ou

    mentalista, como Chomsky defende, mas tambm um fenmeno social, cultural e

    contextual. A cognio humana envolve aspectos culturais e formas de interao com o

    meio, de onde favorece a criao de esquemas mentais, a partir dos quais percebemos o

    mundo e interagimos socialmente com ele. nesse sentido que Clark (1996) considera a

    lngua como ao conjunta, negociada em sociedade.

    Para a LC nossa concepo de mundo construda a partir da interao do

    homem com o meio ambiente, portanto seria difcil imaginar cognio, linguagem e

    cultura isoladamente, uma vez que a cultura parece resultar de experincias

    esquematizadas na mente. Tais experincias no dizem respeito exclusivamente nossa

    experienciao enquanto executores, mas tambm como observadores das aes

    desenvolvidas socioculturalmente. Experincias so adquiridas e formadas atravs de

    informaes recebidas, apreendidas e processadas na mente. Nesse sentido, poderamos

    supor que at mesmo conceitos como o de verdade, por exemplo, seria uma construo

    social adquirida por intermdio de formas simblicas cuja estrutura conceitual

    manipulada de acordo com a nossa percepo de mundo. Essas percepes tambm so

    criadas cognitivamente, concebendo, assim, novas realidades.

    Aquilo que os gerativistas chamam de mdulos mentais, os cognitivistas

    contemporneos (Cf.: LAKOFF e JOHNSON, 1980, 1999; LAKOFF, 1987, 1993,

    GIBBS, 2005) acreditam ser esquemas organizados socioculturalmente. Nesse sentido,

    a forma como conceituamos as coisas resulta de nossa interao com o meio em que

    vivemos. Desse modo, a cultura parece direcionar o comportamento humano, impondo

    o que ou no importante para o convvio em sociedade.

    Com o avano dos estudos na rea da cincia cognitiva, a linguagem deixa de

    ser meramente um resultado do aparato biolgico humano e passa a ser um processo

    cognitivo de construo, envolvendo corpo, mente e crebro.

    Em 1999, Lakoff e Johnson apresentam uma viso integradora da linguagem a

    partir da hiptese da corporificao da mente - Embodiment hipothesis. Tal estudo parte

  • da concepo de linguagem como um reflexo da ao de nossos corpos no mundo (Cf.:

    VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991, LAKOFF e JOHNSON, 1999; LAKOFF,

    1987; JOHNSON, 1987, GIBBS, 2005) como uma tentativa de conceber respostas aos

    processos mentais de emergncia do sentido. Com isso, abrem-se novas perspectivas

    nos estudos da linguagem, conjuntamente com outros programas, tais como a teoria da

    metfora conceptual, protagonizada, sobretudo, por G. Lakoff e Johnson (LAKOFF e

    JOHNSON, 1999; LAKOFF, 1987, 1993); frame semantics (FILLMORE 1985), teoria

    dos espaos mentais e da integrao conceptual (FAUCONNIER 1985, 1997;

    FAUCONNIER & TURNER 1996, 1998, 2002; COULSON & OAKLEY 2000;

    BRANDT 2000, 2001), o estudo de modelos culturais (HOLLAND & QUINN 1987,

    PALMER, 1996, LAKOFF, 1996), dentre outros, orientando diversos estudos

    lingusticos de base cognitivista.

    A esse conjunto de programas, h que se acrescentarem os estudos

    neurocognitivos da linguagem. De acordo com Duque (2012), testes envolvendo

    modelos computacionais de redes neurais, desenvolvidos por Jerome Feldman,

    demonstram evidncias indiretas que conectam nosso sistema conceptual nossa

    percepo. Por meio da simulao das estruturas neurais, modelos computacionais

    mostram que o nosso crebro, em princpio, realiza tarefas sensrio-motoras e

    conceptuais, simultaneamente e que o domnio do significado responsvel pela

    restaurao das experincias prvias e cria cenrios alternativos na imaginao, a fim de

    antecipar consequncias para as aes que ainda nem foram realizadas. Segundo

    Ramachandran (2000), a potencialidade de nosso crebro nos permite fazer

    questionamentos sobre o significado de nossa prpria existncia e, para ele, isso seria

    uma das coisas mais impressionantes sobre a capacidade cerebral humana.

    Pesquisas sobre a atividade cerebral humana, realizadas na universidade da

    Califrnia, por exemplo, detectaram a existncia de neurnios especficos envolvidos no

    processamento de atividades motoras. Esses neurnios foram identificados,

    inicialmente, em macacos (Cf. GALLESE, FADIGA, FOGASSI, & RIZZOLATTI,

    1996). O experimento, desenvolvido por esses pesquisadores, consistia na colocao de

    eletrodos na cabea dos primatas com o objetivo de gravar as atividades das clulas

    nervosas em seus crebros. Contudo, durante os testes eles verificaram que

    determinados neurnios eram disparados quando os macacos realizavam aes como

  • pegar uvas-passas, ou quando observava a mesma ao realizada por outro macaco ou

    pelo pesquisador. Esses neurnios foram batizados de Neurnios-Espelhos.

    Segundo os pesquisadores, Neurnios-Espelhos so disparados quando

    executamos ou observamos atividades motoras especficas. Quando algum faz um

    movimento, estendendo o brao frente do corpo, na tentativa de pegar algo, por

    exemplo, esses neurnios so disparados no crebro, dando um comando para empurrar

    ou puxar um objeto. Eles tambm disparam quando algum somente observa a ao. De

    acordo com Rizzolatti e Wolpert (2005), como se o observador assumisse o ponto de

    vista do executante da ao observada, realizando uma espcie de simulao virtual da

    ao. Esses neurnios, tambm, so responsveis pelos sentimentos de EMULAO

    (Cf. GALLESE, FADIGA, FOGASSI, & RIZZOLATTI, 1996).

    Os cientistas descobriram, ainda, aps testes com ressonncia magntica, que

    em humanos os neurnios espelhos so encontrados em quantidade muito superior aos

    encontrados nos macacos. Tais descobertas so de extrema importncia para os estudos

    da linguagem, porque permite aprofundados sobre a recepo e transmisso de

    conhecimentos adquiridos, bem como a capacidade de interpretao e criao de

    expectativas sobre atividades, comportamentos e aes humanas, alm de permitir

    avanos sobre a Teoria Neural da Linguagem.

    Segundo consta, foi George Lakoff, ao reunir uma equipe interdisciplinar

    constituda por Jerome Feldman, Eva Sweetzer, e Narayanan, que fundou no Instituto

    Internacional de Cincia da Computao de Berkeley o projeto Neural Theory of

    Language (NTL) - Teoria Neural da Linguagem que iremos tratar em captulo posterior.

    A seguir, abordaremos os principais pressupostos tericos que ancoram os

    estudos da linguagem dentro da Lingustica Cognitiva: a categorizao, a noo de

    Esquemas-I e Frames, alm dos estudos contemporneos, tais como padres

    discursivos, modelos mentais e semntica da simulao. Tais estudos guiaro as nossas

    anlises sobre a compreenso de narrativas.

  • 1.2. A categorizao e os estudos da linguagem

    Os estudos clssicos da linguagem sempre procuraram respostas que nos

    levassem a descrever o mundo ao nosso redor. Os estudos filosficos e lingusticos h

    tempos se debruam sobre a forma como categorizamos as coisas. Nesse sentido, trs

    tericos so caros ao estudo da linguagem: Aristteles (sc. IV a.C. ), que defende a

    existncia de uma essncia naquilo que conhecemos e que tal essncia seria anterior a

    linguagem, ou seja, que categorizamos o mundo de acordo com a essncia que h nas

    coisas e nos objetos que manuseamos ou percebemos ao nosso redor. A categoria co,

    por exemplo, apresentaria, como traos essenciais e individuais, a irracionalidade, o fato

    de ser quadrpede, possuir pelos e dentes caractersticos. Enfim, h nele traos gerais

    que o distingue de outros animais como o papagaio, por exemplo.

    Wittgenstein (1953), tomando outro vis, passou a conceber a categorizao a

    partir da noo de semelhana de famlia (p.32). O filsofo postulou que os traos de

    similaridades so construdos pelo uso que fazemos das coisas e exemplifica sua tese a

    partir da palavra JOGO, questionando qual a essncia que essa classe de palavra

    apresentaria. Nesse caso, segundo ele, os limites essenciais no fechariam a categoria,

    uma vez que haveria inmeras possibilidades encontradas para distinguir os diferentes

    tipos de jogos como, por exemplo, peteca, amarelinha, xadrez, domin, jogo de talher,

    jogo de loua etc. Assim, a categorizao no deveria ser tratada como um conjunto de

    traos do tipo pertence ou no-pertence, como acreditava Aristteles e os adeptos da

    viso clssica sobre o tema. Havia de se pensar prottipos como elementos dispostos em

    um continuum categorial.

    A partir dessa crtica teoria clssica da categorizao, a psicloga Eleonor

    Rosch (1978) e outros tericos, na dcada de 1970, apontaram para a noo de

    prototipicidade no processo de categorizao.

    A Teoria dos Prottipos

    A Teoria dos Prottipos postula que as categorias no so estruturas

    homogneas. De acordo com evidncias experimentais (LABOV, 1973, ROSCH, 1973,

    1975, KEMPTON, 1981 e TAYLOR, 1989), as categorias exibiriam melhor uma

  • estrutura prototpica, ou seja, haveria de ter bons e maus exemplos para definir

    conceitos categoriais. Os membros mais representativos, ou seja, aqueles que os falantes

    primeiro evocariam ao escutar ou ver o nome de uma categoria seriam os prottipos e

    em torno destes que os demais elementos se organizariam. Por exemplo, formiga

    seria um membro prototpico da categoria dos INSETOS.

    Para se distinguir do enfoque clssico da categorizao e do significado, a

    semntica dos prottipos re-empregou a noo de traos (necessrios e suficientes) ou

    componente (Anlise Componencial) pela de atributo. Enquanto os traos se

    caracterizam por ser binrios e, consequentemente, ter o mesmo status analtico, os

    atributos tm como base o efeito. Sendo assim, a existncia de membros mais

    representativos implica na existncia de atributos mais prototpicos que outros.

    Rosch (1978) props, ento, que os prottipos atuariam como ponto de

    referncia cognitivo no processo de classificao dos elementos de nossa experincia.

    Os prottipos seriam, portanto, derivados de modelos. Tal proposta ficaria mais clara

    com os estudos das cores bsicas3 (BERLIN e KAY, 1969, p. 7). Esses estudos

    evidenciaram que percebemos cognitivamente as cores mais prototpicas ao definirmos,

    por exemplo, o verde, o amarelo ou azul e suas variantes: verde-claro, azul-anil,

    amarelo-ouro etc. Tais propostas possibilitaram chegar s seguintes concluses,

    conforme assinala Duque (2003, p. 63):

    a) Os membros prototpicos so categorizados mais rapidamente que

    os membros no-prototpicos;

    b) Os membros prototpicos so os que as crianas aprendem

    primeiro;

    c) Os membros prototpicos so os primeiros mencionados, quando

    solicitamos aos falantes que listem todos os membros de uma

    categoria;

    d) Os prottipos servem de ponto de referncia cognitivo. Por

    exemplo, uma elipse quase um crculo, em que crculo tomado

    como referncia;

    e) Geralmente, quando o que se pede a enumerao dos primeiros

    membros de uma categoria, os prottipos aparecem mencionados em

    primeiro lugar.

    3 basic colors terms (Traduo nossa).

  • Rosch et al estabeleceram, ainda, a existncia de uma dimenso horizontal, ou

    seja, intercategorial e hierrquica, organizada em trs nveis de categorias: um nvel

    bsico, um nvel supraordenado e outro subordinado. Com isso, eles estabeleceram uma

    hierarquia que determinava um nvel privilegiado dentro da categoria: o nvel bsico,

    como demonstra o exemplo abaixo, extrado de Duque (2003, p. 64):

    SUPRAORDENADO arma fruta mvel

    NVEL BSICO arma de

    fogo ma cadeira

    NVEL SUBORDINADO revlver ma argentina poltrona

    O nvel bsico seria um nvel bastante informativo, j que tem um grande

    nmero de atributos comuns como especificado acima, ou seja, os elementos arma,

    fruta e mvel, no nvel supraordenado, oferecem menos informaes que os elementos

    arma de fogo, maa e cadeira, no nvel bsico, enquanto que revolver, ma argentina

    e poltrona, no nvel subordinado, oferecem um aumento de informaes

    complementares, mas envolve um esforo mental maior de classificao.

    Nessa verso padro, formulada por Eleonor Rosch e seu grupo de pesquisa, o

    prottipo considerado o exemplar mais adequado, o representante central em uma

    categoria. Contudo, essa perspectiva apresenta limitaes, haja vista que nem todos os

    conceitos tm caractersticas de prottipos, tais quais os casos relacionados a elementos

    abstratos como regras e crenas, como, por exemplo, os conceitos de heri, amor e dio.

    Partindo dos problemas apresentados pela verso padro dos prottipos, os

    formuladores dessa teoria ampliaram essa viso para alm do modelo central criando

    uma verso ampliada. Segundo esta verso, a ideia de prottipo seria substituda pela

    de Efeitos Prototpicos. O modelo padro passa a ser, ento, somente uma alternativa.

    Assim, a noo de prottipo como CAUSA substituda pela noo de EFEITO.

  • A verso revisada do prottipo vincula o conceito de Semelhana de Famlia

    teoria, sugerindo que os elementos se ligam uns aos outro de forma lateral, e no

    central, ou seja, o prottipo como centro, passa a ser substitudo por uma organizao

    colateral dos elementos, como nos mostra o esquema sugerido, na figura 1, por Kleiber

    (1995, p. 160):

    a b c d e

    Figura 1: Esquema do tipo semelhana de famlia segundo Kleiber

    Segundo Kleiber (1995), ao se anexar a teoria da Semelhana de Famlia de

    prottipo, a verso ampliada torna-se muito mais poderosa porque exclui a necessidade

    de traos comuns em relao a uma estruturao prototpica. Duque (2003) resume a

    Verso Ampliada do Prottipo da seguinte forma:

    a) O prottipo se reduziu a um fenmeno de superfcie;

    b) O prottipo toma diferentes formas, de acordo com o modelo da categoria que a cria, da a denominao de efeitos prototpicos;

    c) Sua extenso, no campo da polissemia, atravs da noo de

    semelhana de famlia, favorece o surgimento de uma flexibilidade

    que lhe priva do elemento definidor essencial da verso padro, o

    prottipo. Ainda que apenas seja considerado como efeito, j no ,

    obrigatoriamente, o exemplar reconhecido como o mais idneo

    pelos indivduos.

    A Verso Ampliada trouxe ganhos substanciais para a teoria, contudo, segundo

    Duque (2003), no se trata de uma teoria de categorizao, mas de uma teoria da

    semntica do lxico, estabelece as relaes existentes entre as diferentes categorias. Por

    isso mesmo, a teoria questionada devido s divergncias advindas do seu carter

    polissmico.

    Lakoff (1987) aponta para a noo de categorias radiais. Segundo essa teoria,

    as categorias podem apresentar vrios membros que esto ligados por meio das

  • propriedades dos membros que as compem, ou seja, elas se ligam umas as outras pelas

    caractersticas diretas ou indiretas de seus membros prototpicos. Peguemos como

    exemplo a categoria AVE: de acordo com Lakoff (1987), aquele membro da categoria

    que apresentasse o maior nmero de caractersticas seria o prottipo, como, por

    exemplo, a andorinha, que possui, bico, asas, pem ovos, tem penas e pode voar. Ao

    redor deste prottipo, estariam membros como a galinha, por exemplo, que tem bico,

    asas, pem ovos, tem pena, mas no voa, e o pinguim, que tem bico e pe ovos. Como

    podemos perceber, quanto menor o nmero de caractersticas, mais distante um

    componente da categoria estaria do elemento prototpico e quanto maior o nmero de

    traos definidores de um componente, maior a sua relao e aproximao com o

    prottipo. Por outro lado, tem-se o morcego, que possui asas e pode voar, mas no tem

    bico, nem penas e no pem ovos, alm disso, est ligado categoria dos mamferos. Os

    atributos de ter asas e voar do morcego podem conduzir o compreendedor a relacionar o

    membro de uma categoria outra. Assim, podemos verificar que as categorias AVE e

    MAMFERO se ligam por alguns traos, ou caractersticas comuns, mas no de modo

    necessrio e suficiente. A relao ocorre por meio de projees focais entre entidades

    e atributos, conforme apontam Duque e Costa (2012, p. 35):

    As entidades e os atributos, dentro de uma categoria, se ordenam com

    diferenas de graus a partir da projeo desses focos cognitivos. Os

    membros mais distantes do centro sero casos limites que podem,

    inclusive, fazer parte de outras categorias.

    Estudos mais recentes apontam para a existncia de prottipos distintos que

    dependem das marcas culturais que compem determinada sociedade. De acordo com

    Duque e Costa (2012, p. 19), categorizar est na base da organizao do pensamento

    humano sendo definido por eles como:

    Toda atividade mental que nos permite organizar, em termos de

    classes, a imensa variedade de entidades que constituem o ambiente

    externo, dando-lhes significaes particulares, com o propsito de

    resolvermos certas disponibilidades e atingirmos objetivos

    considerados importantes.

  • Em resumo, os estudos semnticos tradicionais postulam que a anlise do

    significado est atrelada sua forma. Nesse sentido, a lngua portaria o sentido, ou seja,

    o significado estaria na prpria palavra. Fauconnier e Turner (2002), ao contrrio,

    postularam que a lngua mediadora da configurao do significado e resultante de

    operaes cognitivas complexas e criativas, abstradas no curso do pensamento e da

    fala. Para esses autores, categorizar est na base do processo de configurao de sentido

    e da organizao do conhecimento.

    Mas como o sentido emerge? Que mecanismos utilizamos no processo de

    categorizao e produo de narrativas? A lingustica cognitiva busca respostas para

    essas e outras questes recorrendo a pesquisas sobre aquisio, processamento e

    compreenso da linguagem humana a partir da concepo de mente corporificada,

    ampliada por Lakoff e Johnson (1999). Segundo esses autores, a razo humana se

    origina da natureza de seus crebros e das experincias sensrio-perceptuais e motoras

    de seus corpos no mundo. Essas experincias so organizadas atravs de Esquemas

    Imagticos ou Esquemas-I (I-schemas), tais como: PERCURSO,

    CONTINENTE/CONTEDO, PARTE/TODO, LIGAO, EM CIMA/EM BAIXO,

    FRENTE/ATRS (DUQUE E COSTA, 2012, p. 9) e Frames, concebidos nas nossas

    interaes socioculturais.

  • 1.3. Esquemas Imagticos e a ideia de corporalidade da mente.

    A noo de Esquema Imagtico (Esquema-I), como a noo de metfora

    conceitual, foi introduzida em Lingustica Cognitiva por George Lakoff, em sua

    colaborao com o filsofo Mark Johnson. Para Lakoff e Johnson (1999), Esquemas-I

    so padres abstratos de imagens que se formam em nossa mente a partir da

    configurao fsica de nossos corpos e a relao com o ambiente que nos cerca. As

    experincias corporais que organizam a nossa memria em termo de Esquemas-I (Image

    schemas, JOHNSON, 1987 e LAKOFF, 1987, 1990), nos permitem descrever o mundo

    nossa volta e criar padres que nos levam a perceber referentes como: direo e

    posio espacial (esquerda e direita; frente e atrs, em cima e em baixo); distncia

    (prximo e longe); dentro e fora (continer). Alm disso, os Esquemas-I parecem

    organizar o modo como focalizamos as coisas, definem o que so componentes centrais

    e perifricos e como reagimos ao nos defrontarmos com foras fsicas que empurram,

    puxam, causam movimento, mantm o equilbrio etc.

    O ato de caminhar, por exemplo, pode nos levar a desenvolver a ideia de incio,

    meio e fim, frente e retaguarda e, em algumas culturas, pode criar a noo de tempo

    passado, presente e futuro. Essas atividades bsicas, desenvolvidas ao longo de nossa

    vida, definem um esquema-I conhecido como ORIGEM-PERCURSO-DESTINO, ou

    ORIGEM-CAMINHO-META (OCM), que Duque e Costa (2012, p. 82) representam

    atravs da figura 2 (imagem icnica dos Esquemas):

    Figura 2: representao grfica e ilustrao do Esquema-I OCM

    A experincia de estar dentro e fora de algo determina outro Esquema-I bsico

    conhecido como CONTINER (idem, p. 78). Alm disso, experienciamos o nosso

    corpo em termos de CENTRO/PERIFERIA (idem, p. 81), quando tomamos, por

  • exemplo, o crebro como elemento central e os outros rgos como olhos, orelhas e

    cabelos perifricos.

    Figura 3: representao grfica e ilustrao do Esquema-I CONTINER

    Figura 4: representao grfica e ilustrao do Esquema-I CENTRO/PERIFERIA

    Outros Esquemas que nos parecem ser bsicos a noo de LIGAO (idem,

    p. 80) E PARTE/ TODO (idem, 79), representado, esquematicamente, abaixo por

    Duque e Costa (2012):

    Figura 5: representao grfica e ilustrao do Esquema-I LIGAO

  • Figura 6: representao grfica e ilustrao do Esquema-I PARTE/TODO

    De acordo com Duque e Costa (2012), outros Esquemas representativos so

    definidos como: FORA, EQUILBRIO, BLOQUEIO, REMOO,

    CONTRAFORA, COMPULSO, CONTACTO, ORDEM LINEAR. Esses Esquemas

    so os mais frequentes, encontrados em construes lingusticas das mais diferentes

    formas e combinaes. Nesse sentido os Esquemas-I adquirem um papel essencial na

    configurao/compreenso de sentenas, expresses, narrativas e eventos.

    De acordo com Bergen e Chang (1999), Esquemas-I tm sido amplamente

    aplicados na anlise semntica de formas lingusticas com um significado primrio

    espacial, a partir de anlises de partculas verbais e preposicionais. De acordo com os

    autores, o contedo semntico de preposies tem sido objeto de investigao da

    Lingustica Cognitiva h dcadas. O foco dessas pesquisas tem recado sobre como os

    sentidos se formam, em termos de relaes espaciais, e como eles so relatados. Para os

    pesquisadores, detalhes cruciais de como as sentenas ou frases so interpretadas,

    incluindo aquelas que se referem s aes e seu detalhamento4, em que esto envolvidos

    um trajetor e um marco, so importantes porque parecem depender da escolha de um

    elemento preposicional. Nos exemplos (01) e (02), podemos verificar como isso ocorre:

    (01) O heri (...) caminhou pra penso (ANDRADE, 2007, p. 153).

    (02) O heri caminhou na penso.

    Como podemos verificar em (01) e (02), as duas sentenas so iguais em quase

    tudo, diferenciando apenas na escolha dos elementos preposicionais para e em. De

    4 Granularity (Traduo nossa)

  • acordo com Bergen e Chang (2000), a escolha de alguns elementos lexicais como

    preposies parece exercer um papel fundamental nessa relao entre os Esquemas-I.

    Essas escolhas podem nos conduzir ao acionamento de significados diferentes para as

    aes descritas. Nessas sentenas, esto envolvidos trajetores, caminhos e metas

    atingindas. Em (01) o trajetor percorre um caminho em direo a um objetivo, a

    penso, ou seja, um ponto num determinado espao, enquanto que, em (02), o foco est

    no CONTINER, onde as aes so desenvolvidas pelo trajetor. A integrao entre

    esses Esquemas ocorre quando verificamos que, em (01), a preposio para evoca

    tanto o Esquema-I OCM quanto o Esquema-I CONTINER, influenciados pelos

    elementos (papis) que os compem. Nesse sentido, uma representao mental

    pressupe propriedades linguisticamente relevantes de um Esquema-I, que podem ser

    identificadas por meio de certas propriedades que regem as funes desses Esquemas

    em termos de papis, cujos autores definem como componentes ou elementos que so

    fundamentais no processo de configurao da linguagem. O Esquema-I CONTINER,

    por exemplo, instanciado por componentes como interior, exterior, contedo,

    fronteira e portal (Figura 7).

    Figura 7: papis do Esquema-I CONTINER

    O Esquema-I OCM instanciado pelos papis origem, caminho, trajetor e

    meta (Figura 8).

    Figura 8: papis do Esquema-I OCM

    A integrao entre Esquemas possvel ainda quando percebemos que, em

    determinas construes lingusticas, as preposies so tomadas como operadores que

  • organizam sentenas em termos de localizao espacial e temporal e guiam o

    compreeendor na ativao dos Esquemas: OCM (de, para, em etc.); CONTEINER (em,

    no, dentro de, etc.); CENTRO/PERIFERIA (perto de, junto de, beira de, em meio

    etc.), LIGAO (com, entre, por etc).

    De acordo com Gibbs (1995), Esquemas-I tpicos se repetem de um ponto de

    origem (ou domnio fonte) a um ponto final (ou domnio alvo). Para esse autor, as

    inferncias que esses Esquemas evocam se referem a ideias de caminho, incluso,

    conteno, equilbrio, verticalidade e centro-periferia. A recorrncia de Esquemas-I

    pode ser evidencia tambm na relao entre o esquema-I CONTINER e o esquema-I

    OCM na estruturao de metforas conceptuais, em que o domnio-fonte (continer 1)

    aponta para o domnio-alvo - continer 2 - (Cf.: SANTOS, 2011).

    De acordo com Gibbs (2005), muitos dos conceitos que criamos, sejam eles

    concretos ou abstratos, so fundamentados ou estruturados por meio das nossas

    interaes perceptuais, aes corporificadas e manipulao de objetos (JOHNSON,

    1987, LAKOFF, 1987, LAKOFF & JOHNSON, 1999; TALMY, 1988). Segundo Gibbs

    (2005, p. 69) experincias como puxar, ser puxado, manusear objetos e mover-se no

    meio ambiente criam experincias gestlticas formadoras de Esquemas-I diversos.

    Ao analisar metforas corporificadas coletadas de um corpus extenso, Gibbs

    (2005, p. 71) demonstrou que partes do corpo e funes corporais tm relao direta

    com a fala das pessoas. Isso pode ser verificado em exemplos como vender ou comprar

    vista, sair do campo visual, estar dentro do campo visual de algum ou estabelecer um

    ponto de vista, ficar com o corao nas mos, enfrentar algo de peito aberto, ter o nariz

    em p, falar algo sem p nem cabea etc. Esses exemplos ilustram como os Esquemas-I,

    em termos metafricos e psicolgicos, tambm influenciam as construes lingusticas.

    Segundo Damsio (1996), se existe uma realidade externa, ela concebida por

    intermdio do prprio corpo em ao e representada esquematicamente. Damsio nos

    revela que a realidade que temos das coisas de natureza neural, biolgica e mental, e

    que os limites de nosso corpo so os limites de nossa mente. Portanto, tudo indica que

    compreender seja de fato simular aes descritas por meio de operaes bsicas que

    envolvam Esquemas-I e frames internalizados em nossa mente por meio de experincias

    corporificadas e culturais, respectivamente. A seguir, veremos a relevncia dos Frames

  • (MINSKY, 1975) no processo de compreenso da linguagem e como eles participam da

    integrao dos Esquemas-I nas configuraes de sentidos.

  • 1.4. Frames

    O termo frame foi introduzido, inicialmente, por Marvin Minsky, em 1974, em

    seu trabalho sobre Inteligncia Artificial. Na Lingustica, o termo foi empregado por

    Charles Fillmore, em 1977. Para esses autores, frames so representaes mentais

    abstratas de objetos, aes e eventos construdos cognitivamente atravs de nossas

    experincias socioculturais. Constituem, assim, um conjunto de elementos e estruturas

    nas quais esto inseridas propriedades e papeis sociais especficos. A noo de frame

    apresenta uma conotao pragmtica, uma vez que diz respeito ao conhecimento de

    mundo e experincia do falante numa determinada cultura. Nesse sentido, culturas

    diferentes podem acionar significados distintos, tendo em vista suas especificidades e

    modos diferentes de ver e agir no mundo.

    De acordo como Minsky (1975), frames so estruturas de dados representativos

    de uma situao estereotipada, ou seja, configuram um conjunto de informaes sobre

    uma dada situao, compreendida como uma organizao de slots, que so preenchidos

    durante o processo de compreenso da linguagem. Nesse sentido, frames so

    importantes porque permitem aos leitores, estabelecer um modelo adequado para uma

    situao descrita. Vejamos o exemplo em (03):

    (03) Macunama rezava diariamente. (ANDRADE, 2007. p. 45).

    Nessa sentena, um leitor no necessitaria de muitos detalhes para atribuir

    sentido situao descrita, ou que se trata de um fragmento de um romance, uma vez

    que conhecimentos prvios so acionados. A situao em (03) aponta para um evento

    cultural relacionado ao frame religio. O leitor pode vincular esse evento a um espao

    destinado prtica da orao, como uma igreja, um templo etc. Alm disso, criamos

    coerncia em uma narrativa, no pela associao de palavras, mas pelos eventos

    acionados a partir das pistas lingusticas. Um exemplo bastante interessante sobre como

    os frames acionam informaes anteriormente experienciadas seria o texto Circuito

    Fechado (1) (RAMOS, apud CAMPOS; SILVA, 2007 p. 70-71):

  • (04) Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. gua. Escova, creme dental, gua, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, gua, cortina,

    sabonete, gua fria, gua quente, toalha. Creme para cabelo, pente.

    Cueca, camisa, abotoaduras, cala, meias, sapatos, telefone, agenda,

    copo com lpis, caneta, blocos de notas, esptula, pastas, caixa de

    entrada, de sada, vaso com plantas, quadros, papis, cigarro, fsforo.

    Bandeja, xcara pequena. Cigarro e fsforo. Papis, telefone,

    relatrios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes,

    telefone, papis. Relgio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboos

    de anncios, fotos, cigarro, fsforo, bloco de papel, caneta, projetos de

    filmes, xcara, cartaz, lpis, cigarro, fsforo, quadro-negro, giz, papel.

    Mictrio, pia, gua. Txi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos,

    talheres, garrafa, guardanapo, xcara. Mao de cigarros, caixa de

    fsforos. Escova de dentes, pasta, gua. Mesa e poltrona, papis,

    telefone, revista, copo de papel, cigarro, fsforo, telefone interno,

    gravata, palet. Carteira, nqueis, documentos, caneta, chaves, leno,

    relgio, mao de cigarros, caixa de fsforos. Jornal. Mesa, cadeiras,

    xcara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos. Quadros. Pasta,

    carro. Cigarro, fsforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papis,

    externo, papis, prova de anncio, caneta e papel, relgio, papel,

    pasta, cigarro, fsforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel,

    telefone, papis, folheto, xcara, jornal, cigarro, fsforo, papel e

    caneta. Carro. Mao de cigarros, caixa de fsforos. Palet, gravata.

    Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres,

    copos, guardanapos. Xcaras, cigarro e fsforo. Poltrona, livro.

    Cigarro e fsforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fsforo. Abotoaduras,

    camisa, sapatos, meias, cala, cueca, pijama, espuma, gua. Chinelos.

    Coberta, cama, travesseiro.

    Em (04), verificamos que as pistas lingusticas, descritas em uma sequncia de

    acontecimentos, constituem um conjunto de slots que se ligam na constituio de um

    frame relacionado ao cotidiano de um publicitrio. a noo de frame que nos permite

    criar inferncias e expectativas sobre os eventos descritos e/ou situaes comunicativas

    como, por exemplo, o ato de pedir licena ou permisso para entrar em um determinado

    recinto, fazer silncio durante uma reunio, mandar mensagens em redes sociais,

    escrever um bilhete e atender ao telefone. So os frames que direcionam um bate-papo

    entre amigos e uma reunio de negcios e/ou de condomnio.

    Segundo Duque e Costa (2012, p. 84-86), os frames se configuram em quatro

    dimenses:

    a) Cenrio tipo de frame que permite conhecermos a configurao de, por

    exemplo, uma sala de aula, ou seja, a delimitao do espao e dos papeis

    desenvolvidos pelos professores e alunos, o tempo decorrido da explanao ou

  • atividades desenvolvidas no ambiente etc. No caso de (04), as pistas

    lingusticas da primeira parte do texto (vaso, descarga, pia etc.) sugerem que o

    cenrio seja um banheiro.

    b) Roteiro tipo de constructo que obedece a um estado inicial, um sequncia

    de eventos e um estado final. Em (04), o roteiro executado pela personagem

    favorece a compreenso das atividades realizadas.

    c) Categoria tipo de constructo formado por um conjunto de elementos e

    caractersticas. A categoria igreja, por exemplo, categorizada como um local

    onde se renem fieis em torno de determinada crena, realizando rituais

    especficos. Em (04), a sequncia de pistas lingusticas mictrio, pia, gua

    sugerem a categoria banheiro, uma vez que aqueles elementos so

    componentes tpicos dessa categoria.

    d) Taxonomia tipo de constructo responsvel pela organizao das categorias

    de maneira hierarquizada. Em (04), por exemplo, as pistas lingusticas pratos,

    talheres, copos, guardanapos e xcaras acionam a categoria mesa, que

    parece compor a categoria sala de jantar.

    Os frames, ou seja, cenrios, roteiros, categorias e taxonomias, fornecem

    orientaes de como os Esquemas-I e os Esquemas-X5 devem ser interligados. O

    cenrio, por exemplo, favorece a organizao de Esquemas como PARTE/TODO na

    compreenso de uma casa formada por cmodos, em que a casa o TODO e os

    cmodos so as PARTES. J o Esquema-I CONTINER acionado na compreenso

    dos limites que representam cada ambiente de uma sala, por exemplo; e o Esquema-I

    LIGAO seria acionado na compreenso das funes desempenhadas pelos membros

    de uma famlia, por exemplo.

    Segundo Duque e Costa (2012), nosso conhecimento de mundo adquirido e

    organizado por meio das experincias corporificadas e pela interao social. Tal

    5 De acordo com Feldman et. al. (1996), esquemas de execuo (executing schemas ou x-schemas) so

    modelos de eventos, ou representaes dinmicas de eventos que emergem dos nossos sistemas

    perceptuais e de movimento.

  • mediao essencial no processo de compreenso de um texto. Os autores afirmam que

    conhecimentos prvios adquiridos envolvem desde o reconhecimento de objetos, por

    meio de seus atributos, identificao de cenrios, at a simulao de procedimentos

    como ir ao dentista, portar-se em um restaurante, resolver uma pendncia no trabalho

    etc. Dessa forma, Duque e Costa (2012) definem frames como blocos cognitivos de

    armazenamento de memria. Para esses autores, os frames apresentam basicamente trs

    funes:

    a) reconhecer que uma dada situao pertence a certa categoria;

    b) interpretar a situao e/ou prever o que surgir em termos da categoria

    reconhecida;

    c) capturar as propriedades de conhecimentos altamente compartilhados

    sobre pessoas, eventos e aes como, por exemplo, a funo do garom em

    um restaurante.

    Cada vez que acessa Frames e Esquemas, o falante/ ouvinte ativa informaes

    obtidas anteriormente por meio de experincia corpreas e socioculturais. Nesse

    sentido, a ativao e acionamento desses padres cognitivos garante a interao

    comunicativa entre os participantes em dilogos, debates ou compreenso de textos.

    Para Duque e Costa (2012), diferentes Frames atuam na emergncia do sentido

    e assumem valores padronizados, mas que podem ser ressignificados pelo re-

    preenchimento de seus slots. Dessa forma, Frames e Esquemas se associam no processo

    de configurao do sentido conforme apontam os autores (2012, p. 84):

    O esquema CONTINER, por exemplo, associado compreenso

    de que uma coisa pode estar dentro da outra, mas a noo de frames

    que nos direciona a procurar uma caixa de leite na geladeira e nos

    impede de procur-la dentro do guarda-roupa, por exemplo.

    Entender como formamos as imagens em nossa mente pode nos ajudar a

    descrever, compreender e criar coerncia para o mundo nossa volta. Parece-nos no

    haver dvidas sobre o papel dos Esquemas e dos Frames como base para a configurao

    e organizao do pensamento humano. Nesse sentido, a identificao dos mecanismos

  • utilizados no processo de compreenso de textos preponderante para os estudos da

    linguagem.

    A seguir verificaremos o papel dos frames discursivos no processo de

    compreenso de textos. Para isso, demonstraremos que um padro discursivo est

    ancorado na emergncia de frames discursivos e que esses frames so responsveis,

    tambm, pela variao das diversas configuraes discursivas que temos conhecimento,

    tais como romances, contos, receitas etc.

  • 1.5. Frame Discursivo e a formao da narrativa

    As diversas teorias lingusticas que trabalham com anlises de textos utilizam

    como suporte analtico a noo de tipos e gneros textuais. De maneira geral, os tipos

    textuais envolvem narrao, descrio, dissertao, exposio e injuno. Conforme

    Marcuschi (2002), os tipos textuais definem a organizao das sentenas em sequncias

    dialogais e os gneros textuais so formas de expresses textuais construdas

    socialmente.

    Essas formas de expresso so tantas que nos parece ser difcil quantific-las,

    pois se destinam a vrias finalidades como diverso, comunicao e orientao. Alguns

    desses gneros so: a receita, a carta, o ofcio, a tese, a dissertao, a poesia, o conto, o

    romance etc. (Cf.: MARCUSCHI, 2002).

    A impossibilidade de categorizarmos os vrios gneros textuais parece ocorrer

    pelo fato de que a todo instante estamos criando novos modos de comunicao, por

    intermdio das mais diversas e variadas formas de constructos orais e escritos.

    De um modo geral, as noes de gneros discursivos so concebidas em funo

    dos tipos textuais e isso muitas vezes causa certa confuso, ao tentarmos categoriz-los.

    Isso porque essas categorias discursivas no so estanques, elas se combinam para

    formar outras categorias. Uma determinada categoria discursiva, por exemplo, pode se

    valer do esquema utilizado pelo gnero receita para construir um gnero atpico, como

    podemos perceber no texto em (05), que alguns analistas poderiam categorizar como

    conto, mandamento, poesia ou crnica, mas o autor preferiu intitular receita:

    (05) Receita para criar um marginal

    Comece, desde a infncia, a dar criana tudo o que ela pedir. Assim,

    ela crescer convencida de que o mundo inteiro lhe pertence e de que

    os outros s existem para fazer-lhe as vontades.

    Quando ela comear a dizer palavres, mostre admirao, faa elogios

    ou, simplesmente, ria. Isso far com que ela se considere muita

    engraadinha.

    Nunca lhe d ensinamentos espirituais. Menos ainda, exemplos de

    prtica religiosa, que acabariam cerceando sua liberdade.

    Deixe-a crescer. Quando tiver vinte e um anos, ela que decida por si

    mesma.

    Recolha tudo o que ela deixa pelo cho: material escolar, roupas,

    calados, brinquedos. No lhe permita fazer esforo, para que se

    acostume a encarar os outros como seus empregados. Com isso, ela

  • criar o costume de transferir aos outros a culpa de tudo o que est

    fora do lugar.

    Brigue com seu cnjuge sempre na frente dela. A criana precisa

    encarar a vida como a vida . Assim, no sofrer demais no dia em

    que os pais se separarem.

    D-lhe todo o dinheiro que exigir, sem perguntar como ser gasto.

    Nunca lhe permita que seja ela a ganh-lo. Por que fazer a pobrezinha

    passar pelas dificuldades que voc enfrentou na sua infncia?

    Satisfaa a todos os seus caprichos sobre comida, bebida, roupa, luxo,

    diverso e prazeres. A psicologia ensina que a privao poderia

    causar-lhe traumas perigosos, no ?

    D-lhe sempre total apoio em qualquer discusso que ela tiver. Seja

    com vizinhos, com colegas, fornecedores, professores, polcia...

    Imagine se o seu filho iria cometer algum deslize! Os outros que tm

    raiva ou inveja do coitadinho.

    Quando for obrigado a admitir que ele est numa enrascada, desculpe-

    se com a frase: Eu sempre fiz tudo por ele, mas nunca pude com esse

    menino. Ou repita, com ar dramtico, a surrada pergunta: Onde foi

    que eu errei?

    Prepare-se para uma vida de amargura e remorso, pois o mais

    provvel que a culpa tenha sido toda sua.

    (FONTE: http://www.recantodasletras.com.br/cronicas. Acessado em: 21 Mai. 2012).

    Como podemos perceber em (05), a categoria discursiva parece no se fechar

    em um nico gnero, dada a criatividade do autor em mesclar elementos de alguns tipos

    textuais e gneros discursivos como crnica e receita. O prprio ttulo e a fonte, de onde

    foi extrado o texto, evidenciam isso.

    Nesse sentido, adotaremos aqui a noo de Padro Discursivo (PD) como

    categoria alternativa ao processo de compreenso de textos, porque nos parece ser uma

    das ferramentas analticas mais condizentes com a nossa proposta, tendo em vista que

    trabalhamos com o processo de compreenso na perspectiva da lingustica cognitiva de

    base corporificada.

    Segundo Duque e Costa (2012, p. 165), PD, a exemplo das construes

    gramaticais, constituem entidades abstratas resultantes do pareamento de formas e

    significados:

    No caso do Padro Discursivo, o polo da forma estaria associado s

    relaes internas, e o polo do sentido, s relaes externas que um

    discurso exibe em relao aos contextos sociais e comunicativos. Essa

    definio de forma e sentido parece se harmonizar com as noes de

    tipos textuais e de gneros discursivos, respectivamente.

    http://www.recantodasletras.com.br/cronicas

  • Em outras palavras, PD so construes discursivas mais ou menos

    estabilizadas pela frequncia de uso, conforme os fins a que se destinam. Consoante

    esses autores um PD no equivalente a tipo textual e/ou um gnero discursivo, uma

    vez que a categorizao que os padres realizam no pode ser resumir a qualquer um

    dos dois polos que compem as construes gramaticais, a forma e o significado. De

    acordo com Duque e Costa (2012, p. 165-166), apesar dos contos e romances terem

    como base a narrao, eles podem se combinar para formar outras categorias

    discursivas:

    Apesar de todos os contos tomarem a forma de um tipo de texto

    narrativo, o fazem de diferentes maneiras em diferentes momentos,

    com diferentes propsitos e em diferentes culturas: h contos de amor,

    contos fantsticos, contos folclricos, contos de fadas etc., cada qual

    constituindo um padro discursivo especfico.

    devido maleabilidade dos PD que podemos atribuir categorias discursivas

    dentro de outras categorias como o caso do PD romance. Fala-se de romance policial,

    fantstico, terror etc. Podemos encontrar em um romance como o de Macunama, por

    exemplo, a interseco entre diversos PD, tais como um conjunto de contos, adivinhas,

    cartas e rezas. Tais constructos discursivos parecem se unir para a formao de um todo

    discursivo. A charge, a piada, a receita de bolo entre outras categorias de textos so

    padres discursivos porque podem se combinar para formar outros padres. Uma receita

    pode ser descritas em forma de narrativa ou no formato de poesia, como dito

    anteriormente.

    Acreditamos que, assim como o PD parece se harmonizar com os tipos textuais

    e gneros discursivos, ele tambm parece estar em consonncia com as noes de

    Esquemas e Frames. Nesse sentido, um tipo textual estaria associado aos Esquemas-I e

    aos Esquemas-X, constituindo Esquemas Descritivos (ED) e os gneros discursivos a

    frames, constituindo, assim, Frames Discursivos (FD).

    Os ED se referem s relaes internas de um texto, concebido pelas nossas

    experincias corporais (perceptuais), tais como os Esquemas OCM, PARTE/TODO,

    LIGAO, CONTINER. Esses Esquemas so responsveis por relatar fatos e aes

    discursivas dentro de um PD.

  • Os FD so concebidos pelas nossas experincias socioculturais, ou seja, esto

    relacionados aos elementos extralingusticos. So os FD que nos fazem captar os

    cenrios, os roteiros, as categorias e taxonomias especficas. Esses frames nos permitem

    construir, por exemplo, representaes mentais do que venha a ser um PD do tipo

    romance fantstico, policial e terror, porque eles seguem determinados roteiros,

    delimitam cenrios, categorias e taxonomias especficas.

    Os ED parecem ajudar-nos a perceber as ligaes entre os eventos, as partes

    que ajudam a compor o texto, as sequncias discursivas etc. Esses Esquemas,

    associados aos FD nos permitem construir diversos PD e mescl-los formando infinitos

    padres. Nesse sentido, o fato de constructos discursivos serem narrativos tm haver

    com os ED e o fato de ser um conto ou romance tem haver com os FD. Dessa forma,

    aventamos que PD, em nosso trabalho, so formados pela integrao entre ED e FD.

    Dentro de um Padro Discursivo como o romance, a maneira como os

    elementos lingusticos so organizados textualmente pode nos levar, enquanto

    compreendedores, a criar Modelos de Situao (ZWAAN, 1999) e a realizar simulaes

    mentais (BARSALOU, 1999) durante o processo de compreenso de textos.

    Nos prximos captulos, descrevemos como os Modelos de Situao e a

    Simulao Mental interfere no processo de compreenso de textos. Traremos evidncias

    tericas e empricas, bem como resultados de experimentos que demonstram como o

    sistema conceptual humano perfila diferentes maneiras de se atribuir significados aos

    textos por meio das aes por eles descritas.

  • 1.6. A Teoria Neural da Linguagem

    A Teoria Neural da Linguagem (TNL) um projeto interdisciplinar

    desenvolvido pela universidade de Berkeley, na Califrnia, sob a orientao dos

    pesquisadores Jerome Feldman e George Lakoff. O objetivo do projeto explicar em

    que medida as estruturas neurais do crebro humano formam o pensamento e a

    linguagem (Cf.: GIBBS, 2005, p. 194). O projeto busca combinar os resultados obtidos

    pelas pesquisas em neurocincia, cincia da computao, lingustica cognitiva e

    psicologia cognitiva.

    Conforme Lakoff e Johnson (1999) a nossa compreenso da realidade est

    diretamente ligada constituio dos nossos corpos e sua interao com o meio em

    que vivemos. medida que manipulamos objetos, e nos movimentamos espacialmente,

    nosso crebro passa a ser alimentado e produz esquemas cada vez mais abstratos.

    Assim, a nossa capacidade de categorizar as coisas passa a ser concebida como uma

    consequncia do nosso aparato biolgico e das nossas experincias no mundo.

    Segundo Damsio (1996, p. 254), nosso corpo proporciona uma referncia

    fundamental para a mente humana. O crebro detecta ameaas, rene opes de

    respostas, escolhe uma delas e age no sentido de reduzir ou eliminar os riscos. Para o

    autor, a interao corpo, mente e crebro criam memrias ou representaes mentais

    que se tornam registros neurais:

    No incio foram as aes, e no o verbo. Isso permitia a interao

    necessria e a sobrevivncia do ser humano (DAMSIO, 1996,

    p.256).

    De acordo com Robledo (2008, p. 28),

    uma importante descoberta das Cincias Cognitivas que os sistemas

    conceptuais que fundamentam as lnguas humanas utilizam um

    nmero relativamente pequeno de Esquemas Imagticos que se

    combinam, estabelecendo relaes complexas.

    Acrescente-se a esse nmero limitado de esquemas, os Esquemas-X

    (FELDMAN e NARAYANAN, 2003). Esses autores partem da premissa que as

    mesmas representaes de percepo e movimento, que emergem durante a execuo de

  • uma determinada ao, so as mesmas acionadas durante o processo de compreenso de

    enunciados sobre essa mesma ao. O Esquema-X de LANAR, por exemplo, envolve

    uma srie de aes como a maneira de segurar o objeto a ser lanado, a posio ou

    postura do corpo para realizao do movimento, o momento inicial, o impulso, a fora

    desprendida e a finalizao do movimento.

    A combinao desses esquemas parece alimentar as diversas metforas que

    conhecemos, tais como as descritas em (06):

    (06) A vida corre em minhas veias; as coisas vo de mal a pior; ele o cabea da quadrilha; ele pega muito no p, ele tem o chefe na palma

    da mo etc.

    Em (06) podemos perceber que o crebro cria representaes do corpo

    medida que esse corpo estimulado fsica e socioculturalmente, mas isso, por si s, no

    o bastante para o grupo liderado por Feldman e Lakoff. A TNL objetiva responder

    seguinte pergunta: como pode um crebro, composto de neurnios, que funcionam

    quimicamente, dar origem linguagem e aos conceitos humanos? As pesquisas com

    modelagem computacional de redes neurais, desenvolvidas por Feldman, demonstram

    que o nosso crebro pode realizar tarefas sensrio-motoras e conceptuais,

    simultaneamente (DUQUE, 2012) 6.

    De acordo com Gibbs (2005), o processamento da linguagem no se resume

    apenas a regies especficas no crebro. O autor acredita que o processamento da

    linguagem no deva estar relacionado a algumas poucas reas especializadas, como

    creem os adeptos da viso simblica da cognio, cujas razes se encontram na tese de

    Descartes. De acordo com Macedo (2008, p. 15), a viso simblica falha nos seguintes

    termos:

    (...) tentar igualar comportamentos inteligentes em geral e, em

    especial, aqueles ligados atuao lingustica, a processamentos

    computacionais mecanicamente operacionalizados, a partir de

    mdulos mentais isolados e exclusivos, tem se provado explicao

    insuficiente e inadequada, especialmente em vista das novas

    descobertas a respeito da natureza do crebro humano e da evidncia

    da integrao dinmica de outros subsistemas neurais no exclusivos

    da linguagem, na emergncia do conhecimento lingustico.

    6 Fragmento extrado de https://sites.google.com/site/duquephd/gramatica-de-construcoes, em

    24/09/2012, s 22:00.

    https://sites.google.com/site/duquephd/gramatica-de-construcoes

  • Um projeto desenvolvido por Regier (1996) visa fornecer um modelo neural

    para o aprendizado das relaes espaciais em termos da linguagem em uso. O autor

    observa que na lngua inglesa h vrios termos que expressam situaes espaciais,

    como, por exemplo, aqueles que servem para indicar movimentos concretos e abstratos,

    espaciais e no espaciais tais como eu estou em depresso 7, os preos subiram

    8 e

    ele est fora de si9 (GIBBS, 2005, p. 194). Para Gibbs, o uso desses termos em

    representaes no espaciais nascem de metforas conceptuais que preservam a lgica

    espacial de um domnio fonte. Nesse sentido, termos que podem ser usados para

    acionar significados no espaciais parecem ter origem nos Esquemas-I que designam

    localizao e movimento espacial, como podemos perceber em (07) e (08):

    (07) Correndo, lgua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Canania. O coroca estava na porta sentado e lia

    manuscritos profundos. (ANDRADE, 2007, p. 21) 10

    (08) Nem cinco sis eram passados que de vs nos partramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Ns. (Idem, p. 57).

    Em (07) e (08) verificamos que profundos e sobre so termos utilizados,

    geralmente, para representar relaes espaciais concretas, mas tambm servem para

    relacionar situaes no espaciais e abstratas. Com base em relaes espaciais desse

    tipo, Regier (1996, apud GIBBS, 2005, p. 194) realizou experimentos ancorados em

    testes neurocientficos. Primeiramente, ele procurou construir um mapeamento do

    campo visual de leitores, com a finalidade de computar Esquemas-I. Depois, buscou

    verificar os agrupamentos neurais11

    , reunidos por meio da associao entre alguns

    termos espaciais como, por exemplo, acima, abaixo, ao lado etc. e o

    posicionamento corporal (orientao sensvel). Em outro momento, ele realizou testes

    para verificar os receptores neurais empregados na caracterizao de conceitos e

    7 Im in a depression (traduo nossa).

    8 The prices went up. (traduo nossa)

    9 he's beside himself (traduo nossa)

    10 Extrado de http://download.baixatudo.globo.com/docs/Macunaima.pdf. Acessado em 25 Abr. 2011, s

    14:35. 11

    Neural Assembly (Traduo nossa).

    http://download.baixatudo.globo.com/docs/Macunaima.pdf

  • contatos com as mos; por fim, verificou que mecanismos neurais so utilizados na

    negociao de emoes e sentimentos reprimidos. Chegou-se concluso que as

    categorias conceptuais relacionadas a atividades motoras espaciais so criadas com base

    na estrutura cerebral e em nossas experincias corporificadas.

    Narayanan (1997) tambm realizou estudos com modelos baseados na teoria

    cognitiva da metfora de Lakoff e Johnson. Nesse modelo, o pesquisador objetivava

    verificar os mecanismos sensrio-motores de inferncia e os mapeamentos metafricos.

    Esse modelo ficou conhecido como KARMA Representaes de aes para metforas

    e aspectos baseadas no conhecimento12

    (NARAYANAN, 1997). Nesse projeto, o autor

    apresentou pela primeira vez um modelo dinmico de representao envolvendo

    Esquemas-X motivados, em parte, por sistemas perceptuais e de movimento.

    Para o autor, muitas narrativas descrevem planos e eventos em termos de

    movimento espacial e de manipulao de objetos. Vejamos em (09) como isso ocorre:

    (09) Um silncio imenso dormia a beira-rio do Uraricoera. Uma feita um homem foi l. Era madrugadinha e Vei mandara as filhas visar o passe

    das estrelas. O deserto tamanho matava os peixes e os passarinhos de

    pavor e a prpria natureza desmaiara e cara num gesto largado por

    a. A mudez era to imensa que espichava o tamanho dos paus no

    espao. De repente no peito doendo do homem caiu uma voz da

    ramaria: Currr-pac, papac! currr-pac, papac!... (ANDRADE, 2007,

    p. 213).

    Em (09) encontramos expresses como um silncio imenso que dormia;

    passe das estrelas; a natureza desmaiara e cara num gesto; mudez imensa que

    espichava e caiu uma voz. Todas elas estruturada em termos de dimenso espacial,

    ancoradas em uma relao espacial e metaforicamente corporificada.

    A hiptese bsica de Narayanan (1997) que leitores entendem narrativas,

    como a produzida em (09), com base em seus conhecimentos concebidos pelas

    metforas corporificadas. A funo dessas metforas, em linhas gerais, seria a de

    projetar caractersticas de movimento espacial, manipulao de planos e eventos

    abstratos, conforme uma representao espacial de movimento estruturado por meio de

    Esquemas-X, como os gerados pelas pistas lingusticas jogar, correr, andar etc.

    12

    Knowledge-based Action Representations for Metaphor and Aspect. (Traduo nossa).

  • Esses esquemas codificam a metfora corporificada de maneira a reter a dinmica dos

    eventos abstratos (GIBBS, 2006, p. 195), como exemplificado em (09).

    Os resultados alcanados na pesquisa de Narayanan permitiram que o trabalho

    desenvolvido por Nancy Chang, na TNL, fosse ampliado para a pesquisa em torno da

    aprendizagem da gramtica. Esse trabalho reuniu psicolinguistas e linguistas em busca

    da implementao de um modelo que respondesse a questes como a aquisio, por

    crianas, de construes gramaticais bsicas, lig