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Resumo Este texto busca reler e reorganizar, em outros termos, a proposta de Josefina Ludmer exposta em “Literaturas posautónomas”. Para tanto, serão destacadas as tensões entre o próprio, a propriedade e o apropriado para repensar o papel da literatura e da autonomia dentro da atual situação discursiva e institucional do campo e suas relações com as noções hegemônicas de democracia, neoliberalismo e multiculturalismo. Palavras-chave: Literaturas Pós-autônomas; Josefina Ludmer; Literatura Latino-Americana; Literatura e Democracia; Neoliberalismo. Resumen Este texto busca releer y reorganizar, en otras palabras, la propuesta de Josefina Ludmer expuesta en el ensayo “Literaturas posautónomas”. Para eso, serán destacadas las tensiones entre lo proprio, la propiedad y lo apropiado para repensar el rol de la literatura y de la autonomía en la actual situación discursiva e institucional del campo y sus relaciones con la democracia, el neoliberalismo y el multiculturalismo. Palabras clave: Literaturas Posautónomas; Josefina Ludmer; Literatura Latinoamericana; Literatura y Democracia; Neoliberalismo. Tiago Guilherme Pinheiro (Universidade de São Paulo) O próprio, a propriedade e o apropriado: variações em torno da ideia de “Literaturas pós-autônomas” de Josefina Ludmer revista landa Vol. 1 N° 2 (2013)

o proprio e a propriedade

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  • ResumoEste texto busca reler e reorganizar, em outros termos, a proposta de Josefina Ludmer exposta em Literaturas posautnomas. Para tanto, sero destacadas as tenses entre o prprio, a propriedade e o apropriado para repensar o papel da literatura e da autonomia dentro da atual situao discursiva e institucional do campo e suas relaes com as noes hegemnicas de democracia, neoliberalismo e multiculturalismo. Palavras-chave: Literaturas Ps-autnomas; Josefina Ludmer; Literatura Latino-Americana; Literatura e Democracia; Neoliberalismo.

    ResumenEste texto busca releer y reorganizar, en otras palabras, la propuesta de Josefina Ludmer expuesta en el ensayo Literaturas posautnomas. Para eso, sern destacadas las tensiones entre lo proprio, la propiedad y lo apropiado para repensar el rol de la literatura y de la autonoma en la actual situacin discursiva e institucional del campo y sus relaciones con la democracia, el neoliberalismo y el multiculturalismo. Palabras clave:Literaturas Posautnomas; Josefina Ludmer; Literatura Latinoamericana; Literatura y Democracia; Neoliberalismo.

    Tiago Guilherme Pinheiro(Universidade de So Paulo)

    O prprio, a propriedade e o apropriado: variaes em torno da ideia de Literaturas ps-autnomas de Josefina Ludmer

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    Em Aqu America latina, livro publicado em 2010 e no qual se inclui o texto Literaturas posautnomas (que circula na Internet desde 2007), Josefina Ludmer opta por lanar mo de um gnero de abordagem das textualidades que constituem o tempo presente e que tambm anunciam um tempo por vir pouco praticado, quando no vituperado, pela maior parte da crtica e da teoria literria: a especulao.

    Parte fundamental da produo de conhecimento nas cincias exatas e biolgicas, o ato de especular visto com desconfiana na crtica e teoria literria, seno em toda a rea de humanas, ou, ao menos, no formato que esse campo foi tomando nesse ltimo sculo. De fato, talvez seja impossvel abordar objetos textuais ou situaes discursivas futuras, no constitudas, ou o rumo que tomar qualquer atividade humana, sob o risco de recair em determinismo, de clausura (obviamente, nas chamadas cincias exatas, a especulao participa da prpria legitimao da atividade, em especial, quando somada noo de progresso). Esse tipo de articulao, entretanto, faz parte da dimenso experimental que envolve a composio de qualquer objeto, seja ele esttico, cientfico, matemtico, tecnolgico, biolgico, histrico, etc. (No toa, o ensaio de Ludmer, assim como muitos dos ensaios que ela tem como referncia, est balizado por produes que se constroem justamente na interseco dessas prticas). E tambm na teoria, naquilo que tem de terico, h sempre especulao diante das novas formas de relao propostas por essas composies, j que elas no se apresentam como simplesmente disponveis: necessitam de um impulso de nomeao e de constituio do olhar (lembremos da ligao etimolgica da palavra especular com a noo de viso, de fazer imagens) para que se tornem existentes, por assim dizer. Por isso, especular tambm envolve uma dimenso prospectiva, uma tentativa de traar temporalidades possveis a partir do nosso (possvel) presente.

    E a tambm temos essa retomada da fico cientfica, do pensamento especulativo do syfy, que perpassa todo o livro de Ludmer como uma espcie de modelo metodolgico, j que, em diversos sentidos, seu livro trata sobre um futuro, um futuro tornado presente, nesse novo sculo latino-americano, dessa marca fetichizada do ano 2000, do novo milnio, que est presente como falta, como decepo, mas tambm em muito dos escritos em que aborda uma fico cientfica peculiar, de textos que conservam a marca do futuro como mero ndice, sem de fato se atreverem a descrev-lo, deixando-o como uma sombra incalculvel

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    sobre o presente pensemos em 2666 (2005) de Roberto Bolao, Perros hroes (2003) de Mario Bellatin, Mantra (2001) de Rodrigo Fresn todos livros que jogam com a ideia de futuro e de certo modo com o apocalipse.

    Com relao ao estado de coisas especfico que busca abordar, desse presente e desse futuro que o assombra (tanto futuro do presente como do passado), Ludmer vacila entre dois modos de entender o que seria essa situao que ela denomina como ps-autnoma: por um lado, descreve-a como um desmembramento de campos e esferas sociais, que cria uma grande zona de indistino, especialmente no que se diz sobre a cultura e o mercado; e, por outro lado, um ato de recusa por parte de certos objetos textuais em participar desse lugar literrio que lhes tido como prprio. Do mesmo modo, Ludmer vacila em separar realidade e fico ou simplesmente assumir uma realidadficcin, ou, ainda, em declarar a impossibilidade da persistncia de certas categoriais como autor ou obra, pois no deixar de por vezes separ-las e utiliz-las. Por isso, mais que uma constatao, o ensaio de Ludmer pode ser visto como um manifesto, a tentativa de instaurar performativamente um nome para uma situao distinta, mas que ainda carrega os restos que a impedem de funcionar totalmente enquanto tal. Por isso, o texto de Ludmer est sempre entre a descrio e a necessidade, entre aquilo que e aquilo que pode ser. No toa seu gesto se coloca vrias vezes com um convite imaginativo: Supongamos que... (LUDMER, 2010, p. 9; p.127), Imaginemos esto (idem, p.149).1 Assim, o termo ps-autonomia oscila entre o estatuto do lugar que antecede os livros que ela invoca ou esse outro lugar ou o no-lugar por eles exigidos. Um entre-tempos que igualmente um entre-lugares.

    Muchas escrituras de los 2000 atraviesan la frontera de la literatura (los parmetros que definen qu es literatura) y quedan afuera y adentro, como en posicin diasprica: afuera pero atrapadas en su interior. Como si estuvieran en xodo. Siguen apareciendo como literatura y tienen el formato libro (se venden en libreras y por Internet y en ferias internacionales del libro) y conservan el nombre del autor (se los ve en televisin y en peridicos y revistas de actualidad y reciben premios en fiestas literarias), se incluyen en algn gnero literario como novela, y se reconocen y definen a s mismas como literatura. (p.149-150)

    1 A partir deste ponto do texto, as referncias ao livro Aqu Amrica latina de Ludmer sero assinaladas apenas pelo nmero da pgina.

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    Por isso, buscando de certo modo traar uma relao de fidelidade aos termos que Ludmer prope, ainda que no exatamente em suas concluses, este texto tambm resolve especular, projetar-se sob a forma do programtico (de um programa de estudos futuros), em tudo que essa atividade tem de fragmentria e precria, sobre a situao que constitui o nosso presente e que no se encontra nomeada (ou cujo nome ainda est em disputa). Assim, buscamos reler ou recompor os termos de Ludmer para tentar vislumbrar, ainda que de forma breve, sob a forma da brevidade, algum caco daquilo que seria a literatura no presente, que incmodo atravessa esse termo e quais fantasmas o assombram, ou, ao menos, assombram o texto de Ludmer.

    1. Topologia e economia discursivas.

    Poderamos dizer que a interveno que realiza o ensaio-manifesto de Josefina Ludmer intitulado Literaturas posautnomas (e sua verso 2.0) se concentra, com seu vocabulrio espacial (territorios, islas urbanas, objetos que se instalan localmente, campo, esfera, etc.), em uma indagao de natureza topolgica, uma tentativa de abordar uma questo referente noo do lugar das artes e, em particular, da literatura, isto : qual seria o seu lugar ou que tipo de lugar constituem tais termos? Ou ainda: em que lugar tem lugar, se que tem lugar, os objetos chamados estticos, artsticos e/ou literrios? Em outras palavras, a questo paira sobre um lugar prprio, um campo chamado autnomo que se traduz em instituies e mecanismos especficos de valorao, armados com aparatos que conferem legalidade (uma relao entre literatura e lei, mediada pelos conceitos de fico e realidade, de direito e liberdade) e autoridade (sob os conceitos de autor, cnone, obra, etc.) prtica literria. Se quisermos contribuir para o entendimento da situao (da situao desse lugar) que Ludmer aborda, devemos partir desse estatuto da armao de dispositivos enquanto constituio de uma propriedade, j que assim que parece estar conceituado a noo de autonomia nesse texto. E, inclusive, para que a questo ganhe mais especificidade, talvez seja imperativo ir mais alm desses exerccios crticos atribudos s correntes ps-estruturalistas ou ao pensamento ps-moderno, que se limitam em apontar a falta de uma qualidade imanente, prpria, a um texto para que possamos cham-lo de literatura. De fato, aqui a acepo

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    de propriedade deve ser conjugada em sua dupla articulao, tanto como aquilo que prprio enquanto essncia, quanto como lugar que confere um estatuto queles que ocupam essa posio dentro de certa topologia discursiva (ou queles que nela so colocados), assumindo que ambos o lugar e aquele que se localiza nesse lugar estejam submetidos s dinmicas da contingncia.

    Por outro lado, se essa questo surge em termos topolgicos, h de se pensar em como essas posies intercambiam seus elementos isto , como essa distribuio em esferas no apenas uma questo de diviso em espaos fechados, mas um modo de partilha, tanto dos lugares, como do modo como esses lugares se relacionam. Assim, para rastrearmos essa topologia, temos que suplement-la com uma economia, como alerta a prpria Ludmer (p.124).

    A economia especfica que circula (que faz circular) na situao ps-autnoma no outra seno a neoliberal, tal como Ludmer sublinha por todo o seu livro. E no poderia ser outro o lugar e o momento de enunciao para tal articulao terica (ou especulativa): o momento de surgimento dessas literaturas ps-autnomas, a situao em que o cultural passa a ser mercado, e o mercado passa a ser cultural, reelaborando e desarticulando as diferenas para torn-las propicias ao comrcio isto , no momento mesmo de concretizao do sonho neoliberal tambm aquele em que se inicia sua derrocada, sua face abertamente desastrosa: o da crise econmica de 2001 na Argentina.

    De fato, as literaturas ps-autnomas, ou as obras com que Ludmer dialoga, mostram-se como respostas aos modos de circulao do prprio objeto livro. Esse pice-apocalipse do neoliberalismo tambm se apresenta na indstria editorial: justamente com a introduo das grandes editoriais multinacionais na Argentina, com a disponibilidade em massa de publicaes, que o espao para certas possibilidades textuais parece diminuir ou, melhor, planifica-se na prpria expanso de sua oferta.2 Apesar de no ser trabalhado diretamente pelo texto de Ludmer (ainda que surja em outros momentos de Aqui, America Latina, p. ex., nas p.207-209), um dos fatores disparadores do ensaio Literatura posautnomas a tentativa macia que tem lugar na Argentina (e no s em Buenos Aires) de propor novos modos de compor e fazer circular

    2 Para mais informaes sobre a situao editorial que se apresenta nos anos 1990 e 2000 na Argentina e a reao que foi desenvolvida a ela, a partir desses pequenos ncleos de produo e edio de textos confira o dossi apresentado pela revista digital No-Retornable de nmero 7: http://www.no-retornable.com.ar/v7/dossier/

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    o objeto livro, no s como exerccio de editorao, mas tambm como prpria matria de diversas narrativas e poticas. Assim, no bastaria ler textos como La mquina de hacer paraguayitos (2000) de Washignton Cucurto, ou Boedo (2004) de Fabin Casas, mas sim articul-los com a experincia coletiva, marcada no prprio suporte (artesanal, com capas de papelo reciclado, cada capa levando um desenho singular), que envolve o empreendimento Eloisa Cartonera uma cooperativa de catadores que fabricam os livros com papel reciclado, fundada justamente como resposta situao de misria deixada pela crise.

    Poderamos lembrar ainda desses livros que circulam restritamente por meios comerciais, s vezes sequer postos venda, mas distribudos de mo em mo, como no caso de certos textos de Aira (El juego de los mundos (2000), por exemplo) ou, ainda, para citar um correlativo brasileiro, das edies mimeografadas de Dalton Trevisan. (Esse, alis, poderia ser um outro bom caso singular para os argumentos de Ludmer: a de uma narrativa que sempre se mostra repetitiva, com os mesmos personagens genricos Mariazinha, Joozinho, a velha, o velho, o tarado, etc. , com os mesmos argumentos, sempre em Curitiba, livro aps livros, porque, segundo uma justificativa provavelmente apcrifa de seu autor, a prpria realidade no muda. No toa, Aira o considera como um de seus escritores favoritos (1998, p.102)).

    Do mesmo modo, vrios desses escritos tematizam suas relaes com o campo literrio e com o mercado de modo quase obsessivo. Mas no s: e a prpria relao com a posio de enunciao literria, desde a literatura, que vista com desconfiana, para no dizer repdio. Caso exemplar aqui seria o de Roberto Bolao (o que La literatura nazi en Amrica (1996) se no a descrio, desde o lado mais perverso, da formao de um campo literrio no qual o autor se v inserido e com o qual tem que lidar como o passado mesmo das condies de sua enunciao literria?), mas poderamos citar igualmente, Literatura argentina (2012) de Pablo Farrs (onde se revela que certo cnone da literatura sul-americana ou causa ou produto de um processo escatolgico desenvolvido por um homem criado como um cachorro bem treinado e violento, sendo ele o verdadeiro escritor de obras de Saer, Lamborghini, Bolao, Aira, Fogwill, etc.) e, de forma mais humorstica, El congreso de literatura (1999) de Aira (com seu vilo de histrias em quadrinho que clona Carlos Fuentes com o intento de criar um exrcito para dominar o mundo).

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    Portanto, nessa relao de topografia e economia, entre texto e lugar de enunciao, entre livro e modo de circulao, devemos nos perguntar no s como o mercado influi no texto como objeto de consumo, mas na prpria relao que se dispe no estabelecimento hegemnico dos modos de organizao e distribuio da linguagem. Nesse sentido, o correlato da economia neoliberal deve ser buscado no campo do direito, na relao entre direito e linguagem, no direito que busca se antecipar a linguagem. Isto , na democracia (neoliberal) como garantia mesma de propriedade sobre a linguagem, como seguridade em relao ao direito de liberdade de expresso tendo as artes e a literatura como ponto privilegiado e exemplar dessa legitimao.

    2. A literatura como lugar prprio e apropriado

    Esse incmodo com o lugar que lhe prprio, literatura ou s narrativas que Ludmer evoca, no apenas discursivo, mas tambm se transporta para a geografia, para o espao fsico desde onde so produzidas ou enunciadas (seja pelo sujeito da enunciao ou do enunciado para Ludmer h uma indistino). Como se houvesse uma contrapartida da renncia do lugar literrio ou do esfacelamento do lugar prprio da literatura nesse movimento de transferncia do espao do texto para propriedades territoriais: bairros, instituies, praas e outras peas do tecido urbano, em geral bastante precrias. Ou ainda, de modo complementar, nas marcas desses grandes movimentos territoriais, exlios, expulses ou, simplesmente, viagens permanentes. Complementar porque, em geral, os protagonistas desses relatos, que se veem nessas pequenas ilhas urbanas, j so tambm frutos de deslocamentos: so imigrantes, vagabundos, fugitivos, mendigos, favelados. Esses novos lugares prprios so tambm a resposta ao lugar geopoltico que lhes foi dado, negado, ou oferecido em negao. (Pode-se ser o cidado de um pas, com todos os direitos garantidos sade, educao, alimentao, trabalho, etc. e ainda sim no receb-los. Ou ainda: impedir seu acesso justamente porque eles j esto a, virtualmente, aos olhos do Estado. Parece se propagar cada vez mais um modo de articulao, de indistino, malvolo entre o que de fato e o que de direito. Desse modo, a situao em seu prprio territrio no diferente daquela que consegue em espaos alheios, em seus

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    lugares apropriados como imigrantes em outros territrios). Basta pensar naquela invaso do cornurbano para o centro de Buenos Aires em El aire de Sergio Chejfec, dos personagens que povoam as praas portenhas das crnicas de Mariana Moreno, dos travestis que ocupam as esquinas de Santiago em Pedro Lemebel, e outros.

    Algo que se mostra igualmente na alternativa reversa dessa estratgia, a das viagens permanentes: a tentativa de entrever uma fuga ou um movimento contnuo que, no entanto, sempre constantemente frustrado, sempre barrado por uma linha (geogrfica, imaginria, simblica) mnima. Ou ainda pela dissoluo da alteridade, seja como mera exibio de um exotismo confortvel, seja pelo estabelecimento de um lngua standard que substitui todos os acentos regionais, como acontece com o castellano de Andrs Neuman, Patricio Pron ou Alberto Fuguet, que se assemelha a uma verso internacionalizada da lngua, neutra e plana. A promessa de mobilidade propagada pela globalizao, ou da possibilidade do encontro e convivncia de alteridades do multiculturalismo, sempre uma falsa mobilidade e uma falsa diferena, que oferece o consumo transpassando grandes espaos em troca de certos limites intransponveis aos sujeitos.

    De certo modo, quando quebra o elo com seu territrio nacional que o imigrante, o exilado, o viajante assume, paradoxalmente, a posio de exemplo maior dessa identidade.

    En la cada y el encierro del relato de migracin, en el camino de la nacin a la lengua (en la desfusin del afecto nacionterritoriolengua), los sujetos sufren la experiencia a veces trgica de convertirse en nadie o en otro: en el latino, el hispano, el sudaca, el bolita. Y entonces pasan a representar en el exterior y en lo pblico, lo que pierden, la nacin como uno: son Colombia o Bolivia o Argentina. El emigrado latinoamericano sera entonces, paradojalmente, uno de los sujetos nacionales de la globalizacin. Porque est desnacionalizado y desterritorializado puede ser un representante de lo nacional latinoamericano hoy. (p.186)

    No atual modelo internacionalizado das artes, h algo de similar, ainda que outro valor (como constituio mesma do valor): o artista, e o artista imigrante principalmente, exemplar, ao mesmo tempo, de uma identidade nacional, de uma multiplicidade, e tambm da porosidade

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    das fronteiras sem que, no entanto, seja capaz de deixar o lugar que lhe foi conferido. Para ser viajante e estrangeiro nessa economia territorial preciso, sobretudo, no abandonar o seu lugar prprio. A diferena que as chaves passam a funcionar trocadas, do preconceito para a chave festiva do processo. Como se entre um e outro surgisse uma relao de escambo, ou mesmo de suborno, representativas (a visibilidade artstica prova de incluso e participao nos processos mundiais) e enunciativas (o campo literrio e artstico so lugares privilegiados para a exibio das possibilidades de qualquer um dizer qualquer coisa, de modo securitrio, como demonstrativo do sucesso da lgica democrtica).

    Por isso, esse paradoxo do lugar prprio, da propriedade, daquele que marcado pelo movimento e pela excluso, simtrico aquele posicionamento de desconforto que esses textos escritos desde a Amrica Latina descrevem frente ao espao discursivo literrio ou ainda com a noo de fico.

    No por acaso, a questo da imigrao e da errncia, dos lugares de permanncia e de passagem, estejam to presentes nesses textos e em outros que compartilham da constelao proposta por Ludmer.

    Nesse sentido, a proposta de literatura ps-autnoma est em consonncia com o percurso crtico que vem desempenhado Graciela Speranza em seus dois ltimos livros, Fuera de campo (2006) e Atlas porttil de Amrica Latina (2012). O questionamento sobre as relaes de pertencimento da arte e da instituio, das tenses entre a prtica e o lugar em que se d a prtica, trabalhado no primeiro livro, complementado no segundo com o problema da circulao das artes como representantes de certos territrios e mesmo daqueles que no tem territrio ou que perderam um territrio (exilados, estrangeiros, imigrantes, os sem-documentos, etc.).

    Os livros de Speranza tambm se lanam em gestos especulativos e composicionais. Em Fuera de Campo, constri-se uma histria da literatura argentina colocando como marco a residncia de Duchamp em Buenos Aires entre 1918-1919, imaginando-o como precursor, como produtor de uma srie, que compe e atravessa Borges, Cortzar, Puig, Piglia, Aira que modifica o lugar desses escritores, mesmo quando no haja existido nenhum contato direito entre o artista francs e esses autores. Mas no s: uma leitura deslocada que mostra o movimento, a perturbao do lugar prprio da literatura tal como empreendida por suas obras. Como se essa oscilao em direo a um fora de campo (na

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    tentativa mesma de constituir o campo) fosse j um preldio da ps-autonomia, de uma situao em que a prpria noo de campo j fosse imprpria.

    Por outro lado, em Atlas porttil de Amrica Latina, o movimento faz um percurso mais expansivo (ainda que Duchamp sempre seja o modelo no horizonte), mostrando a complexidade dessa travessia em direo ao fora, ou a tenso que se produz na tentativa dessa travessia, nas produes artsticas contemporneas. Nesse livro, a tentativa de colocar-se em movimento ou (re)fundar territrios que assume a cena entre diversos campos de atuao, no qual j no se distingue o gesto da literatura, das artes plsticas, dos happenings, das intervenes, dos filmes a no ser como gesto que partem de lugares diferentes. J no se trata de uma diferenciao de propriedades, mas de pontos de partida.

    E, no entanto, enquanto livro sobre as estratgias errantes, sobre o esforo de certos artistas trabalharem a partir da circulao de territrios, o estudo de Speranza analisa, paradoxalmente, diferentes formas que frisam o lapso da imobilidade, da barreira mnima que resta intransponvel, l onde se oferece um plano de movimentao total, dispositivo que aparece como o suplemento perverso do discurso hegemnico dos valores multiculturais e globalizadores. Gestos como os de Francis Als, em The Loop, no qual o artista belga-mexicano decide, em 1997, ir at uma conveno artstica inSITE, em San Diego, desde Tijuana sem atravessar a fronteira Mxico-Estados Unidos, percorrendo, ao invs disso, um longo e sinuoso caminho, descendo at o Chile, passando pela Oceania, pelo Sudeste Asitico, subindo em direo ao Alasca e finalmente chegando at o seu destino final. Tudo isso sendo registrado atravs de cartas e outros objetos. Poderamos citar ainda as intervenes de Gabriel Orozco (Piedra que cede, 1992), Teresa Margolles (De qu outra cosa podramos hablar?, 2009), Faivovich & Goldberg (El taco, 2010), entre outros que Speranza analisa. Dentro da literatura, nada parece mais sintomtico do que esse flneur imvel, paralizado, que Speranza aponta nos protagonistas de Srgio Chejfec, especialmente o de Mis dos mundos (2008) ou esse professor brasileiro vacilante em representar como sua a cultura que se espera que ele represente enquanto estrangeiro do Terceiro Mundo, nos meios universitrios norte-americanos e europeus, tal como aparece em Berkeley em Bellagio (2002) de Joo Gilberto Noll.

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    Como muchos otros escritores de Amrica Latina, Noll parece haberse integrado a esa red de relaciones ms fluidas de la cultura mundializada del siglo XXI, tramada universidades confortables y residencias idlicas para escritores perifricos. Pero la literatura que ha escrito a partir de esa experiencia es la irrisin dramtica del escritor necesitado, que viaja de un lugar a otro y escribe subsidiado por el primer mundo. Las novelas son las misivas amargas de agradecimiento que enva a la vuelta del viaje, la cara oscura del crisol de razas e culturas que brilla en los campus y los falansterios globalizados. [] Si lo que se espera de l es que represente su cultura, no tiene nada que representar ms que el drama vacilante de su zozobra. (SPERANZA, 2012, p.75)

    Como se o fora no fosse possvel porque j se exibe enquanto possibilidade dada ou oferecida, assim como se a transposio dos limites fosse apenas uma concesso parcial na legitimao de limites mais tnues, infinitamente mais indissolveis e fundamentais, a despeito da prpria ideologia que propaga uma ideia de sem-fronteiras, de multiplicidades, de pura circulao. Assim, esses artistas e autores veem e exploram o desnvel violento que existe entre as possibilidades de circulao de pessoas, de relao entre territrios e sujeitos, enquanto falsa demonstrao de fraturao daquilo que prprio, resultando, ao contrrio, na proliferao de propriedades e da subjetivao atravs daquilo que apropriado, daquilo que prprio mesmo quele que no possui propriedade alguma, como o imigrante, o perseguido, o miservel, etc.; e o privilgio da possibilidade de circulao e de segurana que a arte (enquanto produto) e o artista (como sujeito representante da alteridade, dos sem-lugares, do refugiado, etc.) possuem. Aqui o campo artstico enquanto instituio, mas tambm como lugar discursivo exemplar, tanto no plano representativo, como no plano discursivo, atravs da ideia de liberdade de expresso disseminada pela ideologia neoliberal democrtica que se torna o prprio problema para a ciso que esses objetos querem operar. Como se as condies de possibilidade oferecidas pela noo de arte, que se exibem como contrrias a qualquer excluso ou normatividade, aparecessem como o elemento infame que esses artistas buscam enfrentar.

    Las fronteras del mundo del arte no son muchos ms poderosas. La globalizacin ha abierto y acelerado la

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    circulacin cultural, pero a distintas velocidades segn las rutas y la direccin de los intercambios econmicos. Y aunque las teoras culturales poscoloniales han promovido la ampliacin del mapa global para incluir a las culturas perifricas, el multiculturalismo institucionalizado fetichiza al Otro, es cierto, pero al precio de aplanar las diferencias, domesticar lo minoritario y normalizar las singularidades en una variedad inocua que alimenta la expansin voraz del mercado del arte. (SPERANZA, 2012, p.29)

    Porque, se a esfera das artes se apresentou ou foi apresentada inmeras vezes como lugar de possibilidade de representao daqueles que no tem lugar, hoje esse privilgio enunciativo encenado como uma espcie de refluxo ou m-f. Instituies como as bienais ou as festas literrias passam a se legitimar pelo desfile da multiplicidade, pela exibio da vitria da possibilidade de fala universalizada por meio da literatura, tornada uma espcie de utopia da liberdade de expresso disseminada. E, talvez, o nome que faz encarnar (a palavra aqui importante) esse problema o de Santiago Serra, como a gravao apresentada na Bienal de Veneza em 2001, na qual, com o dinheiro recebido pela instituio, contrata um grupo de onze mulheres ndias tzotziles, da regio de Chiapas (Mxico), sem conhecimento algum da lngua espanhola, para repetir aos visitantes a seguinte mensagem: Estoy siendo remunerado para decir algo cuyo significado ignoro.3 Aqui o curto-circuito entre o campo mercadolgico, o campo artstico como lugar de representao e de expresso exemplar do mundo multicultural e a possibilidade cnica de um artista que se legitima como aquele capaz de dar lugar a esse direito evidenciada aqui por essa performance de Sierra.

    A literatura passa a figurar como a contrapartida ajustada, de direito, da representao daqueles que no tem representao nem representante. Aqui vale lembrar a distino que Spivak (2010) busca na lngua alem, entre representar (Vertretung, mais vinculada ao contexto poltico) e re-presentar (Darstellung, mais prximo da ideia de encenao e das artes). No entanto, o que difere nessa situao em particular que a confuso entre os dois no feita (somente) em nome

    3 As gravaes das intervenes de Santiago Sierra esto disponveis em: http://www.santiago-sierra.com/200101_1024.php. Para outras reflexes com relao a obra de Sierra e a questo da ps autonomia, cf. CANCLINI, 2007.

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    do sistema poltico e econmico presente, mas passa igualmente como forma de legitimao da prtica literria e artstica. A exibio daqueles que no tem lugar um modo de justificar e reiterar o lugar prprio das artes. Como se essa fosse a verso perversa daquilo que Jacques Rancire (2009) prope como o regime esttico das artes: no se trata de dar um lugar para a reconstruo do olhar, daquilo que digno do visvel, mas de legitimar os modos de partilha do sensvel, atravs da fixao de um olhar inclusivo e partitivo, capaz de olhar o Outro desde um lugar prprio para ele, que no passa de um lugar apropriado e neutralizado para a alteridade.

    E essa assimetria entre a possibilidade enunciada (a falta de fronteiras e a propagao das diferenas por direito) e o que de fato ocorre (as barreiras intransponveis, a promessa do direito e a ameaa da suspenso do direito como mecanismos de controle, a multiplicidade neutralizante e congregatria dos eventos de arte) tem ecos no prprio lugar das artes e da literatura na economia discursiva neoliberal. Porque esse tipo de representao, essa ligao especial entre Vertretung e Darstellung posta dentro ao campo das artes e do direito hoje seja na figura do autor, seja na representao exposta na obra se torna, ela mesma, representativa da realizao da promessa democrtica e neoliberal.

    Aqui no devemos ter dvidas: a indistino entre o campo da realidade e da fico que prope Ludmer no deveria ser entendido simplesmente como impossibilidade de colocar os limites daquilo que ou no, se no que, como extenso dessa possibilidade desenfreada do dizer, do fazer-dizer como prova e garantia do direito disseminado, que toda a reivindicao a partir da linguagem e sobre a linguagem est colocada como possvel, enquanto fico. Neutralizada enquanto ficcional. No como especulao ou potncia imaginativa que tem seu lugar como fantasia privativa, dada enquanto demonstrao das condies garantidas de enunciao, enquanto pura enunciao. A literatura, a poesia e outras artes assim passam pelo risco de serem legitimadas enquanto pura funo ftica do direito do dizer. (E desse modo que deveramos pensar numa nova configurao do fonocentrismo denunciado por Derrida).

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    3. Literatura e direito

    Essa relao entre legalidade e legitimidade, entre o jurdico e o autnomo, que tenciona ou tencionava o campo da literatura e do direito, que, poderamos dizer, fundadora do campo literrio autnomo, assume hoje um carter distinto. Um dos pontos nodais da modernidade literria, que a estabelece como evento, justamente a ciso entre os critrios de julgamento jurdico e os literrios. Basta pensar como o inqurito e a absolvio de Madame Bovary de Flaubert significativo nesse plano. Ou ainda as inmeras formalizaes desse conflito que surge como base de contos e romances de Edgar Allan Poe (na tenso entre detetive e policial), de Franz Kafka (a posio ambgua desse direito que se encontra, ao mesmo tempo, diante e sobre o sujeito), de Machado de Assis (o estatuto de legalidade do sujeito da enunciao morto do ponto de vista da lei , ou ainda como a forma jurdica de inqurito sobre todos os nveis da vida social, inclusive no conjugal, que, contudo, o texto literrio consegue suspender) e de tantos outros.

    Nessas literaturas que buscamos abordar aqui, no entanto, essa relao tensa parece se reverter em razo de direito (mesmo que como suplemento obsceno desse direito). O escritor-detetive no heterogneo lei, mas est sempre sob o risco de ver sua prpria investigao ou a autoridade de sua prtica literria envolvida por um sistema mais complexo de infmias e injustias. Pensemos, por exemplo, em Arturo Belano de Estrella distante escrito por Roberto Bolao: no se trata apenas de sua identificao com o aviador-torturador Carlos Wieder, no seu desejo de uma soberania literria que Wieder intenta realizar buscando os limites ltimos da fora potica, da autoridade enquanto ato de violncia legitimado pela liberdade esttica , mas tambm em sua parceria com o ex-policial Abel Romero para eliminar esse poeta. Essa execuo no se d em nome de uma justia coletiva, mas sim como justia pessoal de um mandatrio annimo ou melhor, como justia privada, possibilitada pelo capital industrial do novo Chile democrtico neoliberal, tal como Romero faz questo de explicar a Belano (BOLAO, 2007, p.145-146). A desconfiana e o repdio atividade potica e literria demonstrados ao final pelo narrador no apenas devido monstruosidade dos atos de Wieder, mas pelo modo como se desenvolvem e se apresentam essas novas condies de possibilidade enunciativa na democracia chilena. Aceit-las sem mediaes, ou

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    melhor, sem um esforo contra essas condies de possibilidade (ainda que sempre se esteja associado a elas), , para Belano, um modo de cooptar todo esse processo que ele sofreu e do qual participou. Seu envolvimento na eliminao de Wieder (assim como sua identificao com ele, em outro plano) igualmente demonstrativo dessa posio ambgua na qual ele se encontra em sua prtica de escritor-detetive-leitor. (Esse mecanismo ser elevado ensima potncia em La parte de los crmenes em 2666, em que os diversos agentes investigadores dos inmeros assassinatos de mulheres na cidade de Santa F se mostram, por meio de suas prticas mesmas, participantes do sistema que sustenta e sustentado por esse feminicdio).

    Construes semelhantes podem ser encontradas em escritores como Rodrigo Rey Rosas (El material humano, 2009), Horacio Castellano Moya (El asco, 1997) e Juan Villoro (El testigo, 2004).

    A infmia no mais um ato alheio, de um agente determinado (o torturador, o ditador, o policial, o paranico, o censor), mas est disseminada, porque ela mesma fundadora das condies do presente, e esse presente neoliberal, democrtico, multicultural se legitima atravs dessa distribuio do direito do tudo pode ser dito, por qualquer um, desde que seja num lugar prprio, apropriado. Em troca (que, s vezes, funciona como um suborno para o campo das artes) o que se opera por esse lugar prprio assegurado justamente a expropriao da diferena, da alteridade enquanto tal. Como diz Agamben (2011), numa observao que serve de fundamento para outro texto de Ludmer, includo em Aqui Amrica Latina (El Imperio):

    El plano de inmanencia sobre el que se constituye la nueva experiencia poltica es la extrema expropriacin del lenguaje llevada a efecto por el Estado espectacular. Mientras en el Antiguo Rgimen, el extraamiento de la esencia comunicativa del hombre se substanciaba en un presupuesto que serva de fundamento comn (la nacin, la lengua, la religin), en el Estado contemporneo es esta misma comunicatividad, esta misma esencia genrica (es decir, el lenguaje), lo que constituye en una esfera autnoma en la propia medida en que deviene el factor esencial del ciclo productivo. Lo que impide la comunicacin es, pues, la comunicacin misma; los hombres estn separados por aquello que los une. (p.97-98)

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    Aqui aparece com mais clareza como o dispositivo do pblico e do privado funcionam. No se trata de uma diviso simples, ou mesmo de um retorno a certa indistino desses lugares, seno como uma estrutura normativa dual (ZIZEK, 1992). Isto : enquanto manifestao de uma reivindicao pblica (ou melhor: sobre a diviso do pblico e do privado, indo em direo quilo que da ordem do comum), advinda de um grupo qualquer, toda a exigncia por justia vista como reivindicao prpria ao espao privado, quilo que pode ser permitido ao espao privado, ou direito a um espao privado prprio (neutralizando os denominadores da cultura, da crena, dos hbitos e, por extenso infame, legitimando, de maneira subterrnea, os hbitos da corrupo, dos meios paralelos de se conjugar a ordem, os elos de familiaridade, etc.). Do mesmo modo, a exibio do espao privado ao pblico uma mostra de que todo ambiente j pertence comunidade, como simulacro modelar ou apresentado como desejvel da vida privada. O campo da cultura, em regime de visibilidade, neutralizado enquanto fantasia privada, ficcional e individual (ou compartilhada por um grupo de indivduos, a imaginao pblica sobre a qual fala Ludmer); assim como o campo pblico desmembrado enquanto exibio da possibilidade e da reivindicao da seguridade do espao privado, da fantasia ficcional da cultura como prpria e apropriada. Quando se pensa estar em um desses campos de enunciao, na verdade, sempre se acaba no outro, como que pela ativao de um mecanismo de mudana de chaves. O sujeito cotidiano produzido pela imaginao pblica, diz Ludmer (p.41), intimopblico porque se cria a partir de uma experincia privada que comparte com outros, sincronicamente (como quando assistimos a um programa de televiso, por exemplo). Do mesmo modo, esse espao duplicado a fundao da legitimidade do nosso direito. Desse modo, toda a cultura e toda a poltica se transformam numa espcie de exibio de uma fantasia individual transformada em pblica, como demonstrao do nosso prprio direito, em forma de justia privada, ficcionalizada.

    4. Fim da metfora, fim da alegoria

    Outra caracterstica fundamental dessas literaturas do presente colocada por Ludmer com base no texto de Tamara Kamenszain (2007), e que, no entanto, tambm sublinhada por tericos mais distantes

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    da proposta de Literaturas ps-autonomas (como Avelar (2012) e Olmos (2011)), reside no abandono de algumas figuras de linguagem ou melhor, de processos formais que tem seu ponto de partida em determinadas figuras de linguagem como a metfora e a alegoria. Digamos que o que se renuncia a estratgia substitutiva dos signos. Ludmer encara essa caracterstica generalizada da literatura dos anos 1990 e 2000 como um sinal do abandono de polaridades, j que no possvel uma diviso entre a realidade e a fico, entre a linguagem literal e a figurada. Por outro lado, observando com ateno, uma espcie de tenso ainda permanece em alguns desses textos, uma espcie de mecanismo residual, com um funcionamento bastante distinto daqueles que aparecem na literatura do boom (Garcia Marquez, Roa Bastos, Vargas Llosa) ou mesmo na literatura da dcada de 1970-1980 (Piglia, Eltit, Lamborghini).

    Nesse sentido, a relao entre texto e fotografia, to disseminada em alguns desses escritores, particularmente reveladora. Diferentemente da tenso disseminadora posta entre legenda e imagem, tpica do barroco, e presente tambm, ainda que com outras particularidades, no surrealismo (basta lembrar aqui os estudos de Walter Benjamin), a fotografia aqui serve como interrupo da chave de leitura alegrica. Isso fica claro, por exemplo, em Perros hroes de Mario Bellatin ou em Bajo este sol tremendo de Carlos Busqued.

    Se o prprio subttulo de Perros hroes tratado sobre el futuro de Amrica Latina visto a travs de un hombre inmvil y sus treinta Pastor Belga Malinois fomenta uma leitura em busca de chaves alegricas, inclusive evocando certa tradio dos romances de ditadores proposta pelos autores do boom, as fotografias ao final anulam essas aluses com a forma de uma comprovao documentada. No se trata de contar algo mais alm do que a histria desse treinador de pastores belgas preso a uma cadeira de rodas e que sonha mandar seus ces ao espao sideral. E, no entanto, o movimento de fomentao e interrupo extremamente significativo. como se o procedimento de suspenso atravs da documentao retirasse qualquer tentativa de colocar esse treinador de ces em uma posio exemplar daquilo que seria prprio para a imaginao pblica a uma figura autoritria, meio monstruosa, com certos projetos imaginativos megalomanacos para tentar al-lo a uma condio singular, no pelo reconhecimento da individualidade de um rosto que as fotos exibem (um rosto simptico

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    ainda que orgulhoso de seus ces), mas pelo conflito daquilo que se espera do relato, do modo como se constri a narrativa como se houvesse um mecanismo funcionando por trs dela (uma alegoria sobre o autoritarismo), e por essas fotos que nada nos revelam sobre nosso personagem, e que no tm outra funo se no tir-lo do lugar prprio que se constri com bases nesses elementos metafricos (que so colocados em certo lugar como metforas) que o rodeiam: a disciplina, os cachorros, uma figura apresentada como freak, vises de grandes projetos desmesurados, etc. Ao invs de apresentar uma metaforizao de um sujeito pr-determinado, ou de literalizar o sujeito como j a, a tenso com as fotografias no fim do texto serve para pr em conflito esses dois elementos, impedindo-os de apresentar uma propriedade prvia que define esse tipo. Esse sujeito se torna imprprio, porque as tentativas de colocar um lugar ou um discurso para ele acabam se anulando.

    Caso similar, ainda que faa um percurso invertido, ocorre no livro de Busqued. As fotos dos polvos gigantes exibidos no meio de seu romance, numa reproduo da revista Muy interesante, surgem como prova da existncia desses seres quase mticos no fundo do mar. O fato de ser apenas uma montagem do autor (ainda que isso nunca seja colocado na narrativa) no serve como exibio da falsidade da realidade, do simples jogo de construo do real a imagem do mundo que se apresenta aos protagonistas justamente uma interseco bastante dbil daquilo que apresentado como natureza (principalmente pelos programas do Animal Planet e do National Geographic, que os personagens assistem quase que obsessivamente) e a inadequao total do lugar prprio (oferecido enquanto prprio) a ela, que a constitui como natureza, e que, no cenrio que se apresenta no livro (e que podemos dizer que tambm o nosso), torna-se absolutamente insuportvel, causando uma espcie de vingana do bestirio (ou uma parania que compreende certos atos como revolta da natureza) que funcionam como motivos que se repetem ao longo da narrativa (elefantes que batem na porta de seus treinadores para mat-los com um golpe de tromba; vacas desembestadas que causam acidentes automobilsticos; besouros venenosos, etc.). Nesse sentido, a reconstruo das pginas da Muy interesante pelo autor no um ato de construo do real, ou de ficcionalizao da realidade, seno uma composio natural, ou do natural, da dimenso mstica que aferimos natureza (j desmistificada). O animal escolhido aqui no arbitrrio: at hoje esse polvo gigante, possvel inspirao para a imagem do

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    Kraken medieval, flutua entre os campos da cincia e do mitolgico, sem que se haja podido completar todos os procedimentos taxionmicos de comprovao de sua existncia com imagens ou com a captura de um exemplar vivo, devido a seu ambiente e hbitos esquivos.

    Mas, mais do que isso, o uso dessas fotos e dessa reportagem no meio da narrativa de Bajo este sol tremendo no serve seno para interromper toda a imagem de transcendncia ou de associao de significantes e significados promovida pelo intuito da leitura alegrica, que parece se projetar justamente pelas imagens violentas da natureza, dessa invaso civilizao civilizao bastante precria no livro, apresentada quase como acmulo de restos e runas, sem que nenhum ato de destruio generalizada seja apresentado que as presenas das violncias animais contnuas despertam. Se a alegoria um modo de formalizar o fracasso da submisso da natureza e da construo do prprio ao homem, nesse lugar chamado civilizao, ento tal alegoria aqui interrompida, ela mesmo fracassada como mecanismo, tornando-se uma espcie de runa da alegoria, j que tambm como alegoria que se apresentam os meios de reconciliao desse cenrio: como apocalipses, como intromisso dos lugares prprios por falta de uma reconciliao, que causa uma vingana da natureza. O que Busqued enfatiza aqui que a reconciliao , ela mesma, uma falcia, um dispositivo que ainda se fundamenta atravs da distribuio de propriedades, que, irredutivelmente, acabar em desastre mtuo (daquilo que nos apropriamos e expropriamos enquanto natureza e do contraponto prprio ao humano, como civilizao).4 Se a alegoria serve para desequilibrar as divises entre tcnica e natureza, ento o livro de Busqued vislumbra o fim dessa figura como cabvel de possibilidade

    4 Seria necessrio aqui traar uma discusso sobre essa alegorizao disseminada da natureza que vivemos hoje, devido principalmente s questes envolvendo a situao de degradao do planeta, e a ficcionalizao atribuda aos discursos das culturas (ao lugar que a cultura ocupa, como vnhamos discutindo at aqui) amerndias sobre a natureza, por exemplo. Que tais seus textos, narrativas, formas de pensamento, modos de se organizar e constituir um ambiente que no descrimina entre natural e civilizado (ou pelo menos, no do mesmo modo como essas palavras so hegemonicamente relacionadas), sejam descritos, desde nosso lugar, como mitos, metforas, alegorias, para no dizer simplesmente fices (a fico como a crena do outro), parece-nos o ponto de encontro evidente entre a distribuio das propriedades dos discursos a partir das identidades, como distribuio e garantia do direito (civilizatoriamente natural ou naturalmente civilizatrio), ficcionalizado e privativo, e da diviso dos lugares prprios do cultural e do natural. Isso s refora a necessidade de passar de um discurso multiculturalista para um questionamento multinaturalista frente quilo que tido como prprio no mundo, tal como prope Eduardo Viveiros de Castro (2006).

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    dentro do nosso prprio tempo, porque a tcnica tornou-se condio de possibilidade e de destruio da natureza, e vice e versa. A alegoria interrompida no prprio momento em que tenta se articular, porque j no h mais ponto de articulao: mas do que uma falta de alegorias, poderamos considerar que Busqued trabalha com uma alegoria residual ou natimorta.

    Esse outro modo de estabelecer o problema da disseminao e da clausura da escritura em geral, tal como se coloca em nossa poca. No apenas os sujeitos de direito (ou suspenso do direito no interior do direito) so apresentados como exemplos de uma mobilidade, ainda que em paralisia, mas a prpria relao entre as palavras acaba se fixando como uma relao sempre interrompida em seu prprio movimento. A relao entre direito e palavra, direito palavra, na exemplariedade que a literatura assume como lugar desse direito, acaba forando a esses escritores a um enfrentamento dos espaos que so prprios ao discurso literrio e, mais alm, contra os fundamentos dos seus prprios direitos. Minar a alegoria, desde seu mecanismo interior, uma forma de problematizar a disponibilidade do mundo, e a distribuio e os modos de relao de propriedades apropriadas e securitrias, como modo mesmo de atuao do nosso direito. No toa, a desconfiana da atividade de escritor sempre esteja impregnada em todas essas narrativas j que o prprio principio de um lugar prprio que lhes parece infame.

    Proposio

    O prprio, a propriedade e o apropriado: trs mecanismos que operam sobre a noo de autonomia e de direito hoje. Articular essa situao com o texto literrio exige repensar a noo de forma e de crtica, porque o problema j atinge o prprio suporte (o suporte posto como prprio) desses gestos e prticas: a linguagem. J no possvel traar uma histria dos sucessos literrios como garantia de articulao justa entre palavra e aquilo que no tem imagem, no tem lugar. Se o texto de Ludmer possui um valor a ser destacado propor essa pergunta inslita e que fere o prprio lugar deste que se quer representante da literatura o crtico literrio: afinal, em que condies oferecidas podemos reconhecer a exigncia por mais legitimidade, por um lugar prprio reconhecido para as letras, como algo pouco estratgico, para no dizer infame?

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