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O que os nomes dizem: Roberto Bolaño e o império dos “mecanismos de esquecimento” Rodrigo Soares de CERQUEIRA 1 Resumo Este artigo busca discutir a obra do escritor chileno Roberto Bolaño a partir de uma encruzilhada histórica, a saber, a transição do período ditatorial para o democrático, feita sob o signo do mercado (AVELAR, 2003). Esse processo produz o que o próprio Bolaño (2003, p. 170) denomina de “mecanismo de esquecimento”. Assim, o artigo procede explicitando a lógica de funcionamento desse mecanismo e as estratégias para tentar superá-lo. Palavras-chave: Roberto Bolaño, ditadura, mercado, literatura latino-americana Abstract This paper intends to discuss the work of the Chilean novelist Roberto Bolaño from a historical crossroad, namely, the passage from dictatorship to democracy, which was obtained under the banner of the market (AVELAR, 2003). This process produces what Bolaño (2003, p. 170) himself calls “mechanics of forgetfulness”. Thus, this paper proceeds in order to explain how such mechanics function and which are the strategies enlisted to overcome it. Keywords: Roberto Bolaño, Dictatorship, Market, Latin-American Literature Eu não quis mais prolongar a situação, logo o abordei e lhe perguntei quem era ele, e ele disse sou Ulisses Lima, poeta real- visceralista, o penúltimo poeta real-visceralista que resta no México, tal qual, e a verdade, se quiserem que eu lhes diga, é que seu nome não me dizia nada, apesar de na noite anterior, por ordem de dom Octavio [Paz], eu ter consultado os índices de mais de dez antologias de poesia recente e não tão recente, entre elas a famosa antologia de Zarco em que estão recenseados mais de quinhentos poetas jovens. Mas seu nome não me dizia nada. 1 Pesquisador Pós-Doc (Sociologia/USP), bolsista Fapesp. CEP: 04105-062, São Paulo - SP. Email: [email protected].

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O que os nomes dizem:

Roberto Bolaño e o império dos “mecanismos de esquecimento”

Rodrigo Soares de CERQUEIRA1

Resumo

Este artigo busca discutir a obra do escritor chileno Roberto Bolaño a partir de uma

encruzilhada histórica, a saber, a transição do período ditatorial para o democrático,

feita sob o signo do mercado (AVELAR, 2003). Esse processo produz o que o próprio

Bolaño (2003, p. 170) denomina de “mecanismo de esquecimento”. Assim, o artigo

procede explicitando a lógica de funcionamento desse mecanismo e as estratégias para

tentar superá-lo.

Palavras-chave: Roberto Bolaño, ditadura, mercado, literatura latino-americana

Abstract

This paper intends to discuss the work of the Chilean novelist Roberto Bolaño from a

historical crossroad, namely, the passage from dictatorship to democracy, which was

obtained under the banner of the market (AVELAR, 2003). This process produces what

Bolaño (2003, p. 170) himself calls “mechanics of forgetfulness”. Thus, this paper

proceeds in order to explain how such mechanics function and which are the strategies

enlisted to overcome it.

Keywords: Roberto Bolaño, Dictatorship, Market, Latin-American Literature

Eu não quis mais prolongar a situação, logo o abordei e lhe

perguntei quem era ele, e ele disse sou Ulisses Lima, poeta real-

visceralista, o penúltimo poeta real-visceralista que resta no

México, tal qual, e a verdade, se quiserem que eu lhes diga, é

que seu nome não me dizia nada, apesar de na noite anterior,

por ordem de dom Octavio [Paz], eu ter consultado os índices

de mais de dez antologias de poesia recente e não tão recente,

entre elas a famosa antologia de Zarco em que estão

recenseados mais de quinhentos poetas jovens. Mas seu nome

não me dizia nada.

1 Pesquisador Pós-Doc (Sociologia/USP), bolsista Fapesp. CEP: 04105-062, São Paulo - SP. Email: [email protected].

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Roberto Bolaño, Detetives selvagens

1.

Se Idelber Avelar (2003, p. 27) estiver correto – e a derrota for mesmo a

“determinação irredutível da [nossa] escrita literária” –, a perspectiva crítica,

contemporânea, desde a qual a apreciamos, não parece nada alentadora. Não é de se

estranhar, portanto, que Roberto Bolaño (in MANZONI, 2006, p. 212) tenha se

proposto a fazer da sua obra uma declaração de amor à sua geração, “a dos que

nascemos na década de cinquenta”,2 em certa medida herdeiros e continuadores de uma

mesma derrota, a qual ainda cabe especificar. Que se possa escrever, com apreço e

cuidado, desde o ponto de vista dos vencidos é tarefa de que não se duvida. Boa parte da

historiografia benjaminiana está assentada nessa vontade – necessidade até. Para Walter

Benjamin (2000, p. 431), contudo, a tarefa visava impedir que a memória dos mortos

fosse dessacrada e, assim, pudesse manter vivos os princípios que os mobilizaram e

pelos quais lutaram. A que cabe a Bolaño, escrevendo tardiamente, em uma época

atravessada pelo cinismo, é de outra natureza, mais complicada. Como fazer uma

declaração amorosa a uma geração que não apenas foi derrotada, mas que se converteu

em algoz de si própria? Me parece que muito da força poética desse escritor chileno –

de berço ao menos – vem do confronto entre a necessidade, pessoal e geracional, de

levar à frente uma missão redentora e a consciência amarga de uma mácula que, a

princípio, lhe tolhe o movimento.

E qual é natureza dessa derrota? A perfeição, clareza e debilidade de

pensamento de que é feita a literatura contemporânea é a resposta de Bolaño (2003) em

“Los mitos de Chtulhu”, uma conferência ministrada em Barcelona. Constatar a ironia

da escolha é apenas repisar o óbvio – uma ironia que, de modo geral, dá o tom de parte

do ensaio: “Deixai-me que nesta época sombria comece com uma afirmação cheia de

esperança. O estado atual da literatura de língua espanhola é muito bom! Perfeito!

[¡lnmejorable!] Ótimo!” (Idem, p. 159). Naturalmente, o signo do sucesso aqui não é

bem a escrita de qualidade – a que assume o perigo de “meter a cabeça no escuro” e de

“saltar no vazio” (BOLAÑO in MANZONI, 2006, p. 211) –, mas a sua dimensão

2 Sempre que possível, busquei a tradução brasileira dos livros de Roberto Bolaño, que é a que segue indicada na bibliografia. Todas as traduções de livros em língua estrangeira foram feitas por mim.

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fantasgoricamente mercadológica: “Essa legibilidade lhe permite [a Pérez-Reverte,

escritor espanhol] ser não só o mais perfeito, mas também o mais lido. Quer dizer: o que

mais livros vende” (BOLAÑO, 2003, p. 160). Não é de se estranhar, portanto, que a

face real da perfeição, da clareza e da debilidade de pensamento, a tríade mágica que

garante ao escritor tanto quanto ao livro o espaço necessário na vitrine sem o qual não

há consumo, não possa ser outra que não a da barbárie mesma: “Hitler, por exemplo, é

um ensaísta ou um filósofo, como queirais chamá-lo, de pensamento fraco [pensamiento

débil]. Se lhe entende tudo!” (Idem, p. 165).

À primeira vista, há de parecer no mínimo ambígua a postura crítica de Bolaño,

que faz o elogio da derrota de um tipo de literatura, a sua, no momento mesmo em que é

premiado por ela. Mas o que está em jogo aqui é a ideia de que a literatura possa ser

reduzida ao reconhecimento desse tipo de instância, a premiação, cuja lógica

competitiva lhe é estranha. Daí que não creia estar forçando a nota ao afirmar que o tom

irônico – um uso sempre arriscado da linguagem – do seu discurso de recebimento seja

inclusive mais crítico do que a inocência de um possível absenteísmo. Mais: ao aceitá-

lo, Bolaño indica ainda a dimensão objetiva e inescapável da derrota, um rebaixamento

de que ele e sua obra também fazem parte.

Embora não seja bem esse o foco do seu trabalho, Idelber Avelar nos dá um

bom caminho para pensarmos esse novo paradigma, construído durante o período

ditatorial que varreu o subcontinente latino-americano. De modo a melhor situar o que

de fato lhe interessa – “pensar o estatuto da memória em tempos de mercado”

(AVELAR, 2003, p. 13) –, Avelar localiza no dia 11 de setembro de 1973 um momento

crucial na história política e cultural da América Latina. O golpe de estado que

bombardeou o palácio de La Moneda encerrou, de maneira abrupta e sangrenta, dois

movimentos emancipatórios que visavam, cada um a seu modo, pôr fim à nossa

centenária dependência. Por um lado, o político, se encerrava o breve sonho do projeto

popular alternativo de Salvador Allende; por outro, se esgotava uma concepção de

literatura muito própria, conhecida como boom, que, pela primeira vez, inverteu o sinal

da influência cultural em relação à Europa.

Nesse sentido, as ditaduras que se instalaram por aqui, antes de depois da

chilena, devem ser lidas em dupla chave: primeiro, como uma ruptura com os modelos

vigentes entre as décadas de 1920 e 1970, que significaram a implosão de qualquer

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visão do Estado como motor do desenvolvimento e garantidor de direitos, em prol de

um mercado transnacional e intangível. Depois, ao servirem como “instrumentos de

uma transição epocal do Estado ao Mercado” (Idem, p. 21), elas dão sequência, com

sinal trocado, ao impulso modernizador de antes, agora regido por um ímpeto mais

conservador, autoritário e violento. Isso quer dizer que as sociedades latino-americanas

foram redirecionadas noutro sentido, integradas de maneira mais consistente ao que

Roberto Schwarz (1999, p. 57) chamou de “movimento geral da modernização

capitalista.”3

Dupla chave, é verdade, mas que abre uma mesma porta, levando ao que

Bolaño (2003, p. 170) denomina de “mecânica do esquecimento”. Essa época

pretensamente glamorosa transformou o escritor numa celebridade desejosa de

respeitabilidade, cujos males são curados na caríssima e prestigiosa Clínica Mayo, em

Nova York, e reduziu a literatura à ideia de “êxito, êxito social, claro, quer dizer

grandes tiragens, traduções para mais de trinta idiomas” (Idem, p. 171) Seu preço, nada

inocente, é a inserção da arte na lógica vorazmente substitutiva do mercado. Aqui só o

novo importa, descartando na lata de lixo da história e da memória tudo o que, por

velho, não é mais capaz de dar lucro: “A obra de Reinaldo Arenas já está perdida. A de

Puig, a de Copi, a de Roberto Arlt. Ninguém mais lê Ibargüengoitia” (Idem, p. 170).

2.

Como bem apontou Patricia Espinosa (in MANZONI, 2006, p. 127), se há um

tipo que preocupa constantemente a Roberto Bolaño, esse é o da “figura do [...]

decadente, geralmente vinculado à literatura e ‘mais pobre que um rato’” – num certo

sentido, que eu estou tentando apresentar aqui, o derrotado pelo novo arauto do sucesso

literário, o mercado. Esse processo, contudo, não é desprovido de tensões e

complexidades, às quais Bolaño dá forma em “Sensini”, primeiro conto de Chamadas

3 Esse processo de inserção das economias periféricas no concerto do mundo capitalista pode ser pensado,

como o faz Idelber Avelar (2003), como um projeto das ditaduras latino-americanas: “A nação não vai se

formar, as suas partes vão se desligar umas das outras, o setor ‘avançado’ da sociedade brasileira já se

integrou à dinâmica mais moderna da ordem internacional e deixará cair o resto” (SCHWARZ, 1999, p.

57). Ainda sobre esse deslocamento dos modelos vigentes entre as décadas de 1920 e 1970, que

significou a implosão de qualquer visão hegemônica do Estado em prol de um mercado transnacional e

intangível, acarretando na mudança de certos paradigmas epistemológicos, cf. CANCLINI (2008), em

especial o terceiro capítulo, “Desenvolvimento com dívidas, abertura sem rumo”, p. 41-57.

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telefônicas. Aqui nos deparamos com dois daqueles tipos, que lidam, a seu modo, com a

derrota e a marginalização a que estão submetidos. O narrador, um jovem solitário que

vive precariamente de empregos informais, encontra – nas páginas do livro no qual

foram publicados os contos dos ganhadores do Concurso Nacional de Literatura de

Alcoy – com outro premiado, Luis Antonio Sensini, um escritor argentino exilado em

Madri. Dessa coincidência nasce uma troca afetuosa de cartas, em que se evidenciam

duas posturas frente ao mesmo fato social, que é o de ter que vender a literatura como

forma de sobrevivência.

Sensini, mais velho e mais curtido pela vida, assume a posição de conselheiro,

embora a direção do processo formativo que desempenha seja a do rebaixamento da

experiência literária. Se ao narrador sobrava ainda algum escrúpulo de não “enviar à

luta com os leões (ou com as hienas) o que eu fazia melhor” (BOLAÑO, 2012, p. 14),

ou seja, sua poesia; Sensini, por sua vez, havia se tornado um “profissional” dos

concursos, um dos “caçadores de recompensas” (Idem, p. 29), como lhe foi

confidenciado pela filha do escritor argentino num encontro rápido que tiveram nos

arredores de Girona. “[Ele, Sensini] me instava a perseverar, mas não, como a princípio

entendi, a perseverar na escritura e sim a perseverar nos concursos [...]” (Idem, p. 16). A

carta, parafraseada pelo narrador, prossegue ainda com mais duas dicas de concursos,

Plasencia e Écija, seguidas de seus respectivos prêmios, 25.000 e 30.000 pesetas, e

termina com uma breve frase: “Coragem e mãos à obra” (Idem, p. 17).4

O horizonte de possibilidades da literatura contemporânea é inescapável, e

mesmo aqueles que não gozam de suas benesses – editores, traduções, grandes tiragens,

dinheiro etc. – funcionam segundo a lógica mercadológica que os marginaliza. A

perseverança não se faz em nome da necessidade pessoal de se continuar a escrever a

despeito das adversidades, mas das recompensas dos concursos; o valor não é medido

pela qualidade do trabalho, mas de maneira precisa, em milhares de pesetas, e assim por

diante. Contudo, é esse mesmo rebaixamento, que rouba o significado ao que faz, que é

capaz de sustentá-lo. A banalização da escrita, por exemplo, se reflete na banalização

das leituras, seja a do público geral, “invisíveis”, a quem se destinam obras de

prefeituras, seja dos jurados, que “não liam as obras apresentadas ou as liam por alto ou

4 A escolha do tradutor tem lá sua função, que é a de dar à carta de Sensini o tom mais informal, que

marcava a correspondência entre ambos. A leitura do que se segue, contudo, depende do original em

espanhol, que era “Valor y a trabajar” (BOLAÑO, 1997, p. 16).

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as liam mais ou menos” (Idem, p. 19). Assim, sequer a escrita carece de escrúpulos (e

quem o tem quando o que está em jogo é vender as coisas no mercado?). Sensini

participava, sem medo de ser descoberto, do maior número possível de concursos com o

mesmo conto: bastava-lhe mudar os títulos, e “Ao amanhecer” tornava-se “Os

gaúchos”, que, por sua vez, noutra ocasião, virava um outro conto, cujo título é bastante

expressivo da ironia de Bolaño, “Sem remorsos” (Idem, ibidem).

Mas o mercado é apenas um dos dois mecanismos de produção de

esquecimento. O outro – sem o qual, é possível, o primeiro não tivesse tido o mesmo

impulso e penetração – é a violência ditatorial: Sensini tem um filho, Gregorio,

desaparecido durante os anos de ferro da Argentina. Depois de notícias sobre o possível

paradeiros dos seus restos mortais num cemitério clandestino, Sensini decide voltar para

a Argentina, “que com a democracia ninguém mais ia impedi-lo de fazer o que quer que

fosse e que portanto era inútil permanecer mais tempo fora” (Idem, p. 25), parafraseia o

narrador a carta que interrompe a correspondência. Mesmo filtrado, o tom é decidido,

otimista até. Enfatiza a expectativa de que a restauração democrática instaure alguma

espécie de compensação, afetiva e econômica, abrindo novos caminhos, mais

significativos, para os expurgos do arbítrio ditatorial.

A Sensini, contudo, não coube nada. Poucos anos depois de encerrada a troca

de cartas, já sabendo inclusive da sua morte em Buenos Aires, o narrador recebe a visita

inesperada de Miranda, a filha espanhola de Sensini, que, sem dinheiro, viaja para a

Itália à base de caronas e hospedagens em casa de conhecidos. Por ela é que tomamos

conhecimento dos últimos anos do pai: de Gregório, nada conclusivo. Apenas um

exame de DNA poderia garantir que algum dos corpos amontoados era de seu filho, o

que não foi feito por falta de dinheiro ou interesse político. A burocracia e os rancores

antigos o impediram de conseguir o emprego que tentou na universidade. Ou seja, a

vida de Sensini numa Argentina democrática foi “[i]gual aqui, disse Miranda, igual em

Madri, igual em toda parte” (Idem, p. 27). Como veremos adiante, Bolaño tem plena

consciência de que não se pode simplesmente igualar os tempos ditatoriais aos

democráticos. O que ele faz nesse momento, contudo, é apontar como a existência desta

não significa que aquela foi superada por completo. A “transição epocal” de que fala

Avelar (2003, p. 24) é bem essa passagem de um tempo para outro, que não deve ser

pensada sob o signo da vitória, mas, pelo contrário, de derrota – uma derrota que aciona

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o funcionamento desse aparato tecnológico de produção em massa de esquecimento, do

qual Sensini é vítima paradigmática.

3.

Como projeto de modernização, alternativo e democrático, o boom literário do

subcontinente não vingou. A adequação ao passo dos países centrais se deu antes por

meio do arbítrio autoritário, que acelerou nossa inserção no mundo do mercado. Não é

de se admirar, portanto, que, nesse contexto, autores como Gabriel García Márquez

passem a ter seu êxito medido por essa outra régua, a das tiragens, traduções e prêmios,

ainda mais quando este é o mais cobiçado de todos, o Nobel, respeitado não exatamente

pela sua capacidade de separar o joio do trigo literário, mas pela quantidade de dinheiro

que joga na corrida. Mas se há uma vertente literária que teve dificuldade de ser

apropriada pelo mercado, esta é a das vanguardas. Quem sabe não estaria na sua

capacidade de chocar o bom senso – isto é, na sua imperfeição e obscuridade – a

possibilidade de “construir espaços nos quais o saber e a criação possam desenvolver-se

com autonomia” (CANCLINI, 1997, p. 32), os quais Bolaño tanto buscou?

Mas as vanguardas tardias (e a aporia aqui é intencional) têm um sério

problema a enfrentar. Para surtir qualquer espécie de efeito na sensibilidade já bastante

desgastada dos homens e mulheres contemporâneos, o choque que serve de contraponto

à racionalidade, ao bem-estar burguês e à desumanização proporcionada pelo

desenvolvimento industrial e urbano (cf. Idem, p. 42) precisa ser cada vez mais radical,

beirando ela mesma a barbárie:

O aprendizado [dos Escritores Bárbaros] se fazia em dois passos

aparentemente simples. O confinamento e a leitura. Para a primeira

etapa era preciso comprar comida suficiente para uma semana, ou

então ficar em jejum. [...] O segundo passo era mais complicado.

Segundo [Raoul] Delorme [líder do grupo], era preciso se fundir com

as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa:

defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as

páginas de Victor Hugo, masturbando-se e espalhando o esperma

sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de

Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com

lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de

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Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de

degradação que Delorme chamava humanização (BOLAÑO, 2009, p.

126).

Raoul Delorme é um escritor que publica seus trabalhos em revistas de inclinações

nazistas, o que marca bem o lugar, ao mesmo tempo irônico e paradoxal, que Bolaño

escolhe para tratar do assunto. Como vimos, o autor de Estrela distante é um crítico

mordaz da domesticação da literatura, tendo em vista a vendagem e a respeitabilidade

do escritor. A tomarmos a fala de Carmem Boullosa (in MANZONI, 2006, p. 112), um

quase iconoclasta ele mesmo:

[Os infrarrealistas, grupo a que Bolãno pertencia] [e] eram o terror do

mundo literário. Eu à época fazia parte dos sérios [de los solemnes]

[...], gostava das formalidades de leitura de poesia, coquetéis, essas

coisas cheias de códigos que de alguma maneira me sujeitavam, e

vocês eram os terroristas também dessas formalidades.

Contudo, quando posta sob o signo do nazismo, a absorção do patrimônio cultural do

Ocidente, que os Escritores Bárbaros não recusam, assume ares de devastação. E essa

humanização pela degradação parece ser um limite que Bolaño se recusa a ultrapassar –

um limite a partir do qual a vanguarda perde seu caráter renovador e se converte num

processo meramente destrutivo.

No mais, esse movimento depende de uma certa normalidade burguesa, uma

respeitabilidade a que possa chocar. A vanguarda tardia latino-americana, por sua vez,

ainda se via frente a outro dilema, para dizer o mínimo:

Meses depois, um amigo me contou que durante uma festa na casa de

Maria Canales um dos convidados tinha se perdido. [...] Também

soube, anos depois, enquanto observava as nuvens se esfarelando e se

fragmentando e explodindo no céu do Chile como jamais fariam as

nuvens de Baudelaire, que o sujeito que se perdeu pelos corredores

traiçoeiros da casa nos confins de Santiago foi um teórico da cena de

vanguarda, um teórico com grande senso de humor, que, ao se perder,

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não se intimidou, pois ao seu senso de humor acrescentava uma

curiosidade natural, e, quando se viu perdido no porão de María

Canales e se conscientizou disso, não teve medo, ao contrário, viu

despertar seu espírito trocista, abriu a porta, pôs-se até a assobiar, e

finalmente chegou ao último quarto no corredor mais estreito do

porão, o único que estava iluminado por uma lâmpada fraca e viu o

homem amarrado numa cama metálica, de olhos vendados, e soube

que o homem estava vivo porque o ouviu respirar, embora seu estado

físico não fosse bom, pois, apesar da luz deficiente, viu suas feridas,

suas supurações, como eczemas, mas não eram eczemas, as partes

maltratadas da sua anatomia, as partes inchadas, como se tivesse mais

de um osso quebrado, mas respirava, de maneira nenhuma parecia a

ponto de morrer, e depois o teórico da cena de vanguarda fechou

delicadamente a porta, sem fazer barulho, e começou a procurar o

caminho de volta à sala, apagando às suas costas as luzes que tinha

acendido (BOLAÑO, 2004, p. 110).

Antes de entrar na citação, vale apontar seu caráter capcioso. O “teórico da cena de

vanguarda” em questão não é a personificação de nenhuma pessoa específica: pode ser

tanto um homem quanto uma mulher – “pois não ficou claro seu sexo” (Idem, p. 110) –;

pode nem mesmo ter sido um teórico, mas “um autor de teatro ou talvez um ator”

(Idem, p. 111). Para piorar uma memória que já não parece ser de muita valia, as

informações ainda lhe chegam desencontradas: “Mais tarde, quanto mais tarde?, não sei,

contou a um amigo, e este contou ao meu amigo, que muito mais tarde me contou”

(Idem, p. 109-110). Se a certeza nos detalhes parece faltar, o evento em si – o confronto

do vanguardista (ou da vanguardista), teórico, autor ou ator, não importa, com a

realidade brutal da tortura –, pela própria repetição num curto espaço de tempo,

apresenta uma dimensão inconteste:

Estava muito bêbado, ou estava muito bêbada, pois não ficou claro seu

sexo, e saiu à procura do banheiro ou do water, como também dizem

alguns dos meus desditosos compatriotas. [...] Finalmente chegou a

um corredor mais estreito que todos os outros e abriu uma porta. Viu

uma espécie de cama metálica. Acendeu a luz. Sobre a cama havia um

homem nu, amarrado pelos pulsos e tornozelos. Parecia dormir, mas

essa observação é difícil de verificar, pois uma venda lhe cobria os

olhos. O extraviado ou extraviada, sumida instantaneamente a

bebedeira, fechou a porta e tornou em silêncio sobre seus passos.

Quando chegou à sala, pediu um uísque, depois outro, e não disse

nada (Idem, p. 109).

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A representação da vanguarda na qual Bolaño se detém gira ao redor da relação

entre a dimensão estética, o estranhamento típico daquela corrente, e seu pressuposto

social, isto é, a realidade de um país vivendo sob um estado de exceção. Como é

possível que a vanguarda choque e, portanto, renove a realidade cotidiana quando esta,

pela sua violência, parece estar além da possibilidade de qualquer espécie de

verbalização? E não é outro o movimento das duas passagens. Nelas, o caminho de ida é

realizado sob o signo de um conjunto de elementos de vanguarda (o estar perdido num

espaço que não se conhece, o senso de humor, a curiosidade, a troça com que se lida

com a situação ou mesmo a bebedeira e sua percepção alterada do mundo ao seu redor);

o choque da realidade – o corpo seviciado – só é capaz, no caminho de volta, de

produzir o silêncio e a necessidade de se apagar os rastros e, consequentemente, a sua

própria responsabilidade ante ao que viu. Acrescente-se a isso a contiguidade espacial

com o arbítrio – a boa sociedade artística se reúne (inocentemente?) no mesmo lugar em

que se torturam pessoas – e a própria dimensão legitimada, bem posta à sua maneira, do

grupo que se arvora ao status de contestador, e teremos as limitações que a máquina de

produção de esquecimento impõe à vanguarda.

4.

No fracasso da tentativa de renovação da vanguarda, cujo resultado é antes a

assunção de uma postura meramente destrutiva ou ainda na sua impossibilidade de

chocar em contexto de terror ditatorial, não é de se estranhar que um retorno à obra das

principais figuras do boom literário latino-americano, ao seu engajamento e à sua

promessa de emancipação pelas letras surja como uma estratégia óbvia para escaparmos

ao que vimos chamando, na esteira do próprio Bolaño, de “mecânica do esquecimento”.

Contudo, não há em Bolaño a ingenuidade de que o projeto do boom foi simplesmente

abortado, mas uma consciência mordaz de suas implicações contemporâneas, seja no

plano literário – “Deus abençoe aos filhos tarados de García Márquez e aos filhos

tarados de Octavio Paz, pois eu sou o responsável por tais deslumbramentos”

(BOLAÑO, 2003, p. 173, grifos meus) –, seja num outro, político e social –

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Deus abençoe os campos de concentração para homossexuais de Fidel

Castro e aos vinte mil desaparecidos da Argentina e a desfaçatez

perplexa de Videla e o sorriso de macho ancião de Perón que se

projeta até o céu e aos assassinos de crianças do Rio de Janeiro e ao

castelhano que usa Hugo Chávez, que fede a merda e é a merda que eu

criei (Idem, ibidem, grifos meus)

– da qual ele é herdeiro e continuador. Por sinal, é essa mesma consciência de certa

forma culpada, que se move entre o reconhecimento de uma derrota fragorosa e a dor de

lhe ser cúmplice de alguma forma, que vai criar, em Estrela distante, uma superposição

identitária entre o próprio narrador e Carlos Wieder, o facínora responsável pela

renovação brutal da poesia chilena pós-ditatorial:

Então Carlos Wieder chegou e se sentou junto à janela, a três mesas de

mim. Por um instante (no qual senti que desmaiava), enxerguei a mim

mesmo quase colado nele, olhando por cima do seu ombro, um

horrível irmão siamês, o livro que acabava de abrir [...].

[...] Olhava o mar e fumava e de vez em quando dava uma olhada

no seu livro. Igual a mim, percebi alarmado, e apaguei o cigarro e

procurei mergulhar nas páginas do meu livro (BOLAÑO, 2009, p.

138).

Mas voltemos a “Los mitos de Chtulhu”, citado logo no início desse ensaio, em

que Bolaño ironiza a si mesmo e às crias de García Marquéz e Octavio Paz. A estratégia

da sua abordagem será essa: um processo amplo de desmistificação, do qual não poupa

nem a si mesmo, nem as figuras fundadoras da literatura latino-americana moderna;

uma abordagem que, ademais, lhe permite estabelecer uma perspectiva crítica a partir da

qual vislumbra a falência dos ideais emancipatórios que regeram as artes do

subcontinente ao longo de boa parte do século XX.

A maneira como constrói simbolicamente a figura do poeta Pablo Neruda em

seus escritos talvez seja o melhor lugar para percebermos a direção de sua crítica. E as

razões da escolha são muitas: Neruda é chileno, seu compatriota, ícone do mainstream

literário, poeta (aquilo que, segundo a formulação do narrador de “Sensini”, como é o

melhor que um escritor faz, não se coloca para lutar com as hienas), além de que, tendo

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morrido logo depois do golpe de Pinochet, está quase que mitologicamente conectado

ao sonho socialista de Salvador Allende, em cujo governo colaborou. O espaço social

do encontro do autor de Veinte poemas de amor e Sebastián Urrutia Lacroix, narrador

de Noturno do Chile e colaboracionista durante o período ditatorial, na fazenda de um

crítico literário conservador (Farwell) é reveladora:

Lá estava Neruda, alguns metros atrás estava eu, e, entre os dois, a

noite, a lua, a estátua eqüestre, as plantas, as madeiras do Chile, a

escura dignidade da pátria. [...] Lá estava Neruda, recitando versos

para a lua, para os elementos da terra e para os astros, cuja natureza

desconhecemos mas intuímos. [...] Lá estava Neruda, segredando

palavras cujo sentido me escapava mas com cuja essencialidade

comunguei desde o primeiro instante. E lá estava eu, com lágrimas

nos olhos, um pobre clérigo perdido nas vastidões da pátria,

desfrutando gulosamente as palavras do nosso mais excelso poeta

(BOLAÑO, 2004, p. 19).

Exatamente como as reuniões aprazíveis na casa de María Canales escondiam, nos porões

mal iluminados, a brutalidade da tortura, há também aqui uma contiguidade entre esse

quadro de comunhão quase metafísica e uma outra realidade, mais sórdida. Desta vez,

contudo, quem se bate com ela não é o objeto da crítica – o vanguardista ou, nesse caso,

Neruda –, mas o próprio narrador. Poucos momentos antes do encontro descrito acima,

Sebastián Urrutia havia se perdido numa caminhada pela fazenda, durante a qual acabou

topando com uns empregados, que viviam numa cabana situada além dos limites dos

jardins bem cuidados de Farwell. A pintura desse quadro é inteiramente diferente do

outro: do sublime ao descaso com a realidade concreta e precária da vida:

E alguém falou de uma criança doente, mas com tal dicção que não

entendi se a criança estava morrendo ou já tinha morrido. Para que

precisavam de mim? A criança estava morrendo? Chamassem um

médico. A criança já tinha morrido fazia tempo? Rezassem então uma

novena à Virgem (Idem, 17).

Que tenha sido Urrutia e não Neruda quem se deparou reorganiza o sentido da

crítica, mas não a anula. Não é mais a questão da incapacidade de representar a

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brutalidade por uma poética que se quer chocante, e sim a relação entre o engajamento

político à esquerda, o viés romântico de um determinado tipo de poesia e o seu

ancoramento no mundo mais chão que está em questão aqui. Postas ambas as passagens

lado a lado, o encontro revela o que possui de irônico. De costas para a realidade

material e miserável dos camponeses chilenos, que certamente não desconhece e contra

a qual se mobilizou, confortavelmente instalado no “transatlântico na noite austral”

(Idem, p. 18), que era a bela e iluminada casa de Farwell, e envolto pela cantilena quase

hipnótica do padre Urrutia, Neruda perde sua veste de poeta revolucionário e ganha

outra, moralmente andrajosa, marcada por um essencialismo e um distanciamento do

mundo que o identifica a esse universo elitista e fechado que é o do conservadorismo do

crítico literário, seu anfitrião.

Mas Bolaño não para aí. Em “Carnet de baile”, conto coligido em Putas

assassinas, Neruda é retomado:

66. Como à Cruz, devemos voltar a Neruda com os joelhos

ensangüentados, os pulmões perfurados, os olhos cheios de lágrimas?

67. Quando nossos nomes não significarem mais nada, seu nome

continuará brilhando, continuará pairando sobre uma literatura

imaginária chamada literatura chilena. 68. Todos os poetas, então,

viverão em comunidades artísticas chamadas cárceres ou manicômios.

69. Nossa casa imaginária, nossa casa comum (BOLAÑO, 2008, p.

210).

A bem da verdade, não é o Pablo Neruda poeta o centro dessa passagem, que se detém

antes na apropriação enviesada de sua obra: “62. [...] Se Neruda fosse o desconhecido

que no fundo de fato é! 63. No porão do que chamamos ‘Obra de Neruda’ espreita

Ugolino, disposto a devorar seus filhos?” (Idem, p. 209). O fundamental aqui para

Bolaño é pôr em xeque essa imagem sacralizada do poeta seu compatriota, exatamente

como fez em Noturno do Chile, cuja devoção é, em grande medida, paralisante.

A dimensão canônica que a obra de Neruda assume tem ainda uma outra

função, que é apagadora. A ela só se chega em romaria, cujo signo é o da expiação.

Idelber Avelar (2009, p. 136) já escreveu, com propriedade, que o cânone é um “pacto

valorativo” que se estabelece ao redor de um conjunto de valores, capazes, por diversas

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razões, de se constituírem como hegemônicos. A apropriação enviesada de Neruda

passa a funcionar, assim, como o centro desse pacto, que constitui o núcleo de sentido –

como todos, socialmente construído e ideologicamente direcionado – da comunidade

imaginária chilena pós-ditatorial. Não é de se admirar que a “transição epocal” por que

passa o Chile na década de 1990 tenha sido feita por uma coalizão em que esquerda e

cristianismo se reúnem, sem questionar a fundo o legado de Pinochet, para fazer a

transição necessária para a sociedade de mercado. (Uma reunião que lembra a cena da

fazenda de Farwell, um espaço conservador e atravessado pela desigualdade material

em que o poeta comunista e o padre católico se encontram pela primeira vez.)

Naturalmente, não é que o pacto valorativo hegemônico que se apropria da obra de

Neruda não permita juízos discordantes. A eles, contudo, resta o estigma da

transgressão (com a razão ou com as leis), que deve ser devidamente silenciada e, se

possível, esquecida.

5.

Ao caminhar para a conclusão, sugiro um rápido retorno a “Sensini”, o conto

que nos colocou a lógica da derrota. Paramos faltando poucas páginas para o final,

quando Miranda, em suas andanças sem dinheiro rumo à Itália, pernoita na casa do

narrador, antigo correspondente do pai. E as notícias, como vimos, não poderiam ser

mais desalentadoras. O retorno à Argentina pós-ditatorial não lhe traz nenhum dos

alívios possíveis: não localiza a ossada do filho morto, assim como tampouco consegue

o emprego que buscava, ficando, outra vez, à mercê de trabalhos mal-remunerados. Ou,

na síntese melancólica de Miranda, a mesma vida, “igual em Madri, igual em toda

parte” (BOLAÑO, 2012 p. 27). Depois disso, a morte.

O cenário não poderia ser mais desolador e, como, quando muito, restam

apenas 15 linhas para o fim, nenhuma grande viravolta parece se anunciar. E, de fato,

nada de extraordinário acontece, exceto uma breve mudança de percepção:

Enchi seu copo, enchi o meu, e ficamos um tempo admirando a cidade

iluminada pela lua. De repente me dei conta de que já estávamos em

paz, de que por alguma razão misteriosa tínhamos conseguido juntos

ficar em paz e que daí em diante as coisas imperceptivelmente

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começariam a mudar. Como se o mundo de verdade se movesse

(Idem, p. 29-30, grifos meus).

Mas essa paz tem uma outra dimensão, que, se não se percebe aqui, fica mais clara em

Detetives selvagens.

6.

Limitada por uma série de injunções históricas sobre as quais nem ele nem

ninguém tem controle, sem o recurso de uma ascendência a qual se possa filiar e que,

assim, lhe preencha de sentido suas ações contemporâneas e, por fim, esvaziados os

projetos de suas promessas emancipatórias, o que resta é, na verdade, a dúvida de que

exista algum lugar a partir do qual Roberto Bolaño (in MANZONI, 2006, p. 212) possa

levar à frente seu desejo de escrever “uma carta de amor ou de despedida à [sua] própria

geração” O que se vislumbra é a impossibilidade de libertação da palavra – e,

consequentemente, de todos que por ela são representados – de uma lógica voraz, na

qual o passado, marcado pelo signo da derrota, em certa medida vergonhosa até mesmo

para os vencedores, deve ser substituído – esquecido – por um presente que se escreve

de acordo com a retórica da perfeição, da clareza e da debilidade de pensamento. A

tecnologia de produção de esquecimento é inalienável, não deixa de ser o diagnóstico

sombrio de Bolaño. Contudo, por mais paradoxal que possa ser, o lugar de resistência,

ou de paz, não se faz em oposição a esse maquinário, e sim a partir delas: é exatamente

quando se está esquecido, à margem, que a palavra narrada assume um compromisso

íntimo entre aquele que se dispõe a escrever e o objeto sobre o qual se debruça.

Em meio ao fractal de vozes que compõe Detetives selvagens, uma se destaca,

a de Juan García Madero, cujos diários abrem e fecham o livro. E se destaca por dois

motivos: um, quantitativo, porque, dentre todas as vozes – salvo engano, 53 ao todo –, é

a que mais tem espaço. Das mais de 600 páginas da edição brasileira, quase um terço é

dominado unicamente por sua narração. Segundo, qualitativamente falando, porque o

gênero diário a que se dedica confere ao seu relato uma dimensão cotidiana,

microscópica, da história desse grupo, que destoa dos depoimentos cada vez mais

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distantes no tempo (situados entre janeiro de 1976 e dezembro de 1996) e no espaço (do

México a Israel), de que é recheado o miolo do livro.

Os detetives selvagens são, portanto, compostos de duas buscas distintas pelo

real-visceralismo mexicano: a primeira, narrada em detalhe por García Madero, é pela

poetisa Cesárea Tinajero, fundadora do movimento na década de 1920, e envolve toda

uma outra geração de poetas real-visceralistas, dentre os quais Arturo Belano e Ulises

Lima se destacam. A segunda busca, a do miolo do livro, é exatamente por esse grupo,

o dos admiradores de uma poetisa perdida nos desertos de Sonora. No momento

temporalmente mais distante do início das entrevistas, já no final da década de 1990,

nos deparamos com Ernesto García Grajales, acadêmico da Universidade de Pachuca e

auto-proclamado “o único estudioso dos real-visceralistas do México e, poderia até

dizer, do mundo. [...] Provavelmente sou o único a se interessar por esse tema. Quase

ninguém se lembra mais deles” (BOLÃNO, 2006, p. 563). Em seguida, ele segue

elencando o destino dos real-visceralistas da segunda geração. Um morreu, outra

escreve mas não publica, um outro anda metido em política:

Ulises Lima continua morando no DF. Nas férias passadas fui vê-lo.

Um espetáculo. [...] De Arturo Belano nada sei. Não, Belano eu não

conheci. Vários deles, aliás. Não conheci Müller nem Pancho

Rodríguez nem Pele Divina. Também não conheci Rafael Barrios.

Juan García Madero? Não, esse nome não me diz nada. Com certeza

nunca pertenceu ao grupo. Homem, se digo que sou a maior

autoridade no assunto, por alguma razão há de ser (Idem, p. 564, grifo

meu).

Em 1996 – vintes anos, portanto, após o fim da desastrosa busca por Cesárea Tinajero e

o início dessa outra, pelos remanescentes –, Ernesto Gracía Grajales, a maior autoridade

do mundo no assunto, ignora aquele que foi, para nós leitores – e que continuará sendo

quando retornarmos à sua voz na terceira e última parte do livro – o mais importante

narrador se não de todo o movimento real-visceralista, ao menos de sua desventurosa

empreitada e de sua consequente dissolução nos desertos de Sonora. E eis que se repõe

o paradoxo de Bolaño: a narrativa se preserva porque o responsável por ela foi

esquecido. Quando liberada da ciranda do mercado (e, no caso, da domesticação

acadêmica), ela se oferece a ser buscada pelos interessados. É o que fizeram Ulises

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Lima e Arturo Belano com Cesárea Tinajero, ela própria já esquecida na década de

1970; é o que faz aquele que, em busca de um grupo dissolvido e sem maior

importância no cenário oficial da literatura mexicana, coleta depoimentos ao redor do

mundo. Naturalmente, o encontro é impossível – mas é somente quando se decide fazê-

lo, independentemente do fracasso anunciado, que os nomes, esquecidos e derrotados,

além das suas próprias narrativas, passam a dizer alguma coisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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