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O que os nomes dizem:
Roberto Bolaño e o império dos “mecanismos de esquecimento”
Rodrigo Soares de CERQUEIRA1
Resumo
Este artigo busca discutir a obra do escritor chileno Roberto Bolaño a partir de uma
encruzilhada histórica, a saber, a transição do período ditatorial para o democrático,
feita sob o signo do mercado (AVELAR, 2003). Esse processo produz o que o próprio
Bolaño (2003, p. 170) denomina de “mecanismo de esquecimento”. Assim, o artigo
procede explicitando a lógica de funcionamento desse mecanismo e as estratégias para
tentar superá-lo.
Palavras-chave: Roberto Bolaño, ditadura, mercado, literatura latino-americana
Abstract
This paper intends to discuss the work of the Chilean novelist Roberto Bolaño from a
historical crossroad, namely, the passage from dictatorship to democracy, which was
obtained under the banner of the market (AVELAR, 2003). This process produces what
Bolaño (2003, p. 170) himself calls “mechanics of forgetfulness”. Thus, this paper
proceeds in order to explain how such mechanics function and which are the strategies
enlisted to overcome it.
Keywords: Roberto Bolaño, Dictatorship, Market, Latin-American Literature
Eu não quis mais prolongar a situação, logo o abordei e lhe
perguntei quem era ele, e ele disse sou Ulisses Lima, poeta real-
visceralista, o penúltimo poeta real-visceralista que resta no
México, tal qual, e a verdade, se quiserem que eu lhes diga, é
que seu nome não me dizia nada, apesar de na noite anterior,
por ordem de dom Octavio [Paz], eu ter consultado os índices
de mais de dez antologias de poesia recente e não tão recente,
entre elas a famosa antologia de Zarco em que estão
recenseados mais de quinhentos poetas jovens. Mas seu nome
não me dizia nada.
1 Pesquisador Pós-Doc (Sociologia/USP), bolsista Fapesp. CEP: 04105-062, São Paulo - SP. Email: [email protected].
Roberto Bolaño, Detetives selvagens
1.
Se Idelber Avelar (2003, p. 27) estiver correto – e a derrota for mesmo a
“determinação irredutível da [nossa] escrita literária” –, a perspectiva crítica,
contemporânea, desde a qual a apreciamos, não parece nada alentadora. Não é de se
estranhar, portanto, que Roberto Bolaño (in MANZONI, 2006, p. 212) tenha se
proposto a fazer da sua obra uma declaração de amor à sua geração, “a dos que
nascemos na década de cinquenta”,2 em certa medida herdeiros e continuadores de uma
mesma derrota, a qual ainda cabe especificar. Que se possa escrever, com apreço e
cuidado, desde o ponto de vista dos vencidos é tarefa de que não se duvida. Boa parte da
historiografia benjaminiana está assentada nessa vontade – necessidade até. Para Walter
Benjamin (2000, p. 431), contudo, a tarefa visava impedir que a memória dos mortos
fosse dessacrada e, assim, pudesse manter vivos os princípios que os mobilizaram e
pelos quais lutaram. A que cabe a Bolaño, escrevendo tardiamente, em uma época
atravessada pelo cinismo, é de outra natureza, mais complicada. Como fazer uma
declaração amorosa a uma geração que não apenas foi derrotada, mas que se converteu
em algoz de si própria? Me parece que muito da força poética desse escritor chileno –
de berço ao menos – vem do confronto entre a necessidade, pessoal e geracional, de
levar à frente uma missão redentora e a consciência amarga de uma mácula que, a
princípio, lhe tolhe o movimento.
E qual é natureza dessa derrota? A perfeição, clareza e debilidade de
pensamento de que é feita a literatura contemporânea é a resposta de Bolaño (2003) em
“Los mitos de Chtulhu”, uma conferência ministrada em Barcelona. Constatar a ironia
da escolha é apenas repisar o óbvio – uma ironia que, de modo geral, dá o tom de parte
do ensaio: “Deixai-me que nesta época sombria comece com uma afirmação cheia de
esperança. O estado atual da literatura de língua espanhola é muito bom! Perfeito!
[¡lnmejorable!] Ótimo!” (Idem, p. 159). Naturalmente, o signo do sucesso aqui não é
bem a escrita de qualidade – a que assume o perigo de “meter a cabeça no escuro” e de
“saltar no vazio” (BOLAÑO in MANZONI, 2006, p. 211) –, mas a sua dimensão
2 Sempre que possível, busquei a tradução brasileira dos livros de Roberto Bolaño, que é a que segue indicada na bibliografia. Todas as traduções de livros em língua estrangeira foram feitas por mim.
fantasgoricamente mercadológica: “Essa legibilidade lhe permite [a Pérez-Reverte,
escritor espanhol] ser não só o mais perfeito, mas também o mais lido. Quer dizer: o que
mais livros vende” (BOLAÑO, 2003, p. 160). Não é de se estranhar, portanto, que a
face real da perfeição, da clareza e da debilidade de pensamento, a tríade mágica que
garante ao escritor tanto quanto ao livro o espaço necessário na vitrine sem o qual não
há consumo, não possa ser outra que não a da barbárie mesma: “Hitler, por exemplo, é
um ensaísta ou um filósofo, como queirais chamá-lo, de pensamento fraco [pensamiento
débil]. Se lhe entende tudo!” (Idem, p. 165).
À primeira vista, há de parecer no mínimo ambígua a postura crítica de Bolaño,
que faz o elogio da derrota de um tipo de literatura, a sua, no momento mesmo em que é
premiado por ela. Mas o que está em jogo aqui é a ideia de que a literatura possa ser
reduzida ao reconhecimento desse tipo de instância, a premiação, cuja lógica
competitiva lhe é estranha. Daí que não creia estar forçando a nota ao afirmar que o tom
irônico – um uso sempre arriscado da linguagem – do seu discurso de recebimento seja
inclusive mais crítico do que a inocência de um possível absenteísmo. Mais: ao aceitá-
lo, Bolaño indica ainda a dimensão objetiva e inescapável da derrota, um rebaixamento
de que ele e sua obra também fazem parte.
Embora não seja bem esse o foco do seu trabalho, Idelber Avelar nos dá um
bom caminho para pensarmos esse novo paradigma, construído durante o período
ditatorial que varreu o subcontinente latino-americano. De modo a melhor situar o que
de fato lhe interessa – “pensar o estatuto da memória em tempos de mercado”
(AVELAR, 2003, p. 13) –, Avelar localiza no dia 11 de setembro de 1973 um momento
crucial na história política e cultural da América Latina. O golpe de estado que
bombardeou o palácio de La Moneda encerrou, de maneira abrupta e sangrenta, dois
movimentos emancipatórios que visavam, cada um a seu modo, pôr fim à nossa
centenária dependência. Por um lado, o político, se encerrava o breve sonho do projeto
popular alternativo de Salvador Allende; por outro, se esgotava uma concepção de
literatura muito própria, conhecida como boom, que, pela primeira vez, inverteu o sinal
da influência cultural em relação à Europa.
Nesse sentido, as ditaduras que se instalaram por aqui, antes de depois da
chilena, devem ser lidas em dupla chave: primeiro, como uma ruptura com os modelos
vigentes entre as décadas de 1920 e 1970, que significaram a implosão de qualquer
visão do Estado como motor do desenvolvimento e garantidor de direitos, em prol de
um mercado transnacional e intangível. Depois, ao servirem como “instrumentos de
uma transição epocal do Estado ao Mercado” (Idem, p. 21), elas dão sequência, com
sinal trocado, ao impulso modernizador de antes, agora regido por um ímpeto mais
conservador, autoritário e violento. Isso quer dizer que as sociedades latino-americanas
foram redirecionadas noutro sentido, integradas de maneira mais consistente ao que
Roberto Schwarz (1999, p. 57) chamou de “movimento geral da modernização
capitalista.”3
Dupla chave, é verdade, mas que abre uma mesma porta, levando ao que
Bolaño (2003, p. 170) denomina de “mecânica do esquecimento”. Essa época
pretensamente glamorosa transformou o escritor numa celebridade desejosa de
respeitabilidade, cujos males são curados na caríssima e prestigiosa Clínica Mayo, em
Nova York, e reduziu a literatura à ideia de “êxito, êxito social, claro, quer dizer
grandes tiragens, traduções para mais de trinta idiomas” (Idem, p. 171) Seu preço, nada
inocente, é a inserção da arte na lógica vorazmente substitutiva do mercado. Aqui só o
novo importa, descartando na lata de lixo da história e da memória tudo o que, por
velho, não é mais capaz de dar lucro: “A obra de Reinaldo Arenas já está perdida. A de
Puig, a de Copi, a de Roberto Arlt. Ninguém mais lê Ibargüengoitia” (Idem, p. 170).
2.
Como bem apontou Patricia Espinosa (in MANZONI, 2006, p. 127), se há um
tipo que preocupa constantemente a Roberto Bolaño, esse é o da “figura do [...]
decadente, geralmente vinculado à literatura e ‘mais pobre que um rato’” – num certo
sentido, que eu estou tentando apresentar aqui, o derrotado pelo novo arauto do sucesso
literário, o mercado. Esse processo, contudo, não é desprovido de tensões e
complexidades, às quais Bolaño dá forma em “Sensini”, primeiro conto de Chamadas
3 Esse processo de inserção das economias periféricas no concerto do mundo capitalista pode ser pensado,
como o faz Idelber Avelar (2003), como um projeto das ditaduras latino-americanas: “A nação não vai se
formar, as suas partes vão se desligar umas das outras, o setor ‘avançado’ da sociedade brasileira já se
integrou à dinâmica mais moderna da ordem internacional e deixará cair o resto” (SCHWARZ, 1999, p.
57). Ainda sobre esse deslocamento dos modelos vigentes entre as décadas de 1920 e 1970, que
significou a implosão de qualquer visão hegemônica do Estado em prol de um mercado transnacional e
intangível, acarretando na mudança de certos paradigmas epistemológicos, cf. CANCLINI (2008), em
especial o terceiro capítulo, “Desenvolvimento com dívidas, abertura sem rumo”, p. 41-57.
telefônicas. Aqui nos deparamos com dois daqueles tipos, que lidam, a seu modo, com a
derrota e a marginalização a que estão submetidos. O narrador, um jovem solitário que
vive precariamente de empregos informais, encontra – nas páginas do livro no qual
foram publicados os contos dos ganhadores do Concurso Nacional de Literatura de
Alcoy – com outro premiado, Luis Antonio Sensini, um escritor argentino exilado em
Madri. Dessa coincidência nasce uma troca afetuosa de cartas, em que se evidenciam
duas posturas frente ao mesmo fato social, que é o de ter que vender a literatura como
forma de sobrevivência.
Sensini, mais velho e mais curtido pela vida, assume a posição de conselheiro,
embora a direção do processo formativo que desempenha seja a do rebaixamento da
experiência literária. Se ao narrador sobrava ainda algum escrúpulo de não “enviar à
luta com os leões (ou com as hienas) o que eu fazia melhor” (BOLAÑO, 2012, p. 14),
ou seja, sua poesia; Sensini, por sua vez, havia se tornado um “profissional” dos
concursos, um dos “caçadores de recompensas” (Idem, p. 29), como lhe foi
confidenciado pela filha do escritor argentino num encontro rápido que tiveram nos
arredores de Girona. “[Ele, Sensini] me instava a perseverar, mas não, como a princípio
entendi, a perseverar na escritura e sim a perseverar nos concursos [...]” (Idem, p. 16). A
carta, parafraseada pelo narrador, prossegue ainda com mais duas dicas de concursos,
Plasencia e Écija, seguidas de seus respectivos prêmios, 25.000 e 30.000 pesetas, e
termina com uma breve frase: “Coragem e mãos à obra” (Idem, p. 17).4
O horizonte de possibilidades da literatura contemporânea é inescapável, e
mesmo aqueles que não gozam de suas benesses – editores, traduções, grandes tiragens,
dinheiro etc. – funcionam segundo a lógica mercadológica que os marginaliza. A
perseverança não se faz em nome da necessidade pessoal de se continuar a escrever a
despeito das adversidades, mas das recompensas dos concursos; o valor não é medido
pela qualidade do trabalho, mas de maneira precisa, em milhares de pesetas, e assim por
diante. Contudo, é esse mesmo rebaixamento, que rouba o significado ao que faz, que é
capaz de sustentá-lo. A banalização da escrita, por exemplo, se reflete na banalização
das leituras, seja a do público geral, “invisíveis”, a quem se destinam obras de
prefeituras, seja dos jurados, que “não liam as obras apresentadas ou as liam por alto ou
4 A escolha do tradutor tem lá sua função, que é a de dar à carta de Sensini o tom mais informal, que
marcava a correspondência entre ambos. A leitura do que se segue, contudo, depende do original em
espanhol, que era “Valor y a trabajar” (BOLAÑO, 1997, p. 16).
as liam mais ou menos” (Idem, p. 19). Assim, sequer a escrita carece de escrúpulos (e
quem o tem quando o que está em jogo é vender as coisas no mercado?). Sensini
participava, sem medo de ser descoberto, do maior número possível de concursos com o
mesmo conto: bastava-lhe mudar os títulos, e “Ao amanhecer” tornava-se “Os
gaúchos”, que, por sua vez, noutra ocasião, virava um outro conto, cujo título é bastante
expressivo da ironia de Bolaño, “Sem remorsos” (Idem, ibidem).
Mas o mercado é apenas um dos dois mecanismos de produção de
esquecimento. O outro – sem o qual, é possível, o primeiro não tivesse tido o mesmo
impulso e penetração – é a violência ditatorial: Sensini tem um filho, Gregorio,
desaparecido durante os anos de ferro da Argentina. Depois de notícias sobre o possível
paradeiros dos seus restos mortais num cemitério clandestino, Sensini decide voltar para
a Argentina, “que com a democracia ninguém mais ia impedi-lo de fazer o que quer que
fosse e que portanto era inútil permanecer mais tempo fora” (Idem, p. 25), parafraseia o
narrador a carta que interrompe a correspondência. Mesmo filtrado, o tom é decidido,
otimista até. Enfatiza a expectativa de que a restauração democrática instaure alguma
espécie de compensação, afetiva e econômica, abrindo novos caminhos, mais
significativos, para os expurgos do arbítrio ditatorial.
A Sensini, contudo, não coube nada. Poucos anos depois de encerrada a troca
de cartas, já sabendo inclusive da sua morte em Buenos Aires, o narrador recebe a visita
inesperada de Miranda, a filha espanhola de Sensini, que, sem dinheiro, viaja para a
Itália à base de caronas e hospedagens em casa de conhecidos. Por ela é que tomamos
conhecimento dos últimos anos do pai: de Gregório, nada conclusivo. Apenas um
exame de DNA poderia garantir que algum dos corpos amontoados era de seu filho, o
que não foi feito por falta de dinheiro ou interesse político. A burocracia e os rancores
antigos o impediram de conseguir o emprego que tentou na universidade. Ou seja, a
vida de Sensini numa Argentina democrática foi “[i]gual aqui, disse Miranda, igual em
Madri, igual em toda parte” (Idem, p. 27). Como veremos adiante, Bolaño tem plena
consciência de que não se pode simplesmente igualar os tempos ditatoriais aos
democráticos. O que ele faz nesse momento, contudo, é apontar como a existência desta
não significa que aquela foi superada por completo. A “transição epocal” de que fala
Avelar (2003, p. 24) é bem essa passagem de um tempo para outro, que não deve ser
pensada sob o signo da vitória, mas, pelo contrário, de derrota – uma derrota que aciona
o funcionamento desse aparato tecnológico de produção em massa de esquecimento, do
qual Sensini é vítima paradigmática.
3.
Como projeto de modernização, alternativo e democrático, o boom literário do
subcontinente não vingou. A adequação ao passo dos países centrais se deu antes por
meio do arbítrio autoritário, que acelerou nossa inserção no mundo do mercado. Não é
de se admirar, portanto, que, nesse contexto, autores como Gabriel García Márquez
passem a ter seu êxito medido por essa outra régua, a das tiragens, traduções e prêmios,
ainda mais quando este é o mais cobiçado de todos, o Nobel, respeitado não exatamente
pela sua capacidade de separar o joio do trigo literário, mas pela quantidade de dinheiro
que joga na corrida. Mas se há uma vertente literária que teve dificuldade de ser
apropriada pelo mercado, esta é a das vanguardas. Quem sabe não estaria na sua
capacidade de chocar o bom senso – isto é, na sua imperfeição e obscuridade – a
possibilidade de “construir espaços nos quais o saber e a criação possam desenvolver-se
com autonomia” (CANCLINI, 1997, p. 32), os quais Bolaño tanto buscou?
Mas as vanguardas tardias (e a aporia aqui é intencional) têm um sério
problema a enfrentar. Para surtir qualquer espécie de efeito na sensibilidade já bastante
desgastada dos homens e mulheres contemporâneos, o choque que serve de contraponto
à racionalidade, ao bem-estar burguês e à desumanização proporcionada pelo
desenvolvimento industrial e urbano (cf. Idem, p. 42) precisa ser cada vez mais radical,
beirando ela mesma a barbárie:
O aprendizado [dos Escritores Bárbaros] se fazia em dois passos
aparentemente simples. O confinamento e a leitura. Para a primeira
etapa era preciso comprar comida suficiente para uma semana, ou
então ficar em jejum. [...] O segundo passo era mais complicado.
Segundo [Raoul] Delorme [líder do grupo], era preciso se fundir com
as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa:
defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as
páginas de Victor Hugo, masturbando-se e espalhando o esperma
sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de
Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com
lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de
Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de
degradação que Delorme chamava humanização (BOLAÑO, 2009, p.
126).
Raoul Delorme é um escritor que publica seus trabalhos em revistas de inclinações
nazistas, o que marca bem o lugar, ao mesmo tempo irônico e paradoxal, que Bolaño
escolhe para tratar do assunto. Como vimos, o autor de Estrela distante é um crítico
mordaz da domesticação da literatura, tendo em vista a vendagem e a respeitabilidade
do escritor. A tomarmos a fala de Carmem Boullosa (in MANZONI, 2006, p. 112), um
quase iconoclasta ele mesmo:
[Os infrarrealistas, grupo a que Bolãno pertencia] [e] eram o terror do
mundo literário. Eu à época fazia parte dos sérios [de los solemnes]
[...], gostava das formalidades de leitura de poesia, coquetéis, essas
coisas cheias de códigos que de alguma maneira me sujeitavam, e
vocês eram os terroristas também dessas formalidades.
Contudo, quando posta sob o signo do nazismo, a absorção do patrimônio cultural do
Ocidente, que os Escritores Bárbaros não recusam, assume ares de devastação. E essa
humanização pela degradação parece ser um limite que Bolaño se recusa a ultrapassar –
um limite a partir do qual a vanguarda perde seu caráter renovador e se converte num
processo meramente destrutivo.
No mais, esse movimento depende de uma certa normalidade burguesa, uma
respeitabilidade a que possa chocar. A vanguarda tardia latino-americana, por sua vez,
ainda se via frente a outro dilema, para dizer o mínimo:
Meses depois, um amigo me contou que durante uma festa na casa de
Maria Canales um dos convidados tinha se perdido. [...] Também
soube, anos depois, enquanto observava as nuvens se esfarelando e se
fragmentando e explodindo no céu do Chile como jamais fariam as
nuvens de Baudelaire, que o sujeito que se perdeu pelos corredores
traiçoeiros da casa nos confins de Santiago foi um teórico da cena de
vanguarda, um teórico com grande senso de humor, que, ao se perder,
não se intimidou, pois ao seu senso de humor acrescentava uma
curiosidade natural, e, quando se viu perdido no porão de María
Canales e se conscientizou disso, não teve medo, ao contrário, viu
despertar seu espírito trocista, abriu a porta, pôs-se até a assobiar, e
finalmente chegou ao último quarto no corredor mais estreito do
porão, o único que estava iluminado por uma lâmpada fraca e viu o
homem amarrado numa cama metálica, de olhos vendados, e soube
que o homem estava vivo porque o ouviu respirar, embora seu estado
físico não fosse bom, pois, apesar da luz deficiente, viu suas feridas,
suas supurações, como eczemas, mas não eram eczemas, as partes
maltratadas da sua anatomia, as partes inchadas, como se tivesse mais
de um osso quebrado, mas respirava, de maneira nenhuma parecia a
ponto de morrer, e depois o teórico da cena de vanguarda fechou
delicadamente a porta, sem fazer barulho, e começou a procurar o
caminho de volta à sala, apagando às suas costas as luzes que tinha
acendido (BOLAÑO, 2004, p. 110).
Antes de entrar na citação, vale apontar seu caráter capcioso. O “teórico da cena de
vanguarda” em questão não é a personificação de nenhuma pessoa específica: pode ser
tanto um homem quanto uma mulher – “pois não ficou claro seu sexo” (Idem, p. 110) –;
pode nem mesmo ter sido um teórico, mas “um autor de teatro ou talvez um ator”
(Idem, p. 111). Para piorar uma memória que já não parece ser de muita valia, as
informações ainda lhe chegam desencontradas: “Mais tarde, quanto mais tarde?, não sei,
contou a um amigo, e este contou ao meu amigo, que muito mais tarde me contou”
(Idem, p. 109-110). Se a certeza nos detalhes parece faltar, o evento em si – o confronto
do vanguardista (ou da vanguardista), teórico, autor ou ator, não importa, com a
realidade brutal da tortura –, pela própria repetição num curto espaço de tempo,
apresenta uma dimensão inconteste:
Estava muito bêbado, ou estava muito bêbada, pois não ficou claro seu
sexo, e saiu à procura do banheiro ou do water, como também dizem
alguns dos meus desditosos compatriotas. [...] Finalmente chegou a
um corredor mais estreito que todos os outros e abriu uma porta. Viu
uma espécie de cama metálica. Acendeu a luz. Sobre a cama havia um
homem nu, amarrado pelos pulsos e tornozelos. Parecia dormir, mas
essa observação é difícil de verificar, pois uma venda lhe cobria os
olhos. O extraviado ou extraviada, sumida instantaneamente a
bebedeira, fechou a porta e tornou em silêncio sobre seus passos.
Quando chegou à sala, pediu um uísque, depois outro, e não disse
nada (Idem, p. 109).
A representação da vanguarda na qual Bolaño se detém gira ao redor da relação
entre a dimensão estética, o estranhamento típico daquela corrente, e seu pressuposto
social, isto é, a realidade de um país vivendo sob um estado de exceção. Como é
possível que a vanguarda choque e, portanto, renove a realidade cotidiana quando esta,
pela sua violência, parece estar além da possibilidade de qualquer espécie de
verbalização? E não é outro o movimento das duas passagens. Nelas, o caminho de ida é
realizado sob o signo de um conjunto de elementos de vanguarda (o estar perdido num
espaço que não se conhece, o senso de humor, a curiosidade, a troça com que se lida
com a situação ou mesmo a bebedeira e sua percepção alterada do mundo ao seu redor);
o choque da realidade – o corpo seviciado – só é capaz, no caminho de volta, de
produzir o silêncio e a necessidade de se apagar os rastros e, consequentemente, a sua
própria responsabilidade ante ao que viu. Acrescente-se a isso a contiguidade espacial
com o arbítrio – a boa sociedade artística se reúne (inocentemente?) no mesmo lugar em
que se torturam pessoas – e a própria dimensão legitimada, bem posta à sua maneira, do
grupo que se arvora ao status de contestador, e teremos as limitações que a máquina de
produção de esquecimento impõe à vanguarda.
4.
No fracasso da tentativa de renovação da vanguarda, cujo resultado é antes a
assunção de uma postura meramente destrutiva ou ainda na sua impossibilidade de
chocar em contexto de terror ditatorial, não é de se estranhar que um retorno à obra das
principais figuras do boom literário latino-americano, ao seu engajamento e à sua
promessa de emancipação pelas letras surja como uma estratégia óbvia para escaparmos
ao que vimos chamando, na esteira do próprio Bolaño, de “mecânica do esquecimento”.
Contudo, não há em Bolaño a ingenuidade de que o projeto do boom foi simplesmente
abortado, mas uma consciência mordaz de suas implicações contemporâneas, seja no
plano literário – “Deus abençoe aos filhos tarados de García Márquez e aos filhos
tarados de Octavio Paz, pois eu sou o responsável por tais deslumbramentos”
(BOLAÑO, 2003, p. 173, grifos meus) –, seja num outro, político e social –
Deus abençoe os campos de concentração para homossexuais de Fidel
Castro e aos vinte mil desaparecidos da Argentina e a desfaçatez
perplexa de Videla e o sorriso de macho ancião de Perón que se
projeta até o céu e aos assassinos de crianças do Rio de Janeiro e ao
castelhano que usa Hugo Chávez, que fede a merda e é a merda que eu
criei (Idem, ibidem, grifos meus)
– da qual ele é herdeiro e continuador. Por sinal, é essa mesma consciência de certa
forma culpada, que se move entre o reconhecimento de uma derrota fragorosa e a dor de
lhe ser cúmplice de alguma forma, que vai criar, em Estrela distante, uma superposição
identitária entre o próprio narrador e Carlos Wieder, o facínora responsável pela
renovação brutal da poesia chilena pós-ditatorial:
Então Carlos Wieder chegou e se sentou junto à janela, a três mesas de
mim. Por um instante (no qual senti que desmaiava), enxerguei a mim
mesmo quase colado nele, olhando por cima do seu ombro, um
horrível irmão siamês, o livro que acabava de abrir [...].
[...] Olhava o mar e fumava e de vez em quando dava uma olhada
no seu livro. Igual a mim, percebi alarmado, e apaguei o cigarro e
procurei mergulhar nas páginas do meu livro (BOLAÑO, 2009, p.
138).
Mas voltemos a “Los mitos de Chtulhu”, citado logo no início desse ensaio, em
que Bolaño ironiza a si mesmo e às crias de García Marquéz e Octavio Paz. A estratégia
da sua abordagem será essa: um processo amplo de desmistificação, do qual não poupa
nem a si mesmo, nem as figuras fundadoras da literatura latino-americana moderna;
uma abordagem que, ademais, lhe permite estabelecer uma perspectiva crítica a partir da
qual vislumbra a falência dos ideais emancipatórios que regeram as artes do
subcontinente ao longo de boa parte do século XX.
A maneira como constrói simbolicamente a figura do poeta Pablo Neruda em
seus escritos talvez seja o melhor lugar para percebermos a direção de sua crítica. E as
razões da escolha são muitas: Neruda é chileno, seu compatriota, ícone do mainstream
literário, poeta (aquilo que, segundo a formulação do narrador de “Sensini”, como é o
melhor que um escritor faz, não se coloca para lutar com as hienas), além de que, tendo
morrido logo depois do golpe de Pinochet, está quase que mitologicamente conectado
ao sonho socialista de Salvador Allende, em cujo governo colaborou. O espaço social
do encontro do autor de Veinte poemas de amor e Sebastián Urrutia Lacroix, narrador
de Noturno do Chile e colaboracionista durante o período ditatorial, na fazenda de um
crítico literário conservador (Farwell) é reveladora:
Lá estava Neruda, alguns metros atrás estava eu, e, entre os dois, a
noite, a lua, a estátua eqüestre, as plantas, as madeiras do Chile, a
escura dignidade da pátria. [...] Lá estava Neruda, recitando versos
para a lua, para os elementos da terra e para os astros, cuja natureza
desconhecemos mas intuímos. [...] Lá estava Neruda, segredando
palavras cujo sentido me escapava mas com cuja essencialidade
comunguei desde o primeiro instante. E lá estava eu, com lágrimas
nos olhos, um pobre clérigo perdido nas vastidões da pátria,
desfrutando gulosamente as palavras do nosso mais excelso poeta
(BOLAÑO, 2004, p. 19).
Exatamente como as reuniões aprazíveis na casa de María Canales escondiam, nos porões
mal iluminados, a brutalidade da tortura, há também aqui uma contiguidade entre esse
quadro de comunhão quase metafísica e uma outra realidade, mais sórdida. Desta vez,
contudo, quem se bate com ela não é o objeto da crítica – o vanguardista ou, nesse caso,
Neruda –, mas o próprio narrador. Poucos momentos antes do encontro descrito acima,
Sebastián Urrutia havia se perdido numa caminhada pela fazenda, durante a qual acabou
topando com uns empregados, que viviam numa cabana situada além dos limites dos
jardins bem cuidados de Farwell. A pintura desse quadro é inteiramente diferente do
outro: do sublime ao descaso com a realidade concreta e precária da vida:
E alguém falou de uma criança doente, mas com tal dicção que não
entendi se a criança estava morrendo ou já tinha morrido. Para que
precisavam de mim? A criança estava morrendo? Chamassem um
médico. A criança já tinha morrido fazia tempo? Rezassem então uma
novena à Virgem (Idem, 17).
Que tenha sido Urrutia e não Neruda quem se deparou reorganiza o sentido da
crítica, mas não a anula. Não é mais a questão da incapacidade de representar a
brutalidade por uma poética que se quer chocante, e sim a relação entre o engajamento
político à esquerda, o viés romântico de um determinado tipo de poesia e o seu
ancoramento no mundo mais chão que está em questão aqui. Postas ambas as passagens
lado a lado, o encontro revela o que possui de irônico. De costas para a realidade
material e miserável dos camponeses chilenos, que certamente não desconhece e contra
a qual se mobilizou, confortavelmente instalado no “transatlântico na noite austral”
(Idem, p. 18), que era a bela e iluminada casa de Farwell, e envolto pela cantilena quase
hipnótica do padre Urrutia, Neruda perde sua veste de poeta revolucionário e ganha
outra, moralmente andrajosa, marcada por um essencialismo e um distanciamento do
mundo que o identifica a esse universo elitista e fechado que é o do conservadorismo do
crítico literário, seu anfitrião.
Mas Bolaño não para aí. Em “Carnet de baile”, conto coligido em Putas
assassinas, Neruda é retomado:
66. Como à Cruz, devemos voltar a Neruda com os joelhos
ensangüentados, os pulmões perfurados, os olhos cheios de lágrimas?
67. Quando nossos nomes não significarem mais nada, seu nome
continuará brilhando, continuará pairando sobre uma literatura
imaginária chamada literatura chilena. 68. Todos os poetas, então,
viverão em comunidades artísticas chamadas cárceres ou manicômios.
69. Nossa casa imaginária, nossa casa comum (BOLAÑO, 2008, p.
210).
A bem da verdade, não é o Pablo Neruda poeta o centro dessa passagem, que se detém
antes na apropriação enviesada de sua obra: “62. [...] Se Neruda fosse o desconhecido
que no fundo de fato é! 63. No porão do que chamamos ‘Obra de Neruda’ espreita
Ugolino, disposto a devorar seus filhos?” (Idem, p. 209). O fundamental aqui para
Bolaño é pôr em xeque essa imagem sacralizada do poeta seu compatriota, exatamente
como fez em Noturno do Chile, cuja devoção é, em grande medida, paralisante.
A dimensão canônica que a obra de Neruda assume tem ainda uma outra
função, que é apagadora. A ela só se chega em romaria, cujo signo é o da expiação.
Idelber Avelar (2009, p. 136) já escreveu, com propriedade, que o cânone é um “pacto
valorativo” que se estabelece ao redor de um conjunto de valores, capazes, por diversas
razões, de se constituírem como hegemônicos. A apropriação enviesada de Neruda
passa a funcionar, assim, como o centro desse pacto, que constitui o núcleo de sentido –
como todos, socialmente construído e ideologicamente direcionado – da comunidade
imaginária chilena pós-ditatorial. Não é de se admirar que a “transição epocal” por que
passa o Chile na década de 1990 tenha sido feita por uma coalizão em que esquerda e
cristianismo se reúnem, sem questionar a fundo o legado de Pinochet, para fazer a
transição necessária para a sociedade de mercado. (Uma reunião que lembra a cena da
fazenda de Farwell, um espaço conservador e atravessado pela desigualdade material
em que o poeta comunista e o padre católico se encontram pela primeira vez.)
Naturalmente, não é que o pacto valorativo hegemônico que se apropria da obra de
Neruda não permita juízos discordantes. A eles, contudo, resta o estigma da
transgressão (com a razão ou com as leis), que deve ser devidamente silenciada e, se
possível, esquecida.
5.
Ao caminhar para a conclusão, sugiro um rápido retorno a “Sensini”, o conto
que nos colocou a lógica da derrota. Paramos faltando poucas páginas para o final,
quando Miranda, em suas andanças sem dinheiro rumo à Itália, pernoita na casa do
narrador, antigo correspondente do pai. E as notícias, como vimos, não poderiam ser
mais desalentadoras. O retorno à Argentina pós-ditatorial não lhe traz nenhum dos
alívios possíveis: não localiza a ossada do filho morto, assim como tampouco consegue
o emprego que buscava, ficando, outra vez, à mercê de trabalhos mal-remunerados. Ou,
na síntese melancólica de Miranda, a mesma vida, “igual em Madri, igual em toda
parte” (BOLAÑO, 2012 p. 27). Depois disso, a morte.
O cenário não poderia ser mais desolador e, como, quando muito, restam
apenas 15 linhas para o fim, nenhuma grande viravolta parece se anunciar. E, de fato,
nada de extraordinário acontece, exceto uma breve mudança de percepção:
Enchi seu copo, enchi o meu, e ficamos um tempo admirando a cidade
iluminada pela lua. De repente me dei conta de que já estávamos em
paz, de que por alguma razão misteriosa tínhamos conseguido juntos
ficar em paz e que daí em diante as coisas imperceptivelmente
começariam a mudar. Como se o mundo de verdade se movesse
(Idem, p. 29-30, grifos meus).
Mas essa paz tem uma outra dimensão, que, se não se percebe aqui, fica mais clara em
Detetives selvagens.
6.
Limitada por uma série de injunções históricas sobre as quais nem ele nem
ninguém tem controle, sem o recurso de uma ascendência a qual se possa filiar e que,
assim, lhe preencha de sentido suas ações contemporâneas e, por fim, esvaziados os
projetos de suas promessas emancipatórias, o que resta é, na verdade, a dúvida de que
exista algum lugar a partir do qual Roberto Bolaño (in MANZONI, 2006, p. 212) possa
levar à frente seu desejo de escrever “uma carta de amor ou de despedida à [sua] própria
geração” O que se vislumbra é a impossibilidade de libertação da palavra – e,
consequentemente, de todos que por ela são representados – de uma lógica voraz, na
qual o passado, marcado pelo signo da derrota, em certa medida vergonhosa até mesmo
para os vencedores, deve ser substituído – esquecido – por um presente que se escreve
de acordo com a retórica da perfeição, da clareza e da debilidade de pensamento. A
tecnologia de produção de esquecimento é inalienável, não deixa de ser o diagnóstico
sombrio de Bolaño. Contudo, por mais paradoxal que possa ser, o lugar de resistência,
ou de paz, não se faz em oposição a esse maquinário, e sim a partir delas: é exatamente
quando se está esquecido, à margem, que a palavra narrada assume um compromisso
íntimo entre aquele que se dispõe a escrever e o objeto sobre o qual se debruça.
Em meio ao fractal de vozes que compõe Detetives selvagens, uma se destaca,
a de Juan García Madero, cujos diários abrem e fecham o livro. E se destaca por dois
motivos: um, quantitativo, porque, dentre todas as vozes – salvo engano, 53 ao todo –, é
a que mais tem espaço. Das mais de 600 páginas da edição brasileira, quase um terço é
dominado unicamente por sua narração. Segundo, qualitativamente falando, porque o
gênero diário a que se dedica confere ao seu relato uma dimensão cotidiana,
microscópica, da história desse grupo, que destoa dos depoimentos cada vez mais
distantes no tempo (situados entre janeiro de 1976 e dezembro de 1996) e no espaço (do
México a Israel), de que é recheado o miolo do livro.
Os detetives selvagens são, portanto, compostos de duas buscas distintas pelo
real-visceralismo mexicano: a primeira, narrada em detalhe por García Madero, é pela
poetisa Cesárea Tinajero, fundadora do movimento na década de 1920, e envolve toda
uma outra geração de poetas real-visceralistas, dentre os quais Arturo Belano e Ulises
Lima se destacam. A segunda busca, a do miolo do livro, é exatamente por esse grupo,
o dos admiradores de uma poetisa perdida nos desertos de Sonora. No momento
temporalmente mais distante do início das entrevistas, já no final da década de 1990,
nos deparamos com Ernesto García Grajales, acadêmico da Universidade de Pachuca e
auto-proclamado “o único estudioso dos real-visceralistas do México e, poderia até
dizer, do mundo. [...] Provavelmente sou o único a se interessar por esse tema. Quase
ninguém se lembra mais deles” (BOLÃNO, 2006, p. 563). Em seguida, ele segue
elencando o destino dos real-visceralistas da segunda geração. Um morreu, outra
escreve mas não publica, um outro anda metido em política:
Ulises Lima continua morando no DF. Nas férias passadas fui vê-lo.
Um espetáculo. [...] De Arturo Belano nada sei. Não, Belano eu não
conheci. Vários deles, aliás. Não conheci Müller nem Pancho
Rodríguez nem Pele Divina. Também não conheci Rafael Barrios.
Juan García Madero? Não, esse nome não me diz nada. Com certeza
nunca pertenceu ao grupo. Homem, se digo que sou a maior
autoridade no assunto, por alguma razão há de ser (Idem, p. 564, grifo
meu).
Em 1996 – vintes anos, portanto, após o fim da desastrosa busca por Cesárea Tinajero e
o início dessa outra, pelos remanescentes –, Ernesto Gracía Grajales, a maior autoridade
do mundo no assunto, ignora aquele que foi, para nós leitores – e que continuará sendo
quando retornarmos à sua voz na terceira e última parte do livro – o mais importante
narrador se não de todo o movimento real-visceralista, ao menos de sua desventurosa
empreitada e de sua consequente dissolução nos desertos de Sonora. E eis que se repõe
o paradoxo de Bolaño: a narrativa se preserva porque o responsável por ela foi
esquecido. Quando liberada da ciranda do mercado (e, no caso, da domesticação
acadêmica), ela se oferece a ser buscada pelos interessados. É o que fizeram Ulises
Lima e Arturo Belano com Cesárea Tinajero, ela própria já esquecida na década de
1970; é o que faz aquele que, em busca de um grupo dissolvido e sem maior
importância no cenário oficial da literatura mexicana, coleta depoimentos ao redor do
mundo. Naturalmente, o encontro é impossível – mas é somente quando se decide fazê-
lo, independentemente do fracasso anunciado, que os nomes, esquecidos e derrotados,
além das suas próprias narrativas, passam a dizer alguma coisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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