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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 71-88, 2011 71 Liliana Segnini O QUE PERMANECE QUANDO TUDO MUDA? PRECARIEDADE E VULNERABILIDADE DO TRABALHO NA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA Liliana Segnini * A teoria sociológica, após o século XIX, analisou as múltiplas faces do trabalho submetido a condições precárias e marcadas pela vulnerabilidade do trabalhador (a). Vários autores se de- dicaram a essa questão durante o século XX, mesmo no período da consolidação da sociedade salarial, ameaçada no presente. O objetivo deste texto é contribuir para esse debate por meio de resultados de pesquisas realizadas na última década, que nos informam a permanência das questões observadas nas análises fundadoras desse campo de estudo, mas também novas di- mensões a serem consideradas para melhor compreensão sociológica das contradições obser- vadas no trabalho precário, fonte de vulnerabilidade para os trabalhadores. Privilegiamos ana- liticamente um campo de pesquisa no qual os trabalhadores são escolarizados, com predomí- nio do curso superior e altamente qualificados profissionalmente: referimo-nos ao trabalho artístico de músicos em orquestras, no Brasil, e o papel do Estado na construção da supressão de direitos vinculados ao trabalho. PALAVRAS-CHAVE: teoria sociológica, relações de gênero, músicos de orquestras, trabalho precário. INTRODUÇÃO O trabalho precário ou vulnerável, que submete os trabalhadores às condições impostas pelo capital, pode ser observado em toda a his- tória das relações sociais que informam a produ- ção capitalista e expressam formas históricas de sua organização. Os teóricos fundadores da sociologia já o consideraram objeto de análise, em perspectivas diferenciadas e divergentes, na tentativa de ana- lisar as mudanças nos processos produtivos na sociedade moderna, urbana e industrial, desde o século XIX. Nos argumentos elaborados pelos autores, a presença do trabalho das mulheres evidencia a relação entre trabalho e as categorias explicativas centrais de suas análises respecti- vas, tais como a noção de exploração (Karl Marx), dominação (Max Weber) e coesão social e soli- dariedade (Émile Durkheim). Considerando as significativas distâncias políticas entre as visões de mundo que embasam seus objetivos, métodos de pesquisa e contribui- ções analíticas, é possível levantar a hipótese de que o trabalho feminino se constituiu num pon- to de convergência metodológica no sentido de salientar os limites dos divergentes argumentos elaborados pelos fundadores da sociologia. Esse texto tem duplo objetivo: recuperar dimensões teóricas selecionadas e elaboradas pelos autores citados, destacando a relevância do trabalho das mulheres na construção de seus argumentos relacionados ao trabalho, observa- das nas relações e condições de trabalho no sé- culo XIX e início do XX e, posteriormente, tomá- las como inspiração para indagar o presente, con- siderando como campo de pesquisa o trabalho artístico de músicos no Brasil. Assim, o artigo se estrutura em duas partes: na primeira, serão apresentadas algumas reflexões sobre o trabalho das mulheres na teoria sociológica clássica, com * Socióloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Pro- fessora titular e pesquisadora do Departamento de Ciênci- as Sociais na Educação (Decise) da Faculdade de Educa- ção da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do programa de Doutorado em Ciências Soci- ais, área Trabalho, Política e Sociedade do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Rua Bertrand Russel n. 801. Cidade Universitária. Cep: 13083-970 - Campinas - SP - Brasil - Caixa-Postal: 6120. [email protected]

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O QUE PERMANECE QUANDO TUDO MUDA? PRECARIEDADEE VULNERABILIDADE DO TRABALHO NA PERSPECTIVA

SOCIOLÓGICA

Liliana Segnini*

A teoria sociológica, após o século XIX, analisou as múltiplas faces do trabalho submetido acondições precárias e marcadas pela vulnerabilidade do trabalhador (a). Vários autores se de-dicaram a essa questão durante o século XX, mesmo no período da consolidação da sociedadesalarial, ameaçada no presente. O objetivo deste texto é contribuir para esse debate por meio deresultados de pesquisas realizadas na última década, que nos informam a permanência dasquestões observadas nas análises fundadoras desse campo de estudo, mas também novas di-mensões a serem consideradas para melhor compreensão sociológica das contradições obser-vadas no trabalho precário, fonte de vulnerabilidade para os trabalhadores. Privilegiamos ana-liticamente um campo de pesquisa no qual os trabalhadores são escolarizados, com predomí-nio do curso superior e altamente qualificados profissionalmente: referimo-nos ao trabalhoartístico de músicos em orquestras, no Brasil, e o papel do Estado na construção da supressãode direitos vinculados ao trabalho.PALAVRAS-CHAVE: teoria sociológica, relações de gênero, músicos de orquestras, trabalho precário.

INTRODUÇÃO

O trabalho precário ou vulnerável, quesubmete os trabalhadores às condições impostaspelo capital, pode ser observado em toda a his-tória das relações sociais que informam a produ-ção capitalista e expressam formas históricas desua organização.

Os teóricos fundadores da sociologia já oconsideraram objeto de análise, em perspectivasdiferenciadas e divergentes, na tentativa de ana-lisar as mudanças nos processos produtivos nasociedade moderna, urbana e industrial, desdeo século XIX. Nos argumentos elaborados pelosautores, a presença do trabalho das mulheresevidencia a relação entre trabalho e as categoriasexplicativas centrais de suas análises respecti-

vas, tais como a noção de exploração (Karl Marx),dominação (Max Weber) e coesão social e soli-dariedade (Émile Durkheim).

Considerando as significativas distânciaspolíticas entre as visões de mundo que embasamseus objetivos, métodos de pesquisa e contribui-ções analíticas, é possível levantar a hipótese deque o trabalho feminino se constituiu num pon-to de convergência metodológica no sentido desalientar os limites dos divergentes argumentoselaborados pelos fundadores da sociologia.

Esse texto tem duplo objetivo: recuperardimensões teóricas selecionadas e elaboradaspelos autores citados, destacando a relevânciado trabalho das mulheres na construção de seusargumentos relacionados ao trabalho, observa-das nas relações e condições de trabalho no sé-culo XIX e início do XX e, posteriormente, tomá-las como inspiração para indagar o presente, con-siderando como campo de pesquisa o trabalhoartístico de músicos no Brasil. Assim, o artigo seestrutura em duas partes: na primeira, serãoapresentadas algumas reflexões sobre o trabalhodas mulheres na teoria sociológica clássica, com

* Socióloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Pro-fessora titular e pesquisadora do Departamento de Ciênci-as Sociais na Educação (Decise) da Faculdade de Educa-ção da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).Professora do programa de Doutorado em Ciências Soci-ais, área Trabalho, Política e Sociedade do Instituto deFilosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.Rua Bertrand Russel n. 801. Cidade Universitária. Cep:13083-970 - Campinas - SP - Brasil - Caixa-Postal: [email protected]

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referência a Karl Marx, Max Weber e ÉmileDurkheim quando analisam as relações de tra-balho na sociedade capitalista. Na segunda par-te, discute-se um conjunto de questões da atua-lidade, inspiradas nas contribuições desses au-tores, para se compreender como a precarieda-de e a vulnerabilidade do trabalho num campoespecífico – o dos músicos de orquestras, no Brasil– se manifestam no século XXI. Nesse campo damúsica, busca-se também destacar as relaçõessociais de sexo e indicar como as mulheresmusicistas vivem a precarização de forma maisintensa que os homens.

NOTAS SOBRE O TRABALHO DAS MULHE-RES NA TEORIA SOCIOLÓGICA 1

Karl Marx viveu sessenta e cinco anos,entre 1818 e 1883, na Alemanha, França e Ingla-terra. Participou da efervescência política que amodernidade capitalista trouxe consigo, da as-censão da burguesia como classe social detento-ra do capital e do poder, da constituição da clas-se operária e suas grandes lutas. Para Marx, asingularidade do trabalho no capitalismo está naprodução do valor, na produção de mercadori-as, constituindo a base das relações de explora-ção e alienação do trabalho. A dialética materia-lista constituiu seu método analítico, tanto paraindagar como para analisar as constantes mu-danças e contradições na sociedade capitalista.

A produção de mercadorias, de valores detroca, se dá por meio de relações sociais específi-cas, nas quais é observado que o trabalho,subsumido ao capital, produz valor em condi-ções frequentemente precárias. O trabalhador (a)vivencia uma condição vulnerável de trabalho.Em várias passagens de sua obra, ele se refere aotrabalho de mulheres (e crianças) e à constituiçãode redes internacionais de exploração, enfatizandouma dupla dimensão, presente no debate atual

sobre o trabalho no contexto da mundialização.Refiro-me à intensificação do trabalho e às condi-ções precárias nas quais é realizado.

Relembro aqui um trecho do capítulo XIIIdo Capital – A maquinaria e a indústria moderna–, capítulo que também poderia ser nomeado “ARevolução Industrial na compreensão de Marx”.

As manufaturas metalúrgicas de Birmingham ecercanias empregam, em trabalhos na maior partepesados, 30.000 crianças e jovens, além de 10.000mulheres. Aí são empregados em atividades in-salubres, nas fundições de cobre, na fabricação debotões, nas oficinas de esmaltar, de galvanizar ede laquear. O trabalho em excesso a que são sub-metidos os adultos e os menores nas impressorasde jornais e de livros de Londres conquistou paraesses estabelecimentos o famigerado nome de“matadouros”. Os mesmos excessos se encontramna encadernação de livros, e suas vítimas são prin-cipalmente mulheres, meninas e crianças. Meno-res realizam trabalhos pesados nas cordoarias, outrabalham à noite nas salinas, nas manufaturas develas e noutras manufaturas químicas. Há o em-prego criminoso de menores, para rodarem os te-ares, em tecelagem de seda que não movidas amáquina. Um dos trabalhos mais humilhantes,mais sujos, e mais mal pagos, em que se empre-gam de preferência meninas e mulheres, é o declassificar trapos. Sabe-se que a Grã-Bretanha,além de possuir seus próprios estoques de trapo,é o empório mundial deste artigo. Os trapos aflu-em do Japão, dos mais distantes países da Améri-ca do Sul e das Ilhas Canárias. Mas, seus princi-pais fornecedores são a Alemanha, França, Rússia,Itália, Egito, Turquia, Bélgica e Holanda. Servempara adubos, para fazer estofo de roupa de cama,lã artificial e papel. As classificadoras de traposervem para transmitir varíola e outras doençascontagiosas das quais são as primeiras vítimas(Marx, 1980, p.530-531).

As relações sociais estabelecidas nos pro-cesso produtivos ingleses informam a singularida-de da apropriação, por parte do capital, da fragili-dade social de alguns grupos específicos – crian-ças, adolescentes e mulheres –, possibilitando suasujeição ao trabalho precário. Já naquele momentohistórico, é evidenciado que a internacionalizaçãodo capital se articula com as formas manifestas deprecariedade traduzidas em insalubridade em di-versas manufaturas (abatedouros?), excesso de tra-balho e comprometimento da saúde dos traba-lhadores e das trabalhadoras. Observa-se, sobre-tudo, a total ausência de direitos sociais do tra-

1 A primeira versão deste tópico foi publicada sob a formade Editorial na Revista Katálysis. Florianópolis, v.13, n.1,jan./jun. 2010.

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balhador numa sociedade que procurava imporvalores de acordo com a nova modalidade do tra-balho criador de mercadorias. A disciplina do tra-balho fabril é uma das dimensões de um longoprocesso de racionalização do trabalho, em parti-cular, e da própria sociedade, como totalidade.

As relações de poder no processo de cons-trução da sociedade urbana e industrial capitalistaconstituíram-se em objeto de análise dos autoresMax Weber e Émile Durkheim. Conforme foi sali-entado no início deste texto, diferentes argumen-tos embasados em visões de mundo que se contra-puseram a Marx apontaram para um ponto co-mum: o potencial de submissão à nova ordem vi-gente que as mulheres poderiam significar.

Max Weber viveu sessenta e seis anos,entre 1864 e 1920. Nasceu, viveu e morreu naAlemanha, inscrito no processo de unificaçãopolítica da Alemanha, sob a hegemonia daPrússia. Foi testemunha da repressão violenta aostrabalhadores alemães por parte do aparelhomilitar e burocrático do Estado, além devivenciar o intenso processo de racionalizaçãodo capitalismo, tal como Karl Marx.

As formas de dominação consideradas le-gítimas foram centrais no desenvolvimento dasociologia compreensiva, possibilitando ao au-tor o questionamento do sentido da ação social ea construção de uma metodologia de “tipo ide-al”. Assim, Weber compreendeu o discurso deBenjamin Franklin e, por meio dele, analisou aconstituição de um novo ethos para organizar aracionalização da sociedade capitalista ociden-tal, constituindo “o espírito do capitalismo” –no qual o trabalho é compreendido como voca-ção –, um dever utilitário que possibilita a supe-ração do tradicionalismo.

A “seleção dos mais aptos”, conforme ana-lisa o autor, impede a permanência de valorestradicionalistas e possibilita a concretização da“sagrada fome pelo ouro” (auri sacra fames),sobretudo nos processos produtivos nos quais amecanização libertou a produção das barreirasdo trabalho humano, e o recrutamento de tra-balhadores se desloca da coerção à remunera-

ção, como expressão moderna de disciplinamentopresente nas formas racionais de trabalho, quedemandam perseverante processo educacional.

Weber destaca, entre vários exemplos datensão entre tradicionalismo e o capitalismo ra-cional, os empecilhos que as jovens operárias ale-mãs construíam para a maximização da produ-tividade no trabalho. Salientou a relevância docasamento e dos valores religiosos pietistas parasuperá-los, como expressão de “longo processoeducacional”.

Uma imagem retrógrada da forma tradicional dotrabalho é atualmente apresentada muitas vezespor operárias, especialmente pelas que não sãocasadas. Uma queixa quase universal dos empre-gadores de moças, pelo menos no que diz respei-to às jovens alemãs, é a de mostrarem-se elas, emgeral, desinteressadas e quase incapazes de aban-donar métodos de trabalhar herdados ou apren-didos, em favor de outros mais eficientes, de seadaptar a estes novos métodos, de aprender, deconcentrar sua inteligência ou mesmo de fazeralgum uso dela. Explicações da possibilidade detornar mais fácil o trabalho, principalmente maisproveitoso a elas, encontram, geralmente, umacompleta ausência de compreensão. O incremen-to da escala de salários choca-se impotente con-tra a muralha do hábito. O contrário se dá geral-mente e este não é um ponto insignificante deacordo com a nossa visão, apenas com moçascom uma formação especificamente religiosa, emespecial a pietista. Ouve-se frequentemente, econfirma-o a investigação estatística, que de lon-ge, as melhores oportunidades de uma educaçãoeconômica são inegavelmente encontradas nestegrupo. A capacidade de concentração mental, tan-to quanto o sentimento de obrigação absoluta-mente essencial para com o próprio trabalho,estão aqui combinados com uma economia estri-ta que calcula a possibilidade de altos vencimen-tos, um autocontrole e uma frugalidade que enor-memente aumentam a capacidade de produção.Isto fornece uma base das mais favoráveis para aconcepção do trabalho como um fim em si, comoum valor que é condizente com o capitalismo; asoportunidades de superar o tradicionalismo sãoaqui muito grandes devido à educação religiosa(Weber, 1980, p.193. Grifo nosso).

O trabalho racional capitalista, na pers-pectiva weberiana, exige submissão a uma novadisciplina na qual a “obrigação moral” religiosadas trabalhadoras pietistas, ou a necessidade fi-nanceira das trabalhadoras casadas, constituemterrenos férteis para levar a bom termo o pro-

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cesso educativo necessário para a superação dotradicionalismo. Dito de outra forma, expressa adominação da subjetividade da trabalhadora sub-metida à pressão permanente por produtivida-de cada vez mais elevada de acordo com o novo“espírito do capitalismo”. Informa, sobretudo, outilitarismo da vulnerabilidade dessas mulheres,na ótica da acumulação capitalista, no processode dominação racional e legal.

Durkheim observa as mudanças sociais nomesmo período histórico – expansão do capitalis-mo e seus conflitos – e propõe outros caminhos etemas analíticos na tentativa de compreendê-las.

Émile Durkheim viveu cinquenta e noveanos. Francês, nasceu em 1858 e faleceu em 1917.Na sua obra “Da divisão do trabalho social”,publicada em 1893, analisou as principais cate-gorias que possibilitaram a elaboração de umametodologia positiva para a compreensão de so-ciedade, analisada como um complexo integra-do de fatos sociais. Contribuiu para o desenvol-vimento da própria sociologia como campo sin-gular do conhecimento.

Para o autor, a divisão do trabalho em umasociedade complexa é fonte de solidariedade or-gânica. Compreendida como corpo social, atri-bui à elite a função de direção e aos trabalhado-res, a de execução do trabalho. O ordenamentomoral por meio da consciência social evitaria cri-ses de valores e de crenças coletivas, compreen-didas nas expressões de anomia, como, porexemplo, nos conflitos sociais.

A família é considerada por Durkheimcomo um dos exemplos significativos da ordemmoral, capaz, pelo processo de socialização (edu-cação), de garantir coesão social, solidariedade eprogresso. Em seus argumentos, destaca a rele-vância social da divisão do trabalho na constru-ção moral da sociedade e considera, entre outrosexemplos, a “sociedade conjugal”. Nela, compre-ende o autor, a mulher tem papel fundamental,reafirmado em várias passagens de suas análises.

A moral doméstica não se formou de outro modo.Por causa do prestígio que a família conserva antenossos olhos, parece-nos que, se ela foi e é sem-

pre uma escola de dedicação e abnegação, o focopor excelência da moralidade, é em virtude decaracterísticas bastante particulares de que teriao privilégio e que não se encontrariam em outrolugar em nenhum grau. [...] A consanguinidadepode ter facilitado essa concentração, pois ela temcomo efeito natural inclinar as consciências umaem direção às outras. Mas muitos outros fatoresintervieram: a proximidade material, a solidari-edade de interesses, a necessidade de se unir paralutar contra um inimigo comum, ou simplesmen-te de se unir, foram causas muito mais podero-sas de aproximação (Durkheim, 1999, p.22).

Em vários trechos de sua obra, o autorreitera a íntima relação entre a sociedade conju-gal e a divisão do trabalho como expressão dasolidariedade.

Em todos esses exemplos, o mais notável efeitoda divisão do trabalho não é aumentar o rendi-mento das funções divididas, mas torná-las so-lidárias. Seu papel, em todos esses casos, não ésimplesmente embelezar ou melhorar socieda-des existentes, mas tornar possíveis sociedadesque, sem elas, não existiriam. Façam a divisãodo trabalho sexual regredir além de certo ponto,e a sociedade conjugal desaparece, deixando sub-sistir apenas relações sexuais eminentementeefêmeras; mesmo se os sexos não fossem em nadaseparados, toda uma forma da vida social sequerteria nascido. É possível que a utilidade econô-mica da divisão do trabalho tenha algo a ver comesse resultado, mas, em todo caso, ele superainfinitamente a esfera dos interesses puramenteeconômicos, pois consiste no estabelecimento deuma ordem social e moral sui generis (1999, p.27).

Apoiado nesses argumentos, o autor criti-ca Marianne Weber, socióloga e feminista, mu-lher de Max Weber. A resenha de um dos seuslivros foi elaborada e publicada por Durkheim,em 1907 – L´Année Sociologique (v.XI, 1906/1909).Nesse texto, o autor critica “o simplismo da argu-mentação de Madame Weber, ao desenvolver suatese de que a família patriarcal determinou umacompleta subserviência da mulher” (JournalSociologique, p.644-649, apud Rodrigues, 1984).

Para Durkheim, a análise de MarianneWeber não compreende a importância da solida-riedade na divisão do trabalho social, considera-da, citando Augusto Comte, como “a condiçãoessencial da vida social”(p.65). Para ele, que tantoinfluenciou Durkheim,

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os proletários reconhecerão, sob o impulso fe-minino, as vantagens da submissão e de uma dig-na irresponsabilidade [...] graças à doutrinapositivista que há de preparar os proletários pararespeitarem, e mesmo reforçarem as leis natu-rais da concentração do poder e da riqueza (apudLöwy, 2000, p.24).

Marx, Weber e Durkheim, cientistas soci-ais considerados fundadores da teoria sociológi-ca, jamais analisaram as relações sociais de sexoou relações de gênero em suas obras. No entan-to, o que nos levou a sistematizar essas notas foia percepção da presença constante da mulherna elaboração de seus argumentos, tomada comoexemplo-limite nas explicações sociológicas des-ses autores, ao analisarem as relações de traba-lho na sociedade capitalista.

PERGUNTAS ELABORADAS NO PRESENTEINSPIRADAS NOS AUTORES FUNDADORESDA SOCIOLOGIA 2

Mestre de música: É verdade. Entende pouco, maspaga bem. E nossa arte está necessitando maisde dinheiro do que aplausos!Mestre de Dança: Falando francamente, eu tam-bém me alimento um pouco de glória. Os aplau-sos me tocam profundamente! Na minha opiniãoé doloroso para um artista exibir-se para tolos.Bom é trabalhar para pessoas capazes de sentir adelicadeza da arte. A beleza! Ser reconhecido.Ouvir os aplausos. Essa é a verdadeira recom-pensa para um artista.Mestre de música: Eu concordo. Mas somenteaplausos não enchem barriga. Prefiro recompen-sas mais sólidas. É verdade. Ele é um homemsem muito conhecimento, que fala a torto e a di-reito de coisas que não entende. Mas o dinheirocorrige todos os seus erros de julgamento. Juntocom seus aplausos ouvimos o tinir das moedas.“Mais vale esse ignorante do que um grande fi-dalgo. (Molière. O Burguês Fidalgo. Peça teatralrepresentada em 1670, em Paris).

O que indagar no presente século XXI, paraainda tentar compreender as relações e condiçõesde trabalho que evidenciam vulnerabilidade e pre-cariedade no momento histórico atual? O que épossível perceber na relação entre relações degênero e relações de trabalho, nessa construçãosocial?

A pergunta proposta será realizada, nopresente, para um único campo de pesquisa –trabalho artístico ao vivo, mais precisamente amúsica –, no período 2000- 2010, num espaçogeográfico definido: falamos de Brasil, mesmoque as pesquisas que informam essa análise tam-bém tenham sido realizadas na França e em Por-tugal. Por meio da singularidade desse campo,período e espaço, pretende-se salientar a relaçãoentre reestruturação de orquestras sinfônicas es-tatais e trabalho precário e (ou) vulnerável, con-siderando as relações de gênero.

Música, Estado e Mercado

Molière, ainda no século XVII, com mui-to humor, analisa o drama do artista à procurade trabalho (e financiamento). De lá para cá, oproblema permanece sempre atual, e outras obrasrecuperaram essa temática, ainda presente na

2 Duas pesquisas informam esse tópico: a primeira, realiza-da entre 2003 e 2007, intitula-se “Formação e trabalho nocampo da cultura: professores, músicos e bailarinos“(FAPESP, FAEPEX, CNPq). Pesquisa realizada durantequatro anos, por meio de várias fontes e métodos para acaptação dos dados: estatísticas sobre mercado de traba-lho e formação profissional no Brasil e na França, entre-vistas, observações etnográficas de ensaios e espetáculosregistradas em cadernos de campo, captação de imagens.Nos dois primeiros anos, foram analisadas as relações de

trabalho assalariadas em dois teatros públicos – ÓperaNational de Paris e Theatro Municipal de São Paulo; noterceiro e quarto anos, as pesquisas foram realizadas emespaços selecionados, que informam as múltiplas formasintermitentes de inserção no trabalho artístico: concursosde música e dança, festivais – Campos do Jordão e Lyon ,imigração de músicos do Leste Europeu para o Brasil, Fran-ça e Portugal; movimentos sociais (Intermittents d´spetacle,na França; Arte contra a Barbárie, em São Paulo, Fórum deDança, no Brasil, Movimento contra a Ordem dos Músi-cos do Brasil). Resumindo: 94 entrevistas de longa dura-ção, semiabertas (26 na França e 68 no Brasil); mais decem horas de observação etnográfica. A segunda pesquisafoi realizada em 2008, intitula-se “Rumos Itaú CulturalMúsica – Formação profissional e trabalho nas narrativasde músicos premiados” (Observatório de Atividades Cul-turais do Instituto Itaú Cultural). Os músicos seleciona-dos no Projeto Rumos Itaú Cultural Música – edição 2007-2009 – constituem o campo dessa última pesquisa. Entreos 2.222 inscritos em 2008, cinquenta foram seleciona-dos, resultado do concorrido processo seletivo entre mú-sicos de todas as regiões do país e diversas expressõesestéticas, sintetizadas em música de raiz, música populare erudita. Representantes de diferentes clivagens sociais –de classe, gênero, etnia, geracional – compõem tanto o gru-po inscrito como o premiado. As entrevistas de longa du-ração, gravadas em áudio, foram realizadas com trinta enove músicos.

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contemporaneidade, posto que ela continua fun-damental à realização do trabalho artístico. En-tre elas, ressalto a contribuição de Norbert Elias(1994), na análise da história social de Mozart.O que significa, indaga o autor, “ser socialmentereconhecido como artista, e ser ao mesmo tem-po capaz de alimentar sua família?”. A partir davida de Mozart, como indivíduo, artista na corteaustríaca, Elias recupera as dimensõesontogênicas naquele momento histórico e elabo-ra um modelo teórico de análise: recuperar aspressões sociais que agem sobre o indivíduo, nãotão somente como narrativa histórica, mas comoestudo sociológico que recupera a configuraçãode uma época. As tensões no processo de pro-dução da arte concretizada por um artista bur-guês, da sociedade da corte, são analisadas porNorbert Elias como expressão da estrutura deconflitos de padrões diferenciados de comporta-mentos, sentimentos, interesses entre a corte eos grupos burgueses (1994).

É um desafio para a sociologia reelaborar,no presente, as questões propostas por Elias paraas redes de instituições da corte e da aristocra-cia, em termos de configurações, relações de do-minação e exploração, relações de trabalho queexpressam não mais a corte, mas as instituições– Estado e Mercado –, no interior das quais seinscrevem os artistas, no presente.

O crescimento das atividades culturaispossibilitou, no mundo contemporâneo, que elasassumam “o papel motor do desenvolvimentoda economia, equivalente ao do automóvel noséculo XX e ao das ferrovias na segunda metadedo século XIX” (Debord, 1996). Essa afirmaçãosó é possível de ser compreendida se reconheci-da a relevância da dimensão mercadoria no pro-cesso de criação artística, já há muito observa-da, mas intensificada no contexto damundialização, das grandes corporações e daprivatização da cultura (Wu, 2006).

O Estado representa a principal institui-ção de financiamento das atividades artísticas,no Brasil. No entanto, sobretudo nos últimos vin-te anos, é crescente a participação das grandes

empresas no financiamento do trabalho artístico,incentivadas pelas próprias políticas públicas.3

Chin-tao Wu (2006), pesquisadora taiwanesa,analisa as formas de racionalização expressas nasestratégias das corporações para fazerem da arteum grande negócio, analisando a inter-relaçãode interesses que convergiram entre si, possibi-litando essa opção política. Destaca a autora queos interesses dos governos neoliberais nas pro-postas de livre mercado se somaram aos interes-ses das grandes corporações em aumentar suainfluência no âmbito cultural, minimizando cus-tos por meio da renúncia fiscal e maximizandolucros, por meio da divulgação de suas marcas.

No Brasil, as políticas públicas que en-gendraram as configurações presentes nas análi-ses de Chin Tao Wu se delineiam com maior cla-reza, eficácia institucional e legal, após o perío-do militar, a partir de 1985. Nesse ano, é criadoo Ministério da Cultura do país.4 As leis que sesucederam tiveram efetiva relevância no traba-lho artístico somente a partir de 1995, dez anosdepois, no momento em que o processo de de-mocratização política se articula com o fortale-cimento do mercado. A participação do capitalprivado na implementação das políticas cultu-rais é observada pela crescente relevância eco-nômica do mecenato, sobretudo nas artes. Essaquestão é regulada por meio da Lei Federal deIncentivo à Cultura (Lei n.8.813/91), conhecidacomo Lei Rouanet, no âmbito federal. Ela defineas bases da política de relações entre o Estado eo capital privado, fundada na renúncia fiscal parainvestimento em cultura. Trata-se, portanto, derecurso público direcionado de acordo com acapacidade de elaboração de projetos dos dife-rentes grupos e exigências dos patrocinadores.As demandas qualificadas, elaboradas de formapredominante por grupos artísticos consolida-dos e com expressão na mídia, assumem rele-

3 O presente artigo retoma dados e análises elaboradas emcinco outras publicações da autora indicadas na bibliogra-fia e incorpora novas pesquisas e reflexões analíticas.

4 O Ministério da Cultura foi criado pelo Decreto 91.144, de15/03/1985. “Reconhecia-se, assim, a autonomia e a im-portância desta área fundamental, até então tratada emconjunto com a educação” (MINC, 2007).

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vância maior do que as políticas públicas de ca-ráter universal.

Considerando os dados disponíveis, refe-rentes ao período 1996– 2006, é possível perce-ber a crescente e constante captação dos recur-sos por meio da política de renúncia fiscaltraduzidas em valores, inclusive no campo damúsica: de R$ 20.317 milhões para R$ 78.633milhões, considerando tão somente a Lei Rouanet(Cultura em números, MINC, 2009). Entre eles,destaca-se a participação da Petrobrás e do Ban-co do Brasil, empresas públicas, no financiamen-to das atividades culturais, o que possibilita afir-mar que, mais do que uma decisão econômica,trata-se de uma opção política liberal de gestãodas artes por meio das decisões corporativas.Desde 1997, as empresas podem deduzir 100%do valor investido em projetos culturais (inclu-sive música) do Imposto de Renda devido. NosEstados e Municípios, a lei de incentivo à cultu-ra por meio da isenção fiscal é reproduzida, tor-nando ainda mais significativo o volume das ver-bas já referidas (MINC, 2009).

Quais as implicações observadas para ascondições de trabalho do artista da música nocontexto acima analisado?Em primeiro lugar, ainstável condição de trabalho intermitente mar-ca a procura de cachês, editais, concursos, nummercado de trabalho que se expande em núme-ro de espetáculos e de profissionais da música.

Crescimento do mercado de trabalho em música

É relevante o crescimento do nú-mero de músicos entre os trabalhado-res ocupados no Brasil, considerando-se o período 1992 a 2006. A populaçãoocupada cresceu 16%, enquanto o gru-po de profissionais dos “Espetáculos edas Artes” registrou crescimento de67% no mesmo período. Os músicosrepresentam o maior crescimento ob-servado: de 50.839, em 1992, para118.231 músicos, em 2006 (soma dos

dois grupos ocupacionais referentes à música),ou seja, 232%. Os músicos significam 51% dosprofissionais agrupados na rubrica “Espetáculose das Artes” (IBGE/PNAD, 2006).

No entanto, o grupo ocupacional cresceumantendo as mesmas características, ou seja, re-duzido número de músicos com contrato formalde trabalho e elevado número de autônomos, secomparados com o mercado de trabalho no Bra-sil. O trabalho com registro em carteira, conside-rado formal, no país, representa 37,5% dos tra-balhadores ocupados no mercado de trabalho; nosegmento “Artes e Espetáculo” essa porcentagemé reduzida para 10,0% (IBGE/PNAD, 2006). Essasituação também é reiterada, com cores ainda maisintensas, no campo da música, no qual tão so-mente 7% (8.637) têm acesso a esse tipo de con-trato: 30% (35.669) dos artistas se declaram “semcarteira” e 58% (68.236), “por conta própria”.Considerando o período 1992 a 2006, enquanto ocrescimento dos ocupados em música, com vín-culo formal de trabalho, foi de 159%, o dos músi-cos autônomos foi de 234%. Esses números re-presentam a soma dos dois grupos ocupacionaisreferentes às ocupações em música, no Brasil, ouseja, “Compositores, músicos e cantores” (18.180)e “Músicos e cantores populares” (100.251) (IBGE/PNAD, 2008).

A docência no ensino superior público eo trabalho em orquestras, também públicas,constituem as principais possibilidades de tra-balho formal para o artista da música, tanto noBrasil como em outros países industrializados(Ravet, 2003; Coulangeon, 2004).

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O número de empregos formais em músi-ca é ainda menor se considerados os dados daRelação Anual de Informações Sociais (Rais) doMinistério do Trabalho e Emprego,5 nos quais épossível observar quase mil empregos formais amenos do que o indicado pelo IBGE na PesquisaNacional por Amostra de Domicílios (IBGE/PNAD). No entanto, a RAIS também registra ocrescimento do número dos empregos formaisem música, que passaram de 6.937, em 2004,para 7.700, em 2007. Esse crescimento refere-seà contratação de homens – 927 músicos a maisem empregos formais. Em relação à contrataçãode mulheres, foram reduzidos 164 postos de tra-balho para as musicistas.

Observa-se, desde o início dos anos 1990,a redução sistemática desses postos de trabalhopor meio das reestruturações e fechamentos deorquestras, por razões políticas, justificadas pormeio de argumentos econômicos e artísticos(Segnini, 2008). Os ventos neoliberais sopraramforte nos teatros públicos, acompanhando as re-formas políticas que tornaram possível que oEstado adotasse medidas privatizadoras, inclu-sive no campo da arte e da cultura.6

As duas pesquisas citadas no inicio destetópico contribuem para a compreensão dos con-tratos de trabalho em orquestras, uma das pou-cas formas de trabalho com vínculo empregatício(trabalho formal), como é possível perceber, con-siderando as relações de trabalho no TheatroMunicipal de São Paulo (Segnini, 2006).

Contradições de um processo deprecarização no trabalho: o caso do TheatroMunicipal de São Paulo

A Orquestra Sinfônica Municipal de SãoPaulo foi criada pela Lei no. 3829, de 28 de de-

zembro de 1949, em vigor até o presente mo-mento, com o objetivo de possibilitar estabilida-de à orquestra, existente desde 1921, e entãodenominada Sociedade de Concertos Sinfônicosde São Paulo. Naquele período, a lei argumenta-va que criava, assim, condições para um traba-lho que, por ser estável, possibilitaria melhorescondições para atingir qualidade artística condi-zente com a função atribuída ao Municipal emum período de modernização do país.

A expansão da relação salarial modernano Brasil, em condições históricas específicas, éobservada nesse mesmo período, traduzida eminstituições e legislação que expressam relaçõessociais e se inscrevem em uma longa trajetóriade formas dominantes nas relações de trabalhoque se constituíram ao longo do século XX.

É verdade que os direitos sociais vincula-dos ao trabalho não foram jamais vividos portoda a classe trabalhadora, mas somente por certonúmero de categorias profissionais, entre elasservidores públicos, bancários, metalúrgicos, porexemplo. Mesmo assim, a implementação doprojeto de industrialização nacional possibilitoua institucionalização das relações de trabalho. Ocrescimento das relações formais de trabalho (edos direitos sociais) passou de 12,1% da Popula-ção Economicamente Ativa, em 1940, para 49,2%em 1980, o que significa, em termos absolutos,uma variação anual de 484,2 mil trabalhadores;de cada 10 ocupações geradas, 8 eram assalaria-das, sendo 7 com registro e uma sem registro(Pochmann, 1998).

Dessa forma, uma das características daconstituição da sociedade salarial analisada porCastel, é observada no país, de acordo com suasespecificidades históricas. Referimo-nos à “ins-crição em um direito do trabalho que reconheceo trabalhador como membro de um coletivo do-tado de um estatuto social além da dimensãopuramente individual do contrato de trabalho”(Castel, 1998, p.434).

Acesso ao direito a contrato de trabalho,salário, descanso remunerado, direito às férias,à aposentadoria com salário integral constituí-

5 Decreto 76.900, de 23/12/75. A RAIS registra somente oemprego formal no país.

6 A propósito da discussão sobre o Estado, a Reforma daAdministração Pública e formas de concessão do serviçopúblico indicamos a relevante contribuição da pesquisa-dora em Direito Administrativo da Faculdade de Direitoda Universidade de São Paulo: Di Pietro (2009).

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ram direitos do trabalho conquistados pelosmúsicos de orquestras sinfônicas, selecionadospor meio de concursos públicos, em diferentesestados e municípios brasileiros.

Assim, uma segunda dimensão constitutivado assalariamento, analisada por Castel, também éobservada nesse grupo, ou seja, a “fixação do traba-lhador em seu posto de trabalho” (1998, p.425). Aqualificação representa um custo para a organiza-ção do trabalho e, naquele momento histórico, osmúsicos da orquestra efetivamente constituíam um“corpo estável”, denominação que permanece até opresente, apesar das mudanças institucionais queatingiram seus contratos de trabalho.

A partir de 1989, anunciando um proces-so que se intensificou nos anos 1990, o TheatroMunicipal de São Paulo, assim como outras ins-tituições públicas, passaram a ser geridas a par-tir do critério das “Dotações orçamentárias”, quesubdividem o orçamento do município, atribu-indo a cada instituição um valor determinadopara compor o orçamento. Entre as rubricas cri-adas, destaca-se “Verbas de Terceiros”, na qualse inscrevem os “prestadores de serviços tempo-rários”. Desde então, os músicos da orquestrasão contratados nessa condição, o que os inscre-ve em uma situação extremamente instável detrabalho. Os músicos que se aposentaram noperíodo foram substituídos por músicos tempo-rários, mesmo os que lá trabalhem há mais dequinze anos. No presente, 80% dos contratos detrabalho dos músicos são renovados (ou não) acada seis meses, dentro de um período de onzemeses por ano. Durante o mês de janeiro, fériasde verão do Theatro Municipal de São Paulo,eles não recebem salário; os outros 20% dos com-ponentes da orquestra ainda se inscrevem nocontrato de trabalho denominado “Admitidos”,direito adquirido anteriormente e que garantiaestabilidade no trabalho (Segnini, 2008).

No presente, essa situação trabalhista ilegalé questionada não só pelos músicos, mas tambémpela própria Secretaria da Cultura e Administra-ção do teatro, conforme entrevista do SecretárioCarlos Augusto Calil a Ana Paula Souza (2009), na

qual afirma “O teatro tem contratos ilegais com osmúsicos e vive na informalidade.” (Souza, 2009).

A forma jurídica pretendida para superaressa situação reconhecidamente ilegal, na qual seinscrevem os músicos há quase duas décadas, étransformar “o Municipal numa Fundação de Di-reito Público e criar uma Organização Social (OS).O projeto, que deve ser encaminhado à Câmaraaté agosto, desvincula o teatro e todos os seus cor-pos artísticos – Orquestra Sinfônica, OrquestraExperimental de Repertório, Quarteto de Cordas etrês corais – da administração pública direta” (2009).7

As razões políticas e econômicas sãojustificadas na mesma entrevista concedida peloSecretário da Cultura, por meio das ações traba-lhistas advindas dessa irregular situação. “O go-verno está decidido a implantar a Fundação. OMinistério Público tem nos cobrado uma solu-ção, e a Prefeitura têm perdido uma série deações para os contratados que entram na Justi-ça.”, indica a mesma entrevista (Souza, 2009).

Essa é uma das dimensões de uma ques-tão política mais abrangente, observada a partirdos anos 1990: transformar os teatros públicosem instituições que permitam que eles tambémse integrem a um projeto neoliberal, com o ob-jetivo, conforme Di Pietro, (2009) de

....diminuir o tamanho do Estado, pela transfe-rência de atribuições estatais para o setor priva-do. Ainda que as concessões se façam por con-trato administrativo, portanto regidas pelo direitopúblico, e ainda que o poder público conserve aplena disponibilidade sobre o serviço, exerça a

7 No momento em que finalizávamos este artigo, a Prefeiturado Município de São Paulo publicou em seu site a criaçãoda Fundação Theatro Municipal de São Paulo: “A CâmaraMunicipal de São Paulo aprovou dia 5 de maio o Projeto deLei que autoriza o Poder Executivo a instituir a FundaçãoTheatro Municipal de São Paulo. O principal objetivo des-ta modificação é dar autonomia administrativa, financeira,patrimonial, artística e didática ao Theatro Municipal quecelebra seu centenário neste ano [...]. O formato escolhido éo de Fundação de Direito Público, ou seja, o Theatro Muni-cipal de São Paulo continuará vinculado à Secretaria Muni-cipal de Cultura, mas terá autonomia em campos essenciaiscomo o artístico e o financeiro. Neste modelo, será contrata-da uma Organização Social para gerir as atividades doTheatro Municipal de São Paulo. Trata-se de um projetoinédito que demandou engenharia administrativa para su-perar uma estrutura defasada e, ao mesmo tempo, garantirque as pessoas que trabalharam no Theatro Municipal aolongo dos últimos 30 anos não fossem prejudicadas.” Dis-ponível em: www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=9064. Acesso em: 13 maio 2011.

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fiscalização e fixe a tarifa ou outra forma de re-muneração, a execução do serviço estará entre-gue a uma empresa privada que atuará nos mol-des das empresas privadas, livre de procedimen-tos como concursos públicos, licitação, controlepelo Tribunal de Contas, e outros formalismosque costumam ser apontados como formas deemperrar a atuação da Administração Públicadireta e indireta (p.67).

Os contratos de trabalho, nesse novo for-mato institucional, são realizados comumente,pela CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas –,o que representa, no mínimo, uma ambiguidade,uma contradição: por um lado, a superação dailegalidade nas relações de trabalho, por outro, aderrota da esperança de serem reconhecidos nacondição trabalhista vivida até os anos 1980, eque ainda é percebida por 20% da orquestra,constituída de servidores públicos. Para tanto,todos os músicos serão submetidos a audições, oque pode representar um elevado grau devulnerabilidade e até mesmo de demissões.8

As orquestras sinfônicas, pouco a pouco enão sem conflitos, foram transformadas, por meioda ação do próprio Estado, em fundações e orga-nizações sociais, capazes de captar recursos pri-vados para o desenvolvimento de seus programasartísticos. Nesse processo, algumas orquestras fo-ram fechadas e outras reestruturadas. Isso querdizer que seus músicos foram submetidos às au-dições, que redundaram em demissões e novascontratações, não mais de acordo com o Estatutodos Funcionários Públicos, conforme determinaa Constituição Federal de 1988, mas na qualidadede trabalhadores temporários ou celetistas.9

Esse processo pode ser observado em mui-tas orquestras estatais no Brasil,10 inclusive na his-

tória da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo(OSESP), hoje considerada uma referência no país.Em 1997, audições realizadas no Brasil e na Bulgáriaselecionaram um terço dos músicos que compõemhoje a orquestra, substituindo os músicos servido-res públicos (sobretudo os de cordas), que foramafastados para compor a Sinfonia Cultura da Fun-dação Padre Anchieta, encerrada em 2005 pelogovernador do estado, Geraldo Alckmin.

Os artistas se mobilizaram politicamentepara denunciar essa situação que os vulnerabiliza,mas nem sempre conseguiram deter o processoque permanece até o presente na mesma dire-ção. O movimento Arte Contra a Barbárie foium dos mais atuantes no período.

A chamada modernidade da produção artística noBrasil sofreu uma brutal distorção a partir do go-verno Collor de Melo: o Estado passaria a regularas relações entre o mercado e os produtores decultura e artistas. Definiu-se: o bom é aquilo quevende. Nos oito anos de governo FernandoHenrique, aumentou a distorção, já que, além dafilosofia do sucesso a qualquer preço, particular-mente o patrocinado, privilegiou-se essa coisachamada marketing cultural, ganhando evidênciaa figura do atravessador, o captador de recursos.Consagrou-se a “renúncia fiscal” – empresas pú-blicas e privadas poderiam aplicar em culturaparte do imposto de renda a pagar. Permitiu-se atéque fundações e instituições ligadas a bancos eestações de televisão, entre outras empresas pri-vadas com fins lucrativos, se beneficiassem dodinheiro público. A renúncia fiscal poderia terimpulsionado a produção cultural, mas não foi oque se viu. No teatro, acabou por privilegiar gru-pos ou artistas que conseguiram popularidade natelevisão ou têm longos anos de palco, deixandopara trás muitos de seus colegas que enfrentam di-ficuldades financeiras para encenar uma peça. Osmarquetólogos da arte não costumam nem sequerapreciar um projeto onde não apareça o nome deum ator da Globo. Apesar de tudo, algumas ilhasde reflexão sobre a questão cultural espalharam-sepelo país, procurando repensar a obra de arte nãocomo simples mercadoria [...]. Para mim, barbárieé, entre outras coisas, a questão das políticas pú-blicas e acho que o movimento botou o dedo naferida. Ficou evidente o seguinte: nunca houve tan-tos recursos para fazer arte no país e nunca essesrecursos foram tão desviados para as mãos de gen-te que deles não necessitava, ou seja, continua afarra com o dinheiro público11 (Almada, 2003).

8 Ver Pichoneri, (2011) que, na sua tese, pesquisou relaçõesde trabalho desenvolvidas no setor artístico, buscandocompreender as formas e condições em que se dá o pro-cesso de organização do trabalho dessa categoria profissi-onal no atual contexto de mudanças na sociedade capita-lista. Ela indaga como as mudanças recentes são implan-tadas e, para tanto, analisou o financiamento que lhes dásuporte, as leis que determinam a sua organização, asmudanças nos contratos de trabalho e as implicações soci-ais sobre os músicos.

9 Trabalhadores contratados pela Consolidação das Leis do Tra-balho, forma jurídica referente às empresas privadas no Brasil.

10 A exemplo de: Orquestra Sinfônica de Sergipe, OrquestraSinfônica Brasileira, Orquestra Filarmônica de Minas Gerais,Orquestra Filarmônica do Espírito Santo, entre outras.

11 Entrevista realizada por Izaias Almada na Caros Amigos,Edição 77 (2003) com os artistas fundadores do movimen-to: Eduardo Tolentino, Marco Antonio Rodrigues, LuizCarlos Moreira e César Vieira.

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Músicos do Leste Europeu: qualificação emigrações internacionais

A imigração recente de músicos russos,romenos, búlgaros, ucranianos e poloneses parao Brasil, observada a partir da década de 1990,expressa mudanças políticas observadas no con-texto da mundialização. Para tanto, dois fenô-menos convergiram: por um lado, a fragilizaçãopolítica desses países possibilitou a deterioraçãodas condições de trabalho de artistas historica-mente formados por conservatórios estatais, comlonga tradição técnica e reconhecida excelênciano campo musical. Por outro lado, a partir de1995, houve um intenso crescimento do campomusical no Brasil, financiado pela expansão dasleis de incentivo fiscal no âmbito federal, esta-dual e municipal, e, sobretudo, pela participa-ção das grandes corporações no processo de cri-ação de fundações e organizações sociais priva-das gerindo instituições públicas, tal conformejá analisado.

No período 1998 até 2006, é observado ocrescimento do número de imigrantes que entra-ram no país, de acordo com a Coordenação Geralde Imigração (CGIg), com autorizações concedidasa estrangeiros: de 13.805 para 25.440. Elevado graude escolaridade é predominante nesse grupo. Nele,considerando as profissões declaradas, em todosos anos é observado elevado número de “artistasou desportistas, sem contrato de trabalho”. O Bra-sil é reconhecido “exportador” de esportistas, nãoum país de imigração desse grupo ocupacional, oque permite a hipótese de que esses números sereferem, sobretudo, a artistas. Infelizmente, nãofoi possível desagregar esse grupo.

Entre os imigrantes oriundos do Leste eu-ropeu, países de origem de muitos músicos es-trangeiros que vivem no Brasil, só estão disponí-veis dados para a Rússia, Polônia e Ucrânia. Mas,mesmo assim, os números são representativos.

A imigração de músicos oriundos dos pa-íses do Leste europeu foi uma das estratégiasimplementadas por várias orquestras brasileiras,em várias regiões do país, na busca da conjuga-ção do binômio excelência musical e contratosde assalariamento distantes das condições de tra-balho dos servidores públicos, sobretudo no quetange à condição de estabilidade no trabalho. Nofinal dos anos 1990, audições foram realizadaspor músicos representantes das orquestras bra-sileiras nos próprios países europeus, como aRomênia, por exemplo. O objetivo foi o de sele-cionar, sobretudo jovens, homens e mulheresinstrumentistas com alto nível de qualificação,formados em escolas e conservatórios públicostradicionais. Esses músicos tocavam em orques-tras estatais com contratos que lhes assegura-vam salários muito baixos, em torno de 200 dó-lares mensais, em decorrência da grave crise eco-nômica e política na região.

No Brasil, com contratos temporários re-novados (ou não) duas vezes ao ano, recebiamem torno de trinta vezes mais do que em seuspaíses de origem, sobretudo no curto períodode tempo durante o qual as moedas dólar e realse equivaleram.

A preocupação financeira maior dessesmúsicos era enviar dinheiro para casa, para aRomênia, no exemplo citado, informaram os en-trevistados. Nos primeiros meses, precisavamenviar também dinheiro para o músico romeno

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que organizou o processo seletivo, até que, des-coberta essa exigência, ela foi contestada por re-gentes brasileiros, que ameaçaram denunciar oesquema articulado, conforme entrevista reali-zada com um dos membros da direção adminis-trativa da OSESP – Orquestra Sinfônica do Es-tado de São Paulo – naquele período.

A internacionalização de intérpretes é ob-servada em diferentes momentos da história damúsica e das orquestras; significa, sobretudo, umadas formas de aperfeiçoamento profissional e deaprendizagem nesse contexto de trabalho.

No entanto, a singularidade da relação en-tre competência em música e precarização de con-tratos de trabalho informa uma nova dimensãodesse fenômeno. No contexto da mundialização,trabalhadores artistas altamente qualificados sãoprecarizados nas relações de trabalho porque sãofragilizados social e politicamente, como infor-mam os músicos do Leste europeu, que só seinscrevem dessa forma nas orquestras brasilei-ras porque os músicos brasileiros também assimvivenciam seus contratos de trabalho.

Outra iniciativa no setor cultural é o projeto domaestro e arranjador paulista Júlio Medaglia queprevê a criação de uma Orquestra Filarmônicapara Joinville.A proposta é que ele assuma o projeto da orques-tra filarmônica nos mesmos moldes daquele porele desenvolvido em Manaus, por ocasião do cen-tenário da morte de Carlos Gomes. O projeto deMedaglia prevê o aproveitamento de talentos lo-cais e regionais, que se somarão a músicos depaíses do Leste Europeu (Bulgária, Romênia, en-tre outros).Ainda não há prazo definido para a implantaçãoda filarmônica. Segundo o prefeito Luiz Henriqueo projeto será enviado ao Ministério da Culturapara ser aprovado e viabilizado com recursosda Lei do Mecenato.Segundo o maestro num prazo de um mês, apósa escolha dos músicos, a orquestra estará prontapara apresentações. (Revista Cidades do Brasil,2001, grifo nosso)

Os músicos do Leste Europeu entrevista-dos informam suas motivações, desafios, conquis-tas – “aqui tem sol!”, frase reiterada nas entrevis-tas, mas também a saudade e a dor da separaçãode sua cultura, familiares. Nesse sentido, homens

e mulheres se aproximam em seus depoimentos,assim como em relação às incertezas vivenciadas.

– ...junto com a conclusão da Universidade eu jáprestei um concurso, que veio um empresário bra-sileiro na Bulgária para selecionar músicos pravárias orquestras aqui no Brasil, o que a gente fi-cou sabendo que foram dois ou três lugares. Só queo único apoio que sobrou assim da iniciativa priva-da, que mudou os planos, isso era noventa e dois,noventa e um, noventa e dois na época do Collor,quando ele estava assumindo a presidência. En-tão, o que aconteceu é que só a cidade de Ribeirãomanteve o interesse e em particular um shopping,que chamava Shopping Ribeirão, que pagou a nos-sa passagem e pagava o salário. Então a nossa situ-ação na época era diferente da orquestra, tem umaorquestra a Sociedade Libero Musical que apoia osmúsicos e na época o Shopping Ribeirão pagava onosso salário. E isso foi interessante, porque teveuma grande mudança por parte também dos músi-cos brasileiros, eles precisavam se adaptar rápido,depois eles tinham exigências maiores sobre salárioe mudou, a orquestra mudou muito com essa vin-da de doze músicos pra cá. E na época, na Bulgária,no teste na Bulgária, foram selecionados trinta eseis, então o empresário depois contou pra genteque teve acho que três orquestras, de doze músicospra cada orquestra, eu não sei quais são as outras[...], mas eu creio que uma foi em Ribeirão e aoutra foi em Manaus. [...]. Porque depois deu certo,aí eles foram de novo pra Bulgária e pegaram ou-tros músicos, alguns que estavam por aí, outrosmúsicos brasileiros, mesmo de Ribeirão tinha al-guns gente que foram pra lá. [...]. Alguns músicosvoltaram pra Bulgária e aquele grupo [...], outrosvieram aqui, têm alguns que hoje estão na Orques-tra Sinfônica Estadual (Entrevista com Búlgaro,Oboé, OSS, 25/09/2003).

Indagado sobre as motivações que o fizerama vir para o Brasil, informa que viveu “uma aventu-ra” e se referiu às mudanças vividas no período e àsdificuldades, no presente, para retornar ao seu país.

– É, o meu caso foi meio que aventura, porque ocontrato foi um contrato de um ano, com seis

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meses você poderia voltar, foi tudo pago, umsalário relativamente bom, na época era emdólar porque tinha muita inflação e tinha tam-bém uns extras, tipo saúde, dentista, metadedo aluguel pagava, a orquestra tinha um clu-be, eu era solteiro na época. E eu tinha umamigo, que a gente veio junto, um amigo flau-tista que também passou no teste, que hojeestá nos Estado Unidos, e nós resolvemos virpara ver que era, uma oportunidade de vocêconhecer um país. Aí depois você sabe como éque é, as coisas mudam, a gente vai, tomaum rumo diferente, às vezes você casa, às vezesvocê corta os contatos na Bulgária ou no paísque você está e hoje, por exemplo, pra eu voltarpra lá é começar do zero, você tem que esperarum concurso de novo, ver as exigências, essascoisas mudam, como qualquer país que vocêvai agora e chega lá e que vai fazer? (Entrevistacom Búlgaro, Oboé, OSS, 25/09/2003)

O campo da música na perspectiva das relaçõessociais de sexo: retomando as análises elabora-das pelos autores clássicos em sociologia

O campo da música é predominantemen-te masculino. Em 1992, entre 50.839 músicos,somente 5% eram mulheres. Em 2006, quatorzeanos depois, as musicistas representam 18%(15.235) dos ocupados (118. 431) que se decla-ram músicos. No período 2004 a 2006, essa ten-dência se inverte, e é possível perceber discretaredução do número de mulheres na música(IBGE/PNAD, 2007).

Considerando tão somente o trabalho for-mal, com registro em carteira, mensurado anu-almente pelo Ministério do Trabalho e Emprego(RAIS), a presença das mulheres se manteve emtoda a década dos anos 1990 em torno de 20%,crescendo para 32%, a partir de 2001.

No entanto, o crescimento dos empregosformais em música no período de 1989 a 2006foi reduzido (passando de 5.546, em 1989, para7.700, em 2006). Nos últimos três anos – 2004 a

2006 – o crescimento do número de postos detrabalho refere-se tão somente aos homens – 927músicos a mais em empregos formais – enquan-to, foram reduzidos 164 postos de trabalho paraas mulheres, na mesma área (MTe/RAIS, 2006).Portanto, a situação das mulheres nesse camponão é ainda consolidada, sobretudo nas orques-tras, espaço possível para o trabalho com regis-tro em carteira profissional.

A pesquisa realizada na Orquestra Sinfô-nica Municipal informa que as mulheres entra-ram mais recentemente nessa formação orques-tral, já inscritas nos contratos anteriormente re-feridos, nomeados “Serviços de Terceiros”, ouseja, mesmo selecionadas em concursos públi-cos, não foram contratadas na qualidade de ser-vidores públicos.

Várias estratégias possibilitaram o rompi-mento das barreiras desse espaço de trabalhopredominantemente masculino pelas mulheres,conforme atestam as entrevistas realizadas nes-sa pesquisa. Entre elas, destacam-se as audiçõesrealizadas com biombos, com o objetivo de ocul-tar a identidade do músico nos processos seleti-vos e revelar tão somente sua competência nomomento da prova, ou por pertencerem a reco-nhecidas famílias de músicos, ou ainda por indi-cação de prestigiados músicos ou regentes(Ravet, 2003). Em 2005, elas representavam 26%dos músicos da orquestra. Elas são intérpretes,sobretudo nas cordas, predominantemente noviolino. Essa situação observada no TheatroMunicipal de São Paulo foi reiterada na pesqui-sa realizada na Ópera de Paris.

O reconhecimento de que não se trata deum problema de formação profissional ou qua-lificação artística, nem mesmo físico (peso doinstrumento), mas de uma questão social, quesepara e hierarquiza o trabalho de homens emulheres, não minimiza as dificuldades por elasencontradas para ingressar nas orquestras comomusicistas de fila, intensificadas quando se tratados prestigiosos postos de solistas (Kergoat, 2001).

Na Orquestra Sinfônica Municipal, entre astrinta mulheres instrumentistas, somente quatro ocu-

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pam o cargo de primeira solista nos instrumentosviola, flauta, harpa e piano.12 Todas as outras 26profissionais, no Brasil, são musicistas de fila.

Tal diferenciação, que reescreve as desi-gualdades já observadas em outros setores, vin-cula-se a um substrato material concreto, inscri-to na escala salarial, assim como nas condiçõesde trabalho, ou seja, os solistas e os primeirosinstrumentos percebem salários mais elevados.

No entanto, qualquer que seja o ângulo daanálise – possibilidade de acesso, salário, condi-ções de trabalho, como solistas ou musicistas defila –, é relevante salientar que essas mulheresrompem as barreiras sociais de ingresso nas or-questras por meio da mesma via: a qualificação.Assim, pouco a pouco, mesmo que ainda de for-ma insuficiente, inscrevem-se no trabalho emformações orquestrais de grande prestígio.

Os músicos premiados pelo Rumos ItaúCultural reiteram o sentido apontado pelos da-dos nas estatísticas nacionais, assim como as in-formações já presentes na Orquestra Sinfônicade São Paulo. Entre os 37 músicos premiados eentrevistados, vinte e dois são homens e quinzemulheres (40%). Elas informam as dificuldadesvivenciadas no cotidiano profissional, quer sejana música erudita, popular ou de raiz.

A diferença numérica é traduzida por de-sigualdades superadas com dificuldade e resis-tência. A forma de resistência às desigualdadesvividas é elaborada predominantemente pormeio de muito trabalho, qualidade artística, numcomportamento metaforicamente caracterizadocomo “muito macho”.

– “Ah! Então, a gente é meio homem macho. A gen-te é super foco... Estudamos todos os dias (riso).”(Bianca Gismonti, Duo Gisbranco, 23/05/08).

Alessandra revela que a sua musica é in-fluenciada pela sua condição da mulher em uma

família de mulheres fortes, distantes do estereóti-po de “mulherzinhas”. Seu primeiro grupo foicomposto somente por mulheres que faziam per-cussão e voz. A percussão é um campo predomi-nantemente masculino no mundo da musica, e,conforme informa Alessandra, na musica tradici-onal (de raiz) é praticamente interditada às mu-lheres. Comumente, ao se apresentar com sua atualbanda (composta por homens instrumentistas)para um público de música tradicional, cumpri-mentam Caçapa, seu marido, pelo trabalho dela.

– Quando eu toco e reconhecem a qualidade dotrabalho, cumprimentam meu marido pelo o quefaço [...]. Hoje, não mais, mas há dez anos, quan-do eu começava a tocar nas brincadeiras, os ho-mens vinham e tiravam o coco da minha mão;não era instrumento para mulher na tradiçãopernambucana. É uma região muito machista!(Entrevista com Alessandra Leão, 24/05/08).

Cláudia, Bianca e Alessandra reafirmam aná-lises elaboradas para outros campos de pesquisareferentes às relações sociais de sexo, as quais reco-nhecem que os grupos sexuados não são o produtode destinos biológicos, mas antes construtos soci-ais; esses grupos constroem-se por tensão, oposi-ção, antagonismo, em torno de um desafio, o dotrabalho (Kergoat, 2001). O trabalho, tal como con-siderado pela autora, citando Hirata, é “produtorde vivência” e, nesse sentido, tem duplo estatuto.No plano coletivo, inclui o trabalho profissional (emsuas múltiplas possibilidades) bem como o traba-lho doméstico, que tem significado a disponibilida-de permanente do tempo das mulheres para o ser-viço da família. No plano individual, Kergoat recu-pera a perspectiva analítica que considera que a ati-vidade de trabalho é produção de si mesma. Poressa razão, a autora propõe que pensar sociologica-mente as relações sociais de sexo no trabalho signi-fica recuperar os aspectos coletivos e subjetivos. Aesfera produtiva, sobretudo nas funções considera-das relevantes, ainda é predominantemente atribu-ída aos homens, da mesma forma que a esferareprodutiva às mulheres. A implicação dessa forma

12 Na Orchestre de l´Opéra National de Paris, composta pormúsicos, entre as quarenta e quatro mulheres na orques-tra, somente três ocupam o cargo de primeira solista (se-gundo violino, flauta e piano), seis são segundo solistas(contrabaixo, duas flauta, duas oboé, fagote), e, três se ins-crevem na posição de terceiro solistas (violino).

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social de divisão do trabalho pode ser percebidapor meio de dois princípios organizadores: o daseparação e o da hierarquia. Isso quer dizer que,na sociedade, observa-se a existência de traba-lhos considerados de homens (por exemplo: to-car coco, na música de raiz, ou piano, na músicapopular ou erudita) e outros de mulheres (can-tar) e, mais ainda, que os primeiros valem mais,tanto em termos econômicos como de status.

As diferenças percebidas nas formas quepodem assumir essas desigualdades, no tempo eno espaço, variam segundo os contextos históri-cos e os lugares observados. No entanto, Kergoatadverte para o risco de se compreender essa si-tuação como imutável e aponta para a qualifica-ção profissional com uma das possibilidades deelaboração de desafios a essa ordem aparente-mente “natural”, significando uma possibilidadeconcreta de superação, de elaboração de utopi-as, de espaços igualitários de trabalho, reivindi-cações e exercício da cidadania.

A difícil articulação entre trabalho artísti-co e família, entre trabalho altamente qualifica-do, que requer estudo permanente, e trabalhodoméstico, foi evidenciada pelas mulheres quereiteraram as dificuldades vividas, sobretudoapós a maternidade.

Pianista e solista, uma musicista russa in-forma a difícil situação vivida por ela e por suascolegas, brasileiras e estrangeiras.

– O trabalho é árduo: ensaios diários, concer-tos, já seriam suficientes para comprometer oscuidados com meu filho. Meu marido e mi-nha sogra me ajudam muito. Mas, a pressãomaior está na necessidade de estudar muito,participar de gravações, de grupos de Câma-ra, sobretudo de turnês fora do país. Nessemomento, é muito sofrido, nesse momento eugostaria de ter mais tempo para meu filho.Não só eu: pergunte para todas, elas tambémsentem isso! (Entrevista com pianista russa,OSESP, 20/01/2007).

A pianista entrevistada nasceu em 1979,

no Uzbequistão, república da extinta União So-viética. Iniciou seus estudos de piano com o pró-prio pai e, aos seis anos, ingressou na Escola deMúsica de Uspensky, em Tashkent. A partir de1994, transferiu-se para a Escola de Música doConservatório Tchaikovsky em Moscou, ondeestudou com a renomada pianista TatianaGalitskaia. Desde então, iniciou sua trajetória deconcertista, em Moscou e em outras cidades rus-sas, em recitais solo e de câmara. Mudou-se parao Brasil em 1999, inscrevendo-se, ainda em Mos-cou, em audições abertas para selecionar músi-cos no processo de reestruturação da OrquestraSinfônica do Estado de São Paulo. Foi aprovadae, com vinte anos apenas, assumiu o posto depianista titular da Orquestra Sinfônica do Esta-do de São Paulo. Em sua entrevista, destaca oapoio que recebeu da Igreja Evangélica Russa,no Brasil, no seu processo de adaptação no país.

As tensões descritas nas tentativas de conci-liação entre família, filho e carreira artística foramreiteradas pelas mulheres em suas entrevistas, masnão explicitadas pelos músicos. Eles se mostravamreconhecidos pelo apoio recebido das mulheres efilhos, mas não culpados pela ausência.

A maternidade expressa um paroxismo davulnerabilidade nos contratos temporários emorquestras, tal como na Sinfônica Municipal.

No Brasil, de acordo com a Consolidaçãodas Leis do Trabalho (CLT) ou com o Estatutoda Função Pública, a trabalhadora tem direito aquatro meses de licença-maternidade – assegu-rada às mulheres que compõem os corpos está-veis, incluindo orquestra, já nas décadas de 1950a 1980, período de expansão dos direitos traba-lhistas na função pública.

Atualmente, a maternidade não é mais vistacomo direito do trabalho, pois ela não é previstanos contratos temporários, mas como “camarada-gem”, “compreensão da direção artística”. Nessacondição, as mulheres-mães-artistas permanecem noteatro ocultas, sob a luz dos holofotes. Isso porque,no caso específico das instrumentistas, elas relatamacordos feitos com os colegas de mesmo naipe, ouseja, assumem um número de concertos maior du-

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rante a gravidez, substituindo-os, e, em troca, sãosubstituídas por eles durante o breve período quese ausentam em “licença-maternidade”.

– Continuam [a pagar] pelo seguinte... Porque onaipe é coberto, a gente depende do nosso nai-pe... Um esquema de revezamento, no meucaso, eu sabia que eu ia ter o neném maisperto dessa época, então eu quis trabalharmais, antes, para poder ter mais folga mesmoagora, porque senão pesa muito, fica muitodescompensado. Então eu, no naipe devioloncelos, era quem tinha menos folga, por-que eu deixei mesmo para poder ter de fatofolga agora. Então, agora, eu estou de folga...Eu me lembro que eu fiquei tão mal uma épo-ca que teve demissões, eu estava grávida, ain-da mais isso, eu estava grávida da Maria. Aique sensação horrível, nossa, de não saber oque fazer assim. (Entrevista com Violoncelista,Orquestra Sinfônica Municipal, 31/08/2004)

Dessa forma, as mulheres musicistas altamen-te qualificadas, que ocupam postos de trabalho paraos quais prestaram concurso público, mas sem aces-so a direitos trabalhistas, expressam respostas con-temporâneas às formas de vulnerabilidade e preca-riedade ainda mais intensas do que as vividas pe-los seus colegas do sexo masculino. Dessa forma,respeitando tempos e espaços distintos, a situaçãodas mulheres musicistas, analisadas no presente,tem uma analogia com o trabalho das mulheres pre-sente na análise dos sociólogos clássicos do séculoXIX, aqui analisados.

O RETORNO DO BURGUÊS FIDALGO

Reler os sociólogos fundadores das análi-ses sociológicas sobre o trabalho possibilitou evi-denciar a articulação, no presente, de dimensõesque informam possibilidades de vulnerabilidadee precariedade que submetem os trabalhadores,sobretudo as trabalhadoras, no campo da músi-ca, em orquestra sinfônica vinculada ao Estado.

Nesse grupo, os direitos sociais vincula-dos ao trabalho são ameaçados, tornando os tra-balhadores vulneráveis. Para tanto, o Estado, pormeio de suas políticas públicas, torna-se um dosprincipais agentes na implementação da perdade direitos, na contratação de trabalhadores es-trangeiros vulneráveis, na transferência de mú-sicos de conservatórios e orquestras vinculadasao próprio Estado para cooperativas ou contra-tos temporários (mesmo que renovados há maisde dez anos). Democraticamente, sem o arbítriode um regime autoritário recente, o processo deprivatização do Estado foi implantado por meiode políticas neoliberais e também se manifestano campo da cultura por meio da criação de Fun-dações geridas por Organizações Sociais de Inte-resse Público (Oscips), contribuindo para adesconstrução dos vínculos empregatícios outro-ra existentes para os trabalhadores na condiçãode servidores públicos.

No presente, a Consolidação das Leis doTrabalho assume a forma de trabalho proposta poressas orquestras reestruturadas, cujo financiamen-to está vinculado a recursos públicos, geridos porinstituições privadas por meio da renúncia fiscal,possibilitando analogia com o retorno do BurguêsFidalgo no financiamento da arte. Após um longoperíodo de contratos de curta duração, a perda dedireitos, representada pela passagem de um regimea outro, fica oculta sob o medo dos processos dereestruturação, audições que demitem alguns e pos-sibilitam a imigração de outros, também altamentequalificados, mas fragilizados socialmente nos seuspaíses de origem.

A singularidade desse campo de pesquisacontribui para a análise do papel do Estado nadesconstrução dos direitos sociais vinculados aotrabalho, por meio da criação de fundações e orga-nizações sociais, na construção de formas precári-as de trabalho e reitera a capacidade de as relaçõesde gênero trazerem à luz as formas mais vulnerá-veis ainda vividas pelas mulheres.

(Recebido para publicação em 25 de maio de 2011)(Aceito em 19 de junho de 2011)

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Liliana Segnini - Socióloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Professora titular e pesquisadora doDepartamento de Ciências Sociais na Educação (Decise) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp) e professora do programa de Doutorado em Ciências Sociais, na área “Trabalho, Política eSociedade” do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Tem experiência na área de Sociologia,com ênfase em Sociologia do Trabalho, atuando principalmente nos temas: relações de gênero, sociologia dotrabalho, sociologia do desemprego, divisão internacional do trabalho, mundialização, mercado de trabalho,trabalho artístico – música e dança, trabalho e indústria cultural. É co-organizadora do livro Organização, trabalhoe gênero (Ed. Senac, 2007), dentre outros, e tem artigos em diversos periódicos ERA; Cadernos Pagu; Educação eSociedade; São Paulo em Perspectiva;, Cahiers du Genre; Travailler; Travail, Genre et Sociétés; Trabalho e Educação;ComCiência; Katalysis.

WHAT REMAINS WHEN EVERYTHINGCHANGES? Precariousness and vulnerability

of labor in a sociological perspective

Liliana Segnini

Sociological theory, after the nineteenthcentury, examined the multiple facets of laborsubjected to precarious conditions and marked bythe vulnerability of the worker. Several authorshave dedicated themselves to this issue during thetwentieth century, even during the consolidationof wage society, threatened at present. The aim ofthis paper is to contribute to this debate throughresearch findings over the past decade, that informus of the permanence of the issues observed in thefounding analyses of this field of study, but alsonew dimensions to be considered for a bettersociological understanding of the contradictionsobserved in precarious work, a source ofvulnerability for workers. We favor analytically afield of research in which workers are educated,predominantly college graduates and highlyqualified professionals: we refer to the artistic workof musicians in orchestras in Brazil and the State’srole in building the suppression of labor-relatedrights.

KEYWORDS: sociological theory, gender relations,orchestra musicians, precarious labor.

QUE RESTE-T-IL LORSQUE TOUT CHANGE?La précarité et la vulnérabilité du travail

dans une perspective sociologique

Liliana Segnini

La théorie sociologique a analysé, dès la findu XIXe siècle, les multiples facettes du travailsoumis à des conditions précaires et caractériséespar la vulnérabilité du travailleur. Plusieurs auteursse sont consacrés à cette question au cours duXXe siècle, même lors de la consolidation de lasociété salariée aujourd’hui menacée. Le but decette étude est d’apporter une contribution à cedébat en utilisant les résultats de rechercheseffectuées au cours des dix dernières années.Celles-ci nous fournissent des informationsconcernant la constance des problèmes observésdans les analyses qui sont à la base de ce champd’étude. Il y a cependant de nouvelles dimensionsqui doivent également être prises en considérationpour une meilleure compréhension sociologiquedes contradictions observées dans le travailprécaire, source de vulnérabilité pour lestravailleurs. Pour l’analyse, nous avons privilégiéune enquête sur le terrain où les travailleurs sontscolarisés et ont pour la plupart un niveauuniversitaire et sont hautement qualifiés sur leplan professionnel: il s’agit du travail artistiquedes musiciens au sein des orchestres, au Brésil, etdu rôle de l’État dans l’élaboration de lasuppression des droits liés au travail.

MOTS-CLÉS: théorie sociologique, relations degenre, musiciens d’orchestres, travail précaire.