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Universidade Federal de Juiz de Fora Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Leonara Lacerda Delfino O Rosário dos Irmãos Escravos e Libertos: Fronteiras, Identidades e Representações do Viver e Morrer na Diáspora Atlântica. Freguesia do Pilar-São João Del-Rei (1782-1850) Juiz de Fora 2015

O Rosário dos Irmãos Escravos e Libertos: fronteiras, identidades e representações do viver e morrer na Diáspora Atlântica – Freguesia do Pilar, São João Del-Rei (1782 –

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O Rosário dos Irmãos Escravos e Libertos: fronteiras, identidades e representações do viver e morrer na Diáspora Atlântica – Freguesia do Pilar, São João Del-Rei (1782 – 1850) Tese de Doutorado

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  • Universidade Federal de Juiz de Fora

    Instituto de Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    Leonara Lacerda Delfino

    O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos:

    Fronteiras, Identidades e Representaes do Viver e Morrer na Dispora

    Atlntica.

    Freguesia do Pilar-So Joo Del-Rei (1782-1850)

    Juiz de Fora

    2015

  • Leonara Lacerda Delfino

    O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos:

    Fronteiras, Identidades e Representaes do Viver e Morrer na Dispora Atlntica.

    Freguesia do Pilar- So Joo Del-Rei (1782-1850)

    Texto final apresentado ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria, rea de

    Concentrao: Narrativas, Imagens e

    Sociabilidades da Universidade Federal de

    Juiz de Fora, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Doutorado em

    Histria.

    Orientadora: Prof. Dr. Clia Maia Borges

    Juiz de Fora

    2015

  • Ficha catalogrfica elaborada atravs do programa de gerao automtica da Biblioteca Universitria da UFJF,

    com os dados fornecidos pelo(a) autor(a) Delfino, Leonara Lacerda.

    O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos : Fronteiras,

    Identidades e Representaes do Viver e Morrer na Dispora

    Atlntica. Freguesia do Pilar de So Joo del-Rei (1782-1850).

    / Leonara Lacerda Delfino. -- 2015.

    526 f.

    Orientadora: Clia Maia Borges

    Tese (doutorado) - Universidade Federal de Juiz de Fora,

    Instituto de Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em

    Histria, 2015.

    1. Representao. 2. "boa morte". 3. dispora atlntica. 4.

    ancestralidade. 5. Irmandade do Rosrio. I. Borges, Clia

    Maia, orient. II. Ttulo.

  • Leonara Lacerda Delfino

    O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos: Fronteiras, Identidades e

    Representaes do Viver e Morrer na Dispora Atlntica.

    Freguesia do Pilar- So Joo Del-Rei (1782-1850)

    Texto final apresentado ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria, rea de Concentrao: Narrativas, Imagens e

    Sociabilidades da Universidade Federal de Juiz de Fora,

    como requisito parcial para a obteno do ttulo de

    Doutorado em Histria

    Orientador (a): Dr. Prof. Clia Maia Borges.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Anderson Jos Machado de Oliveira (UNIRIO)

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Lucilene Reginaldo (UNICAMP)

    Universidade Estadual de Campinas

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Clia Maia Borges (Orientadora)

    Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Robert Daibert Jnior

    Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Mnica Ribeiro de Oliveira

    Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

    ______________________________________________

    Suplente Externo Prof. Dr. Cludia Rodrigues (UNIRIO)

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    ________________________________________________

    Suplente Externo Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (UFJF)

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    Data de Aprovao 25/06/2015.

  • Aos meus pais, Antnio e Olvia, pela referncia que so

    em minha vida.

    Ao meu companheiro Felipe (principal entusiasta deste

    trabalho) e ao velho malungo Eduardo, pela amizade de

    anos.

  • AGRADECIMENTOS:

    Agradeo, em primeiro lugar, minha orientadora Clia Maia Borges pelas diretrizes

    fundamentais, aconselhamentos, leituras, conversas e por todo aprendizado construdo ao

    longo destes quatro anos. A sua competncia, seriedade e sensibilidade perante as questes

    sobre o tema das religiosidades serviro para mim como referncia crucial aos meus projetos

    futuros. Agradeo Clia principalmente por sua generosidade, parceria e pela confiana

    depositada neste trabalho.

    Ao Programa de Ps-Graduao de Juiz de Fora por ter acolhido este projeto,

    principalmente aos professores Alexandre Mansur Barata, Carla Maria de Almeida, Beatriz

    Helena Domingues, Maria Fernanda Vieira Martins e Mnica Ribeiro de Oliveira. Aos

    amigos de curso, em especial, Monalisa Pavonne, Manoela Arajo, Nvea Mendona e

    Cristiano de Oliveira Souza, pelas trocas de materiais, conversas, e por me socorrerem sempre

    em minhas dvidas com os irmos de outras confrarias e ordens terceiras. Agradeo

    tambm ao Daniel Precioso no s pela transcrio de um documento da Biblioteca Nacional,

    durante o tempo em que estive fora, mas pela ateno sempre cuidadosa em me responder

    questes por e-mails.

    instituio de fomento pesquisa CAPES Coordenao de Aperfeioamento

    Pessoal de Nvel Superior por ter financiado o custeio de todas as viagens a congressos,

    visitas aos arquivos, bibliotecas, estgio no exterior e todas as atividades acadmicas. Sem

    este amparo a pesquisa no teria sado do lugar.

    banca de qualificao composta pelos professores Anderson Jos Machado de

    Oliveira e Mnica Ribeiro de Oliveira pelos caminhos apontados mediante a leitura cuidadosa

    do meu texto ainda em processo de maturao; sem as ponderaes colocadas durante o

    exame, o trabalho no teria alcanado este formato. Agradeo tambm aos professores Robert

    Daibert Jnior e Lucilene Reginaldo por terem aceitado prontamente o convite em participar

    desta defesa. professora Cludia Rodrigues pelas observaes feitas durante o simpsio

    Imagens da Morte promovido pelo encontro da ANPUH de 2013. Devo lembrar a

    importncia deste evento para a redefinio do meu objeto, posso dizer que foi neste

    momento, ouvindo as discusses dos trabalhos apresentados, que me apaixonei

    definitivamente pelo tema da histria da morte.

  • Em minhas andanas por Mariana, Campanha, So Joo del-Rei e outros arquivos no

    pude deixar de fazer amigos e desenvolver respeito s pessoas e profissionais que me

    auxiliaram diretamente nesta jornada. Sou grata s meninas da Repblica Intocveis, em

    especial Larissa Accorsi (Pipico), pela recepo durante as visitas de arquivos e eventos. Ao

    casal amigo Moiss Trres e Larissa Mendes de So Joo del-Rei por terem recebido-me,

    abrindo-me as portas aos principais contatos da cidade. s professoras da UFSJ: Maria

    Lenia Chaves de Resende, Silvia Maria Jardim Brgger a primeira pelo acesso ao

    material digitalizado dos compromissos das irmandades de So Joo del-Rei e a Silvia,

    pela gentil disponibilidade do seu banco de dados sobre os registros de batismo.

    Ao Jairo Braga Machado, representante do acervo alocado no Instituto do Patrimnio

    Artstico Nacional de So Joo del-Rei, ao antroplogo Daniel Albergaria da Silva,

    pesquisadora Lvia Monteiro, ao professor Renato da Silva Dias, Edriana Nolasco e ao

    Patrick Salomo Avila. Ao seu Nelson Antunes, por me permitir fotografar todo acervo da

    Irmandade do Rosrio e Kellen Cristina Silva, por me emprestar a cpia do livro de

    entradas do Rosrio de Tiradentes. Lembro aqui meus agradecimentos ao pessoal de

    Campanha, sempre gentis e hospitaleiros, em especial, Aneliza Furtado, assistente na Cria

    de Campanha; Raphaella, funcionria do CEMEC-SM (Centro de Memria Cultural do Sul

    de Minas); Luciana Cludia, por me acudir com sua mquina digital quando a bateria da

    minha acabou, e amiga Prola Castro pelas conversas sobre o sul de Minas. Em Baependi

    fui agraciada pelas gentis indicaes de In Braslio e de Liliane Corra, sempre solcitas em

    responder por mensagens eletrnicas as minhas inquietaes sobre as memrias locais.

    Durante o breve e no menos importante perodo em que passei a freqentar os

    acervos de Lisboa, pude me tornar imensamente grata ao professor Dr. Jos Pedro Paiva pela

    solicitude com que me recebeu em Coimbra e pelas orientaes durante o meu estgio do

    PDSE Programa de Doutorado sanduche no Exterior. Agradeo tambm, neste espao, a

    presteza dos funcionrios da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional de Portugal. No

    posso me esquecer dos amigos: D. Julieta, que nos hospedou em sua casa, do Sr. Rui e sua

    esposa pelas conversas bacanas que me fez sentir em famlia nestes inesquecveis quatro

    meses em Portugal. Aproveitando o ensejo, agradeo aos amigos Natlia e Rhuan (Batata)

    pelos passeios divertidssimos em Alfama, regados por muito vinho, boas risadas e papos

    descontrados. Impossvel no me lembrar, sem que venha um sorriso no rosto, da final da

    Liga dos Campees em 2014.

  • Ao casal amigo muito especial, Quelen Ingrid Lopes e Hugo Andr Flores, por terem

    cuidado de nossa casa durante o tempo em que eu e meu noivo tivemos em Lisboa, pela

    amizade devotada, pelas risadas, confidncias, companheirismo mpar. Quelen, no vulgo

    Xuxu, agradeo por hoje conseguir mexer com os programas Excel e Access, sem seu auxlio,

    jamais conseguiria levantar esta quantidade de dados. Paula Ferrari pelas longas e

    prazerosas conversas no So Pedro, Izabella Salles e Arnaldo Zangelmi, velhos amigos, s

    amizades em Juiz de Fora (Maria Fernanda Van Erven, Leandro Mageste, Wallace Andrioli);

    ao Eduardo Assis, meu querido e especial velho malungo, por me ouvir tantas vezes, por

    acreditar em mim e por todas nossas histrias desde os tempos de graduao, voc parte

    importante da minha vida, meu irmo postio!

    Ao meu noivo e companheiro Felipe Cazetta, primeiro a acreditar neste trabalho!

    Durante a seleo de doutorado, quando estava abarrotada de aulas em um colgio pblico em

    que trabalhava, pude contar com seu companheirismo singular. Juntos, estudamos,

    elaboramos fichamentos e discutimos todos os autores que iriam cair na prova de seleo. Foi

    ele tambm o responsvel por fazer minha inscrio na secretaria da ps e a cuidar de toda

    parte burocrtica do processo. Sem o seu apoio emocional e profissional eu jamais teria

    chegado ao trmino deste trabalho. Ao longo destes quatro anos tive provas cabais do seu

    companheirismo; juntos, enfrentamos muitas adversidades, medos e angstias; vivemos

    tambm muitas alegrias e regozijos que o compartilhamento de uma vida a dois pode

    proporcionar.

    Aos meus pais, irmos, avs (o grande cl Delfino) e aos meus familiares maternos e

    paternos devo todas as gratificaes e alegrias que a vida pde me dar. Vejo hoje nas feies

    dos meus pais a alegria e satisfao por me ver terminar esta etapa de minha carreira

    acadmica, eles que no tiveram a oportunidade de terminar o ensino primrio se sentiram um

    tanto orgulhosos com esta conquista.

  • Todos os acontecimentos, do nascimento morte, eram

    comemorados nas confrarias e quem estivesse fora delas

    seria olhado com desconfiana, privado do convvio

    social, quase um aptrida dentro dos grupos que se

    reuniam em associaes, (...). O desligamento de uma

    confraria representava grave problema, colocando a

    pessoa margem da sociedade, significando tremendo

    castigo. No parecia admissvel que algum pudesse

    viver sem estar unido a um desses grupos e, castigo

    ainda maior, morrer fora de um deles.

    Julita Scarano.

    Bendito, louvado seja o Rosrio de Maria Se no fosse Ela, muitas almas se perdia (sic).

    Ulisses Passarelli

    (Canto popular de encomendao das almas na regio das

    Vertentes- MG)

    Ancestralidade

    Os mortos no morreram... Esto no ventre da mulher

    No vagido do beb

    E no tronco que queima.

    Os mortos no esto sobre a terra:

    Esto no fogo que se apaga,

    Nas plantas que choram,

    Na rocha que geme,

    Esto na casa.

    Nossos mortos no morreram. Birago Diop

  • RESUMO:

    O objetivo desta pesquisa consiste em abalizar, a partir de uma perspectiva de culturas

    hbridas do mundo atlntico, as contnuas e mtuas influncias das diversificadas

    representaes dos modos de viver e morrer na experincia devocional do Rosrio de So

    Joo del-Rei entre os sculos XVIII e XIX. Nesse sentido, analisamos a catolicizao dos

    diferentes grupos tnicos africanos e o uso de smbolos catlicos especficos ligados liturgia

    da morte, como elementos diacrticos na definio de suas fronteiras identitrias naquele

    contexto multitnico da escravido. Ademais, valorizamos, juntamente com a catolicizao

    desses grupos, o processo de africanizao dos preceitos catlicos vividos na irmandade,

    atravs dos mecanismos de apropriao cultural (entendida sempre como uma via de mo

    dupla) acerca dos ideais do bem viver, enquanto veculo normatizador do bem morrer na

    dimenso cotidiana tangenciada pela intensificao dos contatos culturais promovida pelo

    exlio forado da dispora atlntica. Nesse sentido, a anlise investigativa buscou, como

    enfoque central, a redefinio das prticas de solidariedade entre os irmos vivos e defuntos,

    concebidos como coparticipes de uma mesma famlia ritual e fraterna. Tal noo de

    pertencimento envolveu laos rituais consanguneos e espirituais que uniam o mundo

    dos vivos ao mundo dos mortos a partir de uma percepo de ancestralidade centro-

    africana reconstruda no Novo Mundo, atravs da re-significao das heranas culturais luz

    da catequizao leiga no Ultramar. Esta ancestralidade esteve presente na formao do culto

    das almas promovido pela Nobre Nao Benguela, segmento tnico-devocional que se

    firmou dentro da irmandade no final do sculo XVIII. Para o desenvolvimento deste estudo

    foram utilizados depoimentos de missionrios nos reinos do Congo e Angola, manuais de

    orao do bem-morrer, alm da documentao confrarial produzida pelos irmos, como as

    entradas, atas de eleies, estatutos, livro de missas, juntamente com acervo de registros

    paroquiais (batismo, bito e casamento) ao lado dos depoimentos autobiogrficos produzidos

    pelos testamentos dos irmos libertos sepultados na igreja do Rosrio.

    Palavras-chave: Representao, boa morte, dispora atlntica, ancestralidade, Irmandade do

    Rosrio.

  • RSUM:

    Le but de cette recherche est marquer, du point de vue des cultures hybrides du monde

    de l'Atlantique, les influences mutuelles continues et de diverses reprsentations de manires

    de vivre et de mourir sur l'exprience de dvotion du Rosaire de So Joo del Rei entre les

    XVIII et XIXme sicles. En ce sens, nous analysons la catholisation de diffrents groupes

    ethniques africains et l'utilisation de symboles catholiques spcifiques lis la liturgie de la

    mort, comme des lments diacritiques dans la dfinition de leur identit borde ce contexte

    multiethnique de l'esclavage. En outre, nous apprcions avec catholisation ces groupes, le

    processus d'africanisation des prceptes catholiques vivaient dans la fraternit, travers les

    mcanismes d'appropriation culturelles (toujours compris comme une voie double sens)

    sur l'idal de la bonne vie pendant que le vhicule la normalisation de la bonne mort dans

    la vie quotidienne dimension tangentiel l'intensification des contacts culturels promus en l'exil

    forc de la diaspora de l'Atlantique. En ce sens, l'analyse de la recherche demand en tant que

    point central, la redfinition des pratiques de solidarit entre les vivants et frres dfunts,

    conu en tant que co-participant de la mme famille rituel et fraternelle. Cette notion de

    familles rituels impliqus la parent et les liens spirituels qui unissent le monde

    vivant" le "monde des morts" d'une perception de l'ancestralit de l'Afrique centrale

    reconstruite dans le Nouveau Monde, travers la redfinition du patrimoine culturel la

    lumire de la catchse laque l'tranger. Cette l'ancestralit tait prsent la formation du

    culte des mes, dvelopp par Noble Nation Benguela, le segment ethnique et de dvotion

    qui a lui-mme tabli dans la confrrie dans la fin du XVIII sicle. Pour dvelopper cette

    tude ont utilis tmoignages des missionnaires dans les royaumes du Congo et l'Angola,

    manuels de prire de bien mourir, ainsi que la documentation produite par les confrarial

    frres, comme entres, les lections de minutes, statuts, livre de messe, ajout une collection

    des registres paroissiaux (baptme, mariage et de dcs) aux cts des tmoignages

    autobiographiques produites par les testaments des frres affranchis enterrs dans la glise du

    Rosaire.

    Mots-cls: la reprsentation, la bonne mort, la diaspora atlantique, lancestralit, confrries

    du Rosaire

  • LISTA DE IMAGENS:

    1. Jean Daret. O Purgatrio. Pintura, 1660. Aix-em-Provence, igreja de Prcheurs

    (Frana)..............................................................................................................

    69

    2. Altar do Retbulo do Rosrio, 1643. Igreja de Val-des-Prs (Hautes-Haupes-

    Frana)...................................................................................................................... .

    70

    3. Annimo do sculo XVIII. Virgem com santo intercede pelas Almas do

    Purgatrio. Queige (Savoia- Itlia)............................................................................

    71

    4. Carlos Julio. Coroao de uma Rainha, Festa de Reis (Rio de Janeiro- 1776)... 340

    5. Carlos Julio. Coroao de um Rei no Festejo de Reis (XVIII)........................... 340

    6. J. B. Debret. Prancha 30, Coleta para a manuteno da Igreja do Rosrio........... 343

    7. Painel das almas do Purgatrio, Matriz de Nossa Senhora do Pilar de So Joo

    del-Rei, s/d................................................................................................................

    377

    8. Thomas Ewbank, Caixa de esmolas das almas, Rio de Janeiro. (1845-1846)...... 379

    9. Bernardino Ignazio da Vezza. Incndio da Casa de dolos (circa 1750).............. 389

    10. Bernardino Ignazio da Vezza. Missa funerria no Congo (circa 1750).............. 397

    11. Bernardino Ignazio da Vezza. Apario da Virgem no Reino do Congo

    (circa1750).............................................................................................................

    398

    12. J. B. Debret, Enterro do filho eu um rei negro (1834), Prancha 16..................... 403

    13. J. B. Debret, Enterro de uma moambicana (1834), Prancha 16......................... 404

    14. A morte do Homem Justo (s/d) MRSM, Campanha- MG, Acervo de Arte

    Sacra....................................................................................................................

    430

    15. A morte do Homem mpio (s/d), MRSM, Campanha- MG, Acervo de Arte

    Sacra..................................................................................................................

    430

    Anexo

    I- Imagem de Nossa Senhora do Rosrio situada no altar da Igreja do Rosrio de

    So Joo Del Rei. Reproduzida em 05/04/2012........................................................

    480

    II- Bartolom Esteban Murilo, La Virgem Del Rosario- 1678, Museo del Prado

    (Madrid)...................................................................................................................

    481

    III- Annimo, Entrega do rosrio a So Domingos e Santa Catarina de Siena -

    1809. Livro de Compromisso da Irmandade do Rosrio de Aiuruoca, ACMC........

    482

  • IV- Carlos Julio,Vestimentas de escravas (17- - ?); Prancha 26, BNRJ................ 483

    V- Carlos Julio, Traje de mulher negra. (17- - ? ); Prancha 27, BNRJ.................... 484

    VI- Carlos Julio, Roupa de escravas. (17- -?); Prancha 29, BNRJ.......................... 485

    VII- Forro da Capela do Rosrio, Manoel Victor de Jesus (1827), Tiradentes-

    MG.............................................................................................................................

    486

  • LISTA DE DIAGRAMAS QUADROS E TABELAS:

    DIAGRAMA 1:Relaes parentais do Rei Congo Manoel Loureno de Mesquita.. 303

    DIAGRAMA 2: Relaes parentais da Rainha do Congo Mariana Dias das

    Chagas.................................................................................................................

    305

    QUADRO 1: Composio dos cargos segundo a condio social e a cor na

    Irmandade do Rosrio de So Joo del-Rei...............................................................

    194

    QUADRO 2: Relao entre etnias e cargos ocupados no Rosrio de So Joo del-

    Rei (1818-1849)...................................................................................................

    195

    QUADRO 3: Falecidos de cor, segundo a ocupao ou ofcio (Freguesia do Pilar,

    1782-1850):.........................................................................................................

    220

    QUADRO 4: Arranjos matrimoniais de cativos e forros segundo a origem das

    noivas (1730-1868)....................................................................................................

    249

    QUADRO 5: Frequncia nos Juizados de Santos na Irmandade do Rosrio de So

    Joo del-Rei (1782-1850)......................................................................................

    289

    QUADRO 6: Composio hierrquica da Nobre Nao de Benguela (1803-

    1837)....................................................................................................................

    354

    QUADRO 7: Relao da causa mortis dos obiturios adultos (1782-1850)............. 417

    TABELA 1: Falecidos distribudos segundo a condio social e o sexo (1782-

    1850)...........................................................................................................................

    227

    TABELA 2: Condio Social dos Falecidos por Dcadas (1782-1850).................... 227

    TABELA 3: Referncia de idade dos Falecidos (1782-1850).................................. 228

    TABELA 4 Faixa etria dos falecidos (1782-1850)................................................ 228

    TABELA 5: Falecidos distribudos segundo o sexo e a origem (1782-1850)........... 231

    TABELA 6: Origem dos falecidos por dcadas....................................................... 231

    TABELA 7: Procedncias africanas dos falecidos (1782-1850).............................. 234

    TABELA 8: Procedncias tnicas dos falecidos por dcadas (1782-1850)............... 235

    TABELA 9: Procedncias Nativas dos Falecidos (1782-1850)................................ 237

    TABELA 10: Batizandos inocentes segundo a cor e a condio social na Matriz

    do Pilar (1744-1850)..................................................................................................

    243

    TABELA 11: Batizandos Adultos segundo a procedncia tnica e a condio

    social (1744-1850)..................................................................................................

    243

  • TABELA 12: Entrantes do Rosrio em So Joo del-Rei, segundo o sexo e a

    condio social (1782-1850)......................................................................................

    266

    TABELA 13: Entrantes do Rosrio em Barbacena, segundo o sexo e a condio

    social (1812-1850)....................................................................................................

    266

    TABELA 14: Entrantes do Rosrio em So Jos del-Rei (Tiradentes), segundo o

    sexo e a condio social (1812-1850)........................................................................

    267

    TABELA 15: Entrantes do Rosrio em So Joo del-Rei, segundo o sexo, a

    origem e a procedncia tnica (1782-1850)...............................................................

    277

    TABELA 16: Entrantes do Rosrio em Barbacena, segundo o sexo, a origem e a

    procedncia tnica (1812-1850).................................................................................

    278

    TABELA 17: Mortalha, segundo os testadores forros do Rosrio (1781-

    1828)..................................................................................................................

    435

    TABELA 18: Falecidos segundo os sacramentos recebidos (1782-1850)................ 441

    TABELA 19: Evoluo da participao nos sacramentos ante-mortem por

    dcadas.................................................................................................................

    444

    TABELA 20: Locais de sepultamento segundo os assentos de bitos (1782-

    1850)..........................................................................................................................

    461

    TABELA 21: Locais de sepultamento segundo os assentos de bitos de inocentes

    (1782-1850)................................................................................................................

    462

    TABELA 22: Locais de sepultamento segundo a condio social dos falecidos

    adultos (1782-1850)..................................................................................................

    462

    TABELA 23: Sepultamentos segundo as procedncias tnicas dos falecidos

    adultos (1782-1850)...................................................................................................

    464

  • ABREVIATURAS:

    ACMC- Arquivo da Cria Metropolitana de Campanha

    AEAM- Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana

    AHU- Arquivo Histrico Ultramarino

    AINSR- SJDR- Arquivo da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio de So Joo del-Rei

    AMNSP- SJDR- Arquivo da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de So Joo del-Rei.

    ANRJ- Arquivo Nacional- RJ

    ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo- Lisboa

    APM- Arquivo Pblico Mineiro

    BNL- Biblioteca Nacional de Lisboa

    BNRJ- Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

    BMBCA- SJDR- Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida de So Joo Del Rei.

    CECML- Centro de Estudos Campanhense Monsenhor Lefort.

    IPHAN-SJDR- Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional de So Joo Del Rei.

    MRSM- Museu Regional do Sul de Minas- Campanha.

    PNSCP - Parquia de Nossa Senhora da Conceio de Prados.

  • SUMRIO

    Introduo.................................................................................................................. 19

    Captulo 1: O Rosrio como instrumento de converso e de salvao das almas cativas

    na catequese tridentina no Ultramar.................................................................................

    45

    1.2 O Rosrio no Ultramar.............................................................................................. 59

    1.3. O Rosrio como instrumento de salvao no alm.................................................. 66

    1.4. Os manuais de orao................................................................................................. 78

    1.5 Os sermes................................................................................................................. 93

    Captulo 2: O esprito associativo em So Joo del-Rei: As polarizaes sociais, os

    contatos culturais e a caridade na morte........................................................................

    104

    2.1 As polarizaes sociais presentes nas irmandades...................................................... 113

    2.2 A assistncia aos irmos vivos e defuntos e os altares internos na Igreja do Rosrio. 136

    2.3 O territrio das fronteiras e das interaes culturais.................................................... 145

    Captulo 3: Para o bom governo e regime da mesma: Alianas e conflitos na construo da norma e no exerccio do poder da administrao dos bens de salvao....

    150

    3.1 Perfis sociais e atribuies dos dirigentes administrativos da irmandade................... 162

    3.2 Territrios e fronteiras dos bens sagrados: as disputas pelas demarcaes de poder

    entre procos, capeles e confrades...................................................................................

    198

    Captulo 4: Os registros paroquiais e os aspectos da populao escrava e liberta na

    Freguesia do Pilar........................................................................................................

    214

    4.1 Dos falecidos de cor: aspectos de ocupao................................................................ 217

    4.2 Qualificao social dos falecidos: condio, sexo, cor e procedncia tnica.............. 225

    4.3 As classificaes sociais nos registros de batismo...................................................... 237

    4.4 A busca por seu igual: as alianas tnicas nos espaos do casamento catlico.......... 244

    Captulo 5: Dos Irmos que haver nesta Irmandade: O perfil social e a dinmica da rede interacional dos associados........................................................................................

    253

    5.1 Os entrantes da irmandade segundo o sexo e a condio social.................................. 258

    5.2 Apontamentos sobre a cor e a procedncia tnica.......................................................

    267

    5.3 Os Juizados de santos................................................................................................ 278

  • 5.4 Tecendo as redes dos confrades: a sociabilidade dos irmos.....................................

    290

    Captulo 6: A Senhora me d licena pra beij sua Coroa: A Festa do Rosrio, uma gramtica cultural da dispora.........................................................................................

    307

    6.1 O rei dos vivos e dos mortos: intercesses de memrias, culturas e identidades na

    festa do Rosrio.................................................................................................................

    320

    6.2 O Reinado da Nobre Nao de Benguela: a ancestralidade, o parentesco-tnico e a

    salvao das almas.............................................................................................................

    349

    Captulo 7: Fronteiras, Memrias e Identidades: Olhares mltiplos sobre a morte na

    experincia devocional do Rosrio...............................................................................

    367

    7.1 A Nobre Nao e os sufrgios............................................................................... 371

    7. 2 O sacrifcio eucarstico e a doutrina do bem morrer............................................... 380

    7.3 Heranas e memrias: cerimoniais fnebres e o culto dos mortos entre os povos

    bantos........................................................................................................................

    386

    Captulo 8: Os irmos perante a morte: Os rituais de passagem e de incorporao no

    alm............................................................................................................................

    408

    8.1 As transformaes sanitrias em So Joo del-Rei e a causa mortis dos escravos,

    libertos e livres de cor.................................................................................................

    412

    8.2 Ritos de separao e de incorporao no alm: os testamentos, as invocaes

    celestes e a escolha da mortalha.......................................................................................

    427

    8.3 Ritos de separao e de incorporao no alm: os legados pios e os sacramentos...... 435

    8.4 Os sepultamentos e a classificao social dos mortos................................................. 444

    Consideraes Finais.................................................................................................... 470

    ANEXO........................................................................................................................ ... 479

    Fontes Manuscritas e Impressas................................................................................. 487

  • 19

    INTRODUO

    No podemos jamais ir para casa, voltar cena primria enquanto momento

    esquecido de nossos comeos e autenticidade, pois h sempre algo no meio [between]. No podemos retornar a uma unidade passada, pois s podemos conhecer o passado, a memria, o inconsciente atravs dos seus

    efeitos, isto quando este trazido para dentro da linguagem e de l

    embarcamos numa interminvel viagem. Diante da floresta de signos

    (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histrias e memrias (...). Talvez seja mais uma questo de buscar estar em casa aqui,

    no nico momento e contexto que temos (...)1

    As irmandades2constituam-se em associaes religiosas cujos leigos se reuniam em

    torno de uma devoo ou orago. Suas regras de funcionamento e gesto estavam

    regulamentadas em um estatuto ou compromisso. Por este regimento se estabeleciam os

    critrios de admisso, os valores a serem pagos pela entrada, anuidades, esmolas aos santos,

    como tambm as normas para eleger a mesa diretora, responsvel por administrar os assuntos

    cotidianos da confraria. Suas principais finalidades consistiam em promover o culto pblico

    devocional e a assistncia material e espiritual aos os irmos vivos e defuntos. A legalidade

    dessas instituies dependia do aval de autoridades civis e eclesisticas. A partir de 1765

    todos os compromissos deveriam ser enviados ao Tribunal da Mesa de Conscincia e Ordens.3

    Ao lado do poder rgio, a Constituio do Arcebispado da Bahia prescreveu em seu LX

    Ttulo, Pargrafo 867 a obrigatoriedade da remessa desses estatutos para a apreciao do

    bispado local.4

    1 CAHMBERS, I. Bourder Dialogues Jouners. In: Post. Modernity. London: Routledge, 1990, p. 104. Apud.

    HALL, Stuart. Da Dispora: Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, P. 27. 2 As fontes consultadas registraram como similares os termos confraria, irmandade e corporao. Por isso

    usaremos esses termos como sinnimos ao longo do texto. Sobre as classificaes tipolgicas das associaes

    leigas, Caio Boschi menciona que: Variada a terminologia utilizada para designar essas associaes(...). Embora o Cdigo Cannico estabelea algumas distines, ainda assim, a prpria Cria Romana, em seus

    documentos, no faz claras diferenciaes entre elas. Cf.: BOSCHI, C. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e

    poltica colonizadora em Minas Gerais. So Paulo: editora tica, 1986, p. 14. Ainda acerca da definio dessas

    tipologias, Clia Borges acrescenta: (...) as pias unies eram associaes de fiis eretas com o objetivo de exercer obras de piedade ou caridade. Quando constitudas em organismos, reguladas por um estatuto, chamavam-se irmandades. As que erigiam to somente o culto pblico (...) denominavam-se confrarias. (...). As

    ordens terceiras perfilavam-se como associaes de leigos cuja existncia dependia da autorizao conferida por

    uma ordem primeira. (...) Seu objetivo consubstanciava prtica da devoo e caridade (...). Cf.: BORGES, C.

    M. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosrio: Devoo e solidariedade em Minas Gerais, sculos XVIII e

    XIX. Juiz de Fora: ed. da UFJF, 2005. p.52-53. 3 Em 1532 foi criada a Mesa de Conscincia e Ordens para resolver os casos jurdicos e administrativos que

    envolviam questes concernentes s ordens militar-religiosas: Ordem de Cristo, Ordem de Avis e Ordem de

    Santiago. Com o tempo a Mesa de Conscincia e Ordens excedeu suas funes e passou a julgar as causas

    eclesisticas que envolviam os clrigos do reino. O rei por ser gro-mestre da Ordem de Cristo, pelo regime do

    Padroado, era quem autorizava o reconhecimento dos compromissos confrariais. 4As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia so um conjunto de leis cannicas promulgadas em 1707 que baseavam-se nas tradies bblicas, nas Constituies Portuguesas e nas diretrizes do Conclio Tridentino

    que foram adaptadas situao colonial. Ao lado das Ordenaes Filipinas definiram uma srie de obrigaes

    jurdicas, que embora resguardasse normas de cunho religioso, no estavam dissociadas dos direitos civis.

  • 20

    As irmandades do Rosrio, conhecidas por arregimentar grande parte da populao de

    estrangeiros traficados, serviram como lcus privilegiado para a reconstituio identitria

    desses grupos na experincia da dispora atlntica. As recentes pesquisas5 em torno dos

    significados acerca dos papis desempenhados pelas irmandades negras tm alcanado

    avanos consistentes no que diz respeito ao redimensionamento da experincia de homens e

    mulheres escravizados no Ultramar. Ao abrirem frentes de anlises ancoradas em debates em

    torno da dissenso e/ou da coeso comunitria seja atravs da nfase atribuda aos

    processos de diferenciao, ou ao aspecto aglutinador desenvolvido pela sociabilidade

    devocional6 esses estudos trouxeram leituras inovadoras no campo da histria social da

    escravido. Isso se explica pelo fato dessa nova abordagem conseguir desmobilizar uma

    noo monofacetada e homognea do cativeiro atrelada a uma percepo dualista e rgida

    entre senhores versus escravos, negociao versus conflito, acomodao versus resistncia.

    Cf.:Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia(1707). So Paulo, Typografia Dois de Dezembro 1853.

    Livro 4. Ttulo LX, Par. 867. 5BOSCHI, C. Espaos de sociabilidade na Amrica Portuguesa e historiografia brasileira contempornea. In:

    VENTURA, M.G. A. Os espaos de sociabilidade na bero-Amrica (sculos XVI-XIX)\ Nonas Jornadas de

    Histria Ibero - Amrica. Lisboa: Edies Colibri. 2004. ABREU, M. O Imprio do Divino: Festas religiosas e

    cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. AGUIAR, M. M.Vila Rica

    dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no sculo XVIII. So Paulo: USP. 1993

    (Dissertao de Mestrado). ___. Negras Minas Gerais: uma histria da dispora africana no Brasil Colonial. So

    Paulo: USP, 1999. (Tese de Doutorado). BORGES, Escravos e libertos..., Op. Cit. CUNHA, M. C. (Org.)

    Carnavais e outras festas. Ensaios de Histria Social da Cultura. Campinas: ed. UNICAMP, 2002. CAMPOS,

    A. A terceira devoo dos Setecentos: o culto a So Miguel e Almas. So Paulo: USP, 1994 (Tese de Doutorado). DIAS, Renato da Silva. Para a Glria de Deus, e do Rei? Poltica, religio e escravido nas Minas

    de Ouro (1963-1745). Tese de Doutorado em Histria. Belo Horizonte: FAFICH, 2004. EUGNIO, A.

    Fragmentos da Liberdade: As festas religiosas nas irmandades dos escravos em Minas Gerais na poca da

    colnia. Ouro Preto: ed. FAOP, 2007. JANCS & KANTOR (orgs.) Festa: cultura e sociabilidade na Amrica

    Portuguesa. So Paulo: EDUSP, 2001. MELLO e SOUZA, M. Reis negros no Brasil escravista: histria da festa

    de coroao do Rei Congo. Belo Horizonte: ed. da UFMG, 2002. OLIVEIRA, A. Devoo negra: santos pretos e

    catequese no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Quartet\FAPERJ, 2008. QUINTO, A. A. L vem meu parente: as

    irmandades de pretos e pardos no Rio de janeiro e Pernambuco. So Paulo: USP, 1997. (Tese de Doutorado).

    REGINALDO, Lucilene. Os Rosrios dos Angolas. Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista.

    So Paulo: Alameda, 2011. REIS, J.J. A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo

    XIX. So Paulo: Cia das letras, 1991. REGINALDO, Lucilene. Os Rosrios dos Angolas. Irmandades de

    africanos e crioulos na Bahia Setecentista. So Paulo: Alameda, 2011. RUSSELL-WOOD. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. SCARANO, J. Devoo e Escravido: A

    Irmandade de N. Sra. do Rosrio dos Homens Pretos no Distrito Diamantino no sculo XVIII. So Paulo

    Nacional (col. Brasiliana), 1976. SOARES, M. Devotos da cor: Identidade tnica, religiosidade e escravido no

    Rio de Janeiro, sculo XVIII. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2000. TINHORO, J.R. As festas no Brasil

    Colonial. So Paulo: ed. 34, 2000. 6Para Maurice Agulhon, a sociabilidade pode ser entendida como uma rede organizacional entre os indivduos

    que se vem pertencentes a uma mesma associao ou grupo social. Esta interao entre os participantes se faz

    veiculada a um compartilhamento de normas, valores, emblemas, mitos, alegorias e smbolos quer geram

    comportamentos polticos voltados para atender finalidades coletivas do grupo. Deste modo, concebemos que as

    prticas de sociabilidade no mbito da irmandade se instituam em todas as atividades em que os confrades se achassem unidos e incorporados para designar aes coletivas, tais como: a assistncia social, os atos litrgicos, as aes celebrativas, os cortejos fnebres, os festejos de coroao de reis, as reunies de junta e at mesmo os

    atos informais, como a reunio dos irmos para a recitao do rosrio. Cf.: AGULHON, M. Penitent Et Frances-

    maons de laancienne Provence:essai sur La sociabilit marionale. Paris: Farard, 1984.

  • 21

    Nesse sentido, estabelecendo uma aproximao com o trabalho emblemtico de Joo

    Jos Reis e Eduardo Silva, tais anlises foram sensveis multiplicidade de nuances da

    experincia escrava permeadas por muitas ambiguidades, contradies, conflitos, alianas e

    acomodaes. Esta diversidade de comportamentos na senzala ultrapassava largamente as

    dicotomias representadas pelo herosmo pico de Zumbi de Palmares em contraponto ao

    submisso Pai Joo.7

    Deste modo, o estudo intensivo das relaes cotidianas no interior das associaes

    tornou-se uma via fulcral no s para o entendimento dos mecanismos internos do grupo

    associativo, mas tambm para a compreenso mais aprofundada da prpria sociedade

    escravista. Respeitando suas peculiaridades internas, as irmandades negras serviram

    principalmente como expresso dos anseios coletivos8 do grupo devocional ao atenderem

    reivindicaes comuns assentadas nas obrigaes temporais e espirituais. Esses deveres

    devocionais atendiam no s o aumento do culto, voltado para a dedicao liturgia de

    homenagem ao orago, como tambm a solidariedade entre irmos vivos e defuntos. Esta

    caridade associativa inclua desde a assistncia aos enfermos, rfos, vivas e presos at as

    missas e oraes a serem recitadas em memria dos irmos falecidos. Deste modo, tal relao

    conjunta ao exerccio da assistncia aos irmos vivos e defuntos fazia parte da sensibilidade

    imaginria do barroco em que vivos e mortos constituam parte de uma mesma da famlia

    ritual. Neste local de pertencimento, os entes falecidos deveriam ser permanentemente

    reverenciados e assistidos pela memria e caridade dos vivos.

    Nesse sentido, o estado de pertena famlia simblica viabilizava no s o amparo,

    no sentido material, em situaes limites de invalidez ou de aproximao da morte, mas,

    conferia, sobretudo, o suporte emocional para o enfrentamento das dificuldades e das presses

    sociais colocadas pela condio de cativeiro na ps-travessia. Deste modo, a possibilidade de

    articular novos arranjos comunitrios atravs do compartilhamento de smbolos, prticas,

    ritos e normas grupais vivenciadas pela adeso a uma irmandade ofereceu aqueles

    indivduos parmetros eficazes para o reposicionamento de suas identidades em torno de uma

    devoo comum. Sendo assim, as associaes como a do Rosrio tornaram-se vetores

    privilegiados para atender aos anseios desses grupos, ao mesmo tempo em que serviram como

    canal estratgico para atingir os objetivos da poltica de catequizao e de expanso do

    catolicismo reformista no ultramar.

    7 REIS, J. J.& SILVA, E. Negociao e Conflito: A resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Companhia

    das Letras, 1989, p.13. 8 RUSSELL-WOOD, Op. Cit., p. 221.

  • 22

    No obstante, longe de se constiturem-se como rplicas idnticas de suas congneres

    portuguesas, as confrarias dos irmos pretos cederam espao vivncia de um catolicismo

    novo em que as leituras dos cdigos catlicos se instituam por mediaes das memrias e

    idiossincrasias caras s culturas e experincias da pr-travessia. Desta forma, percebemos

    nessas corporaes um espao substancial para o estabelecimento de teias sociais mais amplas

    para alm do espao fsico das senzalas. Com efeito, essas associaes serviam tambm como

    vetores para reconstituio identitria desses indivduos que buscaram na ao protetora do

    grupo e na integrao devocional, um dos recursos fundamentais para recriarem suas vidas na

    outra margem do Atlntico.

    Stuart Hall, um estudioso da experincia da dispora, assevera que mesmo tendo a

    sensao de deslocamento e estranheza profunda provocada pelo exlio, o indivduo

    estrangeiro jamais perderia a referncia de suas culturas de origem, embora essas deixavam de

    ser a nica fonte de identificao. 9No entanto, este processo de desterritorializao cultural

    no corresponde transferncia integral ou simplesmente cpia do patrimnio cultural do

    exilado em seu novo mundo. Esta reinveno das memrias perpassa por uma re-significao

    permanente deste patrimnio durante o processo de intercmbio cultural com outras

    tradies culturais. Deste modo, o autor entende a experincia no exlio como um fazer-se

    contnuo, portanto inacabada, mutvel e intensamente imbricada com outras zonas culturais

    de contato.10

    Trata-se, assim, de uma relao inventiva com as tradies, em que as heranas

    so constantemente produzidas e reeditadas luz das coeres, limitaes e condicionamentos

    colocados pela situao de exlio. Por seu turno, esta permeabilidade das trocas culturais no

    se efetua sem isenes de conflitos, pelo contrrio, no processo de tenses e de negociaes

    entre os espaos culturais que as demarcaes distintivas so constitudas pelos grupos em

    contato.

    Este entendimento da formao identitria dos exilados pautada numa noo de

    mobilidade, permutabilidade e inacabamento nos auxiliou como ferramenta terica

    indispensvel para iniciarmos nossa investigao acerca da constituio das identidades

    devocionais no Rosrio. Os sujeitos do exlio buscaram na adeso dessas entidades protetoras,

    a rearticulao de sua experincia cotidiana e o alargamento de suas redes sociais para alm

    do espao do mundo do trabalho do cativeiro. Sendo assim, ainda que a vivncia devocional

    propusesse uma srie de regras normativas aos seus praticantes, possibilitava a ampliao de

    9 HALL, Stuart. Da Dispora: Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003 10Idem., p. 43.

  • 23

    seus espaos de sociabilidades e a recriao dos laos sociais solapados pelo trfico, atravs

    dos vnculos comunitrios, incluindo as prticas associativas.

    Sidney Mintz e Richard Price em trabalho inovador sobre a escravatura em

    sociedades caribenhas, feito a partir de uma perspectiva antropolgica consideram o

    surgimento das comunidades escravas resultante de um processo efetivo das interaes

    sociais elaboradas no contexto da dispora atlntica. Para os autores, a experincia da

    Kalunga colocou em contato uma mirade de culturas pelas quais homens e mulheres do

    exlio se viram obrigados a se adaptar diante das adversidades do meio. No entanto, apesar da

    heterogeneidade, a experincia segregadora motivou os grupos etnicamente distintos a

    identificarem padres valorativos comuns dos quais os permitiram configurar novos signos e

    sentimento de pertena. Esta redefinio de cdigos foi o fator-mor para a reorientao

    identitria dos sujeitos apartados que passaram, a partir de ento, a desenvolver uma

    sensibilidade coletiva de pertencimento em interface queles novos agrupamentos que se

    forjavam nas interaes atlnticas. 11

    Todavia, estudos africanistas como os de Marina de Mello e Souza,12

    Linda

    Heywood13

    e John Thornton14

    chamam ateno para os processos de interaes culturais entre

    europeus e africanos ainda em solo africano. A cosmologia centro-africana, baseada nos

    sistemas de revelaes, demonstrou certo nvel de plasticidade para incorporar novos cdigos

    segundo os parmetros religiosos nativos.15

    Sendo assim, a cristianizao hbrida, vivenciada

    nas culturas do Congo e Angola, no estava restrita s elites, nem tampouco pode ser

    entendida como manifestao religiosa superficial por ser diferente do catolicismo ortodoxo.

    Para esses autores, a africanizao dos smbolos catlicos no contexto da pr-travessia

    transmite um sentido dialgico dessas trocas culturais em que o processo de interao foi

    capaz de promover sentidos inditos e imprevisveis, enquanto expresses desta

    permutabilidade. Nesta perspectiva, consideramos que a particularidade dessas linguagens

    imprevistas de crenas experimentadas, de forma tambm distinta, na experincia da ps-

    travessia podem ser entendidas pela abordagem dinmica do hibridismo cultural, enquanto

    vetor de construo de identidades. Segundo Canclini:

    11MINTZ, S. & PRICE, R. O nascimento da Cultura Afro-americana. Uma perspectiva antropolgica. Rio de

    Janeiro: Editora Pallas/Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cndido Mendes, 2003, p.39-56. 12 MELLO e SOUZA, Op. Cit., 43-85 13HEYWOOD, Linda. De portugus africano: a origem centro-africana das culturas atlnticas crioulas no sculo XVIII. In.: HEYWOOD, (Org.), Dispora negra no Brasil. So Paulo: Contexto, 2008, p. 101-124. 14THORNTON, A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pp. 312-354. ________, Religio e vida cerimonial no Congo e reas Umbundo, de 1500 a 1700. In.: HEYWOOD, Op. Cit., pp. 81-100. 15Idem.

  • 24

    (...) a hibridizao no sinnimo de fuso sem contradies, mas sim que

    pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na

    interculturalidade (...). [Deste modo] entendo por hibridizao processos socioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existam de

    forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e

    prticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram

    resultado das hibridizaes, razo pela qual no podem ser consideradas fontes puras.

    16(Grifos Nossos)

    Neste ponto de vista, no h espao para concebermos as identidades culturais como

    algo puro ou plenamente homogneo e sim resultante de uma sntese imprevisvel do

    movimento propiciado pelos contatos intensos de sociedades multitnicas pluriculturais.

    Sendo assim, a construo identitria s se faz diante da diferena, das relaes de contraste,

    das ambivalncias frente s contradies vividas, permanentemente re-significadas. Deste

    modo, paradoxalmente, as fronteiras culturais, na interpretao de F. Barth, florescem em

    interface mobilidade dos contatos, dos confrontos, do destaque diferena nessas permutas

    de smbolos e vises de mundo. 17

    Consoante estes posicionamentos possvel entendermos

    as formas de restabelecimento tnico e identitrio dos estrangeiros associados devoo no

    contexto da ps-travessia.

    Robert Slenes, ao descrever as representaes construdas acerca das agruras e o

    impacto psicolgico vivido pelos deportados na experincia da travessia, sintetiza a

    complexidade do termo semntico Kalunga. Em uma de suas verses, a terminologia passa a

    designar a percepo de morte desses indivduos da cultura bakongo sobre suas permanncias

    nos pores dos navios negreiros.18

    A expresso remetia tambm terra dos mortos

    representada pelo espelho dgua, isto , uma superfcie reflexiva que servia como ponto de

    interface e de comunicao entre o mundo dos mortos e o dos vivos.19 No universo desses

    africanos centro-ocidentais no havia uma fronteira ntida entre o mundo material e o mundo

    espiritual. Os espritos ancestrais atuavam intensamente sobre a vida dos vivos. Deste modo, a

    cosmologia bakongo centralizava na ancestralidade o elemento explicativo para o

    16 CANCLINI, Nestor. Culturas Hbridas: estratgias para pensar e sair da modernidade. So Paulo: Edusp,

    1998p. 18-19. 17 BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Tomke Lask (org.) Rio de Janeiro: Contra

    Capa, 2000, p. 25-68 18 SLENES, Robert, Na senzala uma flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia escrava. Brasil,

    Sudeste, sculo XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.246. _______ Malungu, Ngomavem!: frica

    encoberta e descoberta no Brasil. Cadernos do Museu da Escravatura, n. 1 (Luanda, Ministrio da Cultura, 1995). Reedio corrigida de: Malungu, Ngoma vem!: frica coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12,

    dez./jan./fev. 1991-92, p.48-67 19 SLENES, Na senzala uma flor. Op. Cit., p. 246.

  • 25

    entendimento da fundao do mundo, dos fenmenos naturais, da construo das linhagens e

    do funcionamento das estruturas polticas e sociais. Consoante Slenes:

    (...) o culto aos ancestrais na frica tem um significado amplo, poltico,

    social e religioso, especialmente no caso da homenagem feita aos ancestrais fundadores que, como os africanos dizem deram origem a nossa vida e nos trouxeram s terras onde vivemos. Mais especificamente, podemos ter certeza de que entre os ovimbundu e no reino de Loango, como de fato acontecia na terra dos bakongo, a ratificao de um novo chefe poltico

    envolvia um ritual que o aproximava dos ancestrais originrios do grupo e

    que simbolicamente recriava o prprio ato de fundao destes.20

    Sendo assim, a noo de pertencimento familiar tambm era ampla, evocando as

    linhagens consanguneas e os entes espirituais dos antepassados; manter este dilogo

    frequente definia uma das obrigaes centrais dos viventes para perpetuar a harmonia

    espiritual, caracterizada pelo estado de ventura, impedindo, portanto, o infortnio

    (desventura) causado pela ao malvola de espritos ou aes dos viventes atravs da

    feitiaria.21

    Por seu turno, a sade corporal e espiritual, a fartura de alimentos, o sucesso com

    as colheitas, o afastamento de epidemias, desastres naturais e guerras dependiam

    necessariamente do bom relacionamento entre vivos e mortos; caso contrrio, as entidades

    ofendidas, no assistidas devidamente em seus ritos de passagem, poderiam se vingar. Essas

    perspectivas de crenas certamente influenciaram nos modos desses estrangeiros vivenciarem

    suas percepes de mundo e nos comportamentos diante da morte dentro da experincia

    devocional do Rosrio.

    No entanto, os papis representados por essas heranas culturais presentes nas

    referncias de ancestralidade, na conduo da vida espiritual e nos parmetros de percepo

    de morte dos confrades merecem, a meu ver, maior ateno nas investigaes. Digo isso pois

    a abordagem da religiosidade associativa em torno da Virgem dos pretos tem privilegiado

    outras questes, como o funcionamento da dinmica interna, a solidariedade nas aes de

    proteo mtua e nas celebraes festivas e as relaes institucionais entre a Igreja, o poder

    rgio e os sodalcios.

    Um dos trabalhos precursores em torno do estudo das irmandades do Rosrio e suas

    significaes e papis assumidos na sociedade escravista do Imprio portugus refere-se

    obra Devoo e escravido de Julita Scarano. Nesta, a autora aborda as relaes travadas

    entre Igreja e Estado, no que diz respeito s polticas e prticas desempenhadas no interior da

    Irmandade do Rosrio dos Pretos do Arraial do Tijuco, relacionando os temas como a

    20Idem, p. 243-244. 21Idem, p. 143.

  • 26

    interferncia rgia nas confrarias, as disputas entre associaes leigas, o poder eclesistico e o

    poder rgio. Ao tratar de querelas entre capeles e irmos, a autora assevera que tanto o poder

    eclesistico quanto o poder temporal combatiam o esprito de autonomia reivindicada pelas

    irmandades.22

    Na dcada de 1980, relevantes contribuies se deram com a publicao das

    investigaes de Caio Boschi acerca das conceituaes e tipologias das confrarias em Minas

    Gerais no sculo XVIII. Ao prosseguir com o tema da trade relacional Estado, Igreja,

    confrarias iniciada por Scarano, o autor estabelece crticas contundentes a este estudo por

    consider-lo incapaz de captar o sentido poltico que as irmandades possuam no contexto

    histrico da capitania. 23 Para Boschi, a ampla participao de leigos na vida religiosa

    colonial, atravs de seu financiamento de cultos e templos, significou o acirramento das

    contradies internas do antigo sistema colonial, j que os poderes temporal e espiritual

    naquele contexto se faziam indistintos. Referente s irmandades de negros, em particular, o

    autor reconhece nessas associaes o palco privilegiado de sociabilidade praticada na

    colnia, ao mesmo tempo em que essas poderiam exercer um papel adesista, passivo e

    conformista24 diante das imposies da sociedade escravista. Todavia, em seus trabalhos

    recentes, Boschi procura desenvolver uma reviso desses posicionamentos, ao considerar a

    intensa reciprocidade entre a catolicizao dos africanos simultnea africanizao do

    catolicismo, em detrimento, portanto, de uma perspectiva de aculturao da religiosidade

    desses negros devotos.25

    Mary Karasch, em sua tese de doutoramento, foi pioneira em abordar o tema da

    religiosidade na dispora sob o vis do contexto multitnico da sociedade escravista brasileira.

    Com base nas leituras de Thornton, a brasilianista chamou a ateno para as tradies

    religiosas flexveis dos africanos centro-ocidentais, enquanto vetores de transformao e

    adequao do catolicismo segundo os cdigos culturais bantos. Tomando de emprstimo suas

    palavras, ao invs de se adaptarem ao cristianismo, [os africanos] incorporavam imagens

    catlicas sua religio.26

    22 SCARANO, Op. Cit., p. 9-38. 23 BOSCHI, Caio. Os Leigos e o Poder. Op.cit. p. 155. 24 Idem, p.156 25 BOSCHI, C. Em Minas, os negros e seus compromissos. In.: MARTINS FILHO, Amilcar V. (org.). Compromissos das Irmandades Mineiras do sculo XVIII. Belo Horizonte: Claro Enigma\ Inst. Cult. A. Martins, 2007, p. 292 26 KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de janeiro, 1808-1850. So Paulo: Cia das Letras, 2000. p. 361-

    362.

  • 27

    Nessa esteira de discusso sobre as formaes de etnicidades e identidades no interior

    das confrarias, Clia Borges demonstrou, em levantamento para a capitania de Minas, como

    as interpretaes distintas dos smbolos sagrados geravam conflitos e espaos de negociaes

    simblicas entre os grupos imersos na luta pelo controle dos bens de salvao. A autora ainda

    assevera que essas associaes significavam para seus membros um espao de sociabilizao

    onde ocorriam trocas culturais.27 Cada indivduo, entretanto, ao encontrar o seu semelhante,

    reconfortava-se, pois assegurava para si uma segurana que era simblica e respondia sua

    afetividade.28 Deste modo, o esforo pela busca de seu igual significava, ao mesmo tempo, a

    ingerncia de aliana e disputa, ao passo que a relao entre etnias distintas tambm exigia

    um encontro de um denominador comum capaz de propiciar a comunicao entre os

    membros.29

    Marcos Aguiar em seu trabalho Negras Minas Gerais30 expande a investigao

    da sociabilidade devocional para o universo externo s associaes, conferindo, assim, o

    aspecto do agenciamento e das aes dos irmos filiados s Mercs e ao Rosrio em esferas

    como: relaes de gnero, conflitos tnicos e criminalidade. Nesta obra o autor retoma alguns

    posicionamentos expostos em sua pesquisa de mestrado Vila Rica dos Confrades31 -

    revendo, portando, a afirmao de que em Minas as irmandades negras refletiram, grosso

    modo, as clivagens entre africanos, concentrados em associaes do Rosrio, e crioulos,

    integrados, basicamente, nas irmandades das Mercs. Em Negras Minas Gerais o autor

    relativiza este posicionamento ao considerar as distines feitas entre os grupos tnicos nos

    registros de contribuies de esmolas dos juzes nas associaes do Rosrio, nos indcios das

    tenses presentes nas cerimnias de coroao de reis negros e das disputas pelos cargos

    administrativos. Consoante Aguiar, estes espaos juizados, reinados, eleies de cargos

    serviram como instrumentos decisivos para a requao tnica, a construo identitria e a

    fixao das novas relaes de autoridade forjadas no contexto colonial no espao das

    irmandades.32

    Em estudo sobre os significados produzidos no interior dos cultos de Santo Elesbo e

    Santa Ifignia, Anderson Oliveira analisou as leituras desenvolvidas pelos escravos e libertos

    acerca dos smbolos devocionais estimulados pela catequese dos santos pretos. Nesta

    27 Idem, p. 30 28 Idem. 29 Idem, p. 21. 30 AGUIAR, Negras Minas. Op. Cit., p. 257-264. 31 AGUIAR, Vila Rica dos Confrades., Op. Cit., 1993, p.300. 32 AGUIAR, Negras Minas, Op. Cit., p. 264

  • 28

    investigao, o compartilhamento de expectativas e memrias dos segmentos africanos junto

    vivncia de culto nas confrarias possibilitou uma relativa autonomia dos grupos negros

    diante da uniformizao pretendida pela Igreja. 33 O aprofundamento sobre as segmentaes

    identitrias - organizadas atravs da formao dos juizados de santos, reinados, e disputas

    eleitorais - permitiu a problematizao acerca da ausncia dos discursos exclusivistas nas

    normas estaturias em compromissos do Rosrio em Minas, viabilizando, assim, a

    compreenso das devoes, enquanto sinais diacrticos na construo de identidades

    culturais.34

    Lucilene Reginaldo, avanando com o tema das identidades forjadas nas

    sociedades atlnticas, buscou entender como os valores centro-africanos e catlicos

    interagiram em pontos diversos da expanso portuguesa no Ultramar, recuperando, assim, os

    significados do catolicismo vivenciado na frica Central e aquele moldado pela experincia

    da escravido no Novo Mundo.35

    Numa outra frente de abordagem, estudos como os de Joo Jos Reis, Adalgisa

    Arantes Campos, Mariza Soares e, mais recentemente o de Manoela Arajo aproximaram o

    tema da liturgia da morte e a vivncia religiosa nas irmandades. Adalgisa Campos, em estudo

    sobre as representaes imagticas de So Miguel nas matrizes mineiras, trouxe inmeras

    contribuies acerca da vivncia da morte e da difuso do culto das Almas do Purgatrio

    pelas confrarias desta devoo na religiosidade barroca desenvolvida na capitania de Minas.36

    J Arajo, ao enfocar as prticas devocionais desses irmos das Almas, considera o aspecto de

    recriaes e permutabilidade experimentadas na colnia. Nesse sentido, a autora procura

    responder em que medida a preocupao com a salvao da alma conduziu as aes dos

    confrades de So Miguel de So Joo e So Jos del-Rei (Tiradentes) na religiosidade

    cotidiana dessas irmandades. Para Arajo, o prprio ato de filiao devoo das Almas

    indica por si s, que a prestao de contas no alm estava presente ao longo da vida e no

    apenas no momento em que se sentia a proximidade da morte.37

    No obstante, Joo Jos Reis, em dcadas anteriores, j havia inaugurado um novo

    espao de investigao sobre a histria social da morte no Brasil, ao adotar metodologias e

    propostas analticas empregadas pela Escola dos Annales no desenvolvimento de sua obra A

    33 OLIVEIRA, Anderson Jos Machado de. A Festa da Glria: festas, irmandades e resistncia cultural no Rio de Janeiro Imperial. Revista Histria Social. Unicamp Campinas/SP, nmero 7, 2000, pp. 19-48. 34 Idem. Devoo Negra. Op. Cit., p. 308. 35 REGINALDO, Op. Cit., p. 13-26. 36 CAMPOS, A Terceira Devoo. Op. Cit., p. 6-11. 37 ARAJO, Manoela Vieira Alves de. Em busca da salvao: Vivncia da f e vida cotidiana entre os irmos de

    So Miguel e Almas. So Joo e So Jos Del-Rei (1717-1804). Dissertao de Mestrado em Histria. Juiz de

    Fora: ICH/PPGHIS, 2013, p. 11.

  • 29

    morte uma festa. Neste estudo, o historiador trata da mobilizao conjunta das irmandades e

    ordens terceiras frente construo de um cemitrio, sob a custdia de uma companhia

    privada em Salvador, durante o episdio conhecido como Cemiterada. A revolta, ocorrida em

    frente ao palcio do governo da provncia, tinha por objetivo resguardar as prticas fnebres

    tradicionais ameaadas diante da campanha civilizadora de edificao dos cemitrios

    extramuros em combate aos miasmas malficos, considerados os causadores das epidemias.

    J a tradicional cultura funerria crist, defendida pelas confrarias, enterrava seus mortos em

    solo sagrado, de preferncia prximos s imagens de santos, anjos e todo aparato protetor

    encarado como recurso viabilizador de uma boa morte, isto , de um passamento adequado

    para o alcance da salvao da alma. Ao longo deste estudo, notvel o desdobramento de

    problemticas importantes para o tema da histria da morte que se inaugurava no Brasil, tais

    como: o impacto da legislao sanitarista, o discurso mdico aliado ao aparato repressor do

    Estado, as mudanas das sensibilidades coletivas mediante as proibies de enterros em

    igrejas e as vozes dissidentes que aparecem como personagens centrais do livro de Reis,

    como defensoras das atitudes arraigadas perante a morte.38

    Ampliando as contribuies dos estudos dedicados s representaes culturais da

    morte, Cludia Rodrigues analisa os campos de tenses entre a campanha sanitarista, o

    discurso eclesistico e os costumes religiosos dos sepultamentos na cidade carioca, atacada

    pela epidemia de febre amarela. Nesta investigao so tratadas questes cruciais como a

    familiaridade entre os vivos e seus mortos nas crenas crists e os gestos propiciatrios para

    o bem morrer - incluindo nestes a distribuio dos sacramentos, a escolha da mortalha e o

    detalhamento do funeral orientado durante a feitura do testamento.39

    Em trabalho posterior

    Nas fronteiras do Alm a autora aprofunda a temtica, ao enfocar sobre os ditames da

    doutrina do bem morrer presentes nos manuais da Igreja catlica e as formas de apropriao

    desta pedagogia do medo pelos diferentes segmentos sociais confrontados com o receio do

    instante da agonia.40

    J o trabalho de Mariza Soares ocupou um papel fundamental na forma de pensarmos

    a discusso tratada nesta pesquisa, na medida em que a autora articula temas como

    escravido, devoo das almas e ancestralidade africana, presente no culto dos mortos

    desenvolvido pela Congregao dos Pretos Minas Maki da Irmandade de santo Elesbo e

    38 REIS, A morte uma festa. Op. Cit., p. 13-24. 39 RODRIGUES, Cludia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Tradies e transformaes fnebres no Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, 1997, p. 21-24. 40Idem, Nas fronteiras do Alm. A secularizao da morte no Rio de Janeiro, sculos XVIII e XIX, Rio de

    Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 23-28.

  • 30

    santa Ifignia do Rio de Janeiro, no final do sculo XVIII. Para Soares a converso ao

    catolicismo vivido dentro da irmandade redimensionou o lugar dos ancestrais e do Reino

    Maki nas heranas e memrias recriadas na outra margem do Atlntico pela mediao da

    irmandade e, mais especificamente, pelo culto das Almas do Purgatrio desenvolvido por esta

    congregao.41

    Nesta mesma direo, em artigo de autoria conjunta, Anderson Oliveira e

    Silvia Brgger, a partir da consulta ao livro de Certido de Missas da Nobre Nao de

    Benguela da Irmandade do Rosrio dos Pretos de So Joo del-Rei, sustentam que a proteo

    buscada pelos parentes de nao, em invocao aos seus ancestrais, contribuiu, de forma

    decisiva, para sedimentar as solidariedades entre eles, fortalecendo ainda mais o processo de

    construo de uma identidade sociocultural.42

    Diante destas proposies nos sentimos instigados a avanar na investigao sobre os

    papis representados pelo culto dos mortos, as representaes adquiridas pelos ancestrais e as

    orientaes normativas diante dos aspectos de vida e de morte desenvolvidas no interior da

    Irmandade do Rosrio dos Pretos de So Joo del-Rei. Nesse sentido, esta pesquisa se prope,

    atravs do estudo da religiosidade confraternal da Irmandade do Rosrio dos Pretos, entender

    os significados construdos pelos confrades do exlio, junto a seus descendentes, em torno dos

    signos, cultos, celebraes e prticas vinculados aos modos de viver e de morrer como

    irmos. Em vista disso, nos preocupamos, ao longo do trabalho, em averiguar como as

    experincias e acepes de vida e de morte foram recriadas na outra margem do Atlntico a

    partir da apropriao do bem morrer e do bem viver orientados pela liturgia catlica em

    interao com as heranas africanas de ancestralidade.

    A escolha desta confraria, em particular, se justifica em razo de ter se desenvolvido

    no interior desta irmandade uma devoo peculiar s almas milagrosas, reconhecidas nas

    almas dos parentes de nao filiados Nobre Nao Benguela. Esta segmentao interna dos

    pretos do Rosrio foi criada provavelmente no final do sculo XVIII43

    e tinha por objetivo

    potencializar a caridade aos seus irmos mortos de nao,44

    atravs da encomendao de

    41 SOARES, Devotos da Cor. Op. Cit., p. 229-230. 42BRGGER & OLIVEIRA, Os Benguelas de So Joo Del Rei: trfico- atlntico, religiosidade e identidades tnicas. (Sculos XVIII e XIX). In: Revista Tempo, v. 13, n 26, Niteri-RJ, pp. 177-204, 2009, p. 197. 43 O primeiro assento de missa registrado no livro data-se de1793, quando Joo Ladino intencionou missas s

    almas de Ana e Mariana Lopes, sob celebrao do Padre Luiz Pereira Gonzaga. Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de

    Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803. Agradeo ao pesquisador Anderson Oliveira por me ceder

    uma cpia do documento. 44 As naes como angola, benguela, cabinda, congo constituam em expresses genricas palas quais se

    reportavam s regies de embarque, no correspondendo propriamente s organizaes tnicas, no sentido

    original, antecedentes travessia. Cf.: SOARES, Devotos da Cor. Op. Cit., p. 93.

  • 31

    sufrgios para o livramento dos seus parentes das penas do Purgatrio.45

    Com o tempo, este

    grupo alcanou uma notria coeso e organizao, ao ratificar a compra de uma casa no incio

    de Oitocentos pela qual serviria de espao cerimonial denominada por Palcio da Nobre

    Nao de Benguela.46

    Neste aspecto, fica evidente a construo de uma acepo de parentesco

    com sentido mais coeso em relao ao prprio parentesco confraternal ou familiar

    consanguneo. Nesta forma de pertena, os irmos benguelas e seus vassalos47

    sob proteo do

    Rosrio se reconheciam espiritualmente e fortaleciam, continuadamente, seus vnculos com

    seus parentes de nao, atravs do redimensionamento da ancestralidade viabilizado pelo

    culto das almas na liturgia catlica.

    Quanto ao recorte temporal, elegemos os anos de 1782 a1850. O limite inicial refere-

    se abertura do primeiro livro de bitos na Freguesia do Pilar, frente documental fundamental

    para a anlise das atitudes perante a morte de uma dada comunidade, por indicar informaes

    individualizadas como o nome, condio social, sexo, etnia, sacramentos recebidos, causa

    mortis e local de sepultamento. O limite final alude ao ano de cerceamento definitivo do

    trfico-atlntico de escravos em 1850 e incio da desmontagem e deslegitimazao paulatina

    da instituio da escravido que marcou a sociedade do Brasil Imprio na sua segunda metade

    dos Oitocentos. A periodizao assinalada abrigou muitas mudanas significativas para as

    confrarias na sociedade escravista, como a aplicao das reformas pombalinas, pelas quais se

    cercearam diversas aes de autonomia das associaes: a prtica dos peditrios, a coroao

    de reis, a cobrana de esmolas elevadas e a eliminao dos critrios de pureza de sangue nas

    irmandades das elites. 48

    Durante o governo D. Maria I (1777-1816), posterior ao perodo pombalino, o poder

    rgio recrudesceu a poltica de fiscalizao dessas associaes ao coibir a aplicao por parte

    dessas instncias, de multas pecunirias, de castigos fsicos e de outras penas. As esmolas e

    construes de igrejas sem licenas prvias passaram a ser punidas com maior rigor e as

    prticas de concesso de emprstimos regulamentadas de acordo com os parmetros

    estipulados pelo governo metropolitano. As exigncias dos prazos para que os irmos

    45 AMNSP-SJDR, Livro de Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803. Ver tambm o primeiro

    trabalho a explorar esta documentao: BRGGER & OLIVEIRA, Op. Cit., p. 177-204. 46 AMNSP-SJDR, Livro de Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803 47 Termo utilizado pela Nobre Nao para se referir aos seus pertencentes e outras naes vinculados ao grupo. Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803 48 BOSCHI, Os leigos e o poder. Op. Cit., p. 118-123

  • 32

    abrissem testamentos e o direito f pblica, por parte dos escrives, tambm foram

    banidas.49

    Com a vinda da famlia real em 1808 e a introduo dos costumes civilizatrios, em

    decorrncia da interiorizao da metrpole, Dom Joo VI (1816-1822) reforou a poltica de

    cerceamento aos reisados a fim de estabelecer novos usos do espao pblico, como tambm

    passou a proibir as prticas de sepultamentos nas igrejas, sob argumentos de higienizao

    pblica. Este perodo foi marcado tambm pela ascenso econmica e social da comarca do

    Rio das Mortes que se tornou o maior centro produtivo da economia de abastecimento interno

    e de mo de obra escrava da capitania/provncia de Minas. Durante o reinado de Dom Pedro I

    (1822-1831) e as regncias (1831-1840) houve a ascenso da elite agrria-sul mineira nos

    quadros polticos do Imprio, o que possibilitou a implantao de novos hbitos pautados

    numa etiqueta de Corte entre os homens de destaque na regio. Certamente esta projeo

    regional e a introjeo de novos costumes civilizatrios levaram a rpida insero da

    localidade poltica de construo de cemitrios pblicos e de redefinio dos costumes

    relacionados aos cuidados com os mortos.50

    O interesse em trabalharmos sobre o tema da morte surgiu com o avano da

    explorao do material emprico levantado ao longo da pesquisa, principalmente quando

    passamos a dar enfoque aos testamentos dos irmos libertos.51

    Esses documentos relacionados

    transmisso de heranas do testador faziam referncia aos gestos propiciatrios da boa

    morte presentes em preocupaes como: a evocao da protestao de f, as splicas pelos

    intercessores celestiais mediante a hora da agonia, alm das disposies sobre o funeral, o

    sepultamento e das distribuies dos sufrgios e legados pios encarados como recursos

    fundamentais para expanso dos bens de salvao em interface s preocupaes com o

    destino espiritual. Sendo assim, os depoimentos testamentrios por emitirem uma dada

    representao crist sobre a morte e alm tmulo, nos levam a concordar com Rodrigues

    49Idem, p. 122 50 Os primeiros sepultamentos de escravos e libertos enterrados em cemitrios da Vila datam de 1809, quando

    identificamos o assento de Maria da Silva Crioula Forra falecida em 06/04/1809 por bexigas na freguesia do

    Pilar de So del-Rei. Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de bitos (1808, out- 1811-, jun). J os enterramentos do

    cemitrio Geral da Vila iniciaram-se em 1821, o primeiro assento foi localizado em nome de Josefa Crioula

    inocente, filha de Joaquina Benguela e escrava de Jos Francisco Lima, sepultada neste cemitrio em

    28/05/1821. AMNSP-SJDR, Livro de bitos (1818, ago- 1824, fev.). Quanto aos enterramentos no Cemitrio do

    Rosrio se iniciaram em 1831, aps a compra de um terreno feito pela irmandade em 1830. O primeiro sepultamento na necrpole dos irmos foi identificado em nome de Rosa Preta Forra, falecida em 17/08/1831.

    Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de bitos (1829, fev- 1840, mar.). 51 Ao todo foram levantados 71 testamentos de devotos sepultados na igreja do Rosrio entre 1782 a 1828.

  • 33

    acerca da potencialidade dessas frentes documentais enquanto caminho para o estudo da

    pedagogia da boa morte.52

    Para o alcance das heranas culturais veiculadas ao culto dos mortos, praticado pelos

    povos centro-africanos, fizemos uso intensivo dos depoimentos de missionrios capuchinhos

    e franciscanos. Entre esses, destacamos os relatos de Joo Antnio (ou Giovanni) Cavazzi53

    sobre os costumes dos reinos do Congo, Matamba e Angola e os depoimentos do

    franciscano Rafael Castelo de Vide, missionrio no Congo entre 1779 a 1785. 54

    Alm disso,

    nos serviu de aliado para a compreenso das prticas fnebres e da religiosidade dos

    antepassados na regio de Benguela, o estudo antropolgico de Augusto Bastos sobre os

    Traos gerais sobre a etnografia do Distrito de Benguela.55

    Deste modo, procuramos entender essas heranas culturais, assentadas na

    ancestralidade e no culto dos mortos projetadas na experincia do Rosrio, no como

    reminiscncias estanques, fossilizadas, mas, sobretudo, como elementos ativos na redefinio

    identitria desses grupos diaspricos, reorientados a partir da vivncia de uma solidariedade

    tnica e espiritual. Sendo assim, foram problematizadas questes como a busca por novas

    formas de pertencimento, a redefinio dos parmetros culturais (abalados pelo trfico) e a

    necessidade em refazer as referncias familiares e vises de mundo capazes de atender as

    expectativas e as necessidades de homens e mulheres marcados pela experincia segregadora

    da dispora. Com efeito, a busca incessante pela reconstruo dos modos de ser no mundo

    atlntico remete ao hiato estabelecido pelo caminho do meio,56

    como tambm s necessidades

    de se criar formas comunitrias de vida e se sentir minimamente amparado e reconhecido por

    seus pares de convvio.

    Nesse sentido, constitui tambm nossa proposta esclarecer como este sistema de

    coeso grupal difundido pela devoo do Rosrio, atravs da pregao de modelos ideais de

    condutas, se tornou capaz de redimensionar o modus vivendi do devoto estrangeiro no que diz

    respeito s suas atitudes perante a vida e a morte. A vivncia devocional na irmandade

    estipulava ao integrante as regras de pertencimento e de obrigao para com o orago e a

    52 RODRIGUES, Nas fronteiras do alm. Op. Cit., p. 112. 53 BNL, CAVAZZI, Joo Antnio. Descrio Histrica dos trs Reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa:

    Junta de Investimento no Ultramar, 1985. Livro 1, 1 Ed. 1732. 54 CASTELO DE VIDE, Rafael. Viagem e misso no Congo. Academia das Cincias de Lisboa, Ms Vermelho,

    296. Outra verso: CORREA, Arlindo. Viagem no Congo de Fr. Rafael Castelo de Vide (1780-1788), 2007,

    p.32-33. Disponvel em: http://arlindo-correia.com/041207.html 55 BNL, BASTOS, Augusto. Traos gerais sobre a etnografia do Distrito de Benguela. Lisboa: Tipografia

    Universal, 1909. 56 Termo utilizado por Joseph Miller para se referir travessia atlntica. Cf.: MILLER, J. frica Central durante a era do comrcio de escravizados, de 1490 a 1850. In.: HEYWOOD, Linda M. Dispora Negra no Brasil. So Paulo: Contexto, 2008, pp.29-80.

  • 34

    comunidade fraterna. Todavia, nessas diretrizes comportamentais, os deveres de caridade

    dirigida aos irmos defuntos constituam um dos compromissos fundamentais. Sendo assim,

    quem se tornava irmo do Rosrio deveria estar atento religiosidade das obras atravs das

    aes de auxlio mtuo s oraes dirias, s meditaes dos mistrios, s missas aos

    irmos vivos e defuntos, ao amparo na doena terminal e solidariedade na hora do fretro e

    sepultamento do irmo.

    Com efeito, a orientao moral de uma vida fraterna, agregada a uma associao leiga,

    exigia do matriculado uma nova conduta perante os seus modos de encarar a vida e de

    conduzir os seus afazeres na sociedade. Desta forma, os fins ltimos segundo os parmetros

    cristos propagados pelo catolicismo tridentino, divulgado pelas irmandades, seguiam na

    direo de uma vida crist orientada para uma boa morte.57

    Como bem pontuou Vovelle, a

    ideia de que uma boa morte a coroao de uma boa vida responde melhor nova pedagogia

    da preparao cotidiana para a salvao. 58Sendo assim, a redeno post-mortem, finalidade

    mxima de todo cristo, se torna acessvel em interface a religio das boas obras, da caridade

    ao prximo, das prticas penitenciais, da frequncia confisso e comunho e da utilizao

    de todos os recursos para a purificao dos pecados veniais.

    Nessa perspectiva, o catolicismo ps-trento investiu forte na valorizao de uma vida

    pia e virtuosa como um dos caminhos substanciais para o alcance da graa celestial cada vez

    mais disponvel em razo da expanso dos bens de salvao, como a distribuio de

    indulgncias, por exemplo.59

    Em vista disto, as concepes de morte passaram a orientar

    efetivamente as atitudes perante a vida, as formas de conceber o sagrado, de se reconhecer e

    se portar dentro uma sociedade veiculada aos valores de estratificao, em que as

    desigualdades sociais eram naturalizadas conforme a mentalidade de antigo regime.60

    57 Sobre a doutrina da boa morte, ver: BERTO, J. P. Liturgias da Boa Morte e do Bem Morrer: Prticas e

    representaes fnebres na Campinas Oitocentista (1760-1880). Dissertao de Mestrado em Histria. Campinas: UNICAP/IFICH, 2014, p.17-72. CAMPOS, Adalgisa. As irmandades de So Miguel e as Almas do

    Purgatrio: Culto e iconografia no Setecentos Mineiro. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2013, p. 13-

    26.RODRIGUES, Cludia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Tradies e transformaes fnebres no Rio

    de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, 1997, p. 150-154. ______, Nas fronteiras do Alm. A secularizao

    da morte no Rio de Janeiro, sculos XVIII e XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 40-53. 58 VOVELLE, M. As Almas do Purgatrio ou Trabalho de Luto. Traduo Aline Meyer e Roberto Cattani. So

    Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 130. 59 Segundo Penteado, as indulgncias eram o meio utilizado pela Igreja para remir as penas temporais, aps os fiis terem recebido no confessionrio a absolvio dos seus pecados e das penas eternas. Cf.: PENTEADO,

    Confrarias portuguesas da poca moderna: problemas, resultados e tendncias da investigao. In.: Lusitnia Sacra, 2 Srie, N 7, pp. 15-52, 1995, p. 35. 60 Ver as ponderaes de Mattos sobre as perspectivas de estratificao social na sociedade escravista. Cf.:

    MATTOS, Hebe Maria. A escravido moderna nos quadros do Imprio portugus: o Antigo Regime em perspectiva atlntica. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O

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    Diante desta sensibilidade coletiva, o estrangeiro escravizado ao aderir em uma

    irmandade procurava, com base na adaptao deste modelo de conduta, reinventar e ritualizar

    sua existncia, utilizando-se tambm dos seus referenciais culturais e memrias reelaboradas

    na ps-travessia. Trata-se, portanto, de reinterpretaes de cdigos e bens simblicos que

    foram continuamente reeditados luz dos processos de apropriao61

    e das prticas culturais

    no Novo Mundo. Entretanto, para entendermos as extenses do regimento normativo da

    confraria na montagem das relaes mais amplas construdas por esses agentes, utilizamos

    uma noo de dispora62

    cuja experincia da travessia no pode ser entendida como somente

    um deslocamento de corpos, mas como uma recriao de memrias, fronteiras e

    historicidades. Essas vivncias foram, portanto, reconstrudas a partir das impresses

    situacionais vivenciadas no outro lado do Atlntico.

    Entendendo o universo da linguagem religiosa enquanto espao apropriado para as

    mediaes culturais, procuramos neste trabalho perscrutar sobre a construo de leituras

    especficas de smbolos catlicos e como essas vivncias singulares das prticas religiosas

    experenciadas no espao associativo puderam orientar vetores de comportamentos sociais e

    coletivos. Nesse sentido, concordamos com C. Geertz ao sustentar que a religiosidade oferece

    uma matriz de valores capaz de orientar significados experincia do cotidiano dos seus

    indivduos praticantes. Esta orientao de sentido s coisas do mundo obedecia certamente a

    uma ordem pragmtica, pois viabilizava um conjunto de respostas convincentes para o

    entendimento dos problemas vividos.63

    Para o autor, a religio um sistema cultural capaz de responder desde as indagaes

    triviais at as apreenses ticas mais complexas acerca da experincia existencial do homem.

    Este sistema de smbolos entrelaados s faz sentido para aqueles que esto imersos numa

    mesma teia de significados culturais, isto , quando compartilham dos mesmos signos e

    valores. Nesse sentido, a experincia do sagrado, ao fornecer padres de comportamentos

    comuns, assegurava ao indivduo praticante subsdios necessrios para o enfrentamento de

    Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao

    Brasileira. p.141-162. 2001. 61Entendemos apropriaes como formas mltiplas de interpretao que so construdas em meio aos embates

    diretos e disputas implcitas para se definir maneiras de representar o mundo. Segundo Chartier, essa noo no

    se coaduna com a percepo de passividade de leitura da realidade, onde possvel identificar um emissor e receptor das representaes. Como se as mensagens transmitidas tivessem nelas sentidos intrnsecos, totalmente

    independente da significao atribuda pelos sujeitos. Sendo assim, anular o corte entre produzir e consumir antes de mais afirmar que a obra s adquire sentido atravs da diversidade de interpretaes que constroem as

    suas significaes. Cf.: CHARTIER, R.A Histria cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990. p. 59. 62 Cf.: HALL, Da Dispora. Op. Cit., p. 43. 63 GEERTZ, C.A interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978.

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    situaes limites como a dor fsica, a perda pessoal, a contemplao da agonia alheia,

    transformando tudo isso em algo