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O Rosário dos Irmãos Escravos e Libertos: fronteiras, identidades e representações do viver e morrer na Diáspora Atlântica – Freguesia do Pilar, São João Del-Rei (1782 – 1850) Tese de Doutorado
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Universidade Federal de Juiz de Fora
Instituto de Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Histria
Leonara Lacerda Delfino
O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos:
Fronteiras, Identidades e Representaes do Viver e Morrer na Dispora
Atlntica.
Freguesia do Pilar-So Joo Del-Rei (1782-1850)
Juiz de Fora
2015
Leonara Lacerda Delfino
O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos:
Fronteiras, Identidades e Representaes do Viver e Morrer na Dispora Atlntica.
Freguesia do Pilar- So Joo Del-Rei (1782-1850)
Texto final apresentado ao Programa de
Ps-Graduao em Histria, rea de
Concentrao: Narrativas, Imagens e
Sociabilidades da Universidade Federal de
Juiz de Fora, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Doutorado em
Histria.
Orientadora: Prof. Dr. Clia Maia Borges
Juiz de Fora
2015
Ficha catalogrfica elaborada atravs do programa de gerao automtica da Biblioteca Universitria da UFJF,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a) Delfino, Leonara Lacerda.
O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos : Fronteiras,
Identidades e Representaes do Viver e Morrer na Dispora
Atlntica. Freguesia do Pilar de So Joo del-Rei (1782-1850).
/ Leonara Lacerda Delfino. -- 2015.
526 f.
Orientadora: Clia Maia Borges
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Juiz de Fora,
Instituto de Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em
Histria, 2015.
1. Representao. 2. "boa morte". 3. dispora atlntica. 4.
ancestralidade. 5. Irmandade do Rosrio. I. Borges, Clia
Maia, orient. II. Ttulo.
Leonara Lacerda Delfino
O Rosrio dos Irmos Escravos e Libertos: Fronteiras, Identidades e
Representaes do Viver e Morrer na Dispora Atlntica.
Freguesia do Pilar- So Joo Del-Rei (1782-1850)
Texto final apresentado ao Programa de Ps-Graduao
em Histria, rea de Concentrao: Narrativas, Imagens e
Sociabilidades da Universidade Federal de Juiz de Fora,
como requisito parcial para a obteno do ttulo de
Doutorado em Histria
Orientador (a): Dr. Prof. Clia Maia Borges.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Anderson Jos Machado de Oliveira (UNIRIO)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
______________________________________________
Prof. Dr. Lucilene Reginaldo (UNICAMP)
Universidade Estadual de Campinas
______________________________________________
Prof. Dr. Clia Maia Borges (Orientadora)
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
______________________________________________
Prof. Dr. Robert Daibert Jnior
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
______________________________________________
Prof. Dr. Mnica Ribeiro de Oliveira
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
______________________________________________
Suplente Externo Prof. Dr. Cludia Rodrigues (UNIRIO)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
________________________________________________
Suplente Externo Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (UFJF)
Universidade Federal de Juiz de Fora
Data de Aprovao 25/06/2015.
Aos meus pais, Antnio e Olvia, pela referncia que so
em minha vida.
Ao meu companheiro Felipe (principal entusiasta deste
trabalho) e ao velho malungo Eduardo, pela amizade de
anos.
AGRADECIMENTOS:
Agradeo, em primeiro lugar, minha orientadora Clia Maia Borges pelas diretrizes
fundamentais, aconselhamentos, leituras, conversas e por todo aprendizado construdo ao
longo destes quatro anos. A sua competncia, seriedade e sensibilidade perante as questes
sobre o tema das religiosidades serviro para mim como referncia crucial aos meus projetos
futuros. Agradeo Clia principalmente por sua generosidade, parceria e pela confiana
depositada neste trabalho.
Ao Programa de Ps-Graduao de Juiz de Fora por ter acolhido este projeto,
principalmente aos professores Alexandre Mansur Barata, Carla Maria de Almeida, Beatriz
Helena Domingues, Maria Fernanda Vieira Martins e Mnica Ribeiro de Oliveira. Aos
amigos de curso, em especial, Monalisa Pavonne, Manoela Arajo, Nvea Mendona e
Cristiano de Oliveira Souza, pelas trocas de materiais, conversas, e por me socorrerem sempre
em minhas dvidas com os irmos de outras confrarias e ordens terceiras. Agradeo
tambm ao Daniel Precioso no s pela transcrio de um documento da Biblioteca Nacional,
durante o tempo em que estive fora, mas pela ateno sempre cuidadosa em me responder
questes por e-mails.
instituio de fomento pesquisa CAPES Coordenao de Aperfeioamento
Pessoal de Nvel Superior por ter financiado o custeio de todas as viagens a congressos,
visitas aos arquivos, bibliotecas, estgio no exterior e todas as atividades acadmicas. Sem
este amparo a pesquisa no teria sado do lugar.
banca de qualificao composta pelos professores Anderson Jos Machado de
Oliveira e Mnica Ribeiro de Oliveira pelos caminhos apontados mediante a leitura cuidadosa
do meu texto ainda em processo de maturao; sem as ponderaes colocadas durante o
exame, o trabalho no teria alcanado este formato. Agradeo tambm aos professores Robert
Daibert Jnior e Lucilene Reginaldo por terem aceitado prontamente o convite em participar
desta defesa. professora Cludia Rodrigues pelas observaes feitas durante o simpsio
Imagens da Morte promovido pelo encontro da ANPUH de 2013. Devo lembrar a
importncia deste evento para a redefinio do meu objeto, posso dizer que foi neste
momento, ouvindo as discusses dos trabalhos apresentados, que me apaixonei
definitivamente pelo tema da histria da morte.
Em minhas andanas por Mariana, Campanha, So Joo del-Rei e outros arquivos no
pude deixar de fazer amigos e desenvolver respeito s pessoas e profissionais que me
auxiliaram diretamente nesta jornada. Sou grata s meninas da Repblica Intocveis, em
especial Larissa Accorsi (Pipico), pela recepo durante as visitas de arquivos e eventos. Ao
casal amigo Moiss Trres e Larissa Mendes de So Joo del-Rei por terem recebido-me,
abrindo-me as portas aos principais contatos da cidade. s professoras da UFSJ: Maria
Lenia Chaves de Resende, Silvia Maria Jardim Brgger a primeira pelo acesso ao
material digitalizado dos compromissos das irmandades de So Joo del-Rei e a Silvia,
pela gentil disponibilidade do seu banco de dados sobre os registros de batismo.
Ao Jairo Braga Machado, representante do acervo alocado no Instituto do Patrimnio
Artstico Nacional de So Joo del-Rei, ao antroplogo Daniel Albergaria da Silva,
pesquisadora Lvia Monteiro, ao professor Renato da Silva Dias, Edriana Nolasco e ao
Patrick Salomo Avila. Ao seu Nelson Antunes, por me permitir fotografar todo acervo da
Irmandade do Rosrio e Kellen Cristina Silva, por me emprestar a cpia do livro de
entradas do Rosrio de Tiradentes. Lembro aqui meus agradecimentos ao pessoal de
Campanha, sempre gentis e hospitaleiros, em especial, Aneliza Furtado, assistente na Cria
de Campanha; Raphaella, funcionria do CEMEC-SM (Centro de Memria Cultural do Sul
de Minas); Luciana Cludia, por me acudir com sua mquina digital quando a bateria da
minha acabou, e amiga Prola Castro pelas conversas sobre o sul de Minas. Em Baependi
fui agraciada pelas gentis indicaes de In Braslio e de Liliane Corra, sempre solcitas em
responder por mensagens eletrnicas as minhas inquietaes sobre as memrias locais.
Durante o breve e no menos importante perodo em que passei a freqentar os
acervos de Lisboa, pude me tornar imensamente grata ao professor Dr. Jos Pedro Paiva pela
solicitude com que me recebeu em Coimbra e pelas orientaes durante o meu estgio do
PDSE Programa de Doutorado sanduche no Exterior. Agradeo tambm, neste espao, a
presteza dos funcionrios da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional de Portugal. No
posso me esquecer dos amigos: D. Julieta, que nos hospedou em sua casa, do Sr. Rui e sua
esposa pelas conversas bacanas que me fez sentir em famlia nestes inesquecveis quatro
meses em Portugal. Aproveitando o ensejo, agradeo aos amigos Natlia e Rhuan (Batata)
pelos passeios divertidssimos em Alfama, regados por muito vinho, boas risadas e papos
descontrados. Impossvel no me lembrar, sem que venha um sorriso no rosto, da final da
Liga dos Campees em 2014.
Ao casal amigo muito especial, Quelen Ingrid Lopes e Hugo Andr Flores, por terem
cuidado de nossa casa durante o tempo em que eu e meu noivo tivemos em Lisboa, pela
amizade devotada, pelas risadas, confidncias, companheirismo mpar. Quelen, no vulgo
Xuxu, agradeo por hoje conseguir mexer com os programas Excel e Access, sem seu auxlio,
jamais conseguiria levantar esta quantidade de dados. Paula Ferrari pelas longas e
prazerosas conversas no So Pedro, Izabella Salles e Arnaldo Zangelmi, velhos amigos, s
amizades em Juiz de Fora (Maria Fernanda Van Erven, Leandro Mageste, Wallace Andrioli);
ao Eduardo Assis, meu querido e especial velho malungo, por me ouvir tantas vezes, por
acreditar em mim e por todas nossas histrias desde os tempos de graduao, voc parte
importante da minha vida, meu irmo postio!
Ao meu noivo e companheiro Felipe Cazetta, primeiro a acreditar neste trabalho!
Durante a seleo de doutorado, quando estava abarrotada de aulas em um colgio pblico em
que trabalhava, pude contar com seu companheirismo singular. Juntos, estudamos,
elaboramos fichamentos e discutimos todos os autores que iriam cair na prova de seleo. Foi
ele tambm o responsvel por fazer minha inscrio na secretaria da ps e a cuidar de toda
parte burocrtica do processo. Sem o seu apoio emocional e profissional eu jamais teria
chegado ao trmino deste trabalho. Ao longo destes quatro anos tive provas cabais do seu
companheirismo; juntos, enfrentamos muitas adversidades, medos e angstias; vivemos
tambm muitas alegrias e regozijos que o compartilhamento de uma vida a dois pode
proporcionar.
Aos meus pais, irmos, avs (o grande cl Delfino) e aos meus familiares maternos e
paternos devo todas as gratificaes e alegrias que a vida pde me dar. Vejo hoje nas feies
dos meus pais a alegria e satisfao por me ver terminar esta etapa de minha carreira
acadmica, eles que no tiveram a oportunidade de terminar o ensino primrio se sentiram um
tanto orgulhosos com esta conquista.
Todos os acontecimentos, do nascimento morte, eram
comemorados nas confrarias e quem estivesse fora delas
seria olhado com desconfiana, privado do convvio
social, quase um aptrida dentro dos grupos que se
reuniam em associaes, (...). O desligamento de uma
confraria representava grave problema, colocando a
pessoa margem da sociedade, significando tremendo
castigo. No parecia admissvel que algum pudesse
viver sem estar unido a um desses grupos e, castigo
ainda maior, morrer fora de um deles.
Julita Scarano.
Bendito, louvado seja o Rosrio de Maria Se no fosse Ela, muitas almas se perdia (sic).
Ulisses Passarelli
(Canto popular de encomendao das almas na regio das
Vertentes- MG)
Ancestralidade
Os mortos no morreram... Esto no ventre da mulher
No vagido do beb
E no tronco que queima.
Os mortos no esto sobre a terra:
Esto no fogo que se apaga,
Nas plantas que choram,
Na rocha que geme,
Esto na casa.
Nossos mortos no morreram. Birago Diop
RESUMO:
O objetivo desta pesquisa consiste em abalizar, a partir de uma perspectiva de culturas
hbridas do mundo atlntico, as contnuas e mtuas influncias das diversificadas
representaes dos modos de viver e morrer na experincia devocional do Rosrio de So
Joo del-Rei entre os sculos XVIII e XIX. Nesse sentido, analisamos a catolicizao dos
diferentes grupos tnicos africanos e o uso de smbolos catlicos especficos ligados liturgia
da morte, como elementos diacrticos na definio de suas fronteiras identitrias naquele
contexto multitnico da escravido. Ademais, valorizamos, juntamente com a catolicizao
desses grupos, o processo de africanizao dos preceitos catlicos vividos na irmandade,
atravs dos mecanismos de apropriao cultural (entendida sempre como uma via de mo
dupla) acerca dos ideais do bem viver, enquanto veculo normatizador do bem morrer na
dimenso cotidiana tangenciada pela intensificao dos contatos culturais promovida pelo
exlio forado da dispora atlntica. Nesse sentido, a anlise investigativa buscou, como
enfoque central, a redefinio das prticas de solidariedade entre os irmos vivos e defuntos,
concebidos como coparticipes de uma mesma famlia ritual e fraterna. Tal noo de
pertencimento envolveu laos rituais consanguneos e espirituais que uniam o mundo
dos vivos ao mundo dos mortos a partir de uma percepo de ancestralidade centro-
africana reconstruda no Novo Mundo, atravs da re-significao das heranas culturais luz
da catequizao leiga no Ultramar. Esta ancestralidade esteve presente na formao do culto
das almas promovido pela Nobre Nao Benguela, segmento tnico-devocional que se
firmou dentro da irmandade no final do sculo XVIII. Para o desenvolvimento deste estudo
foram utilizados depoimentos de missionrios nos reinos do Congo e Angola, manuais de
orao do bem-morrer, alm da documentao confrarial produzida pelos irmos, como as
entradas, atas de eleies, estatutos, livro de missas, juntamente com acervo de registros
paroquiais (batismo, bito e casamento) ao lado dos depoimentos autobiogrficos produzidos
pelos testamentos dos irmos libertos sepultados na igreja do Rosrio.
Palavras-chave: Representao, boa morte, dispora atlntica, ancestralidade, Irmandade do
Rosrio.
RSUM:
Le but de cette recherche est marquer, du point de vue des cultures hybrides du monde
de l'Atlantique, les influences mutuelles continues et de diverses reprsentations de manires
de vivre et de mourir sur l'exprience de dvotion du Rosaire de So Joo del Rei entre les
XVIII et XIXme sicles. En ce sens, nous analysons la catholisation de diffrents groupes
ethniques africains et l'utilisation de symboles catholiques spcifiques lis la liturgie de la
mort, comme des lments diacritiques dans la dfinition de leur identit borde ce contexte
multiethnique de l'esclavage. En outre, nous apprcions avec catholisation ces groupes, le
processus d'africanisation des prceptes catholiques vivaient dans la fraternit, travers les
mcanismes d'appropriation culturelles (toujours compris comme une voie double sens)
sur l'idal de la bonne vie pendant que le vhicule la normalisation de la bonne mort dans
la vie quotidienne dimension tangentiel l'intensification des contacts culturels promus en l'exil
forc de la diaspora de l'Atlantique. En ce sens, l'analyse de la recherche demand en tant que
point central, la redfinition des pratiques de solidarit entre les vivants et frres dfunts,
conu en tant que co-participant de la mme famille rituel et fraternelle. Cette notion de
familles rituels impliqus la parent et les liens spirituels qui unissent le monde
vivant" le "monde des morts" d'une perception de l'ancestralit de l'Afrique centrale
reconstruite dans le Nouveau Monde, travers la redfinition du patrimoine culturel la
lumire de la catchse laque l'tranger. Cette l'ancestralit tait prsent la formation du
culte des mes, dvelopp par Noble Nation Benguela, le segment ethnique et de dvotion
qui a lui-mme tabli dans la confrrie dans la fin du XVIII sicle. Pour dvelopper cette
tude ont utilis tmoignages des missionnaires dans les royaumes du Congo et l'Angola,
manuels de prire de bien mourir, ainsi que la documentation produite par les confrarial
frres, comme entres, les lections de minutes, statuts, livre de messe, ajout une collection
des registres paroissiaux (baptme, mariage et de dcs) aux cts des tmoignages
autobiographiques produites par les testaments des frres affranchis enterrs dans la glise du
Rosaire.
Mots-cls: la reprsentation, la bonne mort, la diaspora atlantique, lancestralit, confrries
du Rosaire
LISTA DE IMAGENS:
1. Jean Daret. O Purgatrio. Pintura, 1660. Aix-em-Provence, igreja de Prcheurs
(Frana)..............................................................................................................
69
2. Altar do Retbulo do Rosrio, 1643. Igreja de Val-des-Prs (Hautes-Haupes-
Frana)...................................................................................................................... .
70
3. Annimo do sculo XVIII. Virgem com santo intercede pelas Almas do
Purgatrio. Queige (Savoia- Itlia)............................................................................
71
4. Carlos Julio. Coroao de uma Rainha, Festa de Reis (Rio de Janeiro- 1776)... 340
5. Carlos Julio. Coroao de um Rei no Festejo de Reis (XVIII)........................... 340
6. J. B. Debret. Prancha 30, Coleta para a manuteno da Igreja do Rosrio........... 343
7. Painel das almas do Purgatrio, Matriz de Nossa Senhora do Pilar de So Joo
del-Rei, s/d................................................................................................................
377
8. Thomas Ewbank, Caixa de esmolas das almas, Rio de Janeiro. (1845-1846)...... 379
9. Bernardino Ignazio da Vezza. Incndio da Casa de dolos (circa 1750).............. 389
10. Bernardino Ignazio da Vezza. Missa funerria no Congo (circa 1750).............. 397
11. Bernardino Ignazio da Vezza. Apario da Virgem no Reino do Congo
(circa1750).............................................................................................................
398
12. J. B. Debret, Enterro do filho eu um rei negro (1834), Prancha 16..................... 403
13. J. B. Debret, Enterro de uma moambicana (1834), Prancha 16......................... 404
14. A morte do Homem Justo (s/d) MRSM, Campanha- MG, Acervo de Arte
Sacra....................................................................................................................
430
15. A morte do Homem mpio (s/d), MRSM, Campanha- MG, Acervo de Arte
Sacra..................................................................................................................
430
Anexo
I- Imagem de Nossa Senhora do Rosrio situada no altar da Igreja do Rosrio de
So Joo Del Rei. Reproduzida em 05/04/2012........................................................
480
II- Bartolom Esteban Murilo, La Virgem Del Rosario- 1678, Museo del Prado
(Madrid)...................................................................................................................
481
III- Annimo, Entrega do rosrio a So Domingos e Santa Catarina de Siena -
1809. Livro de Compromisso da Irmandade do Rosrio de Aiuruoca, ACMC........
482
IV- Carlos Julio,Vestimentas de escravas (17- - ?); Prancha 26, BNRJ................ 483
V- Carlos Julio, Traje de mulher negra. (17- - ? ); Prancha 27, BNRJ.................... 484
VI- Carlos Julio, Roupa de escravas. (17- -?); Prancha 29, BNRJ.......................... 485
VII- Forro da Capela do Rosrio, Manoel Victor de Jesus (1827), Tiradentes-
MG.............................................................................................................................
486
LISTA DE DIAGRAMAS QUADROS E TABELAS:
DIAGRAMA 1:Relaes parentais do Rei Congo Manoel Loureno de Mesquita.. 303
DIAGRAMA 2: Relaes parentais da Rainha do Congo Mariana Dias das
Chagas.................................................................................................................
305
QUADRO 1: Composio dos cargos segundo a condio social e a cor na
Irmandade do Rosrio de So Joo del-Rei...............................................................
194
QUADRO 2: Relao entre etnias e cargos ocupados no Rosrio de So Joo del-
Rei (1818-1849)...................................................................................................
195
QUADRO 3: Falecidos de cor, segundo a ocupao ou ofcio (Freguesia do Pilar,
1782-1850):.........................................................................................................
220
QUADRO 4: Arranjos matrimoniais de cativos e forros segundo a origem das
noivas (1730-1868)....................................................................................................
249
QUADRO 5: Frequncia nos Juizados de Santos na Irmandade do Rosrio de So
Joo del-Rei (1782-1850)......................................................................................
289
QUADRO 6: Composio hierrquica da Nobre Nao de Benguela (1803-
1837)....................................................................................................................
354
QUADRO 7: Relao da causa mortis dos obiturios adultos (1782-1850)............. 417
TABELA 1: Falecidos distribudos segundo a condio social e o sexo (1782-
1850)...........................................................................................................................
227
TABELA 2: Condio Social dos Falecidos por Dcadas (1782-1850).................... 227
TABELA 3: Referncia de idade dos Falecidos (1782-1850).................................. 228
TABELA 4 Faixa etria dos falecidos (1782-1850)................................................ 228
TABELA 5: Falecidos distribudos segundo o sexo e a origem (1782-1850)........... 231
TABELA 6: Origem dos falecidos por dcadas....................................................... 231
TABELA 7: Procedncias africanas dos falecidos (1782-1850).............................. 234
TABELA 8: Procedncias tnicas dos falecidos por dcadas (1782-1850)............... 235
TABELA 9: Procedncias Nativas dos Falecidos (1782-1850)................................ 237
TABELA 10: Batizandos inocentes segundo a cor e a condio social na Matriz
do Pilar (1744-1850)..................................................................................................
243
TABELA 11: Batizandos Adultos segundo a procedncia tnica e a condio
social (1744-1850)..................................................................................................
243
TABELA 12: Entrantes do Rosrio em So Joo del-Rei, segundo o sexo e a
condio social (1782-1850)......................................................................................
266
TABELA 13: Entrantes do Rosrio em Barbacena, segundo o sexo e a condio
social (1812-1850)....................................................................................................
266
TABELA 14: Entrantes do Rosrio em So Jos del-Rei (Tiradentes), segundo o
sexo e a condio social (1812-1850)........................................................................
267
TABELA 15: Entrantes do Rosrio em So Joo del-Rei, segundo o sexo, a
origem e a procedncia tnica (1782-1850)...............................................................
277
TABELA 16: Entrantes do Rosrio em Barbacena, segundo o sexo, a origem e a
procedncia tnica (1812-1850).................................................................................
278
TABELA 17: Mortalha, segundo os testadores forros do Rosrio (1781-
1828)..................................................................................................................
435
TABELA 18: Falecidos segundo os sacramentos recebidos (1782-1850)................ 441
TABELA 19: Evoluo da participao nos sacramentos ante-mortem por
dcadas.................................................................................................................
444
TABELA 20: Locais de sepultamento segundo os assentos de bitos (1782-
1850)..........................................................................................................................
461
TABELA 21: Locais de sepultamento segundo os assentos de bitos de inocentes
(1782-1850)................................................................................................................
462
TABELA 22: Locais de sepultamento segundo a condio social dos falecidos
adultos (1782-1850)..................................................................................................
462
TABELA 23: Sepultamentos segundo as procedncias tnicas dos falecidos
adultos (1782-1850)...................................................................................................
464
ABREVIATURAS:
ACMC- Arquivo da Cria Metropolitana de Campanha
AEAM- Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana
AHU- Arquivo Histrico Ultramarino
AINSR- SJDR- Arquivo da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio de So Joo del-Rei
AMNSP- SJDR- Arquivo da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de So Joo del-Rei.
ANRJ- Arquivo Nacional- RJ
ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo- Lisboa
APM- Arquivo Pblico Mineiro
BNL- Biblioteca Nacional de Lisboa
BNRJ- Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
BMBCA- SJDR- Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida de So Joo Del Rei.
CECML- Centro de Estudos Campanhense Monsenhor Lefort.
IPHAN-SJDR- Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional de So Joo Del Rei.
MRSM- Museu Regional do Sul de Minas- Campanha.
PNSCP - Parquia de Nossa Senhora da Conceio de Prados.
SUMRIO
Introduo.................................................................................................................. 19
Captulo 1: O Rosrio como instrumento de converso e de salvao das almas cativas
na catequese tridentina no Ultramar.................................................................................
45
1.2 O Rosrio no Ultramar.............................................................................................. 59
1.3. O Rosrio como instrumento de salvao no alm.................................................. 66
1.4. Os manuais de orao................................................................................................. 78
1.5 Os sermes................................................................................................................. 93
Captulo 2: O esprito associativo em So Joo del-Rei: As polarizaes sociais, os
contatos culturais e a caridade na morte........................................................................
104
2.1 As polarizaes sociais presentes nas irmandades...................................................... 113
2.2 A assistncia aos irmos vivos e defuntos e os altares internos na Igreja do Rosrio. 136
2.3 O territrio das fronteiras e das interaes culturais.................................................... 145
Captulo 3: Para o bom governo e regime da mesma: Alianas e conflitos na construo da norma e no exerccio do poder da administrao dos bens de salvao....
150
3.1 Perfis sociais e atribuies dos dirigentes administrativos da irmandade................... 162
3.2 Territrios e fronteiras dos bens sagrados: as disputas pelas demarcaes de poder
entre procos, capeles e confrades...................................................................................
198
Captulo 4: Os registros paroquiais e os aspectos da populao escrava e liberta na
Freguesia do Pilar........................................................................................................
214
4.1 Dos falecidos de cor: aspectos de ocupao................................................................ 217
4.2 Qualificao social dos falecidos: condio, sexo, cor e procedncia tnica.............. 225
4.3 As classificaes sociais nos registros de batismo...................................................... 237
4.4 A busca por seu igual: as alianas tnicas nos espaos do casamento catlico.......... 244
Captulo 5: Dos Irmos que haver nesta Irmandade: O perfil social e a dinmica da rede interacional dos associados........................................................................................
253
5.1 Os entrantes da irmandade segundo o sexo e a condio social.................................. 258
5.2 Apontamentos sobre a cor e a procedncia tnica.......................................................
267
5.3 Os Juizados de santos................................................................................................ 278
5.4 Tecendo as redes dos confrades: a sociabilidade dos irmos.....................................
290
Captulo 6: A Senhora me d licena pra beij sua Coroa: A Festa do Rosrio, uma gramtica cultural da dispora.........................................................................................
307
6.1 O rei dos vivos e dos mortos: intercesses de memrias, culturas e identidades na
festa do Rosrio.................................................................................................................
320
6.2 O Reinado da Nobre Nao de Benguela: a ancestralidade, o parentesco-tnico e a
salvao das almas.............................................................................................................
349
Captulo 7: Fronteiras, Memrias e Identidades: Olhares mltiplos sobre a morte na
experincia devocional do Rosrio...............................................................................
367
7.1 A Nobre Nao e os sufrgios............................................................................... 371
7. 2 O sacrifcio eucarstico e a doutrina do bem morrer............................................... 380
7.3 Heranas e memrias: cerimoniais fnebres e o culto dos mortos entre os povos
bantos........................................................................................................................
386
Captulo 8: Os irmos perante a morte: Os rituais de passagem e de incorporao no
alm............................................................................................................................
408
8.1 As transformaes sanitrias em So Joo del-Rei e a causa mortis dos escravos,
libertos e livres de cor.................................................................................................
412
8.2 Ritos de separao e de incorporao no alm: os testamentos, as invocaes
celestes e a escolha da mortalha.......................................................................................
427
8.3 Ritos de separao e de incorporao no alm: os legados pios e os sacramentos...... 435
8.4 Os sepultamentos e a classificao social dos mortos................................................. 444
Consideraes Finais.................................................................................................... 470
ANEXO........................................................................................................................ ... 479
Fontes Manuscritas e Impressas................................................................................. 487
19
INTRODUO
No podemos jamais ir para casa, voltar cena primria enquanto momento
esquecido de nossos comeos e autenticidade, pois h sempre algo no meio [between]. No podemos retornar a uma unidade passada, pois s podemos conhecer o passado, a memria, o inconsciente atravs dos seus
efeitos, isto quando este trazido para dentro da linguagem e de l
embarcamos numa interminvel viagem. Diante da floresta de signos
(Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histrias e memrias (...). Talvez seja mais uma questo de buscar estar em casa aqui,
no nico momento e contexto que temos (...)1
As irmandades2constituam-se em associaes religiosas cujos leigos se reuniam em
torno de uma devoo ou orago. Suas regras de funcionamento e gesto estavam
regulamentadas em um estatuto ou compromisso. Por este regimento se estabeleciam os
critrios de admisso, os valores a serem pagos pela entrada, anuidades, esmolas aos santos,
como tambm as normas para eleger a mesa diretora, responsvel por administrar os assuntos
cotidianos da confraria. Suas principais finalidades consistiam em promover o culto pblico
devocional e a assistncia material e espiritual aos os irmos vivos e defuntos. A legalidade
dessas instituies dependia do aval de autoridades civis e eclesisticas. A partir de 1765
todos os compromissos deveriam ser enviados ao Tribunal da Mesa de Conscincia e Ordens.3
Ao lado do poder rgio, a Constituio do Arcebispado da Bahia prescreveu em seu LX
Ttulo, Pargrafo 867 a obrigatoriedade da remessa desses estatutos para a apreciao do
bispado local.4
1 CAHMBERS, I. Bourder Dialogues Jouners. In: Post. Modernity. London: Routledge, 1990, p. 104. Apud.
HALL, Stuart. Da Dispora: Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, P. 27. 2 As fontes consultadas registraram como similares os termos confraria, irmandade e corporao. Por isso
usaremos esses termos como sinnimos ao longo do texto. Sobre as classificaes tipolgicas das associaes
leigas, Caio Boschi menciona que: Variada a terminologia utilizada para designar essas associaes(...). Embora o Cdigo Cannico estabelea algumas distines, ainda assim, a prpria Cria Romana, em seus
documentos, no faz claras diferenciaes entre elas. Cf.: BOSCHI, C. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e
poltica colonizadora em Minas Gerais. So Paulo: editora tica, 1986, p. 14. Ainda acerca da definio dessas
tipologias, Clia Borges acrescenta: (...) as pias unies eram associaes de fiis eretas com o objetivo de exercer obras de piedade ou caridade. Quando constitudas em organismos, reguladas por um estatuto, chamavam-se irmandades. As que erigiam to somente o culto pblico (...) denominavam-se confrarias. (...). As
ordens terceiras perfilavam-se como associaes de leigos cuja existncia dependia da autorizao conferida por
uma ordem primeira. (...) Seu objetivo consubstanciava prtica da devoo e caridade (...). Cf.: BORGES, C.
M. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosrio: Devoo e solidariedade em Minas Gerais, sculos XVIII e
XIX. Juiz de Fora: ed. da UFJF, 2005. p.52-53. 3 Em 1532 foi criada a Mesa de Conscincia e Ordens para resolver os casos jurdicos e administrativos que
envolviam questes concernentes s ordens militar-religiosas: Ordem de Cristo, Ordem de Avis e Ordem de
Santiago. Com o tempo a Mesa de Conscincia e Ordens excedeu suas funes e passou a julgar as causas
eclesisticas que envolviam os clrigos do reino. O rei por ser gro-mestre da Ordem de Cristo, pelo regime do
Padroado, era quem autorizava o reconhecimento dos compromissos confrariais. 4As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia so um conjunto de leis cannicas promulgadas em 1707 que baseavam-se nas tradies bblicas, nas Constituies Portuguesas e nas diretrizes do Conclio Tridentino
que foram adaptadas situao colonial. Ao lado das Ordenaes Filipinas definiram uma srie de obrigaes
jurdicas, que embora resguardasse normas de cunho religioso, no estavam dissociadas dos direitos civis.
20
As irmandades do Rosrio, conhecidas por arregimentar grande parte da populao de
estrangeiros traficados, serviram como lcus privilegiado para a reconstituio identitria
desses grupos na experincia da dispora atlntica. As recentes pesquisas5 em torno dos
significados acerca dos papis desempenhados pelas irmandades negras tm alcanado
avanos consistentes no que diz respeito ao redimensionamento da experincia de homens e
mulheres escravizados no Ultramar. Ao abrirem frentes de anlises ancoradas em debates em
torno da dissenso e/ou da coeso comunitria seja atravs da nfase atribuda aos
processos de diferenciao, ou ao aspecto aglutinador desenvolvido pela sociabilidade
devocional6 esses estudos trouxeram leituras inovadoras no campo da histria social da
escravido. Isso se explica pelo fato dessa nova abordagem conseguir desmobilizar uma
noo monofacetada e homognea do cativeiro atrelada a uma percepo dualista e rgida
entre senhores versus escravos, negociao versus conflito, acomodao versus resistncia.
Cf.:Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia(1707). So Paulo, Typografia Dois de Dezembro 1853.
Livro 4. Ttulo LX, Par. 867. 5BOSCHI, C. Espaos de sociabilidade na Amrica Portuguesa e historiografia brasileira contempornea. In:
VENTURA, M.G. A. Os espaos de sociabilidade na bero-Amrica (sculos XVI-XIX)\ Nonas Jornadas de
Histria Ibero - Amrica. Lisboa: Edies Colibri. 2004. ABREU, M. O Imprio do Divino: Festas religiosas e
cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. AGUIAR, M. M.Vila Rica
dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no sculo XVIII. So Paulo: USP. 1993
(Dissertao de Mestrado). ___. Negras Minas Gerais: uma histria da dispora africana no Brasil Colonial. So
Paulo: USP, 1999. (Tese de Doutorado). BORGES, Escravos e libertos..., Op. Cit. CUNHA, M. C. (Org.)
Carnavais e outras festas. Ensaios de Histria Social da Cultura. Campinas: ed. UNICAMP, 2002. CAMPOS,
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de Ouro (1963-1745). Tese de Doutorado em Histria. Belo Horizonte: FAFICH, 2004. EUGNIO, A.
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irmandades de pretos e pardos no Rio de janeiro e Pernambuco. So Paulo: USP, 1997. (Tese de Doutorado).
REGINALDO, Lucilene. Os Rosrios dos Angolas. Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista.
So Paulo: Alameda, 2011. REIS, J.J. A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo
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africanos e crioulos na Bahia Setecentista. So Paulo: Alameda, 2011. RUSSELL-WOOD. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. SCARANO, J. Devoo e Escravido: A
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Nacional (col. Brasiliana), 1976. SOARES, M. Devotos da cor: Identidade tnica, religiosidade e escravido no
Rio de Janeiro, sculo XVIII. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2000. TINHORO, J.R. As festas no Brasil
Colonial. So Paulo: ed. 34, 2000. 6Para Maurice Agulhon, a sociabilidade pode ser entendida como uma rede organizacional entre os indivduos
que se vem pertencentes a uma mesma associao ou grupo social. Esta interao entre os participantes se faz
veiculada a um compartilhamento de normas, valores, emblemas, mitos, alegorias e smbolos quer geram
comportamentos polticos voltados para atender finalidades coletivas do grupo. Deste modo, concebemos que as
prticas de sociabilidade no mbito da irmandade se instituam em todas as atividades em que os confrades se achassem unidos e incorporados para designar aes coletivas, tais como: a assistncia social, os atos litrgicos, as aes celebrativas, os cortejos fnebres, os festejos de coroao de reis, as reunies de junta e at mesmo os
atos informais, como a reunio dos irmos para a recitao do rosrio. Cf.: AGULHON, M. Penitent Et Frances-
maons de laancienne Provence:essai sur La sociabilit marionale. Paris: Farard, 1984.
21
Nesse sentido, estabelecendo uma aproximao com o trabalho emblemtico de Joo
Jos Reis e Eduardo Silva, tais anlises foram sensveis multiplicidade de nuances da
experincia escrava permeadas por muitas ambiguidades, contradies, conflitos, alianas e
acomodaes. Esta diversidade de comportamentos na senzala ultrapassava largamente as
dicotomias representadas pelo herosmo pico de Zumbi de Palmares em contraponto ao
submisso Pai Joo.7
Deste modo, o estudo intensivo das relaes cotidianas no interior das associaes
tornou-se uma via fulcral no s para o entendimento dos mecanismos internos do grupo
associativo, mas tambm para a compreenso mais aprofundada da prpria sociedade
escravista. Respeitando suas peculiaridades internas, as irmandades negras serviram
principalmente como expresso dos anseios coletivos8 do grupo devocional ao atenderem
reivindicaes comuns assentadas nas obrigaes temporais e espirituais. Esses deveres
devocionais atendiam no s o aumento do culto, voltado para a dedicao liturgia de
homenagem ao orago, como tambm a solidariedade entre irmos vivos e defuntos. Esta
caridade associativa inclua desde a assistncia aos enfermos, rfos, vivas e presos at as
missas e oraes a serem recitadas em memria dos irmos falecidos. Deste modo, tal relao
conjunta ao exerccio da assistncia aos irmos vivos e defuntos fazia parte da sensibilidade
imaginria do barroco em que vivos e mortos constituam parte de uma mesma da famlia
ritual. Neste local de pertencimento, os entes falecidos deveriam ser permanentemente
reverenciados e assistidos pela memria e caridade dos vivos.
Nesse sentido, o estado de pertena famlia simblica viabilizava no s o amparo,
no sentido material, em situaes limites de invalidez ou de aproximao da morte, mas,
conferia, sobretudo, o suporte emocional para o enfrentamento das dificuldades e das presses
sociais colocadas pela condio de cativeiro na ps-travessia. Deste modo, a possibilidade de
articular novos arranjos comunitrios atravs do compartilhamento de smbolos, prticas,
ritos e normas grupais vivenciadas pela adeso a uma irmandade ofereceu aqueles
indivduos parmetros eficazes para o reposicionamento de suas identidades em torno de uma
devoo comum. Sendo assim, as associaes como a do Rosrio tornaram-se vetores
privilegiados para atender aos anseios desses grupos, ao mesmo tempo em que serviram como
canal estratgico para atingir os objetivos da poltica de catequizao e de expanso do
catolicismo reformista no ultramar.
7 REIS, J. J.& SILVA, E. Negociao e Conflito: A resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p.13. 8 RUSSELL-WOOD, Op. Cit., p. 221.
22
No obstante, longe de se constiturem-se como rplicas idnticas de suas congneres
portuguesas, as confrarias dos irmos pretos cederam espao vivncia de um catolicismo
novo em que as leituras dos cdigos catlicos se instituam por mediaes das memrias e
idiossincrasias caras s culturas e experincias da pr-travessia. Desta forma, percebemos
nessas corporaes um espao substancial para o estabelecimento de teias sociais mais amplas
para alm do espao fsico das senzalas. Com efeito, essas associaes serviam tambm como
vetores para reconstituio identitria desses indivduos que buscaram na ao protetora do
grupo e na integrao devocional, um dos recursos fundamentais para recriarem suas vidas na
outra margem do Atlntico.
Stuart Hall, um estudioso da experincia da dispora, assevera que mesmo tendo a
sensao de deslocamento e estranheza profunda provocada pelo exlio, o indivduo
estrangeiro jamais perderia a referncia de suas culturas de origem, embora essas deixavam de
ser a nica fonte de identificao. 9No entanto, este processo de desterritorializao cultural
no corresponde transferncia integral ou simplesmente cpia do patrimnio cultural do
exilado em seu novo mundo. Esta reinveno das memrias perpassa por uma re-significao
permanente deste patrimnio durante o processo de intercmbio cultural com outras
tradies culturais. Deste modo, o autor entende a experincia no exlio como um fazer-se
contnuo, portanto inacabada, mutvel e intensamente imbricada com outras zonas culturais
de contato.10
Trata-se, assim, de uma relao inventiva com as tradies, em que as heranas
so constantemente produzidas e reeditadas luz das coeres, limitaes e condicionamentos
colocados pela situao de exlio. Por seu turno, esta permeabilidade das trocas culturais no
se efetua sem isenes de conflitos, pelo contrrio, no processo de tenses e de negociaes
entre os espaos culturais que as demarcaes distintivas so constitudas pelos grupos em
contato.
Este entendimento da formao identitria dos exilados pautada numa noo de
mobilidade, permutabilidade e inacabamento nos auxiliou como ferramenta terica
indispensvel para iniciarmos nossa investigao acerca da constituio das identidades
devocionais no Rosrio. Os sujeitos do exlio buscaram na adeso dessas entidades protetoras,
a rearticulao de sua experincia cotidiana e o alargamento de suas redes sociais para alm
do espao do mundo do trabalho do cativeiro. Sendo assim, ainda que a vivncia devocional
propusesse uma srie de regras normativas aos seus praticantes, possibilitava a ampliao de
9 HALL, Stuart. Da Dispora: Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003 10Idem., p. 43.
23
seus espaos de sociabilidades e a recriao dos laos sociais solapados pelo trfico, atravs
dos vnculos comunitrios, incluindo as prticas associativas.
Sidney Mintz e Richard Price em trabalho inovador sobre a escravatura em
sociedades caribenhas, feito a partir de uma perspectiva antropolgica consideram o
surgimento das comunidades escravas resultante de um processo efetivo das interaes
sociais elaboradas no contexto da dispora atlntica. Para os autores, a experincia da
Kalunga colocou em contato uma mirade de culturas pelas quais homens e mulheres do
exlio se viram obrigados a se adaptar diante das adversidades do meio. No entanto, apesar da
heterogeneidade, a experincia segregadora motivou os grupos etnicamente distintos a
identificarem padres valorativos comuns dos quais os permitiram configurar novos signos e
sentimento de pertena. Esta redefinio de cdigos foi o fator-mor para a reorientao
identitria dos sujeitos apartados que passaram, a partir de ento, a desenvolver uma
sensibilidade coletiva de pertencimento em interface queles novos agrupamentos que se
forjavam nas interaes atlnticas. 11
Todavia, estudos africanistas como os de Marina de Mello e Souza,12
Linda
Heywood13
e John Thornton14
chamam ateno para os processos de interaes culturais entre
europeus e africanos ainda em solo africano. A cosmologia centro-africana, baseada nos
sistemas de revelaes, demonstrou certo nvel de plasticidade para incorporar novos cdigos
segundo os parmetros religiosos nativos.15
Sendo assim, a cristianizao hbrida, vivenciada
nas culturas do Congo e Angola, no estava restrita s elites, nem tampouco pode ser
entendida como manifestao religiosa superficial por ser diferente do catolicismo ortodoxo.
Para esses autores, a africanizao dos smbolos catlicos no contexto da pr-travessia
transmite um sentido dialgico dessas trocas culturais em que o processo de interao foi
capaz de promover sentidos inditos e imprevisveis, enquanto expresses desta
permutabilidade. Nesta perspectiva, consideramos que a particularidade dessas linguagens
imprevistas de crenas experimentadas, de forma tambm distinta, na experincia da ps-
travessia podem ser entendidas pela abordagem dinmica do hibridismo cultural, enquanto
vetor de construo de identidades. Segundo Canclini:
11MINTZ, S. & PRICE, R. O nascimento da Cultura Afro-americana. Uma perspectiva antropolgica. Rio de
Janeiro: Editora Pallas/Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cndido Mendes, 2003, p.39-56. 12 MELLO e SOUZA, Op. Cit., 43-85 13HEYWOOD, Linda. De portugus africano: a origem centro-africana das culturas atlnticas crioulas no sculo XVIII. In.: HEYWOOD, (Org.), Dispora negra no Brasil. So Paulo: Contexto, 2008, p. 101-124. 14THORNTON, A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pp. 312-354. ________, Religio e vida cerimonial no Congo e reas Umbundo, de 1500 a 1700. In.: HEYWOOD, Op. Cit., pp. 81-100. 15Idem.
24
(...) a hibridizao no sinnimo de fuso sem contradies, mas sim que
pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na
interculturalidade (...). [Deste modo] entendo por hibridizao processos socioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existam de
forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e
prticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram
resultado das hibridizaes, razo pela qual no podem ser consideradas fontes puras.
16(Grifos Nossos)
Neste ponto de vista, no h espao para concebermos as identidades culturais como
algo puro ou plenamente homogneo e sim resultante de uma sntese imprevisvel do
movimento propiciado pelos contatos intensos de sociedades multitnicas pluriculturais.
Sendo assim, a construo identitria s se faz diante da diferena, das relaes de contraste,
das ambivalncias frente s contradies vividas, permanentemente re-significadas. Deste
modo, paradoxalmente, as fronteiras culturais, na interpretao de F. Barth, florescem em
interface mobilidade dos contatos, dos confrontos, do destaque diferena nessas permutas
de smbolos e vises de mundo. 17
Consoante estes posicionamentos possvel entendermos
as formas de restabelecimento tnico e identitrio dos estrangeiros associados devoo no
contexto da ps-travessia.
Robert Slenes, ao descrever as representaes construdas acerca das agruras e o
impacto psicolgico vivido pelos deportados na experincia da travessia, sintetiza a
complexidade do termo semntico Kalunga. Em uma de suas verses, a terminologia passa a
designar a percepo de morte desses indivduos da cultura bakongo sobre suas permanncias
nos pores dos navios negreiros.18
A expresso remetia tambm terra dos mortos
representada pelo espelho dgua, isto , uma superfcie reflexiva que servia como ponto de
interface e de comunicao entre o mundo dos mortos e o dos vivos.19 No universo desses
africanos centro-ocidentais no havia uma fronteira ntida entre o mundo material e o mundo
espiritual. Os espritos ancestrais atuavam intensamente sobre a vida dos vivos. Deste modo, a
cosmologia bakongo centralizava na ancestralidade o elemento explicativo para o
16 CANCLINI, Nestor. Culturas Hbridas: estratgias para pensar e sair da modernidade. So Paulo: Edusp,
1998p. 18-19. 17 BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Tomke Lask (org.) Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2000, p. 25-68 18 SLENES, Robert, Na senzala uma flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia escrava. Brasil,
Sudeste, sculo XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.246. _______ Malungu, Ngomavem!: frica
encoberta e descoberta no Brasil. Cadernos do Museu da Escravatura, n. 1 (Luanda, Ministrio da Cultura, 1995). Reedio corrigida de: Malungu, Ngoma vem!: frica coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12,
dez./jan./fev. 1991-92, p.48-67 19 SLENES, Na senzala uma flor. Op. Cit., p. 246.
25
entendimento da fundao do mundo, dos fenmenos naturais, da construo das linhagens e
do funcionamento das estruturas polticas e sociais. Consoante Slenes:
(...) o culto aos ancestrais na frica tem um significado amplo, poltico,
social e religioso, especialmente no caso da homenagem feita aos ancestrais fundadores que, como os africanos dizem deram origem a nossa vida e nos trouxeram s terras onde vivemos. Mais especificamente, podemos ter certeza de que entre os ovimbundu e no reino de Loango, como de fato acontecia na terra dos bakongo, a ratificao de um novo chefe poltico
envolvia um ritual que o aproximava dos ancestrais originrios do grupo e
que simbolicamente recriava o prprio ato de fundao destes.20
Sendo assim, a noo de pertencimento familiar tambm era ampla, evocando as
linhagens consanguneas e os entes espirituais dos antepassados; manter este dilogo
frequente definia uma das obrigaes centrais dos viventes para perpetuar a harmonia
espiritual, caracterizada pelo estado de ventura, impedindo, portanto, o infortnio
(desventura) causado pela ao malvola de espritos ou aes dos viventes atravs da
feitiaria.21
Por seu turno, a sade corporal e espiritual, a fartura de alimentos, o sucesso com
as colheitas, o afastamento de epidemias, desastres naturais e guerras dependiam
necessariamente do bom relacionamento entre vivos e mortos; caso contrrio, as entidades
ofendidas, no assistidas devidamente em seus ritos de passagem, poderiam se vingar. Essas
perspectivas de crenas certamente influenciaram nos modos desses estrangeiros vivenciarem
suas percepes de mundo e nos comportamentos diante da morte dentro da experincia
devocional do Rosrio.
No entanto, os papis representados por essas heranas culturais presentes nas
referncias de ancestralidade, na conduo da vida espiritual e nos parmetros de percepo
de morte dos confrades merecem, a meu ver, maior ateno nas investigaes. Digo isso pois
a abordagem da religiosidade associativa em torno da Virgem dos pretos tem privilegiado
outras questes, como o funcionamento da dinmica interna, a solidariedade nas aes de
proteo mtua e nas celebraes festivas e as relaes institucionais entre a Igreja, o poder
rgio e os sodalcios.
Um dos trabalhos precursores em torno do estudo das irmandades do Rosrio e suas
significaes e papis assumidos na sociedade escravista do Imprio portugus refere-se
obra Devoo e escravido de Julita Scarano. Nesta, a autora aborda as relaes travadas
entre Igreja e Estado, no que diz respeito s polticas e prticas desempenhadas no interior da
Irmandade do Rosrio dos Pretos do Arraial do Tijuco, relacionando os temas como a
20Idem, p. 243-244. 21Idem, p. 143.
26
interferncia rgia nas confrarias, as disputas entre associaes leigas, o poder eclesistico e o
poder rgio. Ao tratar de querelas entre capeles e irmos, a autora assevera que tanto o poder
eclesistico quanto o poder temporal combatiam o esprito de autonomia reivindicada pelas
irmandades.22
Na dcada de 1980, relevantes contribuies se deram com a publicao das
investigaes de Caio Boschi acerca das conceituaes e tipologias das confrarias em Minas
Gerais no sculo XVIII. Ao prosseguir com o tema da trade relacional Estado, Igreja,
confrarias iniciada por Scarano, o autor estabelece crticas contundentes a este estudo por
consider-lo incapaz de captar o sentido poltico que as irmandades possuam no contexto
histrico da capitania. 23 Para Boschi, a ampla participao de leigos na vida religiosa
colonial, atravs de seu financiamento de cultos e templos, significou o acirramento das
contradies internas do antigo sistema colonial, j que os poderes temporal e espiritual
naquele contexto se faziam indistintos. Referente s irmandades de negros, em particular, o
autor reconhece nessas associaes o palco privilegiado de sociabilidade praticada na
colnia, ao mesmo tempo em que essas poderiam exercer um papel adesista, passivo e
conformista24 diante das imposies da sociedade escravista. Todavia, em seus trabalhos
recentes, Boschi procura desenvolver uma reviso desses posicionamentos, ao considerar a
intensa reciprocidade entre a catolicizao dos africanos simultnea africanizao do
catolicismo, em detrimento, portanto, de uma perspectiva de aculturao da religiosidade
desses negros devotos.25
Mary Karasch, em sua tese de doutoramento, foi pioneira em abordar o tema da
religiosidade na dispora sob o vis do contexto multitnico da sociedade escravista brasileira.
Com base nas leituras de Thornton, a brasilianista chamou a ateno para as tradies
religiosas flexveis dos africanos centro-ocidentais, enquanto vetores de transformao e
adequao do catolicismo segundo os cdigos culturais bantos. Tomando de emprstimo suas
palavras, ao invs de se adaptarem ao cristianismo, [os africanos] incorporavam imagens
catlicas sua religio.26
22 SCARANO, Op. Cit., p. 9-38. 23 BOSCHI, Caio. Os Leigos e o Poder. Op.cit. p. 155. 24 Idem, p.156 25 BOSCHI, C. Em Minas, os negros e seus compromissos. In.: MARTINS FILHO, Amilcar V. (org.). Compromissos das Irmandades Mineiras do sculo XVIII. Belo Horizonte: Claro Enigma\ Inst. Cult. A. Martins, 2007, p. 292 26 KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de janeiro, 1808-1850. So Paulo: Cia das Letras, 2000. p. 361-
362.
27
Nessa esteira de discusso sobre as formaes de etnicidades e identidades no interior
das confrarias, Clia Borges demonstrou, em levantamento para a capitania de Minas, como
as interpretaes distintas dos smbolos sagrados geravam conflitos e espaos de negociaes
simblicas entre os grupos imersos na luta pelo controle dos bens de salvao. A autora ainda
assevera que essas associaes significavam para seus membros um espao de sociabilizao
onde ocorriam trocas culturais.27 Cada indivduo, entretanto, ao encontrar o seu semelhante,
reconfortava-se, pois assegurava para si uma segurana que era simblica e respondia sua
afetividade.28 Deste modo, o esforo pela busca de seu igual significava, ao mesmo tempo, a
ingerncia de aliana e disputa, ao passo que a relao entre etnias distintas tambm exigia
um encontro de um denominador comum capaz de propiciar a comunicao entre os
membros.29
Marcos Aguiar em seu trabalho Negras Minas Gerais30 expande a investigao
da sociabilidade devocional para o universo externo s associaes, conferindo, assim, o
aspecto do agenciamento e das aes dos irmos filiados s Mercs e ao Rosrio em esferas
como: relaes de gnero, conflitos tnicos e criminalidade. Nesta obra o autor retoma alguns
posicionamentos expostos em sua pesquisa de mestrado Vila Rica dos Confrades31 -
revendo, portando, a afirmao de que em Minas as irmandades negras refletiram, grosso
modo, as clivagens entre africanos, concentrados em associaes do Rosrio, e crioulos,
integrados, basicamente, nas irmandades das Mercs. Em Negras Minas Gerais o autor
relativiza este posicionamento ao considerar as distines feitas entre os grupos tnicos nos
registros de contribuies de esmolas dos juzes nas associaes do Rosrio, nos indcios das
tenses presentes nas cerimnias de coroao de reis negros e das disputas pelos cargos
administrativos. Consoante Aguiar, estes espaos juizados, reinados, eleies de cargos
serviram como instrumentos decisivos para a requao tnica, a construo identitria e a
fixao das novas relaes de autoridade forjadas no contexto colonial no espao das
irmandades.32
Em estudo sobre os significados produzidos no interior dos cultos de Santo Elesbo e
Santa Ifignia, Anderson Oliveira analisou as leituras desenvolvidas pelos escravos e libertos
acerca dos smbolos devocionais estimulados pela catequese dos santos pretos. Nesta
27 Idem, p. 30 28 Idem. 29 Idem, p. 21. 30 AGUIAR, Negras Minas. Op. Cit., p. 257-264. 31 AGUIAR, Vila Rica dos Confrades., Op. Cit., 1993, p.300. 32 AGUIAR, Negras Minas, Op. Cit., p. 264
28
investigao, o compartilhamento de expectativas e memrias dos segmentos africanos junto
vivncia de culto nas confrarias possibilitou uma relativa autonomia dos grupos negros
diante da uniformizao pretendida pela Igreja. 33 O aprofundamento sobre as segmentaes
identitrias - organizadas atravs da formao dos juizados de santos, reinados, e disputas
eleitorais - permitiu a problematizao acerca da ausncia dos discursos exclusivistas nas
normas estaturias em compromissos do Rosrio em Minas, viabilizando, assim, a
compreenso das devoes, enquanto sinais diacrticos na construo de identidades
culturais.34
Lucilene Reginaldo, avanando com o tema das identidades forjadas nas
sociedades atlnticas, buscou entender como os valores centro-africanos e catlicos
interagiram em pontos diversos da expanso portuguesa no Ultramar, recuperando, assim, os
significados do catolicismo vivenciado na frica Central e aquele moldado pela experincia
da escravido no Novo Mundo.35
Numa outra frente de abordagem, estudos como os de Joo Jos Reis, Adalgisa
Arantes Campos, Mariza Soares e, mais recentemente o de Manoela Arajo aproximaram o
tema da liturgia da morte e a vivncia religiosa nas irmandades. Adalgisa Campos, em estudo
sobre as representaes imagticas de So Miguel nas matrizes mineiras, trouxe inmeras
contribuies acerca da vivncia da morte e da difuso do culto das Almas do Purgatrio
pelas confrarias desta devoo na religiosidade barroca desenvolvida na capitania de Minas.36
J Arajo, ao enfocar as prticas devocionais desses irmos das Almas, considera o aspecto de
recriaes e permutabilidade experimentadas na colnia. Nesse sentido, a autora procura
responder em que medida a preocupao com a salvao da alma conduziu as aes dos
confrades de So Miguel de So Joo e So Jos del-Rei (Tiradentes) na religiosidade
cotidiana dessas irmandades. Para Arajo, o prprio ato de filiao devoo das Almas
indica por si s, que a prestao de contas no alm estava presente ao longo da vida e no
apenas no momento em que se sentia a proximidade da morte.37
No obstante, Joo Jos Reis, em dcadas anteriores, j havia inaugurado um novo
espao de investigao sobre a histria social da morte no Brasil, ao adotar metodologias e
propostas analticas empregadas pela Escola dos Annales no desenvolvimento de sua obra A
33 OLIVEIRA, Anderson Jos Machado de. A Festa da Glria: festas, irmandades e resistncia cultural no Rio de Janeiro Imperial. Revista Histria Social. Unicamp Campinas/SP, nmero 7, 2000, pp. 19-48. 34 Idem. Devoo Negra. Op. Cit., p. 308. 35 REGINALDO, Op. Cit., p. 13-26. 36 CAMPOS, A Terceira Devoo. Op. Cit., p. 6-11. 37 ARAJO, Manoela Vieira Alves de. Em busca da salvao: Vivncia da f e vida cotidiana entre os irmos de
So Miguel e Almas. So Joo e So Jos Del-Rei (1717-1804). Dissertao de Mestrado em Histria. Juiz de
Fora: ICH/PPGHIS, 2013, p. 11.
29
morte uma festa. Neste estudo, o historiador trata da mobilizao conjunta das irmandades e
ordens terceiras frente construo de um cemitrio, sob a custdia de uma companhia
privada em Salvador, durante o episdio conhecido como Cemiterada. A revolta, ocorrida em
frente ao palcio do governo da provncia, tinha por objetivo resguardar as prticas fnebres
tradicionais ameaadas diante da campanha civilizadora de edificao dos cemitrios
extramuros em combate aos miasmas malficos, considerados os causadores das epidemias.
J a tradicional cultura funerria crist, defendida pelas confrarias, enterrava seus mortos em
solo sagrado, de preferncia prximos s imagens de santos, anjos e todo aparato protetor
encarado como recurso viabilizador de uma boa morte, isto , de um passamento adequado
para o alcance da salvao da alma. Ao longo deste estudo, notvel o desdobramento de
problemticas importantes para o tema da histria da morte que se inaugurava no Brasil, tais
como: o impacto da legislao sanitarista, o discurso mdico aliado ao aparato repressor do
Estado, as mudanas das sensibilidades coletivas mediante as proibies de enterros em
igrejas e as vozes dissidentes que aparecem como personagens centrais do livro de Reis,
como defensoras das atitudes arraigadas perante a morte.38
Ampliando as contribuies dos estudos dedicados s representaes culturais da
morte, Cludia Rodrigues analisa os campos de tenses entre a campanha sanitarista, o
discurso eclesistico e os costumes religiosos dos sepultamentos na cidade carioca, atacada
pela epidemia de febre amarela. Nesta investigao so tratadas questes cruciais como a
familiaridade entre os vivos e seus mortos nas crenas crists e os gestos propiciatrios para
o bem morrer - incluindo nestes a distribuio dos sacramentos, a escolha da mortalha e o
detalhamento do funeral orientado durante a feitura do testamento.39
Em trabalho posterior
Nas fronteiras do Alm a autora aprofunda a temtica, ao enfocar sobre os ditames da
doutrina do bem morrer presentes nos manuais da Igreja catlica e as formas de apropriao
desta pedagogia do medo pelos diferentes segmentos sociais confrontados com o receio do
instante da agonia.40
J o trabalho de Mariza Soares ocupou um papel fundamental na forma de pensarmos
a discusso tratada nesta pesquisa, na medida em que a autora articula temas como
escravido, devoo das almas e ancestralidade africana, presente no culto dos mortos
desenvolvido pela Congregao dos Pretos Minas Maki da Irmandade de santo Elesbo e
38 REIS, A morte uma festa. Op. Cit., p. 13-24. 39 RODRIGUES, Cludia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Tradies e transformaes fnebres no Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, 1997, p. 21-24. 40Idem, Nas fronteiras do Alm. A secularizao da morte no Rio de Janeiro, sculos XVIII e XIX, Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 23-28.
30
santa Ifignia do Rio de Janeiro, no final do sculo XVIII. Para Soares a converso ao
catolicismo vivido dentro da irmandade redimensionou o lugar dos ancestrais e do Reino
Maki nas heranas e memrias recriadas na outra margem do Atlntico pela mediao da
irmandade e, mais especificamente, pelo culto das Almas do Purgatrio desenvolvido por esta
congregao.41
Nesta mesma direo, em artigo de autoria conjunta, Anderson Oliveira e
Silvia Brgger, a partir da consulta ao livro de Certido de Missas da Nobre Nao de
Benguela da Irmandade do Rosrio dos Pretos de So Joo del-Rei, sustentam que a proteo
buscada pelos parentes de nao, em invocao aos seus ancestrais, contribuiu, de forma
decisiva, para sedimentar as solidariedades entre eles, fortalecendo ainda mais o processo de
construo de uma identidade sociocultural.42
Diante destas proposies nos sentimos instigados a avanar na investigao sobre os
papis representados pelo culto dos mortos, as representaes adquiridas pelos ancestrais e as
orientaes normativas diante dos aspectos de vida e de morte desenvolvidas no interior da
Irmandade do Rosrio dos Pretos de So Joo del-Rei. Nesse sentido, esta pesquisa se prope,
atravs do estudo da religiosidade confraternal da Irmandade do Rosrio dos Pretos, entender
os significados construdos pelos confrades do exlio, junto a seus descendentes, em torno dos
signos, cultos, celebraes e prticas vinculados aos modos de viver e de morrer como
irmos. Em vista disso, nos preocupamos, ao longo do trabalho, em averiguar como as
experincias e acepes de vida e de morte foram recriadas na outra margem do Atlntico a
partir da apropriao do bem morrer e do bem viver orientados pela liturgia catlica em
interao com as heranas africanas de ancestralidade.
A escolha desta confraria, em particular, se justifica em razo de ter se desenvolvido
no interior desta irmandade uma devoo peculiar s almas milagrosas, reconhecidas nas
almas dos parentes de nao filiados Nobre Nao Benguela. Esta segmentao interna dos
pretos do Rosrio foi criada provavelmente no final do sculo XVIII43
e tinha por objetivo
potencializar a caridade aos seus irmos mortos de nao,44
atravs da encomendao de
41 SOARES, Devotos da Cor. Op. Cit., p. 229-230. 42BRGGER & OLIVEIRA, Os Benguelas de So Joo Del Rei: trfico- atlntico, religiosidade e identidades tnicas. (Sculos XVIII e XIX). In: Revista Tempo, v. 13, n 26, Niteri-RJ, pp. 177-204, 2009, p. 197. 43 O primeiro assento de missa registrado no livro data-se de1793, quando Joo Ladino intencionou missas s
almas de Ana e Mariana Lopes, sob celebrao do Padre Luiz Pereira Gonzaga. Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de
Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803. Agradeo ao pesquisador Anderson Oliveira por me ceder
uma cpia do documento. 44 As naes como angola, benguela, cabinda, congo constituam em expresses genricas palas quais se
reportavam s regies de embarque, no correspondendo propriamente s organizaes tnicas, no sentido
original, antecedentes travessia. Cf.: SOARES, Devotos da Cor. Op. Cit., p. 93.
31
sufrgios para o livramento dos seus parentes das penas do Purgatrio.45
Com o tempo, este
grupo alcanou uma notria coeso e organizao, ao ratificar a compra de uma casa no incio
de Oitocentos pela qual serviria de espao cerimonial denominada por Palcio da Nobre
Nao de Benguela.46
Neste aspecto, fica evidente a construo de uma acepo de parentesco
com sentido mais coeso em relao ao prprio parentesco confraternal ou familiar
consanguneo. Nesta forma de pertena, os irmos benguelas e seus vassalos47
sob proteo do
Rosrio se reconheciam espiritualmente e fortaleciam, continuadamente, seus vnculos com
seus parentes de nao, atravs do redimensionamento da ancestralidade viabilizado pelo
culto das almas na liturgia catlica.
Quanto ao recorte temporal, elegemos os anos de 1782 a1850. O limite inicial refere-
se abertura do primeiro livro de bitos na Freguesia do Pilar, frente documental fundamental
para a anlise das atitudes perante a morte de uma dada comunidade, por indicar informaes
individualizadas como o nome, condio social, sexo, etnia, sacramentos recebidos, causa
mortis e local de sepultamento. O limite final alude ao ano de cerceamento definitivo do
trfico-atlntico de escravos em 1850 e incio da desmontagem e deslegitimazao paulatina
da instituio da escravido que marcou a sociedade do Brasil Imprio na sua segunda metade
dos Oitocentos. A periodizao assinalada abrigou muitas mudanas significativas para as
confrarias na sociedade escravista, como a aplicao das reformas pombalinas, pelas quais se
cercearam diversas aes de autonomia das associaes: a prtica dos peditrios, a coroao
de reis, a cobrana de esmolas elevadas e a eliminao dos critrios de pureza de sangue nas
irmandades das elites. 48
Durante o governo D. Maria I (1777-1816), posterior ao perodo pombalino, o poder
rgio recrudesceu a poltica de fiscalizao dessas associaes ao coibir a aplicao por parte
dessas instncias, de multas pecunirias, de castigos fsicos e de outras penas. As esmolas e
construes de igrejas sem licenas prvias passaram a ser punidas com maior rigor e as
prticas de concesso de emprstimos regulamentadas de acordo com os parmetros
estipulados pelo governo metropolitano. As exigncias dos prazos para que os irmos
45 AMNSP-SJDR, Livro de Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803. Ver tambm o primeiro
trabalho a explorar esta documentao: BRGGER & OLIVEIRA, Op. Cit., p. 177-204. 46 AMNSP-SJDR, Livro de Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803 47 Termo utilizado pela Nobre Nao para se referir aos seus pertencentes e outras naes vinculados ao grupo. Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de Certides de Missas da Nobre Nao Benguela, 1803 48 BOSCHI, Os leigos e o poder. Op. Cit., p. 118-123
32
abrissem testamentos e o direito f pblica, por parte dos escrives, tambm foram
banidas.49
Com a vinda da famlia real em 1808 e a introduo dos costumes civilizatrios, em
decorrncia da interiorizao da metrpole, Dom Joo VI (1816-1822) reforou a poltica de
cerceamento aos reisados a fim de estabelecer novos usos do espao pblico, como tambm
passou a proibir as prticas de sepultamentos nas igrejas, sob argumentos de higienizao
pblica. Este perodo foi marcado tambm pela ascenso econmica e social da comarca do
Rio das Mortes que se tornou o maior centro produtivo da economia de abastecimento interno
e de mo de obra escrava da capitania/provncia de Minas. Durante o reinado de Dom Pedro I
(1822-1831) e as regncias (1831-1840) houve a ascenso da elite agrria-sul mineira nos
quadros polticos do Imprio, o que possibilitou a implantao de novos hbitos pautados
numa etiqueta de Corte entre os homens de destaque na regio. Certamente esta projeo
regional e a introjeo de novos costumes civilizatrios levaram a rpida insero da
localidade poltica de construo de cemitrios pblicos e de redefinio dos costumes
relacionados aos cuidados com os mortos.50
O interesse em trabalharmos sobre o tema da morte surgiu com o avano da
explorao do material emprico levantado ao longo da pesquisa, principalmente quando
passamos a dar enfoque aos testamentos dos irmos libertos.51
Esses documentos relacionados
transmisso de heranas do testador faziam referncia aos gestos propiciatrios da boa
morte presentes em preocupaes como: a evocao da protestao de f, as splicas pelos
intercessores celestiais mediante a hora da agonia, alm das disposies sobre o funeral, o
sepultamento e das distribuies dos sufrgios e legados pios encarados como recursos
fundamentais para expanso dos bens de salvao em interface s preocupaes com o
destino espiritual. Sendo assim, os depoimentos testamentrios por emitirem uma dada
representao crist sobre a morte e alm tmulo, nos levam a concordar com Rodrigues
49Idem, p. 122 50 Os primeiros sepultamentos de escravos e libertos enterrados em cemitrios da Vila datam de 1809, quando
identificamos o assento de Maria da Silva Crioula Forra falecida em 06/04/1809 por bexigas na freguesia do
Pilar de So del-Rei. Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de bitos (1808, out- 1811-, jun). J os enterramentos do
cemitrio Geral da Vila iniciaram-se em 1821, o primeiro assento foi localizado em nome de Josefa Crioula
inocente, filha de Joaquina Benguela e escrava de Jos Francisco Lima, sepultada neste cemitrio em
28/05/1821. AMNSP-SJDR, Livro de bitos (1818, ago- 1824, fev.). Quanto aos enterramentos no Cemitrio do
Rosrio se iniciaram em 1831, aps a compra de um terreno feito pela irmandade em 1830. O primeiro sepultamento na necrpole dos irmos foi identificado em nome de Rosa Preta Forra, falecida em 17/08/1831.
Cf.: AMNSP-SJDR, Livro de bitos (1829, fev- 1840, mar.). 51 Ao todo foram levantados 71 testamentos de devotos sepultados na igreja do Rosrio entre 1782 a 1828.
33
acerca da potencialidade dessas frentes documentais enquanto caminho para o estudo da
pedagogia da boa morte.52
Para o alcance das heranas culturais veiculadas ao culto dos mortos, praticado pelos
povos centro-africanos, fizemos uso intensivo dos depoimentos de missionrios capuchinhos
e franciscanos. Entre esses, destacamos os relatos de Joo Antnio (ou Giovanni) Cavazzi53
sobre os costumes dos reinos do Congo, Matamba e Angola e os depoimentos do
franciscano Rafael Castelo de Vide, missionrio no Congo entre 1779 a 1785. 54
Alm disso,
nos serviu de aliado para a compreenso das prticas fnebres e da religiosidade dos
antepassados na regio de Benguela, o estudo antropolgico de Augusto Bastos sobre os
Traos gerais sobre a etnografia do Distrito de Benguela.55
Deste modo, procuramos entender essas heranas culturais, assentadas na
ancestralidade e no culto dos mortos projetadas na experincia do Rosrio, no como
reminiscncias estanques, fossilizadas, mas, sobretudo, como elementos ativos na redefinio
identitria desses grupos diaspricos, reorientados a partir da vivncia de uma solidariedade
tnica e espiritual. Sendo assim, foram problematizadas questes como a busca por novas
formas de pertencimento, a redefinio dos parmetros culturais (abalados pelo trfico) e a
necessidade em refazer as referncias familiares e vises de mundo capazes de atender as
expectativas e as necessidades de homens e mulheres marcados pela experincia segregadora
da dispora. Com efeito, a busca incessante pela reconstruo dos modos de ser no mundo
atlntico remete ao hiato estabelecido pelo caminho do meio,56
como tambm s necessidades
de se criar formas comunitrias de vida e se sentir minimamente amparado e reconhecido por
seus pares de convvio.
Nesse sentido, constitui tambm nossa proposta esclarecer como este sistema de
coeso grupal difundido pela devoo do Rosrio, atravs da pregao de modelos ideais de
condutas, se tornou capaz de redimensionar o modus vivendi do devoto estrangeiro no que diz
respeito s suas atitudes perante a vida e a morte. A vivncia devocional na irmandade
estipulava ao integrante as regras de pertencimento e de obrigao para com o orago e a
52 RODRIGUES, Nas fronteiras do alm. Op. Cit., p. 112. 53 BNL, CAVAZZI, Joo Antnio. Descrio Histrica dos trs Reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa:
Junta de Investimento no Ultramar, 1985. Livro 1, 1 Ed. 1732. 54 CASTELO DE VIDE, Rafael. Viagem e misso no Congo. Academia das Cincias de Lisboa, Ms Vermelho,
296. Outra verso: CORREA, Arlindo. Viagem no Congo de Fr. Rafael Castelo de Vide (1780-1788), 2007,
p.32-33. Disponvel em: http://arlindo-correia.com/041207.html 55 BNL, BASTOS, Augusto. Traos gerais sobre a etnografia do Distrito de Benguela. Lisboa: Tipografia
Universal, 1909. 56 Termo utilizado por Joseph Miller para se referir travessia atlntica. Cf.: MILLER, J. frica Central durante a era do comrcio de escravizados, de 1490 a 1850. In.: HEYWOOD, Linda M. Dispora Negra no Brasil. So Paulo: Contexto, 2008, pp.29-80.
34
comunidade fraterna. Todavia, nessas diretrizes comportamentais, os deveres de caridade
dirigida aos irmos defuntos constituam um dos compromissos fundamentais. Sendo assim,
quem se tornava irmo do Rosrio deveria estar atento religiosidade das obras atravs das
aes de auxlio mtuo s oraes dirias, s meditaes dos mistrios, s missas aos
irmos vivos e defuntos, ao amparo na doena terminal e solidariedade na hora do fretro e
sepultamento do irmo.
Com efeito, a orientao moral de uma vida fraterna, agregada a uma associao leiga,
exigia do matriculado uma nova conduta perante os seus modos de encarar a vida e de
conduzir os seus afazeres na sociedade. Desta forma, os fins ltimos segundo os parmetros
cristos propagados pelo catolicismo tridentino, divulgado pelas irmandades, seguiam na
direo de uma vida crist orientada para uma boa morte.57
Como bem pontuou Vovelle, a
ideia de que uma boa morte a coroao de uma boa vida responde melhor nova pedagogia
da preparao cotidiana para a salvao. 58Sendo assim, a redeno post-mortem, finalidade
mxima de todo cristo, se torna acessvel em interface a religio das boas obras, da caridade
ao prximo, das prticas penitenciais, da frequncia confisso e comunho e da utilizao
de todos os recursos para a purificao dos pecados veniais.
Nessa perspectiva, o catolicismo ps-trento investiu forte na valorizao de uma vida
pia e virtuosa como um dos caminhos substanciais para o alcance da graa celestial cada vez
mais disponvel em razo da expanso dos bens de salvao, como a distribuio de
indulgncias, por exemplo.59
Em vista disto, as concepes de morte passaram a orientar
efetivamente as atitudes perante a vida, as formas de conceber o sagrado, de se reconhecer e
se portar dentro uma sociedade veiculada aos valores de estratificao, em que as
desigualdades sociais eram naturalizadas conforme a mentalidade de antigo regime.60
57 Sobre a doutrina da boa morte, ver: BERTO, J. P. Liturgias da Boa Morte e do Bem Morrer: Prticas e
representaes fnebres na Campinas Oitocentista (1760-1880). Dissertao de Mestrado em Histria. Campinas: UNICAP/IFICH, 2014, p.17-72. CAMPOS, Adalgisa. As irmandades de So Miguel e as Almas do
Purgatrio: Culto e iconografia no Setecentos Mineiro. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2013, p. 13-
26.RODRIGUES, Cludia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Tradies e transformaes fnebres no Rio
de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, 1997, p. 150-154. ______, Nas fronteiras do Alm. A secularizao
da morte no Rio de Janeiro, sculos XVIII e XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 40-53. 58 VOVELLE, M. As Almas do Purgatrio ou Trabalho de Luto. Traduo Aline Meyer e Roberto Cattani. So
Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 130. 59 Segundo Penteado, as indulgncias eram o meio utilizado pela Igreja para remir as penas temporais, aps os fiis terem recebido no confessionrio a absolvio dos seus pecados e das penas eternas. Cf.: PENTEADO,
Confrarias portuguesas da poca moderna: problemas, resultados e tendncias da investigao. In.: Lusitnia Sacra, 2 Srie, N 7, pp. 15-52, 1995, p. 35. 60 Ver as ponderaes de Mattos sobre as perspectivas de estratificao social na sociedade escravista. Cf.:
MATTOS, Hebe Maria. A escravido moderna nos quadros do Imprio portugus: o Antigo Regime em perspectiva atlntica. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O
35
Diante desta sensibilidade coletiva, o estrangeiro escravizado ao aderir em uma
irmandade procurava, com base na adaptao deste modelo de conduta, reinventar e ritualizar
sua existncia, utilizando-se tambm dos seus referenciais culturais e memrias reelaboradas
na ps-travessia. Trata-se, portanto, de reinterpretaes de cdigos e bens simblicos que
foram continuamente reeditados luz dos processos de apropriao61
e das prticas culturais
no Novo Mundo. Entretanto, para entendermos as extenses do regimento normativo da
confraria na montagem das relaes mais amplas construdas por esses agentes, utilizamos
uma noo de dispora62
cuja experincia da travessia no pode ser entendida como somente
um deslocamento de corpos, mas como uma recriao de memrias, fronteiras e
historicidades. Essas vivncias foram, portanto, reconstrudas a partir das impresses
situacionais vivenciadas no outro lado do Atlntico.
Entendendo o universo da linguagem religiosa enquanto espao apropriado para as
mediaes culturais, procuramos neste trabalho perscrutar sobre a construo de leituras
especficas de smbolos catlicos e como essas vivncias singulares das prticas religiosas
experenciadas no espao associativo puderam orientar vetores de comportamentos sociais e
coletivos. Nesse sentido, concordamos com C. Geertz ao sustentar que a religiosidade oferece
uma matriz de valores capaz de orientar significados experincia do cotidiano dos seus
indivduos praticantes. Esta orientao de sentido s coisas do mundo obedecia certamente a
uma ordem pragmtica, pois viabilizava um conjunto de respostas convincentes para o
entendimento dos problemas vividos.63
Para o autor, a religio um sistema cultural capaz de responder desde as indagaes
triviais at as apreenses ticas mais complexas acerca da experincia existencial do homem.
Este sistema de smbolos entrelaados s faz sentido para aqueles que esto imersos numa
mesma teia de significados culturais, isto , quando compartilham dos mesmos signos e
valores. Nesse sentido, a experincia do sagrado, ao fornecer padres de comportamentos
comuns, assegurava ao indivduo praticante subsdios necessrios para o enfrentamento de
Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira. p.141-162. 2001. 61Entendemos apropriaes como formas mltiplas de interpretao que so construdas em meio aos embates
diretos e disputas implcitas para se definir maneiras de representar o mundo. Segundo Chartier, essa noo no
se coaduna com a percepo de passividade de leitura da realidade, onde possvel identificar um emissor e receptor das representaes. Como se as mensagens transmitidas tivessem nelas sentidos intrnsecos, totalmente
independente da significao atribuda pelos sujeitos. Sendo assim, anular o corte entre produzir e consumir antes de mais afirmar que a obra s adquire sentido atravs da diversidade de interpretaes que constroem as
suas significaes. Cf.: CHARTIER, R.A Histria cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990. p. 59. 62 Cf.: HALL, Da Dispora. Op. Cit., p. 43. 63 GEERTZ, C.A interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978.
36
situaes limites como a dor fsica, a perda pessoal, a contemplao da agonia alheia,
transformando tudo isso em algo