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O Rosto do Nô As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko]

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O Rosto do Nô

– As máscaras do teatro tradicional japonês e

a sua construção –

NOMURA RAN

[Tradução: Sakamoto Mamiko]

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O Rosto do Nô

– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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Indice

A Origem do Termo “Forjar” ................................................................................................... 3

Filosofia do Nô ........................................................................................................................ 5

Yûgen (a beleza elegante, calma e misteriosa) ..................................................................... 7

O Grau de yûgen .................................................................................................................... 9

O Coração do Nô e a sua Máscara ...................................................................................... 11

A Beleza Secreta .................................................................................................................. 14

A Primeira e Última vez na Vida........................................................................................... 17

O Nô e a sua Música ............................................................................................................ 17

Alteração das Máscaras ....................................................................................................... 19

A Postura de Personagem ................................................................................................... 21

O Papel das Máscaras ......................................................................................................... 24

Os Olhos de Máscaras ......................................................................................................... 25

Como Colocar uma Máscara e Gerar a sua Mudança de Expressão ................................. 27

O Coração como um Espelho .............................................................................................. 29

As Expressões de Máscaras do Nô e a sua Utilização ....................................................... 31

Materiais e Técnicas ............................................................................................................. 35

A Oca Branca, a Grude e os Pigmentos de Minerais Naturais ........................................... 39

A Construção - os Moldes da Cópia .................................................................................... 41

O Desbaste Grosso - a Direção dos Veios da Madeira ....................................................... 42

A Moldagem.......................................................................................................................... 45

Desbaste Médio .................................................................................................................... 46

O Desbaste Fino em Pormenor............................................................................................ 50

A Boca .................................................................................................................................. 51

O Nariz .................................................................................................................................. 54

Os Olhos e a Testa ............................................................................................................... 56

Os Olhos e o Acabamento em Pormenor ............................................................................ 59

Esculpir a Parte Interna da Máscara .................................................................................... 60

Abrir os Olhos ....................................................................................................................... 61

As Pálpebras ........................................................................................................................ 63

Os Buracos para Cordões .................................................................................................... 65

Acabamento Final ................................................................................................................. 65

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A Origem do Termo “Forjar”

Existe uma expressão “forjar uma máscara” e a pessoa que constrói uma

máscara do Nô, o teatro japonês tradicional, chama-se “forjador de máscara”. Antes de

falar sobre as máscaras deste tipo de teatro nipónico, gostaria de, em primeiro lugar,

explicar como surgiram estes conceitos.

A primeira etapa da construção de uma máscara é raspar um pedaço de

madeira de cipreste japonês, Hinoki. No entanto, no mundo do Nô, este ato é chamado

“forjar”, em vez de “revelar” ou “esculpir”. Podemos ver, por exemplo, no verso das

máscaras Nô oferecidas ao santuário xintoísta de Itsukushima1 em Hiroshima, a

referência a nomes dos seus autores, da mesma forma que os ferreiros faziam com as

suas espadas.

Além disso, Zeami, um génio que aperfeiçoou o teatro Nô, escreveu também

num dos seus livros que “Sobre a máscara de Okina, os forjadores são Nikko e Miroku”.

O termo “forjar” parece sinónimo do usado na arte de forjar espadas. Contudo, na

língua japonesa, não existe um termo “forjador de espadas”. Mesmo na escultura da

estátua de Buda – um outro género de arte tradicional parecida com a construção de

máscaras do Nô – diz-se “esculpir” ou “gravar” e a pessoa que faz a escultura é

chamada, literalmente, “Mestre do Buda”.

Então, porque é que os construtores das máscaras do Nô são chamados

assim?

É possível considerar o seguinte:

1 O Santuário xintoista de Itsukushima fica na prefeitura de Hiroshima. Possui um palco de Nô

considerado um dos três grandes palcos do Nô no Japão. É classificado como Património Mundial.

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O Nô é uma arte performativa aperfeiçoada pelo chefe militar na altura, xôgum

Ashikaga Yoshimitsu, com ajuda de Kannami e Zeami. Por isso, esta arte mostra o

poder da classe militar, ao contrário de Bugaku, a dança e música da corte, que fazia

parte da cultura da classe aristocrática precedente. O Nô nunca existiria na cultura

aristocrática, sendo estabelecido como uma arte simplesmente elegante e

independente. Naturalmente é possível imaginar que este teatro e as suas máscaras

tiveram origem e se desenvolveram sob proteção da classe militar, utilizando a

terminologia militar e assim, surgiu a expressão “forjar uma máscara”, vinda de “forjar

uma espada”.

Sobre a existência da expressão “forjar uma espada”, há um documento

histórico que diz que, há muitos anos atrás, foi oferecida a Minamotono Yorimitsu uma

espada feita por Yasutsune do país Hôki2 por um Senhor feudal desse país. De acordo

com uma lenda, Yorimitsu derrotou um monstro, Shuten dôji, cortando-lhe o pescoço

com a espada num só golpe. A partir daí a espada tornou-se conhecida amplamente

como “a espada do corte Dôji”.

Os tempos mudaram, Minamotono Yoritomo ouviu a história do “corte Dôji” e

quis uma espada similar. Ordenou a um descendente de Yasutsune para a criar. Os

manuscritos da época relataram que “Yasutsune acabou de forjar a espada”. Foi há

cerca de 900 anos, antes das Batalhas de Genpei3. Ou seja, como o Nô tem cerca de

700 anos de história, a expressão “forjar uma espada” já existia cerca de 200 anos

antes do nascimento do teatro.

2 Hôki é um país medieval situado na presente prefeitura de Tottori.

3 Uma série de batalhas entre a família Taira e a família Minamoto entre 1180 e 1185. Os Minamoto

derrotaram os Taira e estabeleceram a Era Kamakura.

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Ultimamente, vários estudos têm sido feitos sobre a origem do termo. Alguns

dizem, por exemplo, “porque se bate o cinzel com um martelo de madeira” e outros

dizem “porque um dos materiais é colocado, sendo batido por uma ferramenta

chamada 'tampão', um bocado de esponja embrulhada com tecido de seda”, ou até

“porque se dedica tanto de alma e coração ao processo” (em japonês diz-se “cravar a

alma”). Todas estas hipóteses podem ser certas. No entanto, parece que o fator mais

forte do emprego do termo é porque os contribuintes e apreciadores do teatro Nô

provinham realmente da classe militar (samurai).

Filosofia do Nô

A construção de uma máscara divide-se em duas partes - preparação mental

e técnicas. A preparação mental compreende três aspetos: ter o melhor conhecimento

do Nô em que as máscaras são utilizadas, ter a capacidade de distinguir boas

máscaras e construir as máscaras abstraindo totalmente do mundo em seu redor.

Para categorizar as técnicas, é necessário ter competência para selecionar o

material de qualidade, saber como esculpir, pintar e desenhar e como mostrar

antiguidade e construir uma máscara com beleza excecional, reunindo todos estes

elementos.

O Nô é uma arte teatral que foi aperfeiçoada há cerca de setecentos anos

atrás e as suas canções dão-nos ideia de arte e refinamento da elegância clássica,

algo que está para lá da nossa atual compreensão estética. Parece que na sua base

encontramos uma influência significativa da filosofia budista. Nas peças que

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caracterizam o Nô estão presentes, de forma constante, alguns fundamentos de

budismo, entre eles a sua compreensão da morte, a vida após a morte, o mundo

espiritual, o Inferno, ou o Céu.

Antes do príncipe Shôtoku, que promoveu a introdução do budismo no Japão,

na Era Nara (século VIII), os Deuses xintoístas constituíam o centro político do país e o

fundamento espiritual de todas as pessoas. Mais tarde, com a difusão do budismo pelo

país, o príncipe Shôtoku ganha poder e assume-se como o novo líder político. Assim, a

vontade política tornou-se numa mistura de budismo e xintoísmo. Essa tendência

estabeleceu-se gradualmente, dando origem a uma arte e cultura que incorporam

elementos xintoístas e características budistas no processo de aperfeiçoamento do Nô.

Para entender o teatro Nô, é preciso conhecer a sociedade, o coração e a

alma do povo daquela época, o que as pessoas procuravam e legaram para o futuro. A

ideia da fusão entre o budismo e o xintoísmo é enraizada no povo pelo príncipe

Shôtoku e expande-se largamente no período Ashikaga, tendo grande impacto no Nô,

assim como em todos os aspetos da cultura nipónica.

Kinkakuji (Templo Dourado) é um edifício que simboliza a cultura do período

Ashikaga. A construção do Templo Dourado teve origem nos princípios defendidos pela

cultura da Era Kitayama. Nessa mesma época, o teatro Nô foi aperfeiçoado através de

novos elementos culturais.

Exemplo desta harmoniosa fusão, o templo Kinkakuji é um edifício de estilo

predominantemente aristocrático, com uma fusão de budismo e xintoísmo. O primeiro

andar é do estilo aristocrático tradicional, o segundo é chamado o Pavilhão de Kannon,

com uma estátua da deusa budista da misericórdia, o terceiro andar está edificado

como templo budista Zen. Foi construído pelo chefe militar da altura, Ashikaga

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Yoshimitsu. Seguiu o mesmo processo pelo qual o Nô se desenvolveu, ou seja, sob a

proteção militar, permitindo a ligação do conceito da beleza aristocrática à base do

pensamento budista.

O teatro Sarugaku, considerado como antecessor do Nô, também

apresentava algumas peças realizadas com o recurso a máscaras. Contudo, o seu

objetivo principal seria a imitação e não possuía qualquer pensamento sobre a morte

ou o mundo dos espíritos após a morte. É possível considerar que foi o princípio

filosófico samurai “a vida e morte é a mesma coisa”, uma filosofia parente a vida e

morte dessa classe, que influenciou fortemente a alteração de Sarugaku até atingir a

perfeição do Nô.

Com a morte do seu maior patrocinador, o xôgum Ashikaga Yoshimitsu, Zeami

foi desterrado para a ilha de Sado aos setenta e dois anos, o que fez com que ele

aprofundasse ainda mais a sua arte e exaltasse o conceito da beleza, atingindo o seu

máximo estado espiritual.

Qualquer construtor de máscaras deve estudá-las e construí-las de modo a

atingir o estado mencionado anteriormente.

Yûgen (a beleza elegante, calma e misteriosa)

Quando se explica o Nô, o termo mais utilizado é “yûgen”. O que é yûgen?

Pode encontrar-se esta palavra em “Kokinshû”, a antologia de poesia mais

antiga no Japão. Nesta época, o seu significado é ainda parecido com o que possuía

na cultura chinesa, sendo utilizada como sinónimo de “mistério” ou “estranheza”. Pelo

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fim da Era Heian passou a significar “princípio de sentimento e algo que faz lembrar a

solidão da vida através da tranquilidade da natureza”. Ou seja, yûgen refere não

apenas a solidão mas sim todo o sentimento, algo superior que nos toca. Este carácter

foi sendo ainda classificado a partir do período Kamakura até ao período Muromachi,

como “a beleza da passagem de nuvens” ou “a beleza de neve em rodopio”.

A origem destas duas expressões vem de histórias chinesas. A primeira é

baseada num sonho de um rei da China a quem apareceu a fada das montanhas, e ao

despedir-se, disse “permanecerei na luz do Sol, tornando-me nuvem de manhã e em

aguaceiro ao final da tarde”. A outra vem de um episódio do filho do imperador a quem

se revelou uma deusa no caminho, que descreveu a sua figura encantadora como “o

seu corpo é tão leve como se fosse uma suave nuvem que cobrisse a lua ligeiramente

e tão etéreo como a neve a rodopiar ao vento”.

Ambas indicam extraordinária beleza e espiritualidade sensual. No contexto de

poemas, “o poema gentil e elegante que causa uma sensação de nuvens ligeiras em

volta da lua” é indicado como o poema da primeira, e “o poema gentil, sensual, invulgar

e ainda atencioso, que causa sensação de flocos de neve a voarem no vento” é

indicado como o poema da segunda. De facto, um conjunto destas duas belezas é

yûgen, ou seja, o seu conceito engloba “gentileza”, “elegância”, “sensualidade rara” e

“cuidado”. Estes atributos devem ser sempre mencionados de “forma escondida” e ao

passar do tempo, o alvo desta expressão passou do mundo sobrenatural para o

contemporâneo, de deuses e espíritos para a humanidade. Com a mudança do tempo,

gradualmente, uma das características do início, “lirismo”, foi sendo perdida e até foi

sendo negada.

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Como muitas pessoas dizem “Quando se fala de yûgen, referem-se apenas a

beleza lírica e não exatamente yûgen. Yûgen significa a beleza de algo como o encanto.

É importante lembrar que estes dois adjetivos deixaram de fazer parte do significado

principal da palavra yûgen.

“Gentileza”, “nobreza”, “cuidado” e “forma escondida”, este conjunto de atributos

do termo no âmbito do teatro Nô foi definido por Zeami como “a essência do yûgen é

ser totalmente belo e gentil”. A sua definição não inclui lirismo mas apresenta apenas

sua sensualidade e elegância, sendo mais humana do que a do mundo dos poemas.

Além disso, no âmbito do Nô, yûgen é sinónimo de “ser belo”, “ser sofisticado” e “ser

interessante”. Por isso, ao longo do processo da construção de uma máscara, é

importante saber criar um demónio belo, sofisticado e interessante embora

tradicionalmente não o seja, evidenciando as suas qualidades dentro do formato

“demónio”.

Zenchiku, genro e o maior admirador de Zeami, diz que “deve ser uma mistura

de extrema gentileza, profundidade e fugacidade” e enfatiza, com exemplos, o

movimento do Nô. O mesmo acontece com os artesãos que se realizam as suas

máscaras. Devemo-nos lembrar deste conceito sempre que necessário.

O Grau de yûgen

Zeami definiu os nove graus de yûgen, através dos quais mostrou os níveis da

preparação psicológica dos artistas.

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“A Arte de Crueza e Vulgaridade”, “A Arte de Força e Crueza” e “A Arte de Força

e Delicadeza” são os mais baixos, que ainda não têm a qualidade suficiente para serem

considerados yûgen.

“A Arte de Padrão Fraco”, “A Arte de Versatilidade e Precisão” e “A Arte da Flor

de Correção” são os médios, que são suficientes.

“A Arte da Flor de Quietude”, “A Arte da Flor de Profundidade” e “A Arte da Flor

de Mistério” são os níveis máximos que ultrapassam a qualidade de yûgen.4

Os três primeiros são os mais baixos, que ainda não têm a qualidade suficiente

para serem considerados yûgen.

Os três seguintes são os médios, que são suficientes.

Os últimos três ultrapassam o conceito, atingindo o nível superior.

A relação entre os três superiores é a seguinte: o primeiro indica o estado de

tranquilidade, calma e gentileza que vai além da elegância e da sensualidade de yûgen.

Por outro lado, o segundo significa a profundidade tremenda e o último significa

inexistência da técnica, nível e método. Estas classificações também se aplicam no

contexto da construção da máscara. O núcleo da realização deve ser assim: forjar de

forma concentrada para que a máscara assuma o poder de expressar algo (sentimento,

emoção, etc.).

Mesmo que um artista obtenha a melhor técnica não poderá construir uma boa

máscara se não entender o espírito que preside ao género teatral em que a máscara

será usada. Não é preciso salientar a importância de observação constante de boas

máscaras (aquelas consideradas como exemplo) durante a sua criação.

4 As traduções destas nove denominações foram encontradas na bibliografia de Keene e foram traduzidas

pela tradutora para a língua portuguesa.

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Observar significa olhar e decorar pormenores como olhos, nariz, boca, cor,

pensamento e sobretudo a sua elegância geral quando se enfrentam estas máscaras.

Como Zeami diz, “existem maus nos bons e bons nos maus”, há sempre

algumas características negativas e positivas no aspeto de qualquer máscara. Se se

expressar fortemente uma, enfraquece-se a outra. Deve escolher-se uma característica

e a dificuldade reside em encontrar o equilíbrio entre os vários aspetos, respondendo

as seguintes perguntas: O que essa máscara tenta expressar? De que parte dela é que

podemos sentir mais essa emoção? Qual é o ponto fraco da máscara? Como se pode

melhorá-lo, mantendo harmonia e sem perder partes boas? Um autor deve procurar

encontrar respostas, perguntando e respondendo a si mesmo estas questões. Só

quando conseguir gerir estas respostas é que ele consegue realizar uma máscara sem

pensar em nada. Observar máscaras más com muitos erros ou construir a máscara

através de fotografias resultará não apenas numa máscara sem qualidade mas

também em reprodução de máscaras erradas e de nível inferior no futuro, pois são

meros reflexos e baseadas em imagens incorretas. Como se diz, “ter olhos verdadeiros”

é o primeiro requisito do forjador de máscaras Nô assim como possuir capacidade de

distinguir a máscara verdadeiramente genuína de uma falsificação.

O Coração do Nô e a sua Máscara

Quanto ao critério da boa máscara, Zeami define que “a melhor é aquela que

toda a gente concorda que é boa”. Ou seja, os melhores exemplos são os que as

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pessoas admiram. Por exemplo, as coleções das famílias herdeiras desta arte ou nos

museus nacionais, ou aquelas que vemos muitas vezes em álbuns de fotos.

Não se deve avaliar uma máscara como sendo boa ou má apenas através do

seu gosto pessoal.

Além disso, cada máscara boa possui a sua categoria. A máscara de mulher tem

a sua categoria enquanto a de Hannya (alma penada) tem uma outra. Quando

comparamos duas máscaras do mesmo género, a diferença da categoria é notável. Por

isso mesmo é importante observar o maior número de máscaras possível.

Ao forjar uma máscara, o autor coloca a vida dentro do objeto. O êxtase e

euforia são as palavras que descrevem o estado mental do autor. A natureza da

expressão é estética e lírica.

O único objetivo da construção de máscara é realizar apenas de forma bela

uma máscara baseada num sentimento puro. Isto é, gostar, aceitar e gozar este

processo e estado espiritual, o que significa viver na beleza composta pela paixão

interna e, ao mesmo tempo, maximamente tranquila. Por isso mesmo, a viagem de

observação de um forjador não deve ficar apenas à superfície mas sim deve chegar

diretamente ao ponto profundo do que observe.

Uma das frases de Zeami diz que “Dependendo do tempo e local, deve-se

atuar de maneira a que até um tolo compreenda”. Ou seja: atrair a atenção do povo,

elaborando sempre a arte para a adequar também aos olhos de apreciadores

aristocráticos e se suplantar: ao mesmo tempo, libertando-se assim do teatro e do

realismo latente do seu pai, Kannami. Para Zeami o caminho de perfeição do Nô foi

baseado nestas três lutas árduas e constantes.

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O xôgum seguinte, Yoshimochi ignorou Zeami e apreciou antes o mestre de

Dengaku, Zôami. No entanto, Zeami aceita o facto e até valoriza a apresentação de

Zôami, dizendo que “é mais fria do que a frieza” e elogia a sua beleza excecional. O Nô

frio significa, noutras palavras, “o Nô sem pensamento” ou “o Nô sem defeito” (não tem

qualquer erro). É uma atuação que atinge o limite da expressão absoluta, algo que nem

o espectador com mais experiência nesta matéria, consiga distinguir. Ultrapassa o

conflito da existência e inexistência mas ao mesmo tempo encaixa-se nestas duas.

No livro “Kakyô”, em que Zeami cristaliza a sua filosofia, estabelecem-se os três

tipos do Nô: O Nô de “olhar”, que toda a gente, incluindo apreciadores especializados e

outros menos conhecedores do teatro, pode igualmente achar interessante; o Nô de

“escutar”, aperfeiçoado pelos melhores mestres, que não seja valorizado por audiência

especializada ou críticos; e por último, o Nô de “coração”.

Considera-se que na segunda metade da sua vida, Zeami pense no “teatro

absoluto”, que ignora a existência do público. Trata-se do aperfeiçoamento do maior

paradoxo teatral: ter como destino último desaparecer no momento em que é

concretizado. Pode ser simbolizado como uma “flor” cuja essência permanece após a

desfloração, o que significa o aperfeiçoamento da expressão do nirvana, ultrapassando

o reconhecimento da relatividade entre o palco e o público. Ao mesmo tempo, significa

a tentativa de eternizar o Nô através da menção da vida artística de Zeami, o seu

aperfeiçoador. Por outras palavras, Zeami tinha atingido “o Nô inocente”, negando e

ignorando a fase de relacionamento entre o público e o ator e preocupando-se até com

o gosto exigente do público e dos apreciadores. O provérbio japonês famoso que

Zeami nos deixou é “Nunca esqueça o seu primeiro ideal”. A sua mensagem inicial era

“deve manter o primeiro talento que obteve e não o deve esquecer”, salientando a

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importância de guardar sementes das flores de cada fase da sua vida. As técnicas e

estilos adquiridos em cada fase são as suas intenções originais no momento. A

acumulação constante destas competências faz chegar ao “primeiro ideal da velhice”, a

arte extrema da velhice. Zeami escreve no “Kakyô” que “a vida tem que acabar, mas o

Nô não tem fim.”

No Nô, o movimento corporal é extremamente reduzido. Diz-se às vezes “não

movimentar é o Nô” ou “o movimento do coração a cem porcento, o movimento

corporal a setenta porcento”. Isto é um conselho para se abster o movimento corporal

em setenta porcento a fim de se trabalhar com o sentimento a cem porcento. Se uma

pessoa inexperiente imitar essa aparência física em setenta porcento, a sua expressão

acaba por ser limitada em setenta porcento no movimento corporal e também espiritual.

Quando o ator Umewaka Minoru desempenhou o papel da uma heroína idosa no

“Sotoba komachi”, ao avançar para o palco com uma bengala dizendo “acabei por

tornar-me numa velha de cem anos depois de passar os tempos tristes”, diz-se que o

seu primeiro passo tinha o peso de cem anos da vida da mulher aristocrata e o vazio

sem fim da vida. Isto mesmo é o estilo do Nô e através da prática contínua ganhará

naturalmente essa forma. Pode-se dizer a mesma coisa para a máscara. Ao invés de

técnicas, deve-se valorizar o coração.

A Beleza Secreta

Diz-se de uma rocha ornamental de jardim que quanto maior for a parte

enterrada, mais peso tem a ínfima parte à superfície. Aplica-se a mesma filosofia para o

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Nô. Poderia dizer-se que o desafio final do teatro é expressar um sentimento profundo

através de um movimento extremamente pequeno.

Uma lenda diz que quando Hideyoshi5 visitou o mestre do “cha no yu”, Rikyû6,

para apreciar os bons-dias que floresceram lindamente no seu jardim, este apanhou

todas as flores e colocou apenas uma grande no compartimento para a cerimónia do

chá, o que tocou profundamente o seu mecenas. Por eliminar outras, aquela que Rikyû

pôs no jarro passou a ter mais peso, concentrando a beleza das muitas outras.

Por ser extremamente controlada e discreta, produz uma expressão altamente

sofisticada. A beleza excedente deixa algum espaço que pode ser complementado pelo

sentimento de cada um. A sensualidade, um dos elementos da beleza, será também

mais salientada quando menos exposta e, deste modo, estimula a imaginação, uma

vez que aumenta, através de táticas psicológicas, a expectativa de quem observa.

Zeami descreveu-o muito bem nas suas palavras: “Se estiver oculta, será uma

Flor; se não estiver oculta, não será”.

Há outra lenda que explica alguns dos princípios do Nô. Há muito tempo atrás,

na China, havia um homem que praticava o arco. A sua técnica chegara já ao nível

superior até que, quando discutiu com a sua mulher, tentou ameaçá-la com ele. A

flecha cortou três sobrancelhas da mulher mas como a sua técnica era tão apurada, ela

continuou a agredir o seu marido sem o reparar. No entanto, quando se encontrou com

o maior mestre do arco de sempre, este velho riu-se da técnica do homem e

mostrou-lhe a profundidade da técnica desta arma, utilizando o arco e a flecha

invisíveis. Impressionado profundamente pelo velho mestre, o homem iniciou o

5 Um chefe militar que unificou o Japão em 1590.

6 O mestre do chá que aperfeiçoou “cha no yu” (cerimónia do chá), recebeu grande patrocínio de

Hideyoshi.

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aperfeiçoamento e, durante nove anos, não pegou no arco, nem falou sobre ele e até

se esqueceu do que era o arco.

Este episódio explica muito bem o mundo transcendente do nirvana e o seu

absoluto. É a estética do paradoxo.

Tentar entrar no mundo do nirvana também é importante na realização da

máscara. Uma máscara do Nô simboliza o nada como o seu conteúdo e deve ter a

função do “nirvana” que não é visível na sua aparência. Por exemplo, imaginemos que

o ator estende a mão direita. O público recebe a mensagem, sentimento e força que

vêm desse movimento através da máscara e não do próprio movimento. É por isso

mesmo que uma máscara deve ser neutral.

A “força espiritual”, invisível e inescrutável, e o espaço entre os sons – Zeami

escreve-os no seu livro “Kakyô”, denominando-os “ligação da alma”. Isto é, manter a

tensão da alma mesmo durante o espaço vazio depois de terminar a dança ou a

música. A presença da tensão invisível que surge entre os diferentes talentos envolve o

palco, fazendo entreter o público.

Por ser a cara do teatro, a máscara tem de fazer passar toda a gama de

sentimentos que o ator quer exprimir, não sendo permitido qualquer elemento que

impeça esta transposição. Uma máscara é inexpressiva em si mas no palco tem de

funcionar como o ator quiser e sentir, a partir do momento em que o pisa. Por isso, a

melhor máscara é aquela que consegue transmitir emoções e aparências diferentes de

acordo com o estado espiritual do ator, mesmo quando este atue na mesma peça com

a mesma máscara num outro dia. A melhor máscara é, assim, aquela que consegue

transformar-se a qualquer hora e em qualquer lugar.

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A Primeira e Última vez na Vida

Este é um provérbio japonês e representa o conceito do mundo do Nô.

“Cada cerimónia do chá é a primeira e a última vez na vida. Mesmo tendo-a com

os mesmos convidados várias vezes, de facto, cada vez é única na sua vida pois a

cerimónia de hoje não voltará acontecer. A concha do chá que leva água quente, indo e

vindo do inferno do calor ao frio, não experimenta sensações. O absoluto da filosofia é

desfrutar de uma cerimónia do chá que será única e que nunca voltará a acontecer da

mesma forma. Este facto verifica-se não só em contexto de reunião social, mas

também em contexto isolado...”

O autor desta descrição é desconhecido mas esta máxima sublinha a

importância de um acontecimento só ter lugar uma vez, por uma ou várias pessoas,

num só sítio. A atuação e a música do Nô também são únicas e nunca são realizadas

de maneira igual.

A filosofia do Nô é sentir yûgen através da beleza natural de elementos

produzidos por improvisação. Esta evidência do Nô consiste, portanto, na transmissão

de vários sentimentos através de uma máscara para o público, ainda que dentro da

mesma peça. E ela não deve interferir nessa transmissão. Isto é muito importante e

deve ser tido bem em conta.

O Nô e a sua Música

A teoria da música do Nô é muito clara. Existem quatro instrumentos musicais:

Tamborim de ombro, Tamborim de anca, Tambor de baquetas e flauta. Quando um

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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músico toca uma escala com qualquer um destes instrumentos, o seu som dependerá

de quem o toca. O tamborim do ombro é um instrumento nascido num clima húmido.

Por isso, antes da sua utilização, o seu couro necessita de estar húmido e o som

dependerá do nível de humidade. Para tocar o tamborim de anca, por sua vez, é

necessário secar o couro em brasas de carvão cada vez que se utiliza para produzir

aquele som brusco, de choque. O tambor é apertado bem por uma correia e é tocado

pela baqueta. É o instrumento de percussão mais estável de todos. A flauta é um

instrumento muito mais versátil, dependendo o seu som da maneira de soprar, da

colocação dos lábios, inclinar ou fechar orifícios. Por exemplo, para a parte da dança

“Jo no mai”, existe apenas um conceito de estrutura de notas e um princípio de cada

música na peça, denominado “categoria”. No palco, nenhuma atuação é igual, uma vez

que cada uma é única e termina a sua vida num momento de combustão imediata.

O ritmo da música do Nô é, em rigor, o compasso de oito. O tempo entre os

compassos é teoricamente igual mas, na prática, isto não acontece.

Esta regra aplica-se geralmente a todas as peças mas podem existir elementos

musicais que lhe são exógenos. Esta versatilidade é a essência da música e da

atuação deste teatro tradicional.

Existem algumas partes chamadas “compasso não uníssono”, em que não

seguem a restrição do compasso de oito. O coro canta como quiser e os músicos

tocam entre eles mas pouco antes de chegar a parte de “juntar o compasso”, sem

combinar, o fim da letra do coro e o fim da nota musical devem coincidir perfeitamente.

É o verdadeiro encanto do Nô ver as duas partes confluírem, respeitando a respiração

da cada uma.

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Na recitação havia também uma parte livre em que ao ator era permitido

escolher a entoação de acordo com o seu ritmo interior. No entanto, com o passar do

tempo, esta começou a ser praticada como passatempo e tornou-se uniforme. O

manual de aprendizagem da recitação para amadores tem de ser claro e conciso: por

outro lado, a uniformização da arte segue a tradição e interesse da família herdeira

desta tradição que a controla. Mas o que está a acontecer atualmente é que esta

restrição para os amadores está a afetar os profissionais, limitando a sua expressão no

palco. É a inversão de valores. Isto seria uma das razões porque o Nô, que

originalmente devia ter manifestações distintas, se encontra em crise de uniformidade.

As técnicas do paradoxo e os conceitos associados ao Nô foram fruto da

experiência de séculos e permitiram a produção de espetáculos em grande escala.

Contudo, nos tempos modernos, o paradoxo é compreendido ao contrário e este não é

o único exemplo de diminuição da sua filosofia. O mesmo se aplica para a apreciação

do teatro em si. Se pensarmos que “temos que o ver desta maneira”, cometemos um

grande erro. É importante voltar à filosofia do Nô antigo, reconsiderando a maneira de

observar e valorizar a máscara de Zeami, que aperfeiçoou esta arte performativa.

Alteração das Máscaras

Quando observamos máscaras do Nô, é possível notar as suas alterações

dramáticas ao longo da mudança das épocas: a Era de Kamakura (1185-1333),

Nanboku-chô (1336-1392), Muromachi (1392-1573), Momoyama (1573-1603) e Edo

(1603-1868). As máscaras de cada época apresentam as características desse tempo.

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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As máscaras de Nanboku-chô apresentam uma expressão livre de pré-Nô. Foram

criadas no início da sua história e são muito poderosas. Demonstram mais a sua

personalidade forte do que a simplicidade elegante ou a delicadeza, o que pode limitar

a postura de personagem do ator.

É provável que, na Era do Muromachi, Zeami tenha escolhido algumas delas

que não fossem muito intensas e que poderiam ser utilizadas como as máscaras

exclusivas para o Nô sem interferirem na postura do ator.

É possível observar que, na mesma época, várias esculturas budistas também

são poderosas e robustas. A arte da máscara também seguiu esta corrente e as

máscaras revelam-se tão vigorosas como esculturas profundas e fortes.

Ao entrarmos na Era de Momoyama, com a influência da faustosa arte budista

as máscaras também foram desenvolvendo cada vez mais a sua estética. Isto deve-se

também ao facto desta época coincidir com o final do período de guerras civis

(1467-1568). O Nô era uma arte praticada exclusivamente pelas famílias samurais que

procuravam na sensibilidade desta arte o espírito corajoso que enfrenta a “morte” e que

não a receia. Por outro lado, procuravam também o desejo de viver a sua vida, que

pode cessar a qualquer momento, com pensamentos belos.

Talvez por estas razões as máscaras da Era Momoyama tenham sido criadas

através da cópia das da Era Muromachi e imitam os seus sentimentos fortes e intensos.

Mais tarde, na Era Edo, mantém-se a tradição da técnica de copiar as máscaras, mas

vai-se perdendo a profundidade da gravura e a escultura torna-se mais superficial. Em

termos do Nô, podemos dizer que esta mudança se dá graças à interiorização do

conceito de yûgen pelos construtores das máscaras. O conceito aparece naturalmente

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nas obras, concretizando a ideia de que “deve-se combinar a gentileza, delicadeza,

profundidade e efemeridade”.

Quando se comparam as três máscaras de Shikami da Era Edo, cujos autores

são Zekan, Dôhaku e Dôsui (embora as destes sejam cópia da daquele), estas

parecem representar a expressão mais neutral dentro do enquadramento de Shikami,

sendo mais elegante e calmo.

Por outro lado, a mesma Shikami, que é considerada como a cópia do mestre

Ishikawa Tatsuemon da Era Muromachi por Zekan, tem uma expressão pavorosa que

não deixa aproximar ninguém. Só um génio do Nô é que pode atuar com ela pois será

muito difícil controlar a imagem da máscara.

A Postura de Personagem

Uma vantagem do Nô é qualquer pessoa poder dançar como a personagem

principal de uma peça. No entanto, isso não será mais que uma mera imitação com a

máscara, não sendo transmitida para o público a postura de personagem do ator.

Como foi explicado anteriormente, por o Nô ser uma representação única (i.e. não

repetível) do mundo, não valeria a pena atuar se a postura não fosse transmitida em

cada momento e se o público não a admirasse.

Podemos dar um ótimo exemplo deste aparente paradoxo. Quando o mestre e

tesouro humano nacional, Umewaka Rokurô, representou a peça “Kagekiyo”, no

segundo ato, quando Kagekiyo - agora cego - conta a sua valorosa história de

guerras a pedido da sua filha, conseguiu fazer o público sentir o tropel de quinhentos

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cavaleiros no palco e o brilho das espadas sob a luz da lua, através do movimento

ligeiro do corpo e do leque. Este é um excelente exemplo de como a postura do ator foi

transmitida para o público através da máscara e do seu corpo.

Uma vez o canal NHK7 transmitiu um programa sobre a relação entre a postura

do Nô e o número de batimentos cardíacos, utilizando como cobaia um ator jovem da

família Umewaka. Para tal foi escolhida uma cena da peça “Dôjôji (o templo Dôjô)”, em

que a protagonista - uma jovem a rebentar de ciúme - entra num sino de ferro do

templo Dôjô para se transformar numa serpente-monstro (a cena é muito perigosa pois,

ao entrar no sino, o ator pode partir o seu pescoço). Enquanto os músicos tocavam

intensamente, o ator mantinha-se em pé sem movimento, concentrado na postura da

personagem. No momento seguinte, subitamente e sem qualquer expressão facial, o

suor começou a pingar na sua face e o número de batimentos cardíacos saltou de 70

para 140. Existe uma expressão “pensar intensamente em alguma coisa”, mas eu

próprio nunca tive uma experiência como esta e nunca vi tal situação. Quando vi a

imagem, admirei o extraordinário nível que este especialista alcançou, pois só é

possível obter este talento depois de treino muito intenso.

Mais tarde, perguntei ao meu mestre da máscara se ele era também capaz de

fazer o mesmo. Ele respondeu-me que nunca tinha tido este tipo de experiência.

Imagino que o ator tenha conseguido atingir tal nível sem saber e pensar depois do

treino constante e prolongado.

Existem duas maneiras para obter a postura ideal. A maneira instantânea, ou

seja, a transferência da consciência imediata e a transposição mais calma e lenta. O

que se faz na construção de máscaras é a segunda.

7 NHK: Nippon Hôsô Kyôkai. O canal de televisão do estado.

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Há um exemplo concreto de algo similar. Há 2500 anos atrás, na Índia, Buda

abandonou o trono e entrou na floresta de penitência. Durante sete anos, penitenciou

apenas com um copo de água, um grão de trigo e um grão de painço por dia. No

entanto, não conseguiu a iluminação espiritual e desceu a montanha. Numa aldeia na

base da montanha, alimentou-se a papa de leite que a filha do chefe lhe ofereceu e

iniciou a meditação debaixo da figueira dos pagodes. Sete dias depois de manhã,

finalmente atingiu a iluminação espiritual.

Buda não chegou a este nível apenas com a meditação sob a árvore. Foi graças

à penitência constante durante sete anos que uma flor se abriu como resultado final da

última penitência.

Existem vários tipos e definições da força de vontade de Buda. Quando vinha

para a pregação, antes de ele começar falar, bastava entrar em contacto com a sua

aparência; até as pessoas que o viam pela primeira vez ficavam admiradas. Aconteceu

também o mesmo a Cristo pois isto é provavelmente efeito de uma grande força

espiritual.

Como o exemplo da penitência de Buda, só é possível dominar a “postura de

personagem” com o treino. O objetivo da construção das máscaras é representar,

como mencionado anteriormente, o nível do nirvana. Para realizar uma boa máscara

esta tem de ser feita em silêncio e, lentamente, eliminando todos os maus

pensamentos. O espírito do artesão nunca deve estar preso a nada.

Então, como é que se adquire essa a “postura”?

Uma forma é através de auto-hipnose.

As técnicas de Yoga podem ajudar a atingí-la. Respirar fundo, enchendo o peito

e recolhendo o estômago, colocar a testa no chão enquanto se expira lentamente e o

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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mais silenciosamente possível. Se se acreditar que este exercício ajuda a entrar no

nirvana, será útil para atingir a auto-hipnose.

A expiração lenta também ajuda quando se pintam os fios de cabelo de

máscaras de mulher. Respira-se apenas 70% quando se começa pintar, expirando

devagar, deixando 30% do ar quando se termina a pintura dos fios. Deste modo, é

possível pintar à vontade, sem tremer. Quando se dominar a auto-hipnose, a pintura do

cabelo não será um problema.

O Papel das Máscaras

O uso de máscaras no teatro remonta ao período da civilização grega, passou

pela China e chegou ao Japão como formas de dança e música da corte. Há 1400 anos,

o príncipe Shôtoku ordenou a Hata que compusesse trinta e três peças de Kagura (a

música e dança do xintoísmo) e suas respetivas máscaras. Nessa altura, o próprio

príncipe Shôtoku também construiu uma máscara de Okina, que é hoje reverenciada

como a máscara sagrada. Durante cerca de seiscentos anos foram criadas várias

máscaras de Kagura, até que apareceu o mestre Zeami que selecionou apenas

algumas para serem utilizadas exclusivamente no teatro Nô. Elas continuam a

sublimar-se constantemente ao longo dos períodos Momoyama e Edo.

O Nô é o único teatro no mundo que desenvolveu máscaras como uma forma de

transformação artística. Além disso, ao contrário dos teatros ocidentais que as utilizam

como apenas uma ferramenta para o disfarce, as máscaras do Nô representa o núcleo

deste teatro performativo, dominando todo o seu mundo.

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Ao ocultar a expressão emocional da cara humana pela máscara – ou seja,

negar o físico –, cristaliza-se a emoção numa dimensão superior, passando-a para o

público. Como foi escrito num livro, “em qualquer peça do Nô, a máscara possui

sempre a mesma função: proteger a personagem do mundo de agora, condensá-la

para a eternidade na história ou mito em que ela se formou”. Por outras palavras, a

máscara bloqueia o corpo do ator. Ao mesmo tempo, ela protege-o do ruído do mundo

exterior, isolando-o psicologicamente, permitindo, assim, as técnicas teatrais ao longo

do tempo e do espaço.

Contudo, o bom ator consegue passar o “sentimento” da personagem para o

público, ultrapassando a barreira de máscara sem sofrer a sua interferência. Além

disso, a máscara não deve ter em conta o movimento nem deve impedir a expressão

dos sentimentos por parte de um bom ator.

Os Olhos de Máscaras

Os olhos de máscaras de mulher são abertos em quadrados. Dentro destas, os

de Manbi são retangulares verticais e os de Fushikizô e Magojirô são retangulares

horizontais. Se a máscara possui alguma nobreza, os buracos quadrados são

ligeiramente arredondados. O quadrado tem uma função de mostrar a pupila o mais

possível, oferecendo, assim, uma expressão maior dos olhos. As máscaras de

mulheres de meia-idade como as de Fukai ou Shakumi têm os olhos redondos meio

escondidos sob a pálpebra. A sua forma faz sentir o peso da vida.

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Os da Zôonna são gravados em oval, levantados ligeiramente para cima a fim

de mostrar a nobreza comparada com as de olhos quadrados.

Yoroboshi, Semimaru e Kagekiyo são personagens cegos e as máscaras têm os

olhos em linha horizontal. Assim, o ator tem mais facilidade de ver o palco. Seria

interessante pensar que, por ser cego, teria mais facilidade de ver algo mais através da

alma do que as pessoas normais.

O campo de visão do ator com a máscara é muito estreito, podendo ver apenas

um ponto. A distância entre o centro dos olhos de uma máscara é de cerca de 6 cm,

enquanto a do humano é de cerca de 6.6 cm. Ou seja, é preciso juntar os olhos para

poder ver. Esta é uma técnica para criar uma cara mais tensa, como podemos ver em

Kabuki. Muitas esculturas, por exemplo, as dos doze deuses protetores no templo

Sanjû Sangen Dô são todas construídas com os olhos aproximados e parecem por isso

mais tensas.

Por isso, quando abrir os buracos de olhos no verso da máscara, é importante

ver e experimentar várias vezes para evitar que o objeto que se vê seja duplicado ou

sobreposto. Senão, o pilar de referência no palco que normalmente o ator vê para

acertar a sua posição no palco pode aparecer duplicado e o ator pode perder-se.

A cara do ator é, assim, tapada com a máscara e consegue apenas ver um

ponto. Sem ser interrompido pelos eventos de “fora” e com o corpo apertado por trajos

grossos, o ator está em ótima condição de entrar na auto-hipnose. Além de manter a

mente e o corpo neste estado, ele também deve ser capaz de manter a fria objetividade

de observar todos os seus movimentos, como foi indicado pelas palavras de Zeami,

“olhar de longe”.

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Como Claudel dizia, “pelo paradoxo surpreendente, não há emoção dentro do

ator mas o ator está dentro da emoção”. O Nô não é o drama popular. É um teatro que

se realiza num palco de alta pureza da cristalização de própria emoção, transformando

e elevando o ator para a existência de outra dimensão. O sucesso deste teatro deve-se

à força do poder expressivo do lado do posterior da máscara e ao efeito psicológico

escondido no verso da máscara. Ou seja, a transmissão da postura do ator para o

público.

Como Colocar uma Máscara e Gerar a sua Mudança de Expressão

Uma máscara do Nô não se puxa sobre a cabeça mas sim coloca-se na cara

levemente. Deve-se vestí-la, deixando de fora alguns centímetros do queixo do ator. A

circunstância de poder ver o queixo humano sob a máscara ajuda, por sua vez, a

identificar a máscara e o humano. Por outro lado, no teatro em que se enfia a máscara

sobre a cabeça como Kagura, a dança xintoísta, uma máscara não será mais do que

uma mera máscara.

Como foi mencionado antes, quando se abre os olhos da máscara é importante

gravá-los enquanto se vai colocando a máscara em posição elevada com cuidado

especial, para ter a certeza de que o seu ângulo está correto.

A escola Kurokawa segue a filosofia dos tempos antigos em que se

identificavam máscara e religião e a máscara é considerada como a cara humana. Esta

põe-se ajustando os olhos com os da máscara, colocando a peruca em cima dela e

aperta-se o seu fio decorativo em cima da máscara. Por sua vez, nas cinco escolas

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principais, o fio decorativo é apertado em cima da peruca e a máscara é colocada no

fim, numa posição ligeiramente mais alta do que a cara. Neste caso, não parece muito

natural, pois vê-se o fio decorativo no meio da face. Quanto ao vestuário, a

indumentária-base da mulher nas cinco escolas apresenta a parte do peito mais aberta,

sendo cruzada. Assim, o ator terá um equilíbrio perfeito do corpo e da cabeça, uma vez

que a máscara é colocada mais alta. Por outro lado, na escola Kurokawa, veste-se

mais apertado como o kimono normal e assim parece que a sua cabeça é demasiado

grande e saliente.

Quando se começou a colocar a máscara na posição alta, sacrificando a ótica, a

máscara deixou de ser uma ferramenta do disfarce e passou a dominar toda a

apresentação do teatro. O andamento especial chamado “arte de caminhar”, pelo qual

o centro de gravidade é estabelecido, a expressão do corpo inteiro que rejeita as

técnicas pouco aperfeiçoadas e a forma impiedosamente geométrica, são todos

unificados sob a filosofia da máscara do Nô.

É possível dizer que todo o Nô nasceu da própria máscara. Além disso, Zeami

aperfeiçoou o Nô de sentimento que domina as máscaras, ultrapassando a habilidade

do seu pai.

A máscara do Nô é muitas vezes descrita como não-expressiva, de expressão

limitada, expressão neutra, expressão negada, expressão abstrata, etc. De acordo com

a definição de Zeami, yûgen, significa “bela”, “elegante” e “interessante”. Uma máscara

que expressa esta palavra deve ser “o nada” e apenas precisa de ser bela. Por isso,

seria a melhor máscara feminina, se, por exemplo, ela mostrasse apenas “um estado

belo e gentil” sem qualquer força dentro de enquadramento conceptual da sua idade.

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O Coração como um Espelho

O termo para a expressão de chorar no teatro Nô chama-se “Shiori”. O ato de

“Shiori” consiste na inclinação da máscara ligeiramente para baixo, colocando uma

mão com os dedos esticados e direitos em frente da cara, como se limpasse as

lágrimas. Este movimento pode ser realizado só uma vez ou duas vezes. Para

expressar a tristeza mais intensa, faz-se com as duas mãos, ou com as duas mãos e

sentado. Estas são quatro expressões físicas. Nunca se deve sair destas formas pois

são as únicas a expressarem emoção, consoante a música.

O sucesso de cada sessão depende de se o público recebeu bem, ou não, a

transmissão da postura do ator. Por isso, é essencial que a máscara não a impeça. No

ato de “Shioru”, a máscara tem a posição denominada “Kumorasu (ensombrar)”,

inclinada ligeiramente para baixo.

Portanto, é preciso reconhecer, mais uma vez, o facto de que as expressões de

uma máscara se alteram conforme o seu ângulo e a luz. Por isso, é importante pôr um

espelho a cerca de um metro de distância, colocar corretamente a máscara como

anteriormente dito e observá-la de vários ângulos e de várias direções de luz, sempre

perguntando a si mesmo se é “simplesmente bela e gentil” em qualquer situação ou

como é que pode melhorar.

O coração do construtor da máscara é como se fosse um espelho. Não recebe,

não contraria, reflete e não acumula.

Este é a regra mais importante para o construtor da máscara. Como esta frase

explica, tudo o que um construtor tem de fazer é “copiar” rigorosamente o material

definido. Não há lugar para qualquer pensamento pessoal, ideia ou auto-reclamação da

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sua parte. É essencial copiar o material inteiramente como se o refletisse num espelho.

Além disso, o seu maior desafio é esse ato de voltar a tornar-se no nada, não deixando

qualquer traço.

É difícil concretizar a ideia de “como se se refletisse num espelho” pois quando

está a forjar, o artesão vê-se muitas vezes a si próprio no espelho colocado à sua frente

e a máscara começa a ficar parecida consigo ou com alguém da família. De facto, a

essência está no seu subconsciente. É preciso estabelecê-la desenhando várias vezes

o modelo, levando-se a si mesmo à auto-hipnose como se esta fosse a sua cara.

Zeami descreveu em “Kakyô” o conceito de “olhos de olhar com a distância” do

ator. Isto é, enquanto a própria consciência do ator é denominada “olhar a si próprio”,

este conceito refere o talento de se observar objetivamente a si mesmo de várias

posições como se fosse parte do público. Por ter olhos na alma que ultrapassam os

olhos físicos, o ator consegue ver como se tivesse os olhos de todo o público. Assim,

ele consegue uma visão total de não apenas o que está à sua frente, direita e esquerda,

mas também o que está atrás, mantendo em si uma outra visão de cabeça fria.

Esta teoria artística também se aplica no processo de construção da máscara.

Um famoso ator da escola Kanze, Kanze Hisao, explica a posição base do teatro

Nô como seguinte: “Está a ser puxado ilimitadamente por uma força invisível em todas

as direções - frente, atrás, direita, esquerda, cima e baixo - e está em pé no centro

do equilíbrio destas forças. Isto é “Kamae”, a posição base. Por outras palavras, estar

em pé transmitindo constantemente uma força espiritual para todo o lado – frente, atrás,

direita, esquerda, cima e baixo”.

Existem quatro pilares que apoiam o espaço de cubo do palco do Nô. Os dois da

frente são denominados “pilares de referência” e têm uma função importante: a de

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servirem como pontos de referência do ator que tem uma visão limitada debaixo da

máscara. Como foi acima mencionado, é essencial gravar com cuidado para conseguir

ver o pilar singularmente quando se abrirem os buracos de olhos atrás da máscara.

As Expressões de Máscaras do Nô e a sua Utilização

O Nô conseguiu enaltecer a perenidade da emoção humana por ter alcançado

uma técnica denominada “o Nô fantasiado”. Desta forma, conseguiu a abstração e a

condensação da mesma por uma espécie de convergência topológica que conquistou a

visão de uma vida inteira do ser humano ou o próprio destino.

Quando olhamos a vida no momento da morte, após centenas de anos, o tempo

da vida parece extremamente condensado e concretizado, brilhando como um raio de

luz. Assumir a existência através de um filtro de mutabilidade é a raiz da valorização do

teatro Nô.

O mundo onde estão ativos seres que apesar de terem uma existência real,

conseguem ultrapassar o tempo e espaço é o mundo do Nô.

O Nô fantasiado de Kannami, o pai de Zeami, possui a característica de ser o Nô

do fantasma presente e tem tendência a tratar os mortos no mesmo nível como seres

humanos do mundo vivo.

Em comparação com Kannami, que mostrou a corte do mundo da morte, Zeami

escreve as peças em que se consciencializa o momento da recordação, observando-se

a vida do ponto de vista da morte.

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Quando estudamos bem a peça “Izutsu”, a alma de Zeami transforma-se na da

mulher de Izutsu, na de Narihira por quem ela se apaixona, na da mulher que olha para

Narihira, na do monge viajante que conta a história e até na do público que está a ver a

peça. Esta é a peça típica da recordação que apresenta a eterna paixão.

O conceito de yûgen utilizado antigamente na poesia, que Zeami definiu como “o

núcleo do yûgen é ser totalmente belo e gentil”, o que significava antes a graça e

tranquilidade, com tempo, passa a significar elegância.

As peças “Izutsu” e “Tôboku”, cujos protagonistas são mulheres requintadas,

têm o elemento de yûgen mais forte do que em outras peças Por outro lado, a alma da

mulher também é retratada da seguinte forma em quatro peças com uma amplitude de

emoções: a peça “Tôma” descreve a serenidade religiosa do estado espiritual de uma

princesa; todas as emoções de uma mulher envelhecida - beleza, fealdade, raiva e

tristeza - são reduzidas na peça “Obasute”; a obsessão de uma mulher na peça

“Nonomiya” oferece uma ligação para a outra peça chamada “Teika”, em que

aprofunda a tristeza da paixão até ao pecado da existência humana, enquanto a paixão

compulsiva arde violentamente na peça “Aoi no ue”.

Mais adiante, a peça “Higaki” descreve o destino penalizador de uma mulher por

ser bela. A paixão dos sonhos é contada em peças sobre jovens loucas como “Hanjo” e

o amor materno foi tema de peças sobre mães enlouquecidas como “Mitsui dera” e

“Sumida gawa”.

A peça “Kinuta” procura demonstrar uma emoção interna da saudade e da

tristeza de uma mulher casada de meia-idade, a quem aflige a ausência do seu marido.

A intensidade da fúria do amor traído é o tema da peça “Dojô ji” e a vingança por

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ciúmes faz nascer a mulher diabo da peça “Kanawa”, que amaldiçoa e mata o seu

marido inconstante.

Os temas das peças femininas correspondem às suas máscaras. Cada máscara

tem uma característica dominante. Os tipos de máscaras de mulher jovem de várias

escolas são os seguintes:

Koomote é jovem, inocente e linda, Wakaonna demonstra inteligência, Magojirô

é de beleza refinada e madura, enquanto Fushikizô monstra principalmente a dignidade

e ao mesmo tempo o encanto. Ômionna é uma máscara que vem do teatro de uma

região diferente de Kannami e Zeami. Hoje em dia não é frequentemente utilizada por

ter as características de loucura de amor.

Quando adiciona a característica de frieza à máscara Zôonna, que em si possui

alta dignidade, a máscara torna-se em Nakizô, e Masukami apresenta a feição de

mulher exaltada e histérica.

As máscaras de mulher da meia-idade como Fukai e Shakumi expressam a

serenidade dos anos, fadiga da vida e o amor materno profundo. Uba e Rôjo

encontram-se na sequência dessa linha expressiva e são expressões que fazem

lembrar a experiência dos anos puros e bonitos. São expressões últimas do

aperfeiçoamento da mulher japonesa.

A máscara de Deigan é adequada para expressar o sentimento de mulher

insatisfeita. Originalmente era a máscara da mulher que já se teria transformado num

Santo do Budismo. No entanto, por ser mais adequada para a alma penada na peça

“Aoi no ue”, que mata uma mulher por ciúme, tem sido utilizada como tal.

A violência da raiva da mulher faz criar Hannya. Quando o elemento da tristeza

humana é extirpado, torna-se em Ja e mais adiante, em Shinja, que representa apenas

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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ferocidade. Contudo, Hannya também era originalmente uma figura cristalizada do

Carma da mulher que atingiu o nirvana e não servia para expressar os ciúmes de uma

personagem quando esta máscara foi inicialmente criada.

Hashihime expressa claramente a fealdade do ciúme e é utilizada somente para

a peça “Kanawa”.

Yaseonna é a máscara do espírito feminino morto que sofreu pelo seu pecado e

continua a sofrer e a definhar no Inferno, onde, segundo o Budismo, é executado um

castigo divino e quando o mau carma se esgota, liberta-se dele. Higakionna representa

o destino trágico de uma dançarina de cem anos e Yamanba representa algo de outra

dimensão que ultrapassa o sexo feminino.

Na Era Edo, o Nô passa a estar sob a égide de xogunato Tokugawa. Foi no ano

1609.

Na época de Hidetada (1605-1623), o Nô foi incorporado no sistema de classes

feudal e foram estabelecidos os sistemas da família hereditária e de divisão do trabalho.

No tempo do terceiro xôgum Iemitsu (1623-1651), a sua prática foi limitada, passando a

ser preservada como uma arte clássica do espetáculo, constituindo uma tradição

familiar.

Excluído o caminho da criatividade, a energia concentra-se no refinar de uma

técnica exclusiva, sendo apoiada pelo espírito do Bushidô8, que acrescentou uma força

artística e impulso, aumentando-se o simbolismo teatral. Assim, na Era Edo, o Nô entra

no período da exaltação e do progresso da sua história, o que não tinha acontecido na

época de Zeami.

8 Código de conduta que define o padrão de valor e a ética sobre o modo da vida da classe militar,

samurai.

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 35

Podemos dizer que este foi o período em que se estabeleceu e provou

fisicamente a alta capacidade para a contemplação do Nô dos últimos anos de Zeami.

É claro que o Nô chegou aos tempos modernos imbuído do espírito de “samurai”

masculino. Podemos dizer que o espírito inabalável que não receia a morte cresceu

junto com a filosofia guerreira dos samurais desde Muromachi e o espírito “Zen”

através dos mistérios da vida e da morte.

As máscaras podem ser categorizadas em cinco tipos seguintes – Okina, Jô

(Homem Idoso), Oni (Demónio), Onryô (Alma Penada) e Danjo (Homem/Mulher).

Na minha opinião, em vários sentidos, as máscaras da Era Edo, especialmente

as construídas por Dôhaku e Dôsui, são as melhores. Alguns dizem que as da época

da criação são superiores. De facto, são mais intensas e reais por serem forjadas de

modo livre e independentemente das características estéticas do Nô. No entanto, por

serem tão fortes, apenas alguns mestres atores talentosos - e só quando na sua melhor

condição física e mental - é que poderão controlá-las, pois a máscara ganha ao ator e

dominará todo o teatro, acabando por se ficar em presença de “uma peça de máscara”.

Assim, o elemento mais importante do Nô, a postura do ator, acabaria por não

ser transmitido para o público e o teatro perderia assim o seu significado principal.

Deste ponto de vista, as máscaras da Era Edo são de um nível altamente depurado,

construídas seguindo os conceitos estéticos e formais do teatro mas simultaneamente

não se prendendo a eles.

Materiais e Técnicas

Neste capítulo falarei sobre técnicas.

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O Rosto do Nô

– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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Em relação à madeira, tem de se procurar o melhor material. Em primeiro lugar,

a boa madeira não empena depois da obra terminada. Segundo, é leve e não cansa

mesmo depois de um ator a usar durante muito tempo. Terceiro, a voz tem de ser

projetada (o que depende também da forma de esculpir). Quarto, a resina está bem

seca. Quinto, a madeira recebe bem com a oca branca aplicada na sua superfície.

Sexto, é maleável e não se quebra ao ser esculpida. Sétimo, tem veios regulares. Para

se produzir uma máscara é necessário reunir todas destas condições.

Nas máscaras antigas são utilizadas madeiras como paulownia, canforeira,

figueira ou pinheiro-abeto. Contudo, nenhum destes materiais reúne todas as

condições anteriormente mencionadas. Por isso, a partir da Era Momoyama, é

principalmente utilizado o cipreste japonês Hinoki da região Kiso.

O Hinoki desta zona é extremamente forte comparado com outros materiais.

Diz-se que consegue manter a mesma consistência ao longo de 1300 anos.

Geralmente o Hinoki normal atinge a sua força maior depois de algumas centenas de

anos após a corte. Ou seja, é um ótimo material para máscaras.

Há um exemplo concreto. A máscara de Ranryôô no santuário xintoísta

Itsukushima, utilizada hoje em dia para a atuação do Nô, foi construída há 300 anos, na

Era Edo. Foi utilizado um material inferior e está danificada, mantendo a sua superfície

apenas o sumagre aplicado. Por outro lado, a máscara feita há 800 anos, na Era Heian,

ainda está em ótimas condições. É muito provável que tenha sido utilizada o Hinoki da

região Kiso.

O templo Hôryûji (o edifício de madeira mais antigo no mundo, classificado como

património mundial) também foi construído com Kiso Hinoki e diz-se que ainda hoje,

depois de 1300 anos, mantém a mesma consistência de quando foi edificado. Como

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 37

estes exemplos mostram, o Kiso Hinoki oferece a melhor matéria-prima de todas as

madeiras mencionadas.

A melhor madeira de Kiso Hinoki é aparelhada com o seguinte processo:

corta-se uma árvore de Hinoki grande com 300 anos na montanha da região Kiso

durante o inverno, transportando-a por rio através da água do degelo no início da

primavera. No estuário, a madeira continuará na água durante anos, para deixar sair

toda a resina. Depois é cortada verticalmente em quatro e seca à sombra. Diz-se que a

melhor altura para se forjar a máscara é quando tiverem passado vinte a trinta anos

após o seu corte.

Numa árvore existem a frente e o verso. Quando se planta uma planta jovem ao

contrário, esta ao crescer torce um a dois metros acima da raiz para tentar corrigir a

direção. Este tipo de árvore contém mais resina e, quando esta madeira é utilizada para

a máscara, pode causar frequentemente nódoas na superfície da máscara manchando

a camada da oca branca aplicada. É importante evitar este tipo de material quando

escolhermos a madeira.

Quase todas as máscaras no santuário xintoísta de Itsukushima são feitas de Kiso

Hinoki. Algumas máscaras de Okina são de paulownia, e outras de Akujô são de

figueira. A vantagem da paulownia é a sua leveza mas, de facto, é um material muito

duro e difícil de esculpir. Se for utilizado uma goiva que não esteja muito bem afiado,

toda a superfície do material se torna rugosa. O mesmo acontece com a figueira. É

especialmente difícil gravar a sua superfície.

Contudo encontramos algumas de Okina feitas de Kiso Hinoki, o que comprova

que, mesmo reconhecendo que este era o melhor material, eram possivelmente

utilizados, outros materiais em alternativa por esta madeira ser difícil de obter.

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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A partir da Era Edo (século XVII) foi criado um sistema que assegurava a vida

dos forjadores das máscaras através de um sistema hereditário, distinguindo algumas

famílias nessa profissão. Além disso, tinham acabado as guerras civis, o que trouxe

uma certa estabilidade social. Estes fatores contribuíram para o fácil acesso à madeira

de Kiso Hinoki e por isso, as máscaras da Era Edo são quase todas deste material.

Nem todos os ciprestes Hinoki são adequados. Mesmo que seja o mesmo

cipreste japonês, com várias centenas de anos, aqueles que cresceram nas zonas de

Oeste do Japão não são adequados para material de máscaras.

O Hinoki destas zonas possui anéis de crescimento irregular devido à diferença

de temperatura do inverno. Além do defeito da diferença da solidez – a parte que

cresceu no inverno é muito dura e difícil de gravar enquanto a do verão é tão macia que

escorrega a goiva –, a parte central do tronco da madeira também tem a cor carregada

e os seus anéis ficam na superfície da máscara, o que causa dificuldade na leitura da

sua expressão.

O cipreste da Formosa é fácil de esculpir mas também tem a desvantagem de se

quebrar facilmente por ser frágil e menos viscoso. O mesmo se passa com o cipreste

americano. É possível corrigir o “fragmento” ou a “quebra” com cola mas acabará por

ser não-autêntica. É preferível escolher o material adequado para criar uma obra que

dure durante vários centenas de anos. Por isso, não há melhor material do que o Kiso

Hinoki para construir uma máscara do teatro Nô.

Aguentando o vento e a neve do inverno e sendo lavada de vez em quando

pelos aguaceiros de verão, a madeira é uma vida inestimável que cresceu, durante

centenas de anos, lançando profundas raízes na terra mãe sob o grande Sol. O forjador

da máscara deve reconhecer o valor deste material precioso como se fosse a

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 39

cristalização temporal de centenas de anos. Deve manuseá-lo, agradecendo cada um

dos anéis da árvore.

A Oca Branca, a Grude e os Pigmentos de Minerais Naturais

O que se aplica na superfície da máscara é uma mistura da oca branca e grude.

A oca branca é feita com pó de conchas de ostra. Depois de serem esmigalhadas e

trituradas, o pó é dissolvido na água e mexe-se. A seguir, decantam-se as partículas à

superfície para outro recipiente junto com a água, deixando-as sedimentar. Depois

tira-se o excesso de água e deixa-se seca como uma tábua fina. Volta-se moer para

ficar em pó.

A oca branca de qualidade inferior é o resultado de não se ter esperado que as

partículas grossas sedimentassem. Além de ser de grão áspero, esse tipo de oca

causa sedimentos quando se mistura com a grude, o que afeta a proporção destes dois

elementos, estragando o aspeto final da pintura. É por isso necessário escolher a oca

branca o melhor possível.

Às vezes, para alguns tipos de máscaras, podemos encontrar instruções para

misturar as partículas maiores a fim de obter uma superfície de aspeto áspero. Neste

caso, contudo, seria obtido o acabamento fino e melhor seria misturar o pó de cristal ou

a mica, ou aplicar técnicas de pintura que reproduzam o toque da casca de pera ou

limão japonês.

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O Rosto do Nô

– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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Se se desejar ter melhor acabamento, é preferível utilizar a oca branca de valor

de mais de 4,000 yens (40 euros) por 500 g para a primeira demão e a de mais de

7,000 yens (70 euros) para a última demão.

Em relação à grude, existem vários tipos e de vários animais como vaca, cavalo,

entre outros. A melhor grude é extraída do osso do veado. Ao misturar-se com a oca

branca, a grude do veado mantém-se fina mas ao mesmo tempo possui aderência

própria, o que faz com que se espalhe bem com o pincel e ofereça um acabamento liso

com traço de pintura visível.

Diz-se que antigamente se misturava de propósito a grude e a oca branca de má

qualidade para dar um aspeto antigo, não sofisticado mas deve-se evitar este tipo de

utilização.

A grude de veado também foi utilizada nas máscaras na era Edo e parece ter a

melhor qualidade. Deve-se observar as da melhor era e evitar o acabamento roliço sem

traço de pincel.

Falarei agora sobre os pigmentos.

Salvo algumas exceções, é utilizado loesse como a característica da cor da pele

nipónica. A “base” é feita através do loesse com cor a mais ligeira possível e nessa

base serão adicionadas outras cores de acordo com a máscara que se pretende. Se

não se aplicar esta “base”, o tom de cor perde profundidade e esta acaba por ser

demasiado branca ou castanha.

O loesse encontra-se na superfície dos montes. Numa visita às montanhas,

recolha barro do loesse e siga o mesmo processo de produção da oca branca. O

loesse lavado e seco em casa oferece um ótimo tom. O loesse à venda no mercado

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 41

tem muitas vezes o tom demasiado forte e é difícil de controlar pois só é adicionável em

muito pequena quantidade.

Por exemplo, com o loesse caseiro, uma boa distribuição é 30 g de oca branca e

15 g de loesse. Se utilizar o loesse à venda, na mesma quantidade da oca branca, é

apenas adicionável 0,1 g. Isto é um bom exemplo de que nada se compara aos

materiais naturais. Por isso, quando for às montanhas, é importante não esquecer de

levar sempre sacos plásticos para recolher o loesse e o barro vermelho. Diz-se que

antigamente os artesãos se deslocavam até outros pontos do país só para procurar

vermelhão. Devemos gravar bem no coração esta atitude de espírito.

A Construção - os Moldes da Cópia

Finalmente o processo da construção da máscara. Desde finais da Era

Momoyama que se transmitiu uma técnica de “copiar” através do molde de papel, que

se mantém até hoje.

Em primeiro lugar, tira-se o molde em papel da forma da máscara que se

pretende forjar, aplicando-o e ajustando-o no material que se vai usar para reproduzir a

máscara. Existem tradicionalmente várias partes do molde: “Omotegata” (o molde da

máscara) é o desenho da face exterior da máscara, “Tategata” (o molde vertical) é a

parte lateral e “Hitai no kata” (o molde da testa) indica a profundidade da máscara.

“Hanaue” (cima do nariz) mostra a distância entre os olhos, enquanto “Hanagata” (o

molde do nariz) é o desenho do nariz ligeiramente inclinado. “Uekuchi” (o lábio

superior) é a decalcamento da linha do lábio superior, “Shitakuchi” (o lábio inferior) é a

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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do lábio inferior e “Kuchi” (a boca) é o desenho da boca total. “Me” (os olhos) é o

desenho total dos olhos e “Menoshita” (debaixo de olhos) é o decalque da linha

horizontal da pálpebra inferior do canto dos olhos até ao bordo exterior da máscara.

Tiravam-se as medidas com o padrão dos moldes primeiro e copiavam-se os restantes

detalhes de acordo com a sensibilidade do forjador.

A razão desta tradição da técnica da “cópia” é a seguinte: As máscaras da dança

e música da corte não foram sujeitas ao realismo artístico das máscaras do teatro mais

antigo, permitindo-se um certo simbolismo. Isto significava “obscurecer” a expressão da

máscara para permitir qualquer expressão em vez de representar um sentimento

específico. A expressão neutral obscurecida permite conjurar vários sentimentos. A

máscara do Nô é a forma mais acabada desse simbolismo.

Por outras palavras, ela é o último estado de uma máscara. Como não possui

nenhuma expressão particular, sendo o mais depurada possível que se possa realizar,

a sua capacidade é infinita. Por isso, não há nenhuma margem para a criatividade do

autor. Se alguma intuição revelasse, seria apenas a dignidade e a humanidade da

pessoa que a forjou, transmitidas sem intenção durante a fase de “copiar”.

O Desbaste Grosso - a Direção dos Veios da Madeira

Para obter uma madeira da medida certa para a máscara do Nô, corta-se a

madeira horizontalmente em relação aos anéis da árvore com o comprimento por volta

de 21,2 cm (algumas são de 21,5 cm ou 20,6 cm).

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 43

A medida de 21,2 cm é uma medida muito importante no Nô. Antigamente, o Nô

era interpretado pelo sexo masculino e a média da altura dos homens era de cerca de

169,6 cm. Se se dividir esta altura por oito, fica 21,2 cm, conseguindo-se, assim, uma

proporção corporal ideal (oito vezes o comprimento da cabeça). Trata-se da mesma

proporção das estátuas de Vénus, a deusa da Beleza. Ou seja, possui o mesmo

sentido estético que no Ocidente. Considerando esta medida, por se colocar a máscara

ligeiramente alta como foi mencionado, a figura do dançarino ficava bem proporcionada,

mantendo assim o equilíbrio estético. Como acima mencionado, a medida da altura dos

adultos masculinos na Era Momoyama era de 169,6 cm. Um homem alto era

denominado “um homem bonito e grande de 180 cm” e esta frase era utilizada como

sinónimo de grandeza, o que comprova o raciocínio da medida.

Para as danças tradicionais da corte e do xintoísmo, a maioria das máscaras é

do tipo que cobre a cabeça. Naturalmente as máscaras para cara também podem ser

maiores. O santuário xintoísta Itsukushima possui uma de 24 cm e outra de 30 cm.

Ambas são grandes.

Todas as máscaras do Nô são feitas à medida de 21,2 cm, quer a da mulher,

quer a do homem, Beshimi, ou Hannya (exceto a parte dos cornos). Assim, a aparência

do ator fica bem equilibrada e proporcionada.

Quanto ao método de aplainar, existem duas direções: “Masame”, em que se

corta acompanhando a direção dos veios da madeira e “Itame”, virado para o cerne.

Caso o Hinoki contenha um alto teor de resina, “Itame” é a melhor opção pois a resina

seca mais rapidamente e não vem tão facilmente à superfície.

O desbaste da madeira deve ser feito sempre com a parte posterior da máscara

virada para o centro do tronco, pois a resina escorre do centro para o exterior. Ou seja,

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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a frente da máscara é virada para o centro da árvore e o verso é virado para a parte

exterior do tronco. Assim, a resina remanescente sairá para trás da máscara e não para

a face, evitando sujar a superfície pintada.

Há uma máscara da alma do morto na qual é visível a resina. Isto aconteceu

porque ao ser talhada, a frente ficou virada para a parte exterior do tronco e a resina foi

surgindo à superfície com o passar do tempo.

Há outra máscara chamada “Hannya com a carne”. É feita com a madeira que

continha muita resina mas, graças ao desbaste correto, a resina escorreu lentamente

para o verso como se fosse sangue grudado, o que deu origem ao este nome.

Outra vantagem de fazer o desbaste corretamente é de se poder evitar a

deformação da máscara depois de terminar. Senão, devido à peculiaridade de

empenar de acordo com os anéis, muitas vezes acontece que a máscara emagrece,

torce-se num só lado ou empena depois do acabamento.

A largura da máscara é normalmente entre 12 cm (de Uba, a máscara mais

pequena) e 18 cm (da maior máscara como Ôbeshimi ou Kibabeshimi).

Em relação à altura, algumas têm até 15 cm. As grandes são muitas vezes feitas

de paulownia devido ao seu peso (esta madeira é famosa pela sua leveza).

Quando se corta o Hinoki na medida de 21,2 cm, no corte, podemos ver uma

parte ligeiramente encarnada e outra esbranquiçada. A parte esbranquiçada é

chamada “shirota” e trata-se da parte frágil debaixo da epiderme. É preciso ter atenção

especial para que essa camada não faça parte da máscara. Se os orifícios da máscara,

sejam dos buracos de fios, do nariz ou da pálpebra coincidirem com esta parte, a

máscara pode partir-se a partir daí.

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A Moldagem

Depois do desbaste grosso, confirma-se que a frente da máscara está virada

para o centro dos anéis e traça-se uma linha vertical no meio do lado anterior.

Coloca-se “Omotegata” (o molde da máscara), ajustando essa linha vertical com a do

molde, transcreve-se a linha da forma com um pincel fino e com tinta da China. No

momento de colocar o molde é importante verificar a sua frente e verso, uma vez que a

máscara não é simétrica.

A razão de se utilizar o pincel e a tinta da China é para criar habituação a estas

ferramentas, pois o acabamento da máscara é feito com pincéis, desde o cabelo até ao

efeito antiquado. Para a forjar, é necessário dominá-las bem. Uma tradição oral dos

construtores de máscaras diz “escultura metade, pintura outra metade”, o que significa

que, mesmo que a escultura seja bem feita, se o acabamento (pintura, cabelo, efeito

antiquado, ferida, etc.) for mau, ela morre. Naturalmente é difícil controlar o pincel

quando se traçam fios de cabelo na máscara quase terminada. Por isso é essencial

treinar a sua utilização em qualquer situação.

A linha do molde da máscara deve ser desenhada ligeiramente maior do que o

seu tamanho exato. Assim dá alguma margem para ajustes e correções depois de a

completarmos.

Após debuxar o molde da máscara na face posterior, puxa-se a linha dos dois

pontos (testa e queixo) a direito nos topos superior e inferior do bloco de madeira e na

face anterior, ligando-os ao lado da frente, criando a linha central da base da máscara.

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A altura da máscara é aquela entre a parte de baixo da máscara até ao ponto

mais alto do nariz. Esta também deve ser delineada ligeiramente maior.

Desbaste Médio

Começa-se a cortar o perfil da máscara. Com o cuidado de não entrar na linha,

desbasta-se cuidadosamente com o cinzel ou corta-se a direito com a serra, deixando

espaço suficiente e crava-se o cinzel de acordo com a linha. Coloca-se a madeira no

suporte, põe-se o cinzel no perfil e bate-se a ferramenta. Esta técnica chama-se

“bate-cinzel”. Assim, é possível cortar material por cada 0,5 cm direito sem estragar a

linha do perfil, podendo elaborar corretamente a forma da máscara.

A seguir, esculpe-se o molde vertical para o fundo de acordo com a linha central.

O molde vertical é, por outras palavras, a linha do cume da máscara visto de lado.

Quando se puser o molde, tem de se o manter no mesmo ângulo, senão a parte do

queixo ou da testa sai demasiado e a obra ficará muito longe de ser sequer uma

máscara.

Os dois lados do lábio superior são ligeiramente levantados. Quando se ajusta

essa parte, é importante deixar espaço suficiente para esculpir. Outra maneira é definir

antecipadamente os pontos mais altos do queixo e da testa e esculpir-se ajustando

esses ângulos.

De qualquer maneira, enquanto se molda, tem de se imaginar sempre no

material a imagem final da obra, ajustando os moldes.

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Nunca se deve dar demasiada importância apenas aos moldes e perder a

imagem geral.

Quando se molda o molde vertical, ao esculpir, ajusta-se o molde e, ao regular a

parte que não se encaixa, desbasta-se. Depois de repetir este processo até se ajustar

perfeitamente o molde no fim, a máscara já deve estar acabada com alguma perfeição.

É importante desbastar grosseiramente primeiro, deixando alguma margem para

esculpir gradualmente em pormenor, pouco a pouco mas com consistência,

cuidadosamente, prestando especial atenção aos detalhes.

O ponto mais alto do molde vertical é a ponta do nariz. A linha desta ponta deve

ficar até o fim do processo pois é uma linha de referência importante. As linhas na

cabeça e no queixo também são importantes para delinear a linha central. Devem ser

bem traçadas pois terão uma função importante para criar uma máscara

simetricamente equilibrada.

Como a máscara é moldada cada vez mais ajustada ao molde, a linha central do

molde vertical vai desaparecendo. É importante recuperar constantemente a linha com

tinta da China clara, verificando sempre os três pontos: o cimo da cabeça, a ponta do

nariz e zona inferior do queixo.

Quando se traça com a tinta da China clara, a tinta infiltra-se na madeira. A linha

ficará depois da gravação leve, servindo como referência. Além disso, é pouco viscosa,

não suja a mão e não mancha a máscara. Por isso, fazer tinta da China o mais clara

possível é um dos segredos para se terminar bem a máscara.

Para provar esse facto, se observarmos a parte central de uma máscara antiga

cuja oca se tenha desprendido, a sua linha central traçada é tão precisa como se se

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tivesse utilizado o tira-linhas. É a prova de que, na altura, traçava-se com cuidado e

prudência.

Depois de terminar a moldagem vertical, determina-se a posição da extremidade

dos olhos. Mede-se a distância com o compasso de pontas fixas entre a junção debaixo

do nariz e a extremidade do olho e cruza-se com a medida entre os cantos dos olhos.

Esta medida depende da máscara.

Em geral, quanto mais idade a personagem da máscara tiver, mais alta é a

posição dos olhos. Por exemplo, a de Koomote e Wakaonna é de 4,09 cm, Magojirô e

Zôonna é de 4,24 cm. O espaço entre os cantos dos olhos também aumenta de acordo

com a idade: Koomote tem 3 cm, Wakaonna tem um pouco mais de 3 cm e Magojirô

tem 3,3 cm.

Esta medida é apenas o padrão pois existem Koomote (máscara de uma jovem)

com a medida um pouco maior. Mas, em geral, podemos ver que quanto mais velha for

a personagem, mais distância existe entre os olhos, nariz e boca na máscara.

Depois de medir, molda-se a forma geral com o cinzel de bater.

Molda-se de acordo com os anéis da madeira de cima para baixo a fim de evitar

qualquer quebra ou racha.

Antes de se desbastar a madeira com o cinzel de bater, para conseguir o

esqueleto, observa-se muito bem a máscara que se pretende reproduzir, desenhando

várias esboços de vários ângulos até sabermos de cor todo o seu perfil. Assim, a

máscara estará quase igual à anterior.

Atendendo a este processo – imaginar uma máscara no material, fazer o esboço

nele com a tinha e esculpir com as goivas – destaca-se a importância do esboço.

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Diz-se que antigamente um mestre fazia até ao desbaste fino e o seu discípulo

terminava o resto. Isto mostra que a forma-base da máscara depende dos desbastes.

Neste processo é que se define o nível da autenticidade da máscara, mesmo que o

resto seja feito pelo discípulo, chegando a terminá-la bem. É um bom exemplo de quão

importantes são estas duas primeiras fases.

A seguir, esculpe-se o molde “Hanaue” (cima do nariz), medindo sempre entre

os cantos dos olhos e a base do nariz. Ajusta-se o molde, deixando a altura da parte

central dos olhos pois são mais altas do que a dos cantos dos olhos. Seguidamente

ajusta-se o molde “Hanagata” (o molde do nariz) que é a parte maior do nariz e

“Uekuchi” (o lábio superior) e “Shitakuchi” (o lábio inferior) respetivamente. Em vez de

esculpir cada molde um a um, é importante esculpir ajustando com as outras partes;

por exemplo: quando se molda 80% do “Hanaue”, “Hanagata” deve-se estar a 60%,

enquanto “Uekuchi” 40% e “Shitakuchi” 30-50%, evitando, assim, gravar fundo demais

ou perder o equilíbrio geral.

O ajuste do molde do nariz faz-se tirando a medida simétrica da linha central da

cara com o compasso, traçando sempre com a tinta da China e gravar ajustando o

molde, inclinando para a frente 3,2 cm a partir da parte mais alta do nariz. Ao esculpir, é

essencial recuperar sempre a medida a partir da linha central pois cada vez que se

esculpe desaparece a tinta.

Olhos e nariz de máscaras normais (homens e mulheres) têm nível igual. No

entanto, em quase todas, a boca não é simétrica. Olhando a máscara de frente, a parte

esquerda da boca é cortada mais profundamente (a parte esquerda do molde da boca

também é mais comprida 0,3-0,6 cm a partir do centro da boca). Deve-se certificar bem

para o ajustar no centro e ao mesmo tempo ajustá-lo de acordo com o perfil dos lábios,

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inclinando o ângulo para a sua ponta. Se assim não for, resultarão lábios

estranhamente contorcidos. Aqui também é importante traçar os cantos da boca

durante a gravação.

O Desbaste Fino em Pormenor

Acabando o desbaste, o processo seguinte é a moldagem de partes detalhadas.

Neste processo utiliza-se a goiva. Pega-se nela com a mão direita como se

fosse o pincel e corta-se aos poucos, juntando sempre o polegar da mão esquerda. Por

estar acompanhado com o polegar, consegue-se um controlo mais delicado da goiva,

sem escorregar, permitindo parar sempre onde quiser.

Desenha-se no material com a tinta da China aquele esboço martelado na

cabeça e esculpe-se. Desenha-se o perfil com a tinta, traça-se e cinzela-se um pouco

mais fundo. É um momento de total absorção para o construtor da máscara. Este

método de aplicar a tinta da China e esculpir vem do método da escultura budista.

Quando se desenha e se traça a linha, fazemo-lo afastando os olhos. Depois

reflete-se sempre a peça ao espelho, de vários ângulos, confirmando-se a precisão do

esboço.

No atelier de construtor da máscara há sempre um espelho grande encostado a

cerca de um metro. Isto é para evitar a margem de erro humano pois os olhos humanos

têm o hábito de não ver uma linha horizontal direita contínua, mas veem ou a parte

esquerda ou direita mais para cima. Além disso, é a uma certa distância que se capta a

totalidade das obras de pintura ou escultura. Com o uso do espelho cria-se essa

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distância, observando-se melhor a máscara. O espelho facilita também ver a máscara

esboçada de vários ângulos.

O coração da “cópia” deve ser como o espelho. Como diz a frase antiga: a alma

do forjador da máscara deve ser como um espelho. Desde sempre, numa máscara, um

exprimia dez e dez exprimia o nada absoluto. Não se deve ignorar nem o mais pequeno

corte. É importante esculpir com cada goiva com alma e tranquilidade.

A Boca

Diz-se que “uma máscara começa na boca e termina nos olhos”. Em primeiro

lugar, termina-se a boca. Depois de ajustarmos os moldes de “cima” e “baixo” dos

lábios, traça-se a linha da boca com o molde da boca, definindo assim a medida entre

os dois cantos e começa-se a esculpir a parte superior do lábio. Depois de gravar

ligeiramente o lábio e os dentes superiores, traçam-se linhas que ligam a borda inferior

dos dentes superiores aos cantos da boca. É pela forma como estas linhas são

alinhadas que a categoria da máscara é definida e essa será a categoria base da

máscara geral.

Nas máscaras de Koomote, a sua dignidade está relacionada com a inclinação

da linha, desde subir os cantos da boca 0,3 cm ou até manter a linha a direito.

As únicas máscaras do rosto com riso são as do género de Okina, Waraijô e

Shôjô. As outras podem ter sorriso mas não o riso. Os cantos de boca de algumas

máscaras de Koomote são cortados em forma de U para marcar o sorriso. Depende do

grau dessa forma que o sorriso fique mais forte ou ligeiro. Se o sorriso é mais forte, a

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categoria da máscara diminui enquanto a que tem menos sorriso aumenta. Assim,

mesmo dentro do mesmo género, podem-se separar as categorias. Por exemplo, a

máscara para Shite (o ator principal) apresenta a boca com linha direita e a de Tsure (o

ator secundário) tem a boca cortada ligeiramente para cima.

As bocas de Zôonna, Fukai e Shakumi são cortadas ligeiramente mais para

baixo. As de velhas como Uba são bem para baixo.

A seguir ao corte da boca, molda-se o lábio inferior. Abre-se o espaço entre os

dentes superiores e o lábio inferior de acordo com o tipo da máscara, formando-o com

mais volume. Algumas máscaras de homem, Shintai, Ayakashi, Dôji, Jidô, Shôjô,

algumas de militares, Hashihime, Hannya, Namanari, divindades e algumas de alma

penada têm dentes inferiores e a Shakumi tem vestígios de dentes.

O lábio de cima termina-se sempre dos cantos do lábio para o centro, suave e

ritmadamente, para o seu centro ficar ligeiramente levantado. A forma do lábio inferior

molda-se bem redonda (quando se observa do lado) em Koomote, menos redonda em

Wakaonna e volumosa em Zôonna.

Uma vez acabada a parte da frente até este ponto, esculpe-se o verso, a parte

côncava com a goiva (largura de 1 cm). De acordo com as referências cortadas por

serra e cinzel na frente, esculpe-se em fundo e abre-se a boca do lado do verso. Em

geral, a espessura dos dentes superiores é de cerca de 0,55 cm mas a de Hannya e

Shikami chega a ter 0,75 cm. Se se gravar esta parte demasiado fina, perderá a

sensação real dos dentes. Como a rocha ornamental de jardim que impõe mais a sua

presença quando 80% dela está enterrada do que quando se vê o total em cima da

terra, um objeto escondido faz sentir mais profundidade e presença. A mesma ideia é

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aplicável às máscaras. Deve-se dar muita importância ao cuidado a ter com os

pormenores invisíveis.

Quanto à relação entre os dentes de cima do verso e a parte central superior do

lábio em baixo, em Koomote, por exemplo, quando percorre verticalmente a parte de

trás dos dentes superiores, o ponto de chegada é a parte central do lábio inferior. Isto

deve-se à transpiração. Como o ator está com muita roupa depois de colocar a

máscara, transpira imenso mesmo no inverno. A transpiração da cara e da testa

escoará pelo verso da máscara e, para evitar que saia para a frente, o lábio inferior é

moldado para a receber. Os buracos do nariz no verso também são feitos inclinados

para não escoar para fora. Se ainda houver possibilidade de isto acontecer, utiliza-se

papel oleado para o impedir. A sujidade intensa na parte de dentro do queixo de uma

máscara antiga foi causada pelo escoamento da transpiração dos atores.

Para proteger a máscara deste tipo de mancha, cada vez que termina uma peça,

o ator coloca-a com cuidado com a parte da frente e o nariz para cima num pano de

algodão bem seco, secando a transpiração.

Nas máscaras com dentes em cima e em baixo (caso de Ayakashi, alma penada,

etc.), a parte da frente de ambos encontra-se verticalmente na mesma linha. No

entanto, no verso, os dentes inferiores são moldados mais finos, servindo assim como

recetáculo. Por isso geralmente os dentes superiores destas máscaras são mais

grossos. A parte central dos dentes apresenta mais espessura, ficando gradualmente

mais fina em direção aos cantos da boca. A espessura ideal depende do tipo de

máscara. Embora algumas antigas como de Hannya apresentem os dentes menos

grossos, máscaras com dentes finos perdem geralmente a sua categoria.

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As de mulheres jovens como Koomote têm apenas dentes superiores que se

escondem no lábio superior ao aproximarem-se dos cantos. Esta parte dos cantos da

boca já não mostram os dentes e o lábio ganha redondeza e curva para o interior,

produzindo um sorriso ligeiro. O perfil inferior do lábio inferior levanta-se cerca de 0,9

cm do centro para os cantos. No entanto, a linha superior é direita, o que origina

elegância. Se esta linha estiver curvada, ganhará semblante mais amoroso mas

perderá a sua categoria. Por isso, esta linha deve ser sempre direita não só nas

máscaras femininas mas também nas masculinas.

Quando se observa de frente a linha superior do lábio inferior, esta parece

curvada mas, de facto, se se olhar ligeiramente de baixo, parece direita pois foi cortada

para cima na altura de corte acima mencionada. Se ela não estiver direita, a máscara

perde-se o seu grau de dignidade.

Terminando a boca, pintam-se os dois lábios com tinta da China vermelha e os

dentes com preta, e reflete-se no espelho, observando-se assim de várias direções,

avaliando o seu grau e definindo-se a categoria geral da máscara, a partir da boca.

Quando olhamos para a mesma parte da oca escamada de máscaras antigas,

os lábios são pintados com vermelhão e os dentes com tinta da China, o que comprova

o mesmo processo de hoje.

O Nariz

A seguir, esculpe-se o nariz. O nariz representa bem a saúde e força da

máscara. Sendo o elemento central da cara, chama a atenção. Os narizes de muitas

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máscaras antigas são cheios pelo que lhes falta alguma elegância. Mas por outro lado

apresentam mais ingenuidade. A partir do período do apogeu do Nô, a carne foi sendo

eliminada, deixando apenas o mínimo indispensável e as narinas tornaram-se um

pouco maiores e as asas mais finas.

As narinas têm pouca profundidade. As mais profundas têm 0,45 cm e as de

Koomote têm apenas 0,30 cm e vê-se o interior da máscara quando se espreita por

baixo.

A distância entre as duas narinas é grande. A menor tem pelo menos 0,60 cm, o

que é muito diferente da proporção no rosto do humano. As de Okina têm de 0,90 -

1,20 cm entre elas e as de Hannya, embora o seu nariz seja pontiagudo, também são

afastadas. Se estivessem juntas, perder-se-ia a generosidade e tornar-se-ia mais

inquieto e não refinada.

Quando se produz uma máscara através da referência de fotografias, deve-se

ter atenção especial, pois o tamanho do nariz depende muito do ângulo em que a

fotografia é tirada. O tamanho do nariz na fotografia é definido através do rácio entre a

posição de onde se foca, a profundidade da máscara e a posição do nariz. No caso de

a fotografia ser do tamanho original da máscara, o nariz revela-se maior do que o

original. É importante verificar bem a medida de cada elemento pois a fotografia não é

mais do que uma referência.

No caso de se revelar manualmente o negativo, a medida vertical da máscara

em si fica ligeiramente mais comprida pois, ao secá-lo em máquina, o negativo é

esticado verticalmente pelo rolo.

Deve-se igualmente atentar na largura horizontal. A distância ideal para

fotografar uma máscara é de 70 cm a um metro e a sua medida será ampliada através

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da lente da máquina fotográfica, o que afeta ligeiramente todas as medidas originais.

Por exemplo, se a distância entre os olhos na fotografia for de 3,33 cm, a medida

original será de menos de 3 cm, se a largura do nariz for de 3 cm, a original será de

menos 2,70 cm.

Os Olhos e a Testa

Os olhos são moldados no fim de todo o processo. É nessa altura que se grava a

inclinação do plano dos olhos. O ângulo do plano do olho direito é diferente do plano do

olho esquerdo. As máscaras de mulheres e homens (caras bondosas) têm o olho

esquerdo (para a máscara) mais inclinado do que o direito. Os dos demónios e

bestas-feras são o contrário: o esquerdo é gravado mais a cima.

Ao começar a moldar os olhos, ajusta-se primeiro o molde “Menoshita” (pálpebra

inferior). O sítio por onde ajustar este molde depende da máscara. Por isso, deve-se

tirar a medida exata de cada uma. Geralmente, esse ponto fica no cruzamento entre

uma linha paralela à linha central a 1,50 - 1,70 cm de distância da mesma, com uma

linha transversal distante 4 - 4,20 cm da parte inferior do nariz. Então, elabora-se a sua

forma, como baixar ou levantar os cantos dos olhos ou levantar apenas os cantos,

procurando a melhor expressão de acordo com a categoria da boca.

A linha dos olhos de máscaras femininas é quase toda direita. A da Zôonna

baixa ligeiramente uma vez e levanta-se no fim. Mas embora faça parte de mesmo

género, a de Nakizô é direita.

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A seguir esculpem-se as arcadas supraciliares. Deve esculpir-se o mais

suavemente possível. Senão, surgirão sombras severas na cara. O efeito desejado é a

de que existem fluxos a convergirem para as têmporas.

As arcadas supraciliares moldam-se de lado 1,50 cm do bordo de cima do olho

para a fonte da cabeça. São gravadas ligeira e suavemente em 0,30 cm nas partes das

têmporas.

Seguidamente ajusta-se o molde da testa. Deve-se prestar atenção a vários

pontos especialmente nas máscaras de mulher jovem. A testa representa o raciocínio e

ocupa grande área da cara. A forma de moldar a testa é diferente de acordo com a

idade da máscara, produzindo, assim, bons efeitos de sombra se vista de longe. As

máscaras femininas de estilo antigo apresentam a testa pequena, pelo que lhes falta a

elegância intelectual e parecem rústicas. Além disso, por terem a testa pequena,

parecem menos amorosas pois os olhos, nariz e boca são mais espaçados na cara.

A partir da Era Muromachi, as de Koomote têm a testa grande e criam uma

expressão mais amorosa pois os elementos da cara são mais centralizados. Ao mesmo

tempo, observada a uma certa distância reconhece-se claramente o sentido da

modelação e a beleza da escultura.

A de Wakaonna possui a maior testa de todas as femininas. A sua forma é um

trapézio e considera-se que a idade esteja entre 17 e 20 anos. A testa de 17 anos é

maior do que a dos 20 anos.

As de Magojirô são parecidas com as de Zôonna, à exceção da testa, que é

achatada e sem tensão. Parece tratar-se de uma mulher casada por volta dos 20 - 23

anos. A sua testa tem geralmente a forma elíptica. A de Zôonna, por outro lado, é

quase redonda e transmite grande tensão.

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Em Fukai e Shakumi as covinhas acima dos olhos já têm mais profundidade e os

ossos de traço da sobrancelha são mais desenvolvidos. Mais redonda, apresenta a

força materna. Quanto a Uba, torna-se mais magra e parece um crânio feminil

levemente coberto de pele.

O crânio não é igual para todos. Cada máscara possui crânio próprio e deve-se

estudá-lo muito bem. Como acontece nas máscaras de militar, Yaseonna (mulher

magra), Yaseotoko (homem magro), o osso central da testa é proeminente e o de cima

de sobrancelha é mais encovado. A testa de Hannya é pontiaguda e saliente, ao

contrário da de Ayakashi, cuja parte central é metida para dentro. O crânio de

Yaseonna mostra muito bem quão feminina ela é. Por isso ao forjar a máscara de

mulher, não se dominará a arte até se fazer Yaseonna. É importante forjá-la o mais

cedo possível para conhecer a sua estrutura.

Quanto à testa de Koomote, é a mais difícil e delicada de todas. A forma geral é

a de um coração ao contrário, saindo as duas covinhas da junção do nariz para cima e

através dos cantos externos dos olhos, sobressaindo ligeiramente para os dois lados. É

como se fosse uma rapariga de 15 - 16 anos com os músculos faciais firmes. Por outro

lado, a parte de cima tem menos carne e é mais tensa para expressar a inteligência.

Desde tempos antigos diz-se que uma testa grande demonstra grande inteligência.

Além disso, a testa de Koomote não cria nenhuma sombra em cima dos olhos, não

causando a impressão severa de distância.

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Os Olhos e o Acabamento em Pormenor

Em seguida corta-se diagonalmente debaixo dos olhos. O objetivo é criar

volume diagonal na pálpebra inferior. Corta-se mais profundamente o interior do globo

ocular, quase nada na extremidade e corta-se até ao canto do olho. Nesta altura

ajusta-se a forma geral do olho. Primeiro, elimina-se a direito, da extremidade para o

olho, com goiva mesmo por baixo do olho em 0,6 cm de largura e 0,06 cm de

profundidade. A seguir corta-se a pálpebra superior em direção à extremidade com

ângulo, para esta não ficar coberta. Para o canto do olho corta-se igualmente com

ângulo.

Depois define-se a localização da pupila. É o espaço criado entre 1 - 1,8 cm a

partir do canto do olho. O volume inferior da pálpebra acima mencionada deve ter maior

amplitude nesta parte.

O ponto mais alto da bochecha é 0,6 cm do lado das asas do nariz. Traça-se

uma linha horizontal a partir deste ponto como se fosse o osso malar, raspando o

excesso. Traça-se também outra linha semicircular a partir do lado das asas, passando

ao lado da boca, o queixo e até ao lábio inferior. Deve-se fazer pelo menos quatro

linhas, raspando-as e recuperando-as várias vezes para tirar pouco a pouco o excesso

da carne. Se a máscara estiver muito inchada é amorosa mas perde a elegância e fica

normal. Por isso, deve-se desbastar o mais possível, considerando o equilíbrio entre a

boca, nariz e bochecha.

Em qualquer máscara, quando se olha de frente, o seu lado esquerdo é mais

magro e caído, enquanto o lado direito é mais inchado. Isto é comprovado pelo molde

da boca cuja parte esquerda é mais funda.

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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Quanto à relação entre boca e bochecha, existem várias maneiras de moldar os

cantos da boca. Os de Koomote desenham uma curva graciosa ascendente, enquanto

na Zôonna, Fukai e Shakumi, a linha entre os dois cantos da boca e a bochecha é mais

inclinada para baixo pois o osso malar é mais caído. Além disso, enquanto a boca de

Koomote tem 4,2 cm, a de Shakumi tem 4,8 cm, o que demostra firmeza e força para

lutar pela vida.

Depois de moldar em pormenor, traça-se a linha que liga a parte de cima e de

baixo do molde vertical e igualmente no da frente e verso. A seguir pinta-se o cabelo. A

2,7 cm da ponta superior da máscara encontra-se o centro da divisão do cabelo.

Pintam-se fios de cabelo que descem em direção à orelha. Após ser pintada totalmente

com tinta da China, pinta-se a sobrancelha com tinta clara.

Durante todo o processo reflete-se continuamente a máscara no espelho,

observa-se bem, traçando com a tinta. Quando pintado o cabelo, sobressaem as partes

não necessárias na testa ou bochecha. A bochecha e a boca são moldadas depois de

se fazer o esboço de tinta, dando a sensação de volume. Neste caso também convém

utilizar a tinta clara por ser mais fina.

Esculpir a Parte Interna da Máscara

Terminando os pormenores, molda-se a parte interna da máscara. Utiliza-se o

formão, batendo-o com macete de madeira dos dois lados, em cima e em baixo. Às

vezes é utilizado o cinzel torcido mas esculpe-se bem também desta maneira. O

acabamento é feito com a goiva de 2,1 - 2,4 cm de largura ou se usar a goiva grossa,

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 61

refina-se com a goiva mais estreito (0,6 - 0,9 cm), ou raspa-se com a ferramenta

chamada “Nasori”. A forma de esculpir o verso depende do autor e do tipo de máscara.

Existem várias máscaras nas quais o autor deixou uma marca chamada “o formão

escondida”, o seu próprio vestígio do formão.

Em máscaras antigas, a marca do autor é feita com marca de fogo, marcação

direita ou o seu carimbo original. No entanto, a melhor maneira de avaliar o autor é

fazê-lo através dos traços da plaina, uma vez que estes definem a característica de

cada artista.

Nenhuma das máscaras da Era Muromachi tem a marca de fogo. De acordo

com o hábito na altura, em espadas para oferecer a Deus ou ao Senhor feudal, não se

marcava o nome do autor. Por isso, tal como as oferendas, as máscaras também não

tinham o nome gravado.

Este hábito continuou até a Era de Momoyama. Em máscaras excelentes não há

a marca de fogo.

Na Era Edo, com a criação de um sistema hereditário, começou a ser utilizada

oficialmente a marca de fogo. Algumas máscaras depois da Era Edo não apresentam a

marca mas isto acontece por se ter copiado fielmente a parte do verso de uma máscara

antiga.

Abrir os Olhos

A boca e o nariz abrem-se por trás. Terminando bem a parte interior, abrem-se

as pupilas dos olhos. Como uma frase antiga diz: “os olhos dizem mais do que a

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língua”; este elemento é o mais importante do processo. O dia em que se realiza este

passo é “o dia da abertura dos olhos” ou “o dia da perspicácia” e deve-se escolher um

momento refrescante da manhã cedo.

No caso de Koomote, marca-se em primeiro lugar os pontos de 1 cm e 1,8 cm da

extremidade. As pupilas são quadradas mas a linha do lado da extremidade é inclinada

para fora da máscara. Esta linha fica num prolongamento da linha que vem da ponta da

boca. Este é o básico de “olhar todos os lados”, uma técnica que faz com que a

máscara olhe para si de qualquer ângulo.

A seguir traça-se outra linha a cerca de 1,8 cm da extremidade. Olhando a

máscara para a frente, no olho esquerdo, esta linha levanta-se verticalmente, enquanto

no olho direito vem de cima para baixo, inclinando para o interior. Ou seja, a pupila

esquerda alarga-se para baixo e a direita para cima. Desde tempos antigos diz-se na

transmissão oral, que “molda-se o olho esquerdo da máscara virado para baixo e a

olhar para todos os lados, e o olho direito virado para cima e a olhar para todos os

lados”. É a matéria mais importante da construção.

O espaço entre a pálpebra superior e inferior também está inclinado, o esquerdo

é para baixo e o direito para cima, produzindo um efeito especial e forte para as

pessoas que a observam.

A parte branca do olho é geralmente moldada com cerca de 0,15 a 0,24 cm. As

extremidades de dois lados são mais profundas, ficando pouco fundo ao aproximar da

pupila. As linhas superiores e inferior são cortadas a direito. Depois, na linha inferior,

exceto da parte da pupila, talha-se uma ligeira curva. Ou seja, nos dois lados da pupila

ficarão duas linhas ligeiramente curvadas. Assim, pelas curvas da linha inferior e pela

parte da moldagem curvada, serão possíveis expressões mais delicadas e complexas

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conforme a inclinação, direção e ângulo da máscara. Estas linhas são menos curvadas,

quanto mais alto for o grau da máscara.

Corta-se o interior da linha da pupila, perfura-se à frente com agulha grossa.

Abre-se mais com a goiva de 0,3 cm e depois abre-se por trás com a goiva um pouco

maior. A profundidade do buraco da pupila mantém o mesmo tamanho ao longo de

0,15 cm e depois alarga-se para o interior como se fosse um funil. Como para os

dentes, não se alarga imediatamente a fim de manter a sua grossura e profundidade.

Ao alargar os olhos por trás, é importante colocar a máscara muitas vezes na

cara (ligeiramente alta) para confirmar se se vê o alvo único. Caso não sejam alargados

corretamente, vê-se o objeto sobreposto ou duplicado. Assim, o ator perder-se-á na

sua posição no palco pois verá o pilar de referência duplicado ou desaparecido.

Na máscara de Nô, a medida entre as pupilas é mais estreita do que a do

humano. Faz parte da técnica facial da expressão forte e tensa como faz o ator de

Kabuki na sua pose, acercando os olhos. Se, para se ver melhor, se esculpir com mais

distância, diminuirá a elegância e a dignidade tensa da máscara Nô. É da competência

do artista elaborar a construção de tal maneira que se possa ver corretamente o alvo

através dos dois buracos aproximados.

As Pálpebras

Terminando as pupilas, pinta-se o seu interior com tinta da China e, na parte

branca do olho do canto às extremidades, traçam-se cerca de treze linhas finas em

radial com pincel extrafino, conforme a curva. Pinta-se também a pálpebra superior 0,6

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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cm no máximo. Acima dela, com o mesmo espaçamento, traça-se a pálpebra grande,

moldando-a. A única máscara que não tem pálpebra grande é Deigam (salvo algumas

exceções). À distância geralmente parecem ter os olhos estreitos com pálpebras

simples mas, na realidade, todas as máscaras têm pálpebras dobradas. Olhando de

longe, a tinta da pálpebra superior sincroniza com a sombra do relevo da pálpebra

grande, criando o efeito de ser uma pálpebra simples e firme.

Ao relevar a pálpebra grande, a sua linha não se deve aproximar muito nas duas

extremidades, pois torna-se demasiado humano e perde a elegância.

Mesmo as de Koomote, que são moldadas mais aproximadas do que as de

Zôonna, têm a distância de 0,21 a 0,24 cm dos cantos dos olhos, mantendo a

dignidade. Em Zôonna a linha é distante em cerca de 0,3 cm, o que demostra forte

distinção. Deve-se reconhecer também que o espaço de 0,6 cm entre a borda superior

do olho e a linha da pálpebra grande deve ser plano e não saliente, uma vez que

pretende mostrar redondeza da pálpebra.

Depois, deixando a linha próxima da pálpebra superior da máscara, desbasta-se

o volume do espaço entre essa linha e a pálpebra superior. Se esta parte estiver

volumosa, os olhos parecem inchados.

As linhas da bochecha são simples e as do queixo são descontraídas.

Especialmente as curvas debaixo dos lábios juntam-se debaixo do queixo, estendendo

descontraidamente e criando, assim, traços graciosos. Ao fazer o acabamento geral, é

importante repetir esta imagem para completar uma boa máscara.

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Os Buracos para Cordões

Terminado o acabamento, furam-se dois buracos para os cordões no

cruzamento de 1,8 cm a 2,1 cm acima da linha horizontal dos olhos e 0,9 a 1,2 cm do

bordo da máscara. Depois de definir a localização, marca-se com a tinta, confirma-se o

equilíbrio no espelho e após correção, fura-se com a agulha. Aquecer ao rubro uma

vareta de ferro fina e afiada com dimensão de 0,45 cm e insere-a no buraco,

queimando e alargando-o nitidamente. Esta técnica tem duas vantagens: o bordo do

buraco consolida-se melhor por carbonização e conseguem-se os buracos mais nítidos

do que se forem feitos por instrumentos cortantes.

Acabamento Final

Enfia-se os cordões nos buracos e pendura-se a máscara na parede

(ligeiramente mais alta do que a altura dos olhos). Observa-se durante cerca de duas

semanas, alterando a altura, iluminando-a de várias direções, inclinando-a em vários

ângulos de longe ou perto, ajustando, assim, a impressão geral da máscara.

Quando se olha a máscara alguns dias depois de estar completa, ela é vista de

um ângulo um pouco diferente. Assim, a máscara irá gradualmente atingindo a sua

perfeição.

Sendo uma obra que deve suportar o olhar do público durante longo tempo, é

importante mostrá-la a várias pessoas, família, vizinhos, atores, amigos, etc., e ouvir as

suas opiniões. Deve-se recebê-las com toda a modéstia e analisá-las.

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O Rosto do Nô

– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

66

Depois de terminar a parte da frente, termina-se o verso. Existem várias formas,

mas em geral, é pintada a laca para evitar infiltração de humidade, pois provoca

inchaço da madeira, o que provoca a quebra da tinta de oca da frente.

Depois de esculpir o interior com o formão, no caso de deixar o rasto do formão,

pinta-se logo a laca. Neste caso, deita-se a laca diretamente sobre a madeira. Quando

parar a absorção, repete-se uma ou duas vezes, e termina-se tirando a sobra da laca

com um pano.

No caso da madeira com alta aderência, a laca agarra melhor quando infiltrada

bem no material do que se for aplicada em cima da base, e, assim, nunca saltará

mesmo depois de vários anos. A técnica da “laca esfregada” é baseada nesta forma.

Após colocar a laca uma ou duas vezes, esfrega-se logo com um pano de algodão

seco e macio. Depois de repetir quatro ou cinco vezes esta operação, para-se a

infiltração da laca. Por se tirar a laca remanescente de cada vez, cada camada que fica

na máscara torna-se mais fina, e por se infiltrar pelo menos até quatro vezes, consolida

profundamente a superfície, fortalecendo a madeira. Utiliza-se normalmente a laca

meia refinada. Hoje em dia encontra-se a laca em tubo que facilita manter o estado

oleoso de cor branca de leite se se fechar logo sem deixar entrar o ar após a utilização.

Antigamente mantinha-se num recipiente cilíndrico de papel, colado com o papel

oleado para impedir o contacto com o ar e guardava-se numa caixa de madeira. Se

algo correr mal e entrar o ar, a parte em contacto com o ar torna-se viscosa e altera a

sua cor de âmbar castanho para preto acastanhado, e acaba por coagular. Uma vez

coagulada a sua superfície, a laca jamais será igual e não deve ser utilizada. Mesmo

eliminando a parte dura, custa a secar e infiltrar.

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NOMURA RAN [Tradução: Sakamoto Mamiko] 67

Uma das características interessantes da laca é a compatibilidade com o saqué

(o vinho de arroz). Quando misturado com o saqué, acelera a sua secagem. Se se

mistura muito bem com a laca ligeiramente seca, voltará a ficar como laca normal e

poderá ser utilizada normalmente.

Outra forma de a usar é aplicar no verso uma base feita com água, tinta da

China e pó de concha vermelha. Após secagem, deita-se um pouco da laca e

esfrega-se com um pano para polir. Aplica-se novamente a laca duas ou três vezes,

limpando de cada vez com o pano de algodão e leva-se a máscara para um espaço

fechado para secar. Quando estiver meia seca, aplica-se mais duas ou três vezes a

laca e limpa-se. Da última vez esfrega-se bem com o pano e regressa à câmara

durante de trinta minutos a uma hora. Quando estiver outra vez meia seca, espalha-se

o pó da mó, deixando secar bem. Molha-se em água a parte do corte direito de uma

ferramenta feita com três cordões da palha bem apertados por fio, coloca-se o pó da

mó e pole-se levemente atrás da máscara. Desta forma, será eliminada a parte alta da

laca e aparece o rasto da goiva.

Existem ainda outras formas: fazer o acabamento vermelhado através da base

apenas com a concha vermelha, espalhar o pó da zizânia (uma espécie do arroz) em

vez do pó da mó, ou para impedir a infiltração da laca, aplica-se dióspiro adstringente

na madeira para manter a cor desta. Pode-se também aplicar uma base feita de loesse

e grude e esfregar a laca. As formas de acabamento são infinitas.

Uma coisa que se deve manter no coração neste processo é realizar o

acabamento conforme a máscara: interior da máscara com expressão calma deve ser

uma máscara gentil e com expressão violenta deve ter um acabamento feroz também.

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– As máscaras do teatro tradicional japonês e a sua construção –

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A parte interior da máscara desempenha também um papel importante para criar o

ambiente e ajudar a postura do ator.